Jornal da Lei

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Jornal da Lei Porto Alegre, terça-feira, 9 de outubro de 2018 - Nº 1 - Ano 22

Brasil convive com desrespeito às normas constitucionais Direitos sociais são principal item ao qual a população não tem o devido acesso Suzy Scarton

suzy@jornaldocomercio.com.br

“Ninguém respeita a Constituição, mas todos acreditam no futuro da nação.” A célebre frase de Renato Russo, um dos versos da música “Que país é este?”, permeia o imaginário de uma Nação que teve de se acostumar com o constante desrespeito às suas muitas leis. Escrita um ano antes de promulgada a Constituição Federal de 1988 (CF) e dois anos depois do im do período de Ditadura Militar, a máxima se encaixa no contexto da sociedade atual e, talvez, também resuma a situação brasileira dos próximos trinta anos. A Constituição de 1988 nasceu do trauma causado pelo regime autoritário que acabava de indar. Procurando oferecer um alento à população, e proporcionar uma garantia de que tamanha barbárie não tornaria a se repetir no Brasil, os 487 deputados federais e 72 senadores construíram um texto que discorria sobre todos os assuntos que poderiam ser do interesse do cidadão. Essa prolixidade é uma das razões, dizem os especialistas, pelas

quais a Constituição sofreu e sofre, ainda, tantas alterações. Embora os legisladores cedam a pressões sociais e ao casuísmo, o próprio texto já pressupõe sua reforma, por meio das emendas constitucionais. O documento, em si, é uma obra em construção, que se adapta e se molda às necessidades da nação que rege – e, se assim não o fosse, seria uma obra ineicaz. No entanto, apesar dessa capacidade de adaptação, o texto se propõe a ser cumprido – algo que, por vezes, não ocorre. A missão fundamental da CF é estipular as regras do jogo democrático, deinindo os marcos institucionais sobre os quais os poderes políticos atuam. Esses próprios políticos, porém, são jogadores que nem sempre respeitam as normas. E, além deles, também estão no tabuleiro os cidadãos comuns que, às vezes por inércia, outras, por ignorância, parecem esperar que poderes maiores do que eles resolvam todos os problemas, sem participação popular. Um dos grandes trunfos do texto constitucional é o Artigo 5º, o garan-

tidor de direitos. Extenso, ele abrange uma série de questões às quais o cidadão tem direito, como saúde, educação, moradia e segurança. Engana-se, porém, quem acredita que esses direitos são assegurados. Um levantamento de 2017 do Conselho Federal de Medicina mostra que existem 904 mil pessoas esperando por uma cirurgia eletiva no Sistema Único de Saúde (SUS). Outro estudo, da Fundação Getúlio Vargas, com dados do Instituto Nacional de Geograia e Estatística, aponta que o déicit de moradia em 2018 chega aos incríveis 7,7 milhões. Na educação, o Brasil também não vai tão bem: o ano de 2017 terminou com menos da metade das crianças de zero a três anos matriculadas em creches em todos os estados. Somente 32,7% das crianças dessa faixa etária são atendidas. A desigualdade social evidencia essa ausência do Estado: no Brasil, quem tem mais dinheiro consegue agendar consultas particulares, matricular os ilhos em escolas privadas e alugar imóveis para ter onde morar. O acesso à Justiça também

é seletivo. Embora a Defensoria Pública cumpra o papel de oferecer auxílio a quem não possui recursos, o tratamento de criminosos endinheirados sempre foi mais brando no País. Há, ainda, o massacre anual causado pela segurança precária. O Brasil computa mais de 60 mil assassinatos por ano – há brancos e ricos, também, mas a maioria são negros e pobres. O Brasil não deixa de oferecer esses direitos, como bem lembra a professora de Direito Constitucional e Administrativo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e integrante da Comissão de Estudos Constitucionais da seccional gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil, Carolina Cyrillo. Peca, no entanto, na execução das políticas públicas que os garantem, como na implementação do SUS e no programa Minha Casa Minha Vida. “O SUS pode melhorar, mas não dá para dizer que o direito à saúde no Brasil não existe. Existe muito mais que o direito à moradia, que é um projeto de política de crédito, não de moradia em si”, exempliica.

Obrigatória, carta de direitos nem sempre é posta em prática Essa ineicácia na oferta de direitos constitucionais pode ser explicada pela ideia, muito divulgada no âmbito constitucional, da reserva do possível. Certos direitos sociais e econômicos, explica o professor da Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (FMP) e ex-diretor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) Eduardo Carrion, podem não ser sempre atendidos por falta de capacidade econômica do Estado. “Há de se reconhecer que a sociedade, muitas vezes, enfrenta situações de diiculdade, de recessão econômica. Isso tem de ser levado em conta, mas não pode signiicar a frustração completa dos direitos consagrados. Há de se ter bom senso”, argumenta. Ele também cita o direito à moradia como exemplo. Não há como exigir, no ponto de vista de Carrion,

que o Estado, momentaneamente sem recursos, atenda imediatamente à demanda de desabrigados, mas pode-se reivindicar que políticas públicas gradativas sejam implementadas para que, com o tempo, a demanda seja atendida na plenitude. Lembrando um conceito do constitucionalista argentino Juan Bautista Alberdi (1810-1884), Carrion explica que, para países em desenvolvimento, como o Brasil, são necessárias constituições de transformação, que acenem para o futuro e alarguem os horizontes do possível, ao contrário de constituições de conservação, justiicadas em países já estáveis. De visão mais rígida, o professor da Ufrgs e doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) Rodrigo Valin interpreta o parco acesso aos direitos instaurados na

Carta como um desrespeito às normas, que ocorre por diversas razões. “Não é só porque a gestão é ruim ou corrupta, e esses são fatores graves, mas também houve erro no desenho de determinadas instituições. A gestão do SUS, por exemplo, podia ser diferente”, argumenta. Má gestão, falta de recursos e erros em modelos institucionais são fatores que afetam o acesso aos direitos. Ou seja, o que é realmente importante para Valin é o que tem sido ignorado. “Muitas das reformas que temos são casuístas e perfumaria. Temos de atacar o sistema de governo, a reforma tributária e a reforma política. Esse é o tripé de reformas necessárias”, deine. Sendo um fruto da era pós-ditadura, é natural que a Constituição seja interpretada como um texto que deveria ser seguido à risca. O doutor e professor da Faculdade de

Direito da Universidade de São Paulo Roger Stiefelmann Leal, contudo, alega que “se o papel aceita que se vertam em textos sonhos idílicos, a realidade é muito mais diversa e mais cruel. Não cabe à Constituição promover o paraíso, sob pena de inefetividade”. Os modelos constitucionais mais desenvolvidos na Europa e na América do Norte, inclusive, são econômicos em matéria de direitos – na Alemanha e nos Estados Unidos, o texto sequer apresenta um elenco de direitos sociais. Para ele, uma CF democrática autoriza que correntes políticas distintas possam apresentar plataformas políticas alternativas quanto à realização de direitos. “Imaginar possível extrair da CF uma única forma de concretizá-los é, em suma, engajar o regime numa única vertente ideológica, negando o caráter democrático e pluralista”, airma Leal.


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Jornal da Lei by Luis Gustavo Van Ondheusden - Issuu