A COLINA DA PROVIDÊNCIA
Guilherme Scalzilli
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A Colina da Providência Novelas e contos
Guilherme Scalzilli scalzilli.guilherme@gmail.com
1ª edição: 1996 2ª edição: 2016
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Sumário
Prefácio, 07 Velho, 13 Uma vermelha, 25 Cocô, 61 Bolha, 77 Mimo, 85 Ela, 89 Diário de Claudius, 93 O louco, 119 A Colina da Providência, 141 Cincos, 191 Natal, 203 Bêbado, 213
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Prefácio do autor à segunda edição
A versão inicial deste livro foi concebida entre 1993 e 1995. Ansioso para publicar, numa época em que o anonimato parecia tão inevitável quanto desafiador, nem cogitei submeter os originais a editoras. Ao longo de 1996, cuidei sozinho do projeto visual, dos fotolitos e dos serviços gráficos, além do transporte, do armazenamento e da distribuição dos mil exemplares. Quase vinte anos depois, contrariando o bom senso e minhas próprias regras, inventei de folhear a obra esquecida. Talvez mantivesse algum incômodo com o resultado, a sensação de que as histórias mereciam acabamento menos afoito. De qualquer forma, iniciada a releitura, não pude continuar ignorando esses receios. A princípio, a revisão tinha o único propósito de
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espanar os defeitos mais salientes da ortografia. Aos poucos a tarefa se estendeu para a coesão dos parágrafos, os ritmos das frases, os diálogos, o vocabulário. E assim terminei reescrevendo a coisa toda, inúmeras vezes, como se atacasse um velho rascunho abandonado. Mantive os enredos, as estruturas, os personagens, os títulos e a sequência dos textos. Na medida do possível, também procurei tolerar o espírito meio anárquico do original, as vozes narrativas, as invencionices formais e as alusões secretas que ainda consigo reconhecer. Por outro lado, o esforço organizador levou a cortes generosos, extraindo cerca de um terço do volume antigo. Muito do estilo verborrágico e intempestivo de outrora se perdeu, mas gosto de pensar que o conjunto ganhou solidez. Certamente ficou mais próximo das minhas exigências atuais. É curioso perceber como os cenários já parecem datados. Aprecio esse estranhamento porque ele ajuda a embaralhar o jogo de verossimilhanças proposto ao leitor. E, principalmente, porque adiciona perspectiva histórica à obra, iluminando o tempo necessário para
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que ela amadurecesse. Espero que meu singelo ato de perfeccionismo não insinue pretensões heroicas ou saudosistas. Quis apenas finalizar, com a maior dignidade possível, os primeiros cometimentos em prosa que arrisquei. A iniciativa soa menos surreal se observada no contexto de uma trajetória literária cujo propulsor tem sido justamente a obstinação inabalável do protagonista.
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Para meus pais, Henrique e Maria Luiza
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Velho
Solene sai de casa no final de uma tarde qualquer. Toma o coletivo e anda quase dois quilômetros até um botequim opaco nos intestinos do subúrbio. Os fiéis companheiros o recebem com exclamações e tapas nas costas. Ele pega um copo no escorredor, distribui salves e apelidos à freguesia, senta-se entornando. Implora mais. Acende um cigarro e sorve a gelada na sensação ambígua de fumar com motivo e beber sem. Por enquanto. Deseja que a noite passe tranquila, livre de percalços temperamentais e das muitas águas que os pintassilgos não bebem. Tenta calcular um cigarro por cerveja e, durante o primeiro, acredita que vai conseguir. Mas o papo avoluma e ele perde o controle. O papo arrefece e ele maldiz o controle perdido. No arrastar das horas elásticas, os diálogos se embaralham, convergem, dispersam. A certa altura um matuto semeia alguma pauta notoriamente polêmica, só
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para atiçar as paixões notívagas. Masturbam-se os intelectos de verbo fácil, sedentos de divergências, meios-termos, soluções revolucionárias. Os rapazes amam discutir futebol, política, religião, excentricidades sexuais e outros assuntos que não se discute. O garçom amigo traz nova cerveja, fingindo não saber que aquela ainda está na metade. Entre arrotos e talagadas, Solene olha furtivamente para o relógio e o tempo lhe parece muito abstrato. Ele dá de ombros. Pede outro maço e critica o fumo, louvando a bebida. A ressaca vem da fumaça, costuma repetir. Quando recobra a noção de si mesmo, sente um arrepio do estômago às fossas lacrimais. A boca é fenda pegajosa, a garganta inexiste. Acabou o maço. Os colegas, macambúzios, esgotam as rapas moleculares da conversação. Meio peremptório demais, Solene propõe uma derradeira, desta vez a última de todas as últimas prometidas. Alguém concorda, outro quiçá nem tanto. Um terceiro ri, devaneando em silêncio. Aceitam fazer o intrépido feliz, pois Solene é a própria resistência pelas entranhas sujas da madruga.
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Nas mesas pênseis de lata balbuciam vestidos rotos, fardas imundas, camisetas de time, aventais duvidosos. Uma tropa de bancários amarrotados desembarca da compensação para chacoalhar a monotonia dos desvalidos. O céu já deixa de ser rosado para assumir um azul bem clarinho. Solene rebusca as horas na parede e inventa muitas conclusões giratórias. Amanhã, hoje, será outro dia. Não beberá, não fumará, tentará fazer umas piscinas no clube. Ou melhor, tentará associar-se a um clube. Aulas de alongamento e meditação. Os goles dificultosos esparramam a cerveja feito caramelo. A mucosa não aceita, queimam os tubos entupidos. Um repuxo, a gosma sobe de quina, o bravo lacrimeja, engole. Pinça uma bituca mais ou menos robusta, alisa e acende, mas engata uma tosse que lembra a agonia do parto. Um dos remanescentes olhao com certo dó, o solitário da mesa ao lado sorri com preocupação. O debate agora não pode ser prazenteiro, talvez nem mesmo legível, pois demandaria outras garrafas e um novo maço para Solene, que já filou o quarto cigarro
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de outrem. Falam de crimes, da poluição, da manhã temerária. Metaboemizam. Escrutinam os aspectos cruéis desse estilo de vida. Percebe-se aí o que quer continuar e o que prefere morrer. Passam os motoqueiros arremessando jornais. Os primeiros ônibus, atordoantes, cheios de trabalho e perspectivas. Angústia. Desejo de amadurecer, desde que resolva alguma coisa. Tomar jeito. Despencar rumo a um siso irreversível. Solene precisa ir. Agora. Solta uma risada rouca, arranhada lá dentro. Escarra demorado, com gosto, mas ninguém dá muita bola. O relógio corre numa espiral desvairada, a vida espatifa na sua cara rubra. Precisa de uma casa. Do escuro. Daquela cama. Seu olhar congestionado suplica, e os outros acham sensato. Há sempre um chefe nesses impasses, geralmente o do carro, que termina decidindo. Também é filho e compreende. Pagam a fortuna. Levantam-se como num convés turbulento. Cambaleiam até o veículo, que por sua vez serpenteia pelo trânsito vagaroso, rumo ao longínquo refúgio do herói. Seguem mudos, encolhidos no transe sonâmbulo,
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pigarreando às vezes para espantar o motorista. As janelas deixam entrever uma penumbra de vida bocejante. Solene divisa os vultos ainda fofos nas janelas e despede-se dos amigos com a melancolia de quem parte para sempre. Um deles lhe deseja boa sorte. Vai precisar. Abre o portão, conquista a garagem, prostra-se à porta segurando a madeira gelatinosa. Risca a fechadura até enfiar a chave. Abre com suavidade extrema. Cheiro de café novo. Ânsia, arrota, reprime. Cruza a sala em passos calculados, símio corcunda. Ginga um pouco, mas está mesmo é profundamente exausto. A mãe vem soturna da cozinha, selecionando a frase mais apropriada entre as que armazena em sua tolerância matinal. Pula para trás numa descarga de espanto. – Meu Deus do céu! O pai surge bufando, preparado para uma cena escatológica. Ao chegar, contudo, perde a raiva e a fala. Medem o filho de cima a baixo, cercando-o lentamente, como se quisessem catar um bicho arredio. Desce correndo a irmã, com meia cabeleira penteada.
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Tampa a boca para sussurrar. – Nossa. – Puta que o pariu! – exclama o irmão, de pijama, no alto da escadaria. Olhos crispados o espremem. Quase sóbrio de temeridades, Solene corre ao espelho do banheiro. Vê os cabelos brancos e ralos, as sobrancelhas hirsutas, as rugas emaranhadas, as bochechas flácidas, o ar profundo e comovido. É ele mesmo, constata, apaziguado. Só que há algo estranho na figura. Um detalhe que, de tão imediatamente óbvio, ele custa a decifrar. Trêmulo, arfante, incrédulo quanto à própria lucidez, mexe, faz caretas, apalpa-se e confirma: virou um septuagenário. Pensam tratar-se de uma doença rara, dessas que afetam lares honestos e subitamente desgraçados. Permitem que Solene ronque por algumas horas e depois o levam a um pediatra que ainda resolve casos menores na prole. O médico não o reconhece. Mede a pressão, balança a lanterna, tranquiliza-os e indica um geriatra para acompanhamento de rotina. Ficam sem jeito de
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explicar. No outro consultório, a secretária pergunta a idade e Solene responde setenta e seis, o único número que lhe vem à mente. O especialista faz um checape rápido e diz que ele parece bastante inteiro para alguém que fuma desde os dezoito anos. Aconselha que façam o possível para dissuadir o velho daquela estupidez. Que o encham de balas, frutas, sucos ou chás, mas evitem o fumo na casa. E bebida, que pode acelerar o diabetes. As muitas consultas seguintes chegam aos mesmos resultados, até que o próprio Solene decide aceitar a nova condição. Logo percebe, e todos concordam, que a mudança inaugura um período estranhamente alvissareiro na vida em família. Acomodado por natureza, Solene aprende a ignorar as dores nas costas, os pés inchados, as cartilagens rangentes. Descobre o gostoso balanço da cadeira que antes era do pai. Herda também os chinelos de couro, as calças de linho, um roupão listrado. Começa a nutrir uma afeição inédita pela alvorada. Lê os jornais inteiros, saboreando o cafezinho quente e doce que ele mesmo passa antes dos galos e
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dos cães inaugurarem as manhãs. Estala beijos nas testas dos irmãos que saem para a escola, abençoandoos, conferindo lanches e casacos. Ninguém arrisca chamá-lo de avô, mas seu nome vai ganhando essa conotação afetuosa. Buscam distraí-lo no ócio, relatando vidas alheias, brigas, desastres, vícios, um planeta de malogros antes secretos. Chegam a lhe perguntar opiniões metafísicas que ele não imaginara possuir e recorrem à sua autoridade para resolver pequenos dissídios de ordem doméstica. – Deixa, é criança, um dia toma jeito – Solene responde, abanando a mão meio boba, sem tirar os olhos da tevê. Só o contrariam quando notam as traquinagens, que certas manias o sabujo não perde. Às vezes ele sai do banheiro em meio a uma neblina fedorenta, ou surgem cinzas polvilhadas na louça da privada, ou desaparece uma lata de cerveja do estoque na despensa. Então desesperam, ralham, pedem que atente para o próprio estado. Solene continua fingindo inocência. Dá-se bem com a dentadura. Saboreia o gosto de
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hortelã do pó fixador, a sensação de encaixe refrescante, a maciez da pronúncia. Fica minutos ruminando a pasta de comida com o bico de neném, estalando a peça nas gengivas, antes de engolir. Inventa umas brincadeiras para assustar os irmãos, e o sorriso de plástico aparece ora sobre um travesseiro, ora dentro de um prato de sopa. Ele ri até sacudir de tosse. Desacostumado a tantos paparicos e à súbita reverência da família, o velho saboreia cada instante de sobriedade. Arrisca passeios pelas redondezas, lento e sereno, levando o chapéu de feltro, o pulôver bege e o indefectível guarda-chuva. Discute amenidades com os outros anciãos da vizinhança, no parquinho, sob a mangueira. Vence um campeonato de malha, duplas mistas, com a viúva do relojoeiro. Ganha dela um beijo no rosto, que ninguém vê. Passa a freqüentar batizados, missas, enterros, páreos no Jóquei Clube. Expande os círculos de convivência, ganha respeito e falsa reputação. Convence outros velhinhos sacudidos a fundarem o primeiro Centro da Melhor Idade que aqueles arrabaldes jamais conheceram. Tem mesa de sinuca, frigobar e cabines para ouvir os discos de vinil doados
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pelos benemerentes. Seu discurso de inauguração esbanja referências musicais e cinematográficas, causando espécie com as gírias igualmente contemporâneas. Graças à jovialidade cultural, é convidado para ministrar palestras literárias em colégios do bairro. Os amigos íntimos vencem a estranheza e passam a visitá-lo, trazendo filmes alugados, periódicos, guloseimas que a mãe desaprova. Poupam-no de comentários apimentados e convites impublicáveis, economizam os palavrões, mantêm-se diplomáticos e louvaminhos. Desabafam, contam desventuras, solicitam pareceres. – Cadê Solene, que não aparece mais? – pergunta-lhes um remoto comparsa boêmio. – Ficou velho de repente – devolve o mais expedito. E os sabedores se entreolham, segurando as risadas cúmplices. Certo dia ele desembesta pelas escadas, aos berros, chamando a família. Quer escrever seu testamento. O pai concorda, a mãe fica emotiva, os jovens relutam em contrariá-lo. Afinal trazem um senhor conhecido,
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tabelião aposentado, que aceita servir à farsa. Solene preenche o documento com a caneta trêmula. Deixa o toca-fitas para a irmã, a coleção de revistas para o irmão, as roupas para o orfanato e a magra poupança para os pais fazerem aquela viagem que planejam há anos. Todos agradecem, exagerando os respectivos legados. Mas, debaixo dos sorrisos tristonhos, estão de fato preparando-se para o inevitável. Não demora muito e o surpreendem murmurando às plantas. Vagueia pelos cômodos, gesticulando a ninguém, balançando as pluminhas eriçadas na careca repleta de pintas. Fuma cigarros apagados ou acende-os no filtro. Interrompe as conversas com devaneios lassos, cosidos por lembranças de tempos que lhe parecem remotos, embora sejam de lupanares em pleno funcionamento e de companheiros que ainda procuram emprego ou pechincham alianças de noivado. Até que Solene apanha uma gripe. A febre o derruba por semanas, depois vem a crise de asma, que vira pneumonia, que termina de secá-lo e desilude o geriatra. O hospital se nega a hospedar um velho moribundo. Sugerem que o levem para casa e esperem.
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Voltam de ambulância, devolvem-no à cama e principiam os telefonemas. Familiares e amigos revezam-se na vigília. Quase manhã firme, num sábado cinzento de agosto, desce alguém contando as piores. Solene expira aos oitenta e quatro anos, segundo as contas da maioria, vinte e sete depois que nasceu. No rosto lívido, entre as rugas emaranhadas, insinua-se uma ponta de satisfação.
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Uma vermelha I Caminho a esmo pela rua, meio perdido meio risonho, um brio fantasista que teima em desconfiar do inevitável. Rumo nenhum. Apenas vago desatento, evaporando as dúvidas para uma tarde trivial de segunda, não, terça-feira. Solitário feito mendigo. Mas acho que prescindo de outrem, e essa ilusão me pacifica. Um solzinho auspicioso, farto de expectativas nulas. Rachel viria logo buscar o que resta de perdão em mim; quase dois meses e não apareceu. Tampouco esperarei que se decida. É óbvio que amanhã será a mesma. Ângela se oferece íntegra, certa de que ainda me encaixarei nos seus planos. Detesto mentir para agradála. Na última vez em que estivemos juntos, semana passada, quis falar sério sobre nós dois. Claro que faz falta. Continuo remoendo a imagem dela nua, de pernas cruzadas na cama, escovando os cabelos com um aspec-
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to bonito, calmo e desiludido. “Faço falta pra você?” Diria não? Já quando penso Rachel, vislumbro algo semelhante a uma fratura boquiaberta sem recheio. Sim, o triângulo do púbis marcando a saia encharcada, mas debaixo da casca libidinosa um oco de aflições que continuo incapaz de encarar. Não me revolto, contudo, não reviro. Antes dela partir já havia esquecido aquele futuro implausível que vivíamos falseando. Fumei-o todo na época dos acampamentos, olhos intumescidos de aventuras, gargalhadas na praia, os malucos unidos pela afeição ao logro. Outro dia errado, pênsil. Não quero voltar para as esperanças de Ângela, mas é impossível continuar fingindo que Rachel merece o ansiá-la. Talvez porque buscasse uma solução intermediária, deixei que as rosas se apoderassem da casa e abandonei-as lá, com o dilema da sua aparição. Precisava sumir cidade adentro, errar por ônibus vadios e me esgueirar nas vielas, sóbrio de incertezas, torcendo para que Ângela não telefone quando eu estiver lá. Sigo de mandíbulas cerradas, fluindo lento e cui-
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dadoso, cego de distrações vagabundas. O passaredo afoito. A dissonância das cenas imaginárias que escapam dos muros. Os jardins coloridos, abanando leques de esguichos, povoados por cogumelos gigantes, duendes assustadores e margaridas tagarelas. E continuo voltando ao buquê inexplicável que deixaram na porta de casa. Onze rosas douradas, uma vermelha. E um cartão sem assinatura. O texto, poucas linhas manuscritas, terminava com a palavra amor. Rachel? Buquê a domicílio e bilhetinho apócrifo? Corri às cartas dela e tentei comparar as caligrafias com uma esperança tola. Acabei decidindo que não. Rachel, flores e cartão anônimo, não. Certamente um engano infeliz que acaba de matar as chances de algum casal. Se ela voltar, entrego-lhe a vermelha. II As luzes do aeroporto derramavam uma espécie de crepúsculo permanente sobre a noite poluída. Ângela fechou o registro de água na cozinha e reclamou do vazamento. Álvaro a observava da janela, incomodado
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com os assobios agudos da torneira, sentindo os olhos pesados. Estava ansioso para sair dali, mas não sabia como. Grandes asas brancas se arrastaram pelo céu e estremeceram os vidros do apartamento. No impulso do ronco, ele retornou à sala balbuciando explicações. Ângela desatou a faixa do roupão, veio revelando-se a passos de felina, jogou-o de costas no sofá e começou a despi-lo naquela sua vagareza interminável, que julgava meiga e provocante. Álvaro achou bom esquecer o sono, a casa abandonada, as rosas moribundas em água turva, os telefonemas com propostas de trabalho que ele mesmo não procurava. Mas ficou lembrando Rachel. A rapidez com que descobria posições, murmurando vereditos anatômicos para guiá-lo. O tórax ossudo e os seios rasos. As linhas incertas que diluíam na pele caramelizada as manchas brancas do biquíni. As sobrancelhas arqueadas, par e ímpar, que o constrangiam a vê-la gozar. – Preciso ir embora. Ângela subiu os olhos pelo corpo dele. Tocou-o no ombro, forjando uma doçura incoerente com a sua
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personalidade. – Eu não sei fazer direito, né? A pergunta o embaraçou. Fitou comovido o rosto de traços fortes que se expunha tão vulnerável e descobriu que o fato de não a conhecer, de jamais ter precisado conhecê-la, o assustava e o seduzia na mesma proporção. Aquela era beleza nova, bruta, pedindo exploração e descobertas, pedindo alguém que a valorizasse. No mesmo lapso de relutância, tomado por um arroubo pragmático, avaliou a situação e quase deixou escapar uma gargalhada perante a própria insensatez. Sentiu-se cretino por interromper um passatempo assaz agradável e, para ser justo consigo, raríssimo. Não estava em condições de rejeitar o porte volumoso, os lábios macios e enrugados, a madureza simplória, os olhos profundos, angustiantes e cúmplices, a volúpia quente, maternal, comovida e sensível. Qualidades que Rachel desaparecera sem possuir. Inclinou para abraçá-la. Sentiu os seios grandes pulsando no peito, quase frios de suor e vento. Abriu suas pernas apalpando as coxas musculosas, abriu e esticou perdendo o alcance dos pés separados. Então se
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lançou por cima dela, áspero, febril, latejante, afoito. Mas Ângela queria que demorasse. Fez manha e contorceu, mantendo os bíceps tesos, as carnes trêmulas do esforço, remexendo o quadril torto, guardando-o inteiro dentro dela. Álvaro segurou-a pelo crânio e dedilhou lentamente os ossos irregulares, espremendo suas feições até que o nariz ficasse arrebitado, a orelha escura de sangue preso, os olhos disformes. Lambeu o colo rosa, as pintas eriçadas, as rugas nas dobras incandescentes, e enfim conseguiu só pensar em si mesmo. III Não entendo por que, justo nos momentos de vanglória, minha audácia refuga diante da mulher que toma iniciativas. Pois a ideia de alguém me enviar flores virou um desespero apoplético. Passei horas, ou dias, que não vou posar de Capitolina e Bento só para soar crível, passei dias ensurdecido pelo triunfo duvidoso. Rebuscando os contornos de Rachel grudados na saia, a sombrinha do avesso feito uma tulipa, os pés virados
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para dentro numa pose de pateta. E, o pior de tudo, as rosas não vieram dela. Que o seu azar a empurre, penso agora, distante e sozinho, como não pensava quando a substituía com Ângela. Superior em todos os sentidos da feminilidade, Ângela teria me alucinado se a conhecesse dois ou três anos antes. Mas descobrir que ela podia recorrer a estratégia tão apelativa e precoce, brincando de amores com um estranho, ou quase isso, vilipendiou a expectativa que o mistério havia criado naquelas circunstâncias muito minhas e intransferíveis. Lembrava a sensação de encontrar uma festa surpresa organizada à custa de longo fingimento. É simpático, é meigo, é atencioso, mas não deixa de guardar uma essência falsa e ardilosa. Iludido
pelo
mistério,
talvez
um
pouco
mais
desapontado que perplexo, acabei cansando de falsear o desgosto com a chantagem. Que o seu azar as empurre, já que chegamos às flores extorsivas. Pois a saia. A famosa pele apossandose do pano. Aconteceu quando Rachel me telefonou implorando resgate, fingindo que estava prestes a sucumbir na tempestade que cobria a capital com lodo
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infecto. Eu afluí de imediato, crente nos acasos singelos, vencendo as correntezas malsãs com um carro emprestado na firma, para galgar as calçadas e içá-la do apocalipse. O desfecho da fábula deu-se num drive-in pulguento à beira da velha marginal catastrófica. O prêmio foi amassá-la nos pufes, servo neófito e fiel, desvendando o caráter malicioso daquela adolescente franzina, agigantada pelo tesão. Engraçado perceber que o pensamento nas flores de Ângela sempre termina roçando a imagem de Rachel sob o temporal. Desde aquela época. Talvez ainda queira saborear as promessas que me enchiam de recomeços e ímpetos românticos, quimeras tão vívidas que amenizavam o resto, inclusive o abandono. Mas pode ser também que eu continue escravo da aventura gloriosa e irrepetível que tivemos, associando a época dadivosa de Rachel a tudo que ameace dissolver essa memória. Insisto nos brincos de pedrinhas mínimas que ajudavam a equilibrar a lascívia dos olhos avermelhados pela água da chuva. E nos cabelos escorridos que lhe davam um jeito de menina inocente, de ninfa pornográ-
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fica. A saia erguida até o peito, os saltos enlameados, baixando a calcinha para entregar a recompensa do guerreiro intrépido. Não que ela precisasse de fato ser salva de alguma coisa. O náufrago, ali e sempre, era este infeliz que vos escreve. IV Apoiou num poste, girou ganhando velocidade, arremeteu contra a multidão. Gritava para que abrissem caminho, estapeando os obstáculos, as solas dos pés ardendo no espocar dos sapatos. Pisou numas pedras soltas, chutou o calcanhar da outra perna, o cenário deformou, veio e bateu. Antes de perceber que havia caído, ficou piscando na escuridão palpitante de vozes assustadas e motores. Sombras de cabeças afundaram no céu nublado. Recusou as mãos oferecidas e levantou, rangendo-se inteiro, escalando o momento suspenso. Empurrou os curiosos. Cruzou o tráfego e parou na esquina oposta, recuperando o fôlego, apalpando a testa dolorida. O povo dissipou numa confusão de ros-
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tos indiferentes balançando pelo trepidar esfumaçado. Encontrou uma padaria e implorou o telefone. Discou, insistiu, fez uma pausa de gancho na mão. Tentou de novo, ainda ocupado. Na última chance, houve um barulho insípido, sucedido por um longo silêncio. Nenhum tom de chamada. Os dois alôs ecoaram juntos. Álvaro ia desligar, mas conteve o gesto, sentindo uma brisa ruim ondular pela espinha. – Rachel... “Rachel?”, ela pareceu devolver. – Ângela. – Álvaro? – Oi. Tudo bem? – Aconteceu alguma coisa? – Precisamos conversar. É urgente. Com um muxoxo, Ângela deu a entender que aceitava a ordem, mas que não estava disposta a retomar as coisas de onde haviam parado, numa discussão sem motivos claros da quinta série de discussões sem motivos claros que tiveram nos poucos meses de relacionamento. Culpa dele. Não estava preparado para
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acalentar as demandas transparentes e comezinhas da moça. Ficava com remorsos por não amá-la e por tampouco lhe dizer essa verdade tão óbvia. A frustração o deixava ranzinza, amargo, rude. A mesma covardia que o afastava da sinceridade levou-o a fugir do impasse, consumando o abandono derradeiro. Tomou um café para organizar os pensamentos. O cansaço desceu às pernas bambas e o suor escorreu com os vestígios do desespero. As pulsações no crânio arrefeceram, transformando-se em relâmpagos de imagens reversas: a queda na rua, a perseguição, o horror, o choque, nenhuma vida normal antes da tragédia. E desse vácuo, num simulacro de consciência, retornou à casa em ruínas, despedaçada nos menores detalhes. Tudo que fosse partível. Copo a copo, caos de estilhaços. Cada lasca de prato, cada panela sem cabo. Talheres enfiados no liquidificador para fazê-lo entulho. O televisor destripado, vomitando um novelo de fios. No meio da sala, uma grande montanha de cinza fumegante consumindo tapetes, cortinas, estofos, roupas, livros, documentos, o pouco dinheiro que havia guardado. Sua existência material soltando um cheiro azedo
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para a negritude dos cômodos limpos de cortinas e interruptores. Os galhos da árvore do quintal, com os panos e as toalhas que secavam na corda, com as vassouras, a rede e uns pedaços de móveis, noutra fogueira morna. Até os cacos do muro haviam sido quebrados, deixando uma farinha cintilante que seguia os tijolos. Cambaleou de volta à calçada e caiu sentado no meio-fio. Ouviu conversas na vizinha, assobios no outro lado, crianças brincando. Chorou até minguar. Os cigarros acabaram em minutos, num gole de saliva amarga. A rua permaneceu vibrando nessa angustiante quietude que parece atrasar o cotidiano dos subúrbios. Falto de lágrimas, segurando a cabeça para não implodir, se entregou à sarjeta, refletindo sobre nadas sem faculdades. Um carro freou a poucos metros de suas pernas. A janela desceu, exibindo um homem forte, de bochechas redondas e bigode vasto. – Satisfeito com a faxina, patrão? Álvaro saltou contra ele, mas o veículo arrancou, gargalhando os pneus, para sumir na ladeira. Ele correu atrás, balançando os braços como se não quisesse rolar abaixo, mas voar rasante aos paralelepípedos. E assim
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continuou, sem atinar com a própria figura ensandecida no asfalto, seguindo miragens de carros parecidos com o que imaginava ter visto. Desembestou por entre as avenidas. Atravessou corredores de ônibus e driblou congestionamentos. Invadiu as aglomerações dos passeios. O tombo finalmente convenceu-o de que não havia mais sentido em procurar latarias na urbe repleta de carcaças iguais. Marcaram na lanchonete costumeira. Ângela estava serena, apesar dos ademanes vagos, de quem prepara uma esquiva de qualquer beijo ou abraço atrevido. Suave e educada, tratou-o sem rispidez, com um jeito maduro de aliar prudência e sinceridade, expondose na delicadeza de quem estende uma toalha rendada. Era outra, e Álvaro ficou um tanto embaraçado por descobrir-se idêntico. Tão logo sentaram, ele quis espantar os remorsos que pairariam se houvesse chance e imediatamente passou a relatar as últimas horas. Para adiar o desenlace da amargura, ela pediu descrições redundantes e detalhes impossíveis. Depois assentiu a uma pergunta inexistente, corou anunciando um desabafo, reprimiu-o
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mordendo os lábios. Álvaro deixou que o silêncio os apaziguasse. Viu a aliança que ela girava sem parar. – Casada? – ele perguntou. – Desde aquela época. Eu já conhecia o Rubens. Nós... – Entendi. – Lembra das rosas? – Ângela emendou com alegria, como se tivesse guardado a informação por tempo demais. – Então. Vieram dele. Sua expressão se desfez num suspiro desanimado. Álvaro não reagiu, tentando esconder o incômodo com a surpresa. – Sempre tive medo de receber flores – ela murmurou, olhando o cenário envidraçado. – Mas o Rubens é botânico. Dá valor a essas coisas. Álvaro soltou um “ah” vazio de animação. Ângela não quis encará-lo. Ergueu-se de súbito, pegou o molho de chaves da mesa e saiu falando, para ter certeza de que ele a seguiria. No meio das frases atabalhoadas, Álvaro reconheceu o convite para dormir no quartinho de empregada e uma possível oferta de dinheiro. Recu-
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sou brusco, definitivo, quase magoado. E ela, com efeito, não insistiu. O porteiro achou a cena interessante e cumprimentou-o como velho conhecido. Os dois passaram cabisbaixos e quietos. Postaram-se de lado no elevador, mantendo as cabeças eretas, imitando condôminos. Ângela hesitou ao fechar a porta da sala. Encostou-a sem trancar. Ocuparam lados opostos da mesa, esforçando-se nas poses duras e respeitosas. Álvaro já não entendia sequer a razão de encontrá-la. Admirou o asseio do ambiente, num misto de inveja e humilhação. Reconheceu a pintura abstrata na parede, as poltronas paralelas e o sofá cheio de almofadas, muitas vezes encharcado pelo suor de ambos. Descobriu novos enfeites, uma luminária esguia, um aparelho de som moderno, tapetes com motivos hindus. Um avião tremeu as vidraças. Ângela riu consigo e foi abri-las. Ele aproveitou para caminhar diante das prateleiras. Um elefante coberto de lantejoulas, um pato de madeira, cinzeiros em formatos diversos, lombadas de compêndios científicos, vasinhos com flores exóticas,
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um microscópio antigo. Pendurou um cigarro nos lábios e apalpou os bolsos. Procurou na estante de bebidas, hábito antigo, de conviva experimentado nos atalhos do lugar. Apanhando o isqueiro junto aos petrechos de incenso, percebeu os rostos nas fotografias dos porta-retratos. Paisagens nevadas. Teleféricos. Praias e dunas. Caretas, acenos traquinas. O sorriso meigo de Ângela. O semblante masculino espremido nela. O bigode espesso derramando-se nos dentes amarelos. Foi instantâneo reconhecê-lo. V Solto a fumaça que me afoga, amaldiçoo o lar dos conspiradores, saio dali sem olhar para trás. Como um sonâmbulo indignado, cruzo a rua levantando uma sequência de freadas, afundo na calma insuportável da praça. Gestantes passeiam, mães e babás empurram carrinhos, velhos e desocupados seguem os raios do sol. O clima de arrabalde, pacato e melancólico, ajuda a aquietar minhas intenções. Resmungo em círculos até
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ofegar. Depois encontro um banco vazio de onde veja a entrada do prédio. Fumo outros tantos cigarros insípidos, deixando que os pensamentos se embaralhem. Aos poucos substituo a minha casa extinta pela fofura nova e charmosa de Ângela. Gosto do seu personagem domesticado. Concubina experiente, amiga e discreta, o resguardo pacato de esposa a deixa sedutora de um modo outrora inconcebível. Quase me arrependo por tê-la abandonado, com um travo desejoso que a raiva não consegue dissipar. Anoitece. Especulo as rotas dos aviões, imaginando as vidas completas e harmoniosas que eles carregam para longe. Busco um novo maço na padaria. Aproveito para levar um café, voltando ao meu assento de concreto ondulado. Mas as pernas dormentes se cansam de cruzar e descruzar, e basta uma ausência de roncos no céu congestionado para que me infle de afoiteza. Levanto disposto a inventar rumos definitivos. Sondo as janelas do apartamento. Continua iluminado. Sem garagens no prédio, o sacripanta não pode ter chegado incólume. Atravesso a rua numa carreira furiosa, aperto a campainha, chamo o porteiro pelo no-
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me e ele abre. Não acendo as luzes ao chegar. Desespero preso na garganta, encosto à madeira com suprema delicadeza. Discirno murmurinhos, tosses graves, sibilares muito conhecidos, rumorejos esparsos misturados a um desassossego de ecos silenciosos. A voz e ela, as vozes e a dela. Então ressoa, nítido, um riso masculino. Ele está no apartamento. E ali esteve, não há dúvidas possíveis, desde o início. Ergo o punho à porta, balanço o murro no ar, miro a parede, contenho o golpe, dou meia-volta e saio trôpego para a escadaria. VI Mas Ângela ignorava a presença de Rubens. Tentou sinceramente acreditar na rocambolesca narração de Álvaro e até julgou entender quando ele saiu, derrubando as cadeiras, depois de confirmar que ela estava casada e feliz. E tinha bastante honestidade sua indignação ao descobrir o marido oculto no armário do quarto, rindo da surpresa naquela desenvoltura de macho detentor e repulsivo. E era legítima a raiva com que se
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contorceu debaixo dele, apertando as unhas agudas nos seus ombros, precisando gritar e empurrar-se contra o asco do corpo rude, forçando e doendo até parar de pensar no outro, que por sua vez desmoronava tão perto deles. Na manhã seguinte, quando Rubens desceu para o metrô, Álvaro pediu seu terceiro café na padaria, contando as derradeiras moedas do bolso. Rubens já discursava aos estagiários sonolentos, entre os verdores molhados que brilhavam na estufa – “introduzam a gema da variedade selecionada, propagando-a pela incisão no caule do porta-enxerto” – enquanto Álvaro atravessava a rua para entrar no prédio. Uma sombra dominou o olho mágico, sumiu, caminhou lentamente na mancha etérea. Ele voltou a tocar a campainha. Chamou-a, bateu com violência, falou mais alto, esmurrou e passou a gritar. Ouviu o barulho da chave. Meio rosto dela apareceu na fresta. – O que você quer? – Uma explicação. – Já falamos tudo que havia.
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– Nem a metade! Cadê o teu marido? – Não começa com bobagem. – Bobagem? Quer dizer então que você acha... – Álvaro. Escuta. Não dá mais. Agora eu tenho família. – Eu lá quero saber do teu casamento, Ângela? – Ótimo. Passar bem. Vá atrás daquela piranha que te largou. – Não muda de assunto. – Vamos ficar numa boa, tá? – Mas por que ele acabou com tudo que eu tinha, porra? – Então acha mesmo que eu vou largar o meu marido por causa dessa...? – É um filho da puta! – Dá licença que estou ocupada. Ele empurrou a porta e deu alguns passos adentro, fazendo-a recuar. Entreolharam-se por um instante nervoso. Álvaro notou que ela estava pronta para sair e achou que parecia mais impaciente do que amedrontada. Ângela sabia ser prática nos momentos sensíveis. – Vem comigo – Álvaro falou, entregando-lhe a
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bolsa. – É rápido. Passaram envergonhados pelo porteiro curioso. Margearam a praça, caminharam na avenida sem trocar palavra, subiram uma colina de ruas tortuosas e chegaram à planície de quadras regulares e casas iguais. Não sentiam o calor da manhã radiante. O sol quase vertical empurrava as poucas testemunhas para baixo de uma árvore frondosa, onde cavoucavam tangerinas e assistiam ao bairro deserto. Os dois atravessaram um portão escancarado. Assim que passaram diante do pinheiro baixo, completamente mutilado, a construção já não se parecia com as outras da vizinhança. Nos janelões da sala, desfeitos das vidraças, a penumbra ameaçadora expandia um cheiro de cinzas úmidas, de silêncio, de ruína. Ângela fez menção de afastar-se, mas Álvaro apertou seu braço, conduzindo-a pelos escombros. Avançou chutando as fogueiras extintas. Os montes se espalharam em lascas de plástico, fragmentos de rótulos diversos, a capa retorcida de um passaporte, fotos cobertas de bolhas pálidas, um ridículo bilhete da faxineira, o console do aparelho de som, fitas cassete e
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discos de vinil, retalhos do papel de parede. Na cozinha, o pouco alimento disponível apodrecera sob uma azáfama de insetos. A geladeira jazia desmembrada pelos parafusos, pisada, pisada e moída, até que as gavetas, a carapaça de lata, as grades e o motor dissecado formassem um emaranhado irreconhecível. O fogão entupido com fragmentos de aparelhos elétricos, potes, sacos, petrechos, o que pudesse derreter. Talheres tortos, cacos de muitas cores e ladrilhos arrancados cobriam a pia. Seguiram no corredor nebuloso, desenhado por fachos de luz que aumentavam a sensação de extermínio. Entraram no quarto. Álvaro afastou a porta desencaixada do batente e mostrou o banheiro caótico, exalando misturas nauseabundas. Mostrou o colchão destripado, as lâmpadas feitas montinhos de pó branco, as roupas desfiadas em bolos de trapo colorido. Mostrou as cadeiras, o estrado, as bases da cama, os criados-mudos e os pedaços do armário, reduzidos a tramas de ripas inúteis. Mostrou os sulcos abertos pelo desentranhar dos fios através do reboco, os tijolos expostos no miolo, tudo negro, do chão ao teto, sob uma fuligem
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irremovível. VII Depois de quase meia hora ziguezagueando pelos caminhões, o táxi cruza o acostamento e segue na vicinal que margeia a cerca eletrificada. Ao longe, o céu azul reflete nas vidraças dos prédios, blocos iguais, térreos, que brotam no imenso terreno gramado. Pago o motorista, deixo que se vá e aperto o botão da portaria. Interfonam. Espero, repito a apresentação, espero um pouco mais. Finalmente decidem me receber. Sempre escoltado por alguém, passeio nas ruas asfaltadas, vigiado por câmeras e homens fardados que conversam nas sombras. Observo os jardins coloridos e sorrio fantasiando que essas pétalas são de plástico ou produto semelhante que se use para o artifício da natureza. Impossível saber sem tocá-las, eis o dilema das coisas bonitas. Entro numa das caixas de vidro escuro. A recepção é gélida e espaçosa, com algumas poltronas vazias e enormes retratos de flores nas paredes. A atendente
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surge de uma porta lateral. Conversamos, disputando paciências, até que minha polidez consegue vencê-la. Cruzamos um salão quadriculado por divisórias baixas. Sou apresentado a um jovem sério, artificialmente grisalho, que me recebe a contragosto no seu cubículo. Explico a situação imaginária fazendo caretas de enfado e exagerando a naturalidade insolente, como pede o ritual corporativo. Ele apanha meus documentos, tecla no terminal, abre e fecha gavetas, consulta manuais à cata de siglas e códigos. Imprime um sanfonado, grampeia, põe à minha frente, indica onde assinar. Pede licença e salta à porta. Pelos minutos seguintes, desfruto o ambíguo privilégio de contemplar os prêmios nas estantes, as fotografias emolduradas, os enfeites padronizados, os diplomas comemorativos. O rapaz volta estalando a caneta no polegar, mais calmo, dando a entender que já conferiu minhas lorotas com a secretária-executiva da importadora fictícia. Ganho um crachá provisório e sou liberado para a visita. Uma rosa híbrida custa anos de labuta e risco. Transferir fragmentos de vida é liturgia meio esotérica,
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uma longa repetição de testes, pesagens, esperas, cálculos, ponderações de minúcias irrisórias. Ao final do projeto, com sorte, engenho e recursos, os especialistas conseguem desenvolver as variedades procuradas e, nelas, feitos deuses, existências novas e passíveis de repetição. Ganham muito dinheiro com o ofício. Claro que recordar a lucratividade do homem quase equivale a denegri-lo. Mas também ajuda a dimensionar suas motivações. Os diretores odeiam o ex-funcionário Rubens. Contam que ele havia sintetizado uma variação poderosa de colquicina para incentivar as mutações de certas sementes raras que não vingavam no clima tropical. Controlando microscópicas descargas de raios X, experimentou compostos orgânicos ultrassensíveis e descartou muitas nulidades incolores até chegar à descoberta que terminaria destruindo minhas próprias décadas. Então desapareceu, levando um espécime cultivado em segredo e arruinando contratos milionários de exclusividade. Se pudessem provar o delito já o teriam metido na cadeia, e talvez eu mesmo não estivesse ali. Animado pelos desabafos, liberto as audácias e
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vou conquistando esse misto obscuro de corporação privada e repartição pública, protegida como um escritório de banco multinacional. Conheço as instalações e os equipamentos. Aprendo nomes científicos. Respiro o calor enevoado das estufas, usando máscara e luvas, mantendo a distância regulamentar das prateleiras. Espio pelas vitrines a coreografia silenciosa dos aventais e os mosaicos de vidrinhos coloridos que os técnicos giram no ar, passam sob as narinas, dedilham contra a luz. Mexo em documentos, provoco reminiscências, filo cafés e distribuo cigarros, aprendendo um pouco sobre os temores e anseios da estranha casta profissional. Fico surpreso com o zelo que dedicam à segurança dos seus valiosos segredos. Há algo de insalubre no devotamento, algo de obsessivo, que vai além das praxes laborais. Parece uma espécie de missão, um comprometimento filosofal com as verdades da matéria. Muitos sucumbem cedo ao excesso de perigos. Outros abandonam a carreira no primeiro fracasso, ou após certo volume de obstáculos. Alguns dedicam suas vidas inteiras a uma única espécie, cegos de sacrifícios veementes, alucinados pela promessa de fama e riqueza.
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Rubens é um deles. Talvez tivesse a movê-lo, como eu teria, uma nada vã aversão à normalidade monótona dos que apenas reproduzem, ao longo da fugaz existência, a própria e imutável e fugaz existência. O gosto pela diabólica liberdade para repartir, deformar e refazer a vida, para reinventar o finito indefinidamente, para contrariar a imparcialidade monolítica da natureza. Prová-la falível e submissa, nas doenças e nas drogas que as desafiam. Nos fetos condenados e nas orquídeas que podem salválos. Na fugacidade das coisas e no amor que as eterniza. Deixo o laboratório ansioso para compartilhar as novidades com Ângela. Preciso do seu tristonho ceticismo, da passividade fria e obtusa, farta de experiências forasteiras. Agora ela entende que formamos um par de revezes complementares, amalgamados no desígnio de servir à justiça mundana. É tudo que nos resta. Hodie mihi, cras tibi. VIII Durante séculos a humanidade cultivou flores
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como alimento: dálias, lótus-da-Índia, malmequeres silvestres, violetas. Algumas espécies têm funções medicinais. A digitalina, da bonita dedaleira, fortalece o coração; a rosa-de-Natal origina um laxativo; a flor-decamomila, o célebre chá. E da raiz do extravagante acônito é possível sintetizar um veneno mortal. Embora a exploração dessas propriedades ancestrais tenha originado o longo desenvolvimento da botânica aplicada, hoje elas não se comparam à importância da atividade para as fábricas de perfume, os laboratórios farmacêuticos e o agronegócio. São temerárias fortunas em jogo, mobilizando patentes e licenças que asseguram aos seus detentores um poder transnacional. Cientes da riqueza que manipulam, entre os anônimos funcionários das grandes corporações há aqueles que se aventuram a furtar tesouros e a negociá-los no mercado clandestino. Ângela estivera casada por dois anos antes de cruzar com Álvaro numa de suas andanças peripatéticas. Rubens, o marido, traiu-a com uma bióloga da equipe que o ajudava na confecção de certa rosa inestimável. Ambas as mulheres o abandonaram por motivos
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equivalentes, mas lhe forneceram o pretexto da indiferença e o vácuo de escrúpulos que o separava da venalidade. No desespero de foragido, sob os reveses que parecem proliferar nos caminhos infratores, Rubens viu-se obrigado a esconder o broto em local seguro, desde que sua recuperação fosse garantida e imediata. Misturou-o com um buquê ordinário de floricultura e mandou entregarem para Ângela. Não assinou o cartão, temendo os investigadores, mas a destinatária reconheceu a marca inconfundível do galanteador, e achou que uma boa resposta à ousadia era aproveitá-la com o próprio escolhido para substituir o hipócrita. Jamais se arriscaria ao vexame de mandar flores, naquela altura de sua vida, se elas não estivessem à mão. Enquanto Álvaro ainda tentava decifrar a rosa vermelha na jarra de água, talismã curioso, robusto e longevo, Rubens assediava a ex-esposa, suposto arrependido, com todos os estratagemas que podia inventar. Mas ela não cedeu. Estava apaixonada, ou quase apaixonada, pela indisponibilidade encantadora de Álvaro, por seu nervosismo ridículo, por suas errâncias de amante
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recém-abandonado, por suas aparições carentes, bruscas, irresistíveis. Até por sua mal dissimulada ojeriza ao compromisso. Quando Rubens afinal reconquistou-a, suficientemente desamparada e frágil para aceitá-lo, o tão valioso ornamento se extinguia numa pilha de jornais velhos, descartada por Rachel havia meses. Também adivinhando sua procedência, ela não percebeu a robustez da corola deslumbrante, nem aspirou o perfume incomparável. Sequer abriu a carta cheia de citações literárias que Álvaro rabiscou, esperançoso e barroco. Não perdeu tempo imaginando negaças ao impertinente; apenas jogou o embrulho no canto menos visível e seguiu cuidar da própria felicidade, a salvo de vegetais miseráveis. Rubens desde cedo se convenceu do único remendo satisfatório para o desastre. O duro recomeço, o novo emprego em outro laboratório, o carinho da esposa e as lacrimosas e renovadas intimidades da reconciliação ajudaram a empurrar o castigo para um futuro incerto. Mas este chegaria, semente adormecida que irrompe na terra bruta, desabrochando a raiva si-
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lenciosa que ele teve de conter, durante meses vividos em falso, debaixo da máscara de cônjuge ameno e resignado. Rompida a carapaça, exposto o monstro pela nudez da casa arruinada, Ângela não tomou propriamente uma decisão. Aderiu a ela como um fardo anatômico, óbvio e irremediável. Antes que Álvaro precisasse convencê-la, estavam cúmplices do mesmo destino. Mas abdicaram de quimeras românticas, buscando refúgio no alívio descontente dos adúlteros, em seu ardor disciplinado e compreensivo, no desdém orgulhoso pelas camadas mais etéreas da individualidade. Hipócritas de antiga militância, julgavam Rubens com uma sobriedade ajuizada e intransitiva, própria do algoz que pune discreto porque necessário, embora saiba que precisa fazê-lo de forma definitiva. É verdade que apreciavam o poder titânico de aniquilar semideuses pretensiosos, como se fossem justiceiros higienizadores da raça ignara. E ficavam mesmo enfeitiçados pelo veneno convulsivo e sua fonte de exóticas pétalas azuis; a simples presença do líquido perigoso, num frasco sobre a penteadeira do motel, excitava-os no
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limite da sanidade. Apesar de tudo, porém, estavam mais interessados nas artimanhas da brincadeira. No desafio de levar o jogo adiante. O envenenamento aconteceu numa noite sem lua, assaz corriqueira para a iniciação criminosa. Foram no carro da vítima. Usando aventais e crachás forjados, com o cartão magnético, as senhas eletrônicas e as chaves de Rubens, atravessaram os jardins iluminados e venceram os corredores quietos sem levantar suspeitas das máquinas ou dos vigias sonolentos. Entraram na estufa deserta. As luzes cobriram tudo com uma branquidão hospitalar. Súbito explodiram latidos ferozes e um pitbull despontou no corredor de prateleiras, balançando a mandíbula gosmenta. Veio em disparada sobre eles, saltou para abocanhar o vazio, estancou no repuxo da corrente que o atava ao chão. Comeu carne moída com preparado de acônito. Morreu antes mesmo de tossir. Restaurada a quietude, Álvaro tirou da mochila as tesouras de jardinagem e estendeu uma à parceira. Dispuseram-se nas pontas opostas da bancada. Envolta por centenas de caixas com pacotinhos de terra e caules
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ínfimos, Ângela gargalhou de excitação, e este foi o sinal que precisavam. Cortaram, escavaram, dissecaram impiedosamente a minúscula selva de mudas. Às vezes paravam, ofegantes, viam-se maravilhados e trocavam longos beijos, sorvendo um arroubo sem medidas. Então voltavam ao jogo com os ânimos renovados. Quando, uma a uma, cada haste jazia decepada, pétala a pétala e folha por folha os últimos resquícios de vida se derramavam junto à poeira úmida, abriram os dois garrafões e saíram vertendo ácido sobre as ruínas. Tenra névoa fedida subiu dos destroços, que encolheram até formarem montículos de coisica preta. Depois apagaram os arquivos dos computadores. Lembraram de poupar os aparelhos, para não conotar acaso e fornecer o consolo fácil do infortúnio. Desligaram os medidores de umidade e temperatura, acharam os vidros de éter e puderam saborear a parte derradeira do plano: atearam fogo aos arquivos, cadernos, publicações, fichários, a tudo que fosse inflamável. Até às flores esturricadas. Fogo baixo, sutil, incolor, fogo de manuseio, cultivado no desvelo atento de quem não teme a
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sedutora proximidade da destruição. Saíram tranquilamente do edifício. Passaram uma gloriosa madrugada no motel costumeiro, acordaram caídos no carpete e foram fechar a venda do apartamento no cartório. Rubens só chegou de viagem na semana seguinte. Encontrou os armários vazios e trabalhadores instalando um novo piso. Os amantes cumpriram o pacto desaparecendo juntos pelos rincões deste país continental. Recomeçaram suas vidas e não voltaram a falar sobre o passado nebuloso. Recém-casados, incógnitos e inatingíveis, queriam filhos e queriam nomeá-los com precisão. Queriam serenidade e esquecimento. Só uma vez, logo após a fuga, Ângela pareceu tocada pelos velhos tempos. Mas aconteceu muito rápido, como um embaraço tolo que chega de repente e dura menos ainda. Foi quando Álvaro lhe trouxe uma xícara de chá. Veio com um sorriso estranho, depositou o pires na mesa do alpendre, beijou-a na testa e retirouse cantarolando. Ela observou o líquido acobreado. Refletiu por segundos, rodopiando a colher, de olhinhos turvos na
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espiral de vapor. Perscrutou em volta, sem afetar senão uma astúcia tranquila de criança. Então, sucumbindo à naturalidade fácil do gesto, derramou a bebida no vaso de plantas mais próximo e continuou folheando sua revista, pacífica e desinteressada.
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Cocô
– Conhece Fortaleza, Miltinho? Miltinho é o seu nariz gordo, ele pensou. – Não senhora. Só João Pessoa. A namorada olhou-o com admiração. – Sério, Mi? Faz tempo que você foi? – Depois que o Estevão morreu. – Estevão? – perguntou dona Odete, longe. – O irmão do Milton – Nora gritou para a mãe. Silêncio compungido. Quase uma da tarde no relógio de mergulhador. O moço irritado, avistando a fome de indigente. Alcançou o copo entupido por rodelas de limão sem casca. A casca, elas disseram, azeda a caipirinha. Pegou-se curioso para saber como sairia a feijoada naquela mansão. Paio sem pele? A mulher trouxe um enfeite de Fortaleza e uma tigela de bolachinhas finas. Sorriu-lhe a cara de macar-
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ronada, como quem chupa o molho e comenta “uma delícia, não?” Ele devolveu a graça pensando “a guria, com certeza.” Esperavam o pai dela. Candidato a sogro do rapaz, ou assim parecia à coitada. Sogro. Nora. Uma galhofa subiu. A sonsa o observava. – Que foi? – Nada, lembrei de um negócio... – O quê? Fala! Cogitou protelar, esgotando cada suspiro daquela insipidez adolescente. Um episódio da turma, algum dos milhares de trocadilhos do acervo, ou qualquer coisa que o Estevão nem tivesse falado. Só pela cerimônia que faziam. Conseguia tudo recorrendo ao irmão defunto. – Nó, será que podia pegar mais um tico...? Suavemente jeca e envergonhado, assistindo de esguelha à prontidão festeira da velha. – Que isso, Miltinhô? Nora, pega bebida pra ele, minha filha. Gentilezas, ademanes, ululâncias. O estômago roncava e elas farfalhando etiquetas. Pega a pinga lá, ô
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boneca, e não me enche o saco. – Mas era só pedir, né? Cê também, mãe não... Sumiu na cozinha e voltou imediata, casadoira, com a jarra no peito. Milton farejou a chance de filar um honesto e gratuito pilequinho de cana boa. Talvez desse pum, atiçando aquele borbulhar que se anunciava. Qualquer coisa fumaria um cigarro no quintal. Junto com as samambaias e as hortaliças cultivadas por Nora e a irmã caçula. Gostou da ideia, passando a inquiri-la sobre tipos de adubo. Ela respondia orgulhosa, na sua altivez de mulher inacabada sabedora de nutrientes, e o rapaz foi se distraindo pelos dotes físicos da sua mais recente conquista. A magreza lhe dava um toque menineiro de enlouquecer os invejosos. Mas peituda, com certeza, do contrário ele não estaria ali, pagando sapos familiares, macaqueando índoles. A pequena tinha sua cota de gostosura, construída por balé, natação e escola de gente bem, essa exuberância virginal que dá quase um dó de bulir. Bundita empinada. Mãos deliciosas, suaves, doces. E a curiosidade sapeca de menininha cândida que desbrava os mistérios da escumalha tosca.
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– Põe mais se quiser, tá? Sorriu e pegou. Orgulhoso da própria sobeja, deu até a pilar as rodelas murchas. Nora contava sobre o busto do pai, no alto da estante, assinado por um escultor municipalmente famoso. Treco feio, mimo de algum cliente milionário que pagara, assim, com estilo, o ágio do parto realizado pelo insigne “ginóbs”. Foi a expressão usada por ela, fazendo bico de batom e empurrando a bola de boliche à canaleta, na madrugada em que se conheceram. Ginóbs. Há coisas que o dinheiro não compra. Bastou evocá-lo e um assobio ecoou no hall de entrada. Surgiu o corpanzil aristocrático, barriguela de nababo, terno, gravata e colete. Branco dos mocassins aos dentes cavalares, sempre arreganhados, tiscando fiapos sempiternos. Séculos de finesse hereditária mediram o convidado. O jovem sentiu-se num diagnóstico de vagina, e a vagina era ele. – Doutor Aparecido, muito praz... – Milton? Ou Nilton. Newton, como o Isaac? Ah. Milton mesmo. Alcunha Miltinho, pois não? Vamos
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sentar. Mobilizaram-se, diligentes, puxando os encostos almofadados. – Você aqui – o pai ordenou, tomando a cabeceira. – Nora do outro lado. Escuta, Detinha. Chama a Corina, bem, chama. – Tá, Aparecido, mas se ela berrar daquele jeito de novo... – Como está a cangibrina? Acho que vou bebericar um pouco. Esticou a mão abrindo e fechando, moleque pidão. Serviu-se de uns três dedos. Fez que ia oferecer, mediu os escombros no copo da visita e deixou a jarra ligeiramente fora do seu alcance. – Nos velhos tempos de residência... E enveredou. Milton se mostrava atento às memórias do nobre Aparecido, mas de fato só o via mordiscar gruminhos e mexer os lábios umedecidos. Pois àquela altura da prosa nosso patife começava a sentir certas contrações abdominais bastante características. Remexeu-se. Desconfiou que Nora tivesse perce-
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bido, aventando traque ou hemorroida. Não, ela não vira. Apertou de leve o esfíncter e relaxou aos poucos, para sentir a umidade crescer alguns centímetros. Estancou a boa distância. Mediu o prazo. – ...daí que o diminutivo popular de bodega ficaria bodeguim. Vê, Milton? Botequim. Não é engenhoso? O médico sorveu a pinga, assentindo para o teto com seriedade, fingindo que estava mesmo prestando atenção ao piano do cedê. Tomando ximbira e ouvindo chopã. – Ah, as maravilhas dessa língua tão vulgarizada – murmurou, sonhador; então despertou e bateu o garfo no copo. – Corina! Venha imediatamente! Milton oscilou mais uma vez. Nora olhava-o com serenidade. Sorriu de volta. Ainda não era amarelo, pensou, enquanto flertavam. Ela exprimia "mais tarde vou enfiar a língua no teu ouvido, cachorrão", tentando ficar mais peralta do que seria capaz. E ele só tentava não ficar amarelo. Testou os limites anatômicos do desconforto. Murchou e retesou as quinas do ventre, afogando a respiração, fazendo mesmo um pequeno ruído gutural.
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Folgou-se com cuidado e sentiu escorregar um arrepio. As orelhas tremeram. Confirmou: vontade de fazer cocô. Legítima. Doutor Aparecido acomodou o guardanapo de pano sobre as coxas. Uma ternura. Se lhe escapulisse um perdigoto, as calças nevadas estariam protegidas. Falou à filha, mas virou-se logo para não deixar de penetrar as angústias de Milton com os olhões verdes e as lentes bifocais. – A feijoada precisa ser muito bem composta. Não serve qualquer ingrediente. Precisa de temperos frescos e especiarias selecionadas. É muito difícil fazer uma boa iguaria com essa mistura de sensações gustativas. Tanto que na Bahia... conhece a Bahia, Milton? – ... – ...? – Não senhor. Só João Pessoa. – Ah, a Paraíba. Fiquei uns tempos lá, quando era estudante. Muito calor, Deus me livre. Detinha, querida, vamos nos alimentar? Daqui a pouco – soltou uma gargalhada pousando a mão peluda no braço de
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Milton – o coitado vai mastigar limões! – Já tô indo, Aparecido! Pombas, não quer a filha na mesa? – Mas onde estávamos? Ah, na Bahia de Todos os Santos. Notem que mesmo aquela sociedade meio suja, decadente e miscigenada, possui um paladar refin... Milton ousou distender mais. Recostou fundo, expirou, prendeu rápido, apertou-se inteiro de baixo a cima. Teve a sensação de que algum pedacinho esmagado havia ficado exposto. Sensação ilusória, certamente, mas o estímulo inicial avolumou, criando um mal estar intolerável. Aspecto de micróbio mole, insalubre, úmido, pegajoso. Não. Decidiu não suportar. Sacudiu a cabeça, como se concordasse com as palavras graves do doutor, mas passeava os olhos meio sóbrios pelas portas: cozinha, sala de estar, copa, armários, corredor, ali. Os ladrilhos pela fresta mal iluminada. Uma torneira. Frisou mais a vista e discerniu o espelho. Achou. Mais calmo, virou-se ao anfitrião. Mudo. Esperava uma resposta da filha. – Acho que uns trinta mil – ela murmurou, dan-
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do de ombros. – Realmente, meio caro... – Milton arriscou, demasiado confiante. Recebeu quatro espantos instantâneos. Nora gargalhou. – Mil-ti-nho! O ginecologista concedeu-lhe um sorriso. Milton imitou-o, sem saber patavina do que se tratava. Dona Odete chegou com uma menina emburrada, espécie de miniatura opaca da irmã. A visão inspirava algo de pecaminoso, e o safado suarento ainda conseguiu gostar. Sentaram. Uma serviçal uniformizada, novelesca, veio carregando imensas panelas de barro onde borbulhavam feijão, linguiças, carnes diversas, gorduras de cepa. O porco mais limpo do mundo. O uniforme retornou à cozinha e voltou com mais travessas cheias. Diante de Milton aterrissou uma cuia fumegante de torresmo. Toucinho, para os finos, depilado. Nora espremeu limão por cima e pareceu tirar muito gosto dos estalidos que provocava, dando a entender outras delícias. O pai pigarreou e solicitou a couve orgânica.
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Milton poderia ter sucumbido à desfaçatez habitual, pensando nas laranjas esculpidas e no seu Aparício chupando, mordendo, arrancando fiapos suculentos em plena camisa de seda, alva como as asas de um anjo. Mas o canalha não teve a desenvoltura apropriada. Estava começando a ficar realmente aflito. Temerário esperar até o fim daquele vastíssimo banquete. Nem se estivesse vazio conseguiria armazenar por muito tempo um bolo estomacal de farofa gorda, arroz, feijão preto, calabresa, orelha, rabo, charque, banha, pimenta "de quando ficamos em Aracaju... conhece Aracaju, Milton?" Seria desumano lutar. Entregou-se por minutos à sorte. A pasta mal mastigada ia ganhando forma, empelotava com a saliva, o resto seco cimentando as gengivas. Engoliu, lenta e dolorosamente, a esplendorosa feijoada, encaixando-a nos apertos da barriga dura. Pontadas simultâneas no intestino grosso, como as garras de um feto sem útero, ameaçavam rompê-lo. Retraiu o cóccix num golpe derradeiro. A mesma sensação liquefeita, cruel, anunciando algo volumoso e inevitável. Rolha de aspereza arrancada lisa, lá embaixo,
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dentro, íntima. A mensagem nervosa saiu das entranhas, chispando o arrepio pelos anéis da coluna, atingindo o cérebro no ponto que alarma: necessidade fisiológica iminente. Urgência de animal. Urgentíssima. – Será... Nora, será que dava pra eu lavar as mãos? – Magina – sorriu dona Odete, sugando uma tira verde – a gente não tem essas reparações. Nora riu. Doutor Aparecido fingia apenas comer. Milton afastou a cadeira e ergueu-se. Era questão de hon... – Só uma higiene simples. Hábito de família, sei lá. – Precisa explicar, agora, Milton? – vociferou o pai, de boca cheia – À vontade. A casa é nossa. O cafajeste precisou controlar as passadas. Não ser afoito demais. Uma hecatombe moral podia ocorrer se descobrissem o segredo. Caminhou como se levasse um cacho de marimbondos sobre a cabeça. Achegou-se da fresta, acendeu a luz, deu um passo ereto de valsa e
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entrou. Olhou em volta antes de fechar. Não olhou de verdade, só achou de bom-tom dar mais solenidade e menos temperamento ao gesto. Encostou a porta de mansinho, deixando a tranca escorregar junto com a maçaneta. O contingente fecal se anunciava, irrefreável. Acendeu a luz. Rápidas centelhas fluorescentes foram materializando as paredes coloridas, os vasinhos na pia, o sabonete enxuto, os ladrilhos desenhados, um banco minúsculo no chão, a parede, o teto, a luz acesa, paredes, vasos com flores, parede, vasos, pia seca, toalha, banquinho, parede, chão. Lavabo! Uma porra dum lavabo! Um lavabo! Um... Lavabo. As pernas tremiam, suadas. As mãos tremiam, suadas. A testa suava, as têmporas suavam. Latejava inteiro. Precisava deixar sair, imediatamente‚ era necessário que defecasse, naquele momento e não em outro, estava já nascendo, impossível conter, agora ou nunca mais na vida. Resistir já não cabia nas suas possibilidades.
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Tirou as calças e, ato contínuo, um sapato. A meia. O outro, de raiva e, de raiva, também a outra meia. Pronto. Safo, trancado, livre. Intocável. Sem desespero. Nem latrina. Calma. Tivera embaraços piores, sairia daquele com a mesma elasticidade. Ninguém podia entrar, ninguém podia ver. Que esperassem. Ficaria a dúvida, sempre, o empate da defesa. Quanto ao cheiro, demoraria. Sim, esfregaria um pouco de sabonete na... pia? Ora, nada mais justo. Nos vasinhos de plantas, seria milimetricamente inviável. Nos bolsos? Nas meias? Nas meias?! Não havia alternativas. Mesmo que houvesse, porém, ele não estava apto a especulá-las. Forçou o mármore que circundava a louça rosa claro. Firme. Resistente. Sentiu que ia sucumbir. Apanhou o banquinho e subiu, entortando o tronco à frente, ajudando as nádegas com as mãos para trás. Vozes na sala próxima. Inúteis. Conseguira. Um desafogo maravilhoso, avalanche de glórias, a dádiva do esvaziamento corporal. Poderia finalmente pensar. O mundo inteiro giraria mais solto e feliz. – Milton?
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Vitoriosamente evadido para a louça da pia. Uma paz de coito findo, prostrada e ofegante. Do sorriso escorriam filetes de alívio. Forçou uma entonação simpática e tranquila, como se tirasse cravos ao espelho. Bem apropriado, aliás: cravos hor-rí-veis ao espelho. – Oi? – Milton? Desceu do banquinho. Observou, orgulhoso, os três cilindros corpulentos esfriando no côncavo da louça. – Que houve, Norinha? Pensou rápido e concluiu que tanta cerimônia já era besteira. Arregaçou uma das mangas e passou a mão onde seu corpo estava sujo, colhendo o máximo de substância, com a rudeza necessária, para a lavagem final. – Mí, a gente esqueceu de falar. Viu, usa o outro banheiro. Ele estremeceu. – Por quê? – Esse aí tá sem água. Ninguém sabe ao certo o que se passou com Mil-
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ton Tanajura naqueles instantes caóticos. A palma imunda em riste. As nádegas miseráveis, e aos poucos também as coxas. Os despojos repulsivos maculando a pia luxuosa. O odor maléfico dominando o ambiente. Nora encostada à porta, aguçando os ouvidos, já preocupada, talvez até sentindo as primeiras emanações da inhaca. Dona Odete mastigando, Corina mastigando, o doutor Aparecido engolindo. A serviçal na cozinha. Pode ser que Nora tenha arriscado, afetuosa, uma última vez: – Querido? Tá tudo bem? Sabe-se apenas que Milton vestiu as roupas, limpou a mão na toalha, abriu a porta, esbarrou na moça, cruzou a sala em disparada e sumiu para sempre.
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Bolha
Alva surgiu na porta da cozinha. – Espera. Vou também. – Deixa disso. – Você, Fábio. Hoje eu quero ir. Me dá um minuto. Subiu a escadaria em saltos ágeis e voltou logo, de casaco e mochila. Queria parecer descontraída, mantendo um sorriso seco e frio, como aquela manhã de sábado. Nenhum cansaço nos olhos mal despertos. Usava bermuda justa e uma camiseta branca recortada que mostrava seu umbigo. As pernas longas e depiladas se equilibravam sobre tênis infantis, que deviam ser novos. Partiram quietos, debaixo de um azul escandaloso. Fábio atravessou duas cidades vizinhas, raspando em dezenas de lombadas, para escapar do pedágio. Como de hábito, praguejou contra o pedágio. Ela, também como de hábito, não revelou o que pensava a respeito.
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A estrada de terra vermelha contornava uma colina até ficar perigoso subir mais. Ali havia uma clareira com alguns carros molambentos. Na choupana, homens seminus assistiam a um minúsculo televisor. Um barulho de cachoeira dominava o ambiente. Atrás do mato empoado, crianças peladas gargalhavam na correnteza. O casal subiu a trilha batida, pisando firme nos calcanhares, bufando o ar incandescente. Alva tirou a jaqueta e enfiou-a nas alças da mochila. Uma cerca de arame farpado surgiu entre as folhagens. Aproveitaram o obstáculo para descansar. Depois Fábio afastou os fios e ela se enfiou no vão. A vereda embrenhava-se no bosque, ainda mais íngreme, desafiando o morro sem fim. Ele abraçou as duas mochilas e saiu na frente. Subiram. – Se estivesse chovendo você ia ver o estrago. – Se chovesse neguinho nem levantava da cama. Era provocação. Alva sabia perfeitamente que todo mês, no primeiro sábado, independentemente de quaisquer fenômenos esportivos, familiares ou atmosféricos, ele estava ali, arfando como um rinoceronte enfartado, mártir feliz de suas causas secretas. Deu de
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ombros e respirou fundo, cônscio do esforço restante. Encontraram um pequeno riacho que saía do matagal e entrava nele poucos metros abaixo, para virar o leito volumoso que anteviam lá longe. Treparam nas pedras limosas até onde foi possível e encheram os cantis. Ele bebeu na concha das mãos. Ela caiu de joelhos e enfiou a cara na água gélida. Voltaram à trilha e mergulharam nas sombras refrescantes da floresta. Sentiam a maciez das folhas no chão e a umidade resinosa que emanava pelos troncos. Viam os frutos misteriosos, as flores inacessíveis, o céu pontilhado pela folhagem. Ouviam os pássaros secretos povoando o vazio de silêncios ruidosos. Fábio começava a sentir-se estupendo. A esposa o acompanhava, salpicada por sombrinhas dançantes, os olhos desfeitos de pensamentos, a camiseta colando num suor já resolvido. A certa altura quis levar a própria mochila, teimou e recebeu o fardo. Seguiu meio bamba, oscilando nas pernas arquejantes, mas não parecia disposta a reclamar. Venceram a encosta derradeira num único impulso de sobreviventes. Afinal chegaram ao cume, uma
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área estreita e descampada, ainda com a mancha de cinzas do último acampamento. Depois da borda íngreme, estendia-se uma paisagem de tons opacos, tufos de floresta, losangos irregulares cobertos por miudezas inertes. O sol passeava no último terço rumo ao poente. Fábio abriu a mochila, tirou o embrulho da barraca, estendeu-a no terreno achatado que marcava seu espaço habitual. Jogou os espeques para Alva e cuidou da armação. Montaram tudo numa serenidade quase surpreendente. Ela entrou de costas, lembrando de arrancar os tênis. Recebeu as mochilas e tratou de acomodar os dois sacos de dormir. – Cabeça pra lá? – Muito bem. – Trouxe pouca malha. – A gente se enrola no cobertor. Cataram lenha num bosque próximo, no lado oposto do morro. Fábio ergueu o dedo molhado à brisa, concluindo, ridículo, não haver brisa. Juntou os galhos diante da barraca, a distância segura, e foi construindo
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a fogueira cônica, depositando as peças com zelo de especialista. Pensava nela, secreto, falsamente compenetrado, quebrando os galhos menores e enfiando-os na pilha. Sentiu-se enternecido por suas limitações, pela trivialidade simpática daquela presença fiel e astuta. Gostava de tê-la consigo, de partilhar o refúgio. Por que então o desconforto, o súbito desalento que o impedia de gozar o idílio? Olhou o horizonte cinza, onde as cidades quase se tocavam, exaustas de clubes, shopping centers, futebol, casamentos, amores findos. A imagem deu-lhe uma certeza de felicidade, mas apenas a certeza, a constatação racional de algo maior do ele próprio era capaz de sentir. Alva, sentada na grama, espiou pelas frestas do momento a carranca dura do esposo. Tentou entender sua contemplação meio tristonha, insondável e assentada, mas não quis admitir que lembrava a de um garoto solitário. Entreolharam-se e trocaram sorrisos de ternura. Fábio acendeu a fogueira. Soprou, estalando as faíscas, erguendo uma fumaça odorosa que os inebriou
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de aconchegos. Prepararam um arroz insosso com rodelas de linguiça, o cardápio obrigatório daquelas viagens. Apesar da falta de tempero e das crostas queimadas, devoraram a papa numa satisfação voraz. A noite volumosa, ente à espreita na vastidão escura, trouxe a sensação de abandono que ele tanto desejava. Talvez para não violá-la, trocaram palavras escassas, reduzindo os gestos ao mínimo necessário. Vestiram os casacos, os gorros de lã, as meias grossas. Pousaram o cobertor nos ombros e acomodaram-se nas nervuras do terreno para admirar o fogo hipnótico. Às vezes atiçavam-no com fiapos secos de mato. – Que tal um chá? – ela perguntou. – Tem chá? – Pensei que seria uma boa. – Você é maravilhosa. Incontinenti, cheia de cuidados para fazer jus ao elogio, Alva foi buscar a caneca e os saquinhos de infusão. Jogou o resto de um cantil ao outro. Mediu, apoiou o recipiente nas brasas e recostou-se com ar satisfeito. Ele assentiu e beijou-a na face, mais encabulado que surpreso.
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A fogueira jogava sombras na relva próxima. Depois se abria um completo vazio, até o painel de luzes bruxuleantes no abismo. Cada brilho tão magicamente implausível quanto a respectiva estrela milímetros acima. Nenhum ruído na mistura de ruídos ínfimos, próximos como a própria respiração.
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Mimo
Teu vômito irrompe num susto arregalado. Não contesto. Finjo prudência para disfarçar a incredulidade. Um galo, sono, mal-estar. Fumo outro cigarro são e continuas soltando a lava corrosiva, ajoelhado no meio-fio, como se expelisses algum câncer. Não posso ajudar. Tão fundo não irei. Apenas espero que respires, e é tudo que temos, o que temos em comum. Silencio porque me faltam palavras gentis. Porque não há médicos disponíveis, porque o feriado, sexta-feira, dorme. Porque receio que morras. Percebes o real no teu vínculo? Não a falsa verdade que lucubras sob a carranca de pavor, mas o simples fato minusculoso dessas pulsações descompassadas? Sentes teu nada no mundo, como sinto o meu, ao te ver sem restos, conclamando-os? Mas ignoras, desejando a mentira da vida. Nostálgico de coisas salutares que nunca foste, anseias por
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remoçares milagrosos. Tu, que nunca foste, onde quer que foste. Apenas giraste com o planeta ingrato que agora colhe tua bile sangrenta. És essa baba que escorre, esse arroto que sobe no ar frio da manhã. Não há culpas a purgar. Levanta, infeliz. Escolhe a volta. Assume que te podem melhor, que ainda queres mais. Ergue-te, maltratado e rijo, feito a árvore que nos ignora depois de ignorar nossos antepassados. Toca a força da árvore, a essência do que nela é telúrico. Então bate no peito das tuas amarguras. Ordena o fim. Um pronto, e estás pronto. Sim, os neofascistas da antimatéria continuam fumando ar e bebendo água, reivindicando não serem. Mas não te fies na desconversa lúcida dos que nos querem famélicos. Sente o calor revigorante da fome que se pode preencher. Joga teu escarro amaro no aconchego dos proprietários bem dispostos. Cospe esse orgulho de notívago visionário, pois todos nos odeiam, inclusive os dos bares. Chega de comiseração pelo que seríamos se fôssemos reféns, ou gênios, ou heróis, se não somos. Levanta e sai, moleque, antes que te chamem,
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finalmente, de poeta. Solta o lastro da mágoa, vendo como a calçada se afasta da tua cabeça à medida que te aprumas. Sente a cadência das pisadas, a lógica dos movimentos, os encaixes das costas, o ponto exato que dói na cabeça. Lembra-te da cabeça. E vai dormir de uma vez por todas, enquanto ainda posso me arrepender dessas aventuras. Ainda as quero. Ainda as queres. Portanto, amigo, ruma. E até amanhã.
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Ela
Reencontraram-se quase três anos depois das lágrimas derradeiras. Discerniu-a por entre as cabeças, no escuro multicor da plateia, sob fachos de holofotes nervosos. Todos pulavam no ritmo gutural das caixas de som. Gostava de caminhar sozinho entre as pessoas. Achava que só em movimento as coisas podiam acontecer. O senso de acaso dos cosmopolitas, dizia a si mesmo, invejando nos outros o oportunismo que lhe faltava. Assim esquecia a sua necessidade de se manter revirando a tona para não afundar. Driblava os esbarrões vendo os semblantes de perto, cada fisionomia peculiar expondo-se na crueza do anonimato. Alguns inexoravelmente perdidos, outros pasmos ou irritadiços. Os sonos esbugalhados das garotas que só pediam ir embora. As que não paravam de procurar, sabe-se lá quem, durante o show. Os solitários
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errantes, os felizes urdindo amálgamas seguros. Então ela. De camiseta branca e bermuda jeans. Os cabelos diferentes, muito curtos, uma penugem morena cobrindo a nuca. Os ombros suados, talvez mais fortes, a estranha desenvoltura de fã. Indisfarçavelmente linda. Mas os detalhes vieram por último. Primeiro aconteceu o rosto, o milagre de encontrá-lo imerso em milhares, num ginásio lotado e sem donos. Junto com o estalo de bumbos, pratos e flashes, a aparição repentina, a poucos metros, no alcance de um afago saudoso. Seus miolos fritavam para encontrar atitudes sábias e rápidas, até que ele achou melhor não esperálas. Conseguiu acotovelar-se fora do alcance dos escárnios e descobriu um ponto favorável à vigia incólume. Dali olhou-a por toda a noite, lívido, ilhado na massa, embalando à força no atrito dos corpos alheios. Falto de reação e pretextos, acompanhou todo o arco do fim com um sossego curioso, de adivinho que antevê o próprio desastre. Os músicos agradeceram, foram e voltaram, saíram de vez. Aos poucos as luzes do teto revelaram a turba mal desperta. Sorrisos, bocas
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secas, olhos vermelhos e franzidos. O burburinho de conversas, gritos, nomes, gargalhadas. Mentira que se reencontraram. Não era ela. Nem tão bonita quanto a menina que jamais imaginara ver novamente, nem tão parecida, agora que a claridade materializava as meninas reais. E ele se descobriu sozinho, repleto de lembranças palpitantes, em meio à bestificada e exausta multidão.
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Diário de Claudius I Pensa-me um estranho dentro de mim. A cabeça não condiz. Sinto que sou múltiplo e afável, jamais tão sério, comovido, fugidio, definitivamente menos triste do que pareço. Não há esta longa cabeleira em meus devaneios. Não a estatura incerta, nem cicatrizes. Mal o nome. Ou a voz que me expressa, que pensa o imaginado fala e devolve para ninguém a sabedoria que esqueci. O espelho é uma janela na parede alva do hospital. Quero chorar, mas a imagem evita. Retorce a pele esticada na cirurgia, incógnita sob a máscara de ataduras que só existe no reflexo. Os olhos que fitam dali não são os meus. Vejo outro homem na outra cama de outra enfermaria. Ele percebe quem o descreve.
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Cria que a figura escreve-o no ato de espiar-se por cima dos ombros daquele que rabisca o ser que lê.
Fogueiras na madrugada fresca. Sombras lascivas misturam-se nas lonas das tendas. A mulher dança no meio da roda. Suas tiras de seda roçam as nossas barbas. A fumaça digere os restos bêbados, na apreensão exausta da tribo. Os giros coloridos, as rendas assanhadas, as lantejoulas e os sorrisos macabros. Perfumes, horas de perfumes de origens inauditas. Ela me pisca um olho e se afasta na certeza de que a procurarei mais tarde. Os líderes gargalham com piteiras nos dentes, de olhos caídos, montados em pilhas de almofadas. Não demora até que todos adormeçam, roncando pelas bocas abertas. Bruxuleiam jantares nas tabernas. Alguém se lembrará de acender os castiçais no palácio em luto. ***
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De novo entre as paredes brancas. Boquiaberto de sono, atento na impaciência dos enfermeiros. Não percebo as feridas que parecem enojálos. Meus sentidos ficaram tão rarefeitos que adormeço e desperto sem notar. A primeira vez chega numa espécie de memória sem vínculos. Um susto calmo que se traduz em essência de plena lucidez. De repente passeio quarto afora, feito balão preso à minha própria barriga. Vejo a mulher séria, de avental, que esteve comigo desde o acidente. Sei que a conheço. Mas seu nome, sua natureza, é tão intangível quanto familiar. E sinto que ainda não desistiu de nós.
Sábado meu amigo entornou vinte e dois copos de aguardente. Não quis me acompanhar no coche. Veio a pé desde o cais, abrindo caminho nos blocos. Ainda trazia o ás de paus na aba do chapéu. Teimando em se fantasiar de palhaço, comprou
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um gigantesco terno rosa, costurou um aro de arame na calça, colou bolinhas vermelhas em tudo, calçou galochas de gendarme. Arranjou uma peruca loira. Melou a cafuringa de sabão, despenteou-a com os dedos musculosos, chacoalhou até ficar toda esperneada. Conseguiu maquiagem de circo e pintou o rosto de branco, mancha vermelha borrando a fala, uma boca desenhada triste. Recortou papel de embrulho, fazendo longas fitas que cruzavam o cordão por sobre as cabeças. Saiu traquinas e alucinado, chafurdando com prazer nos montes de confete, rindo aos entrudos como se a água e o perfume espargidos fossem o seu sangue.
Os textos de Pulsac narram tempos em que as pessoas sonhavam. Seria ele hoje capaz de sonhar? Mesmo alguém que escreve, que lê e especula, que se exibe nas paredes cobertas pelos escarros dos imortecidos? Poderia, mesmo ele, sonhar? Depois que fugi do hospital, jamais sonhei de novo. Não me faz falta, imagino, embora fosse uma oportunidade para retê-la na breve consciência matinal. Pa-
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ra arrancar-lhe aquela voz que sorvi no desespero da fuga. Precisaria dormir o suficiente. As câmaras mnemônicas não me ajudam a reter semblantes, paisagens, nomes. Porque os semblantes, as paisagens e os nomes que preciso não estão gravados em qualquer central. A Rede não se atreveria a derramar Isabela pelos canais de uso coletivo. Os campos de anônimos ficariam lotados.
Espero-a na rede, oscilando ao vento que enverga os coqueiros. As crianças brincam na areia. Às vezes jogam torrões no avô lesado, só para ouvirem minhas censuras inconvincentes. Os últimos pescadores atracam descrevendo a borrasca. O horizonte é uma parede turva que se aproxima. Ela chega vencendo as dunas fofas com os passos vigorosos. Beija nossos filhos e puxa-os à cabana. Levanto-me. Recolho o pai, a canoa, os petrechos que não podem ser molhados. Saio catando lenha para o jantar. Enquanto acendo a fogueira, ela conta as doces
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atribulações da vila moribunda. Ouço-a como um aluno deslumbrado. Espero os dias inteiros por esses momentos, meu pretexto acima de todos os outros numa vida sem surpresas.
Cinco minutos de ascensão. O visor do capacete uma tela perfeita, onde o menor sinal luminoso revela meu rosto oval no interior. A ausência de limites me paralisa. Sinto-a nas rugas das digitais, nos pelos eriçados, na estranheza atônita da qual duvido. Inflo de hipóteses impossíveis. Sei que alguém nos observa. A esfera azul desaparece na colcha de brilhos ínfimos. Subitamente faltos da sabedoria chã, de laços e de barulhos, silenciamos. Aterrorizados. Bólides de carne apertada, prenhes de vida, soltos pelas distâncias absurdas. Tanto esforço para atravessar a película que separa a gota azul da imensidão. Para aprisionar essa energia misteriosa nos corpos vetustos. Para explorar o miolo das nossas mentes primitivas. Sem que chegue-
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mos sequer a admitir que existe um mistério. Começo a me cansar destas viagens. Não reclamo, porém, não me treinaram para reclamar.
Homens nervosos fritam pastéis no trailer improvisado em botequim. Os assentos são calotas amassadas. Os fregueses debruçam no balcão que ameaça desabar, jogando as garrafas vazias sob a carcaça de lata. Sussurram, mas o barulho e o movimento continuam nos lembrando o toque de recolher. O garoto ao meu lado parece bonito demais para ter coragem de conversar com um estranho, na madrugada urgente, os tanques roncando por avenidas desertas. Deixo que fume, pinçando fiapos de erva na ponta da língua. Espio suas meias. Sei reconhecer um militar pelas meias que usa. O pugilista é figura habitual. Passa por mim fazendo um gesto de comparsa. Não sei se pensa que nos entendemos ou se devo temê-lo. Todos parecem conhecer meu segredo, a jovem que abandonei para preservá-la dos inquéritos, da pri-
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são, das torturas insuportáveis. Espera-me nalgum ponto da cidade. Entorno o gargalo com o copo ainda cheio.
O jovem astronauta defronta-se com os vazios quiméricos. Já não sente medo ou melancolia, apenas o triunfo natural dos neófitos. Flutua pelo nada e absorve-o, numa ansiedade irrequieta que extravasa em piadas chulas. O piloto, crédulo, diz que imagina uma figura telúrica. Um ser idoso, de cachos ruivos, másculo. Nos olhos, furacões incandescentes. Língua réptil. Gigante. Rimos de suas fantasias. Digo que não espero o que não vejo. Ordeno que silenciem para não gastarmos oxigênio, mas o fato é que as especulações me assustam. O oficial finge que dorme. Sei que também cultiva ilusões. Todos guardamos alguma esperança. Convivemos demais com o infinito.
Os bocejos do rei sepultam as chances do espetáculo. A plateia os traduz em palmas de luvas frouxas.
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Depois da mesura, o maestro cambaleia pelo proscênio. O violinista, magoado, apruma a peruca e deixa o teatro. Aproveito a algazarra para subir às galerias lotadas. Chamo-a detrás da cortina. Ela inclina querendo me passar uma descompostura, vê minha calça enlameada e cobre o riso com o leque. Tão jovem. Faz um gesto sereno para que eu espere mais alguns minutos. O pai estica a bengala e fecha abrupto o camarote.
Salta alguém da fachada escura de um hotel abandonado. Rola para ganhar impulso e no outro pulo mergulha por um vão nos edifícios. A arma enfiada nas alças das costas, o gorro preto de lã cobrindo o rosto. Um mercenário sem presa. Escondo-me entre as colunas, avaliando a distância do prédio. Como sempre, me perco do cálculo, errando pela constatação da própria dificuldade em lidar com qualquer estimativa. Ou nomes. Como se faltasse ar nos pensamentos. Estela ainda não saiu.
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Um letreiro pênsil range acima da minha cabeça. É a ruína do velho cinema. No interior devastado, nas clareiras de poltronas, flamulam as labaredas que aquecem e distraem os imortecidos. O portão da garagem começa a abrir e atravesso a rua. Quando o veículo sobe à calçada, espio pelas frestas do respiradouro. É ela. Trocamos olhares instantâneos antes que acelere e parta. As curvas são íngremes o suficiente para que alcancemos a mesma velocidade.
Os homens de capuz gesticulam, pois não usam o mesmo idioma. Posso adivinhar o ódio que sentem uns pelos outros. Uma gargalhada, latidos, tosses. Duas mulheres conversam, ninando bebês. Os lacaios batem no couro recente, esticado sobre o varal. Não secará tão cedo. Nas brasas quase extintas, o peixe de ontem. As famílias, vestidas para a neve, sussurram os últimos preparativos. As crianças choram enquanto os adultos irritados se apressam, pegando bornais, chicotes, arpões.
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Ela respira dentro da cuia, soltando vapor. Bebe o chá devagar. Olhou-me várias vezes noite passada. O gorro agora esconde as mechas lindas. Tem o nariz e as faces rubros de frio. Sigo-a com respeito. Foge. Vira-me um sorriso. Monta em seu trenó e açoita os cães, partindo pela manhã branca.
Arranco os fios e os tubos que me prendem às máquinas. Antes de abrir a porta, refletido nela por um segundo, vejo meus cabelos compridos, o rosto coberto de ataduras, as manchas espalhadas no corpo nu. Gritos na sala dos enfermeiros. Soa o alarme. Barulho de móveis caindo, objetos metálicos, apitos nos aparelhos que abandonei. Avanço através dos corredores brancos, escorrego no piso brilhante, esbarro em cômodos trancados, forço janelas gradeadas, clamo por ninguém na ala vazia. Descubro um vestiário e me escondo sob os cabides com as túnicas dos oficiais.
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*** Descemos à planície para receber os invasores. Quatro patas a conduzi-los, monstros comedores de ferro. As espadas impecáveis. O fogo nas mãos. As barbas. Faltavam-nos mínimas respostas. Antes que houvesse motivos para rezarmos, os estrangeiros ceifavam cabeças, abriam as grávidas, chutavam os velhos. Aprenderíamos a matar? Corremos pela fortaleza devassada. Ela se perde na multidão, e seu rosto disforme é a última imagem que guardo no horror derradeiro. Neblina e suor estragados nos olhos que não podem fechar. Nas mãos, o sangue dos próximos. Os gritos na maresia.
A cápsula explode no retorno. Minutos imensos de labaredas, estilhaços, vertigens, a queda abrupta na água. Continuo desperto, plácido, ondulando de bruços no leito salobro. Como se respirássemos um no outro, eu no mar em mim.
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O helicóptero chega para cumprir a rotina de escombros e corpos. Os mergulhadores ficam assombrados quando me veem refulgir na espuma suja. A enfermaria tumultuada, as injeções, os exames clínicos. As raspagens para limpar a cinza dos restos de pele inútil. Chora-se o necessário. Ao final me odeiam. As viúvas e os órfãos, os supervisores, os médicos, as enfermeiras. A gente das ruas. Não espero reação diferente. Horas de luto depois, contrariando o próprio funeral, chegar íntegro e forte. Inumano.
Quando me alistei na infantaria, ela pediu que a matasse. Depois queria partir comigo. Aos poucos foi se cansando de chorar. Desço da cama e visto o uniforme. Beijo-lhe as mãos trêmulas, prometendo que voltarei. Ela afasta as peles e vem a meu encalço, batendo os pezinhos pelo chão de pedra gelada. A avó corre abraçá-la no alto da escadaria.
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Monto, ordeno que abram o portão e saio ereto conduzindo o grupo. Sigo lamurioso no barro encharcado, com o estandarte apoiado no ombro. O padre açoita os últimos cavalos, para que não haja refugos. O castelo some na chuva. Os flocos de gelo tenro cintilam sobre os muros. A neblina encobre o povoado e, no cenário branco, diviso apenas os tufos de fumaça das chaminés. Guardamos as conversas para a longa viagem que se inicia.
Os nomes começam a desaparecer. Talvez seja culpa dos remédios que me injetaram. Ou dos sonhos, tão vívidos quanto as memórias. Ou do acidente. Leio os manifestos que certo Stênio Pulsac manda colar nas paredes. Há algo de pueril nesses textos. Remetem com nostalgia a tempos de fábula que ele mesmo não viveu. O tempo daquelas fotos coloridas. Mas a revolta do sábio é exposta apenas para os imortecidos, as bruxas e outros fantasmas incuráveis. Ninguém ali sabe ler.
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Os cidadãos saudáveis não se aproximam de panfletos. Só eles poderiam realizar as utopias retrógradas de Pulsac, só eles poderiam averiguar as denúncias contra a Rede. E, no entanto, a cidadania despreza ilusões. Julgo prudente imaginar que o personagem do rebelde é uma invenção para atrair nefelibatas, mitômanos e colecionadores. Não seria a primeira vez.
Para diante de uma colombina que assiste o desfile. Ela abana o pescoço, nobre e enfadada, mas perde os devaneios virginais diante do palhaço capenga. Indo e vindo com o tronco inflado, mantendo os pés pregados ao chão, mede-a de cima, como se usasse monóculo. Estende a mão oleosa para tocá-la. A família precipita-se no alvoroço, misturando briga e jogo, berros e rimas. Os escravos dispersam por apuros catadores. As amas choramingam, as velhas pensam desmaiar. Finjo que não conheço o infeliz, atravesso o desfile e presto socorro às distintas senhoras. Meu amigo fantasiado corre pelos dançarinos
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adentro, driblando golpes, empurrando um clarão no bloco. Sai a tapas e vira folclore. Eu ganho uma esposa.
Pedem que explique o fato de ainda viver. Não regressaria a mim mesmo, se fosse evitável. Jamais profanaria o decurso do tempo apenas por deleite. Mas ele nos leva aonde quer. O estranho me observa sério do espelho. A coisa dentro inchou de vazios. Transbordante. Espalhou memórias estranhas pelo corpo dócil. Não vou justificar o que desconheço. Os técnicos esperam captar imagens dos meus sonhos. Dizem que os exames indicam vigília dúbia, mesmo com os sedativos. Perguntam sobre a mulher que me transtorna. Mostram as explosões dos sensores na tela. Calo. Finjo colapsos para que desistam e saiam. Tento não dormir, mas a própria luta se revela parte da viagem. Temo nova catarse. Uma exibição involuntária
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de poder. Transmutar-me em algo inaceitável. Ferir alguém. Não retornar dos transes cada vez mais frequentes. Preciso sair deste hospital. II Todos reconhecem minha túnica rasgada no meio das costas. Valho-me do temor que inspiro, e é o bastante para ser deixado em paz. Aguardo sob a janela. O interior apagado parece um lapso de noite no mármore negro de fuligem, poça de nuvens guardando o único resquício de firmamento sob o ocre eterno do céu. Ignoro há quantos meses fico ali, julgo que diariamente, para sorver o vulto. Chamo-a Estela porque soa apropriado. Cerúlea. De sorrisos perdidos quando observa os horizontes crepusculares. E crepuscular é a sombra que vela os olhos cujas cores, andares abaixo, ainda não decifrei. Estela demora. Nos cantos odorosos vejo os primeiros imortecidos da noite, recolhendo comida, rou-
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pas, tocos de cigarro, combustível. Procuro não estorválos. Tampouco se interessam por alguém de cabelos compridos, sob um capote militar cheio de avarias, encostado na parede do cinema de outrora, encarando um edifício residencial. Talvez até se divirtam comigo. Lembro as florestas dos sonhos. O verde indescritível das árvores. Os jardins das cidades, as casas térreas, as crianças seminuas à beira-mar. As praças de convívio, repletas de gente e de animais. Alguns conjuntos a leste há um antiquário somali que possui fotografias dessa época feliz. Quando Estela descer, tirarei os óculos para saber se me reconhece. Mas também para vê-la sem o vidro turvo, guardá-la por uma noite ainda, enquanto posso lembrar. Sinto que esvai numa saudade pesarosa. A memória retorna em ciclos mais e mais rarefeitos. Sirenes próximas. Viro duas esquinas agudas, sufocando a audácia nociva que me arruína o fôlego. Os vultos encolhem para eu passar. Esbarro de propósito nos corpos apertados, como se quisesse puni-los pelo passeio desnecessário. Contorno a quadra e chego de volta à mesma cal-
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çada. Alguém fechou a janela. Adiante, um veículo se afasta pela rua estreita de pedra. Corro, grito, ele acelera, envereda pelo conjunto vizinho. Sigo-o a distância segura. A placa antecipa a fronteira dos bairros. Chego por trás e me encosto à traseira do carro. Discirno os olhos refletidos espreitando meus movimentos. Holofotes pendem das fachadas, câmeras oscilam sobre as passagens estreitas. Abrem o portão do bloqueio. Ela hesita diante do sinal aceso. Eu também aguardo, num contínuo impassível. Uma voz eletrônica insiste na guarita, Luísa desperta, acelera e consigo acompanhá-la. Corro com o veículo como se conduzisse ancas dóceis. O portão encaixa-se logo atrás e avançamos. Os ruídos crescem, as luzes ficam, viram, desaparecem. Retorna a penumbra amarelada que cobre as vias. Não vejo a outra barreira porque me preservo agachado. O veículo diminui, freia, para, meu corpo bate na lataria. Vozes fortes. Ordens. Isabela abre o vidro. Sim, de uma Isabela é como ecoa essa resposta aflita. Os seguranças continuam a inquiri-la. Preparo
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uma fuga desatinada, mas falam alto demais e o momento carrega uma estranheza infesta que me paralisa. Grudo nos ferros, de respiração suspensa. Os guardas começam a circundar o veículo, empunhando as armas, discutindo entre si e com a motorista. Pelo retrovisor lateral, vejo a raiva dela numa proximidade linda. Um dos homens estica-se para dentro do carro. Os demais gargalham. Vozerio entre passos de bota rascando nos paralelepípedos. O portão aberto balança e range ao vento. O motor assobia soltando fumaça. As luzes de ré explodem no meu rosto. Os guardas gritam mais quando percebem que ela ensaia um arranque. Ainda não me viram. Estapeiam o para-brisa, querem que Isabela saia do veículo. Procuro-a no espelho e amalgamamos nossos instantes de horror. Então compreendo que a moça não pode sair. Por minha causa. Obstruo sua fuga. Espera que eu reaja, acelerando imóvel no rosto do obstáculo, balançando o veículo na iminência da retirada. Espremo o peito à lataria, consigo impulso, as pernas doem no ângulo fechado, os pés arrastam nas ondulações da pedra, as armas engatilham, ela avança lentamente.
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Não me olha mais e assim compreendo o sinal. Pulo para o lado, o veículo arranca, o guarda tropeça em meu corpo, Isabela alcança a via, faz um volteio abrupto, desembesta. Ergo-me e disparo pelo pátio. Salto as muretas que afunilam a passagem, busco as ruas laterais, entro numa galeria de lojas extintas. Agacho na penumbra e confirmo que não me seguem. Os imortecidos observam detrás das pilastras, tiritando, já fedendo a doença. Encontro uma viela e corro até o final. Quase despenco em outra portaria iluminada e recuo, espremido às paredes. Soa uma buzina distante. Retorno e caminho por um labirinto de becos. As sirenes e os guinchos dos pneus se afastam pouco a pouco, até sobrarem apenas meus batimentos alucinados. Os minutos passam e sinto que estou prestes a adormecer. Mas algo me atrai a um ponto qualquer do cenário. A sombra percorre a fachada em completo silêncio. Escorrega, oscila, agarra nas ondulações dos peitoris, joga-se por cima da travessa, gruda na parede oposta, pendura um pouco, arremete de viés e para numa frincha de janela. Todo negro, imenso, apenas o brilho
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sutil da arma presa às costas. E os pequenos globos acesos na máscara, indicando que me analisa. Puxo qualquer coisa que alcance na treva. A estopa infecta desprende do corpo inerte que protegia. Abraço o cadáver e nos cubro juntos, sustando o fôlego, à espera do pior. III Um êxtase indefinido. Remexo no compartimento exíguo e me descubro num dormitório. Paredes nuas, lençóis novos, música sutil, temperatura amena. O recipiente murcho, no alto da cabeceira, com resto de fluído incolor, não possui etiqueta. Na tela repetem-se padrões de paisagens lúdicas. Florestas, parques e lagos, cenas urbanas de respeito e harmonia, objetos e edifícios de linhas graciosas. Como naquelas fotografias do antiquário. Retiro a agulha do braço com um puxão. Sentome na cama e desligo as imagens. Tenho sensores colados na testa, no pescoço, no peito, na barriga, nas coxas, nas canelas, nos pés. Ao movê-los provoco uma sinfonia de apitos suaves.
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A porta corre para entrar um homem forte, de crânio raspado e orelhas cobertas de brincos. Usa um avental branco sobre o uniforme de militar. Puxa a cadeira para ficar junto ao leito. Não inspira temor, mas tampouco se esforça para soar amistoso. – Lembra-se de mim, comissário? Não ouso responder. Ele consulta os mostradores da parede lateral. – Os sinais estabilizaram. Vamos esperar os resultados. Aperta um botão, a porta se abre e surge uma enfermeira. Vem a passos rápidos, mas paralisa na entrada, segurando a bandeja metálica. Espera a minha reação, lívida e ansiosa, como se eu devesse reconhecêla. Sorri por um momento, ameaça falar, percebe a expectativa do oficial e prepara uma injeção. Dispara o conteúdo na minha carótida. Troca o recipiente de fluído por um cheio, introduz novamente a agulha que arranquei. Mexe nos controles do painel, erguendo a cabeceira até uma posição em que eu possa recostar. Depois se retira quieta. O homem tomba um suporte que desdobra numa
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pequena mesa de refeições. Tira do bolso do avental uma tela estreita, com um fio espiralado prendendo o marcador. Antes de sair, acende uma luz sobre meus ombros. As imagens retornam no painel superior, com a música suave. Novamente só, observo o caderno deixado pelo médico. Deslizo páginas incontáveis cobertas por caligrafias diversas, todas minhas, eu sei, mas de épocas que não ouso reconstituir. Leio as últimas anotações.
Preciso reencontrá-la, enquanto ainda chego aonde mora. Não posso perder a fisionomia, o desenho dos olhos, os traços que a distinguem. Mal a vislumbro, Andréa imersa num redemoinho de abstrações. Tampouco a ignoro. Tenho ciência de uma Fátima escondida no prédio imponente, de uma Daniela terna que sigo todos os dias, de casa ao trabalho e de volta, de uma Helena corajosa que me reconhece e aceita, que me espera nos cruzamentos, que abre seu veículo diante da garagem. Mas não há feição alguma. Nem um nome que
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possa justificá-la. Pergunto ao médico sobre a mulher que estimula meu desespero. Ele não responde. Manda que continue escrevendo, que tente desenhá-la. Que rabisque todos os nomes que possa inventar. Acontece que o mistério, incerto, deteriora-se mais a cada esforço. Flávia, silente, é demasiado fugidia. E, Marina, esvai numa dança etérea, que a leva consigo, quando vou defini-la. Volta, Lívia extraviada, Carolina de dulçores que te sopram adentro, Mônica irretocável, de cabelos que já não existem, de olhares que não imagino, de timbres que não concebo. Qualquer mulher poderia sê-la. Quem quer que me olhe com um lapso de ternura possui a essência da tal Camila mensageira, daquela Mariana impoluta, de uma Fernanda aflita, idêntica às outras, da Priscila bonita e suave que fantasio sob a alcunha. Ou nenhuma delas. Ou mesmo a enfermeira dedicada e carinhosa que não cansa de sorrir para mim. Amo uma ausência.
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*** Pouso o caderno e descubro o médico sentado logo adiante, as mãos nos bolsos do avental. A cabeça, ligeiramente caída para o lado, possui um aspecto familiar. Não suporto encará-lo. Procuro refúgio nas cenas bucólicas do painel e agora os cenários me parecem verdadeiros, recentes, vívidos. Posso jurar que estive nesses lugares. A situação se arrasta por um suspense fraterno. Stênio Pulsac me observa em silêncio. Ao reconhecê-lo descubro que não tenho mais razões para sofrer. As pálpebras pesam. Ele percebe e aciona um botão, fazendo a cabeceira descer à horizontal. A porta se abre. A moça entra, recebe uma ordem silenciosa, assente e para junto ao leito. Contém as lágrimas, afagando minha testa. Beija-me no rosto. Sua voz flui, cheia de reminiscências aprazíveis, enquanto adormeço.
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O louco
Madrugada abissal. O vento uiva no labirinto escuro de divisórias. Apenas uma escrivaninha permanece iluminada em todo o prédio. Inclinado na cadeira ressona Jorge Osório, vigia da poderosa companhia de seguros. Segurança da seguradora. Alguém faz o trabalho sujo. A campainha do telefone quase o derruba de susto. Ele hesita olhando o aparelho. Talvez queiram saber se está acordado. Um trote. Uma emergência. Não, não vai atender. Engole duro e puxa um cigarro. Deixa minguar. Toca de novo. É sério, conclui. Ou uma brincadeira idiota. Ou a esposa em apuros. Não. É sério. – Alô. – Alô? – um caminhão ronca ao mesmo tempo no ouvido e na janela aberta. – Alô? Boa noite. – Bom dia.
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– É da seguradora? – Positivo. – Falo com quem? – Osório, segurança. – Por favor, estou ligando do orelhão, aqui embaixo. – Pois não. – Sofri um pequeno contratempo, queria pedir para usar o telefone. – Mas não tem um aí na sua frente? – Esta é minha última ficha. – Sei. – Preciso de ajuda. Bati o rosto. Cortei o supercílio. – Vou chamar a ambulância. – Não faça isso! Osório desliga e atravessa o salão. Acende as luzes da entrada. Pela vidraça das portas vê a silhueta encolhida de frio. Apanham os respectivos interfones. – Pra onde o senhor quer ligar, afinal? – Pra casa – responde o vulto no lado de fora. – Pedir que alguém me busque.
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– Então façamos assim: o senhor me diz seu nome, o número, a pessoa com quem quer falar, eu explico a situação e dou o endereço. Desta vez tinha pensado em tudo. O silêncio de fora aumentou seu orgulho. – Preciso explicar melhor. – Fala. – Mas abre, por favor, estou sangrando. – Eu também – Osório ri e desliga. Apaga as luzes. A campainha explode, contínua, insuportável. Osório decide mesmo abrir, mas para espancar o desencaminhado. Pega as chaves, saca seu revólver, destranca. Surge à frente do vulto com a arma apontada. O estranho usa terno, colete e gravata, sapatos impecáveis. Apalpa um corte feio na testa. – O senhor tem um minuto. – Obrigado. O banheiro? Osório conduz o visitante. Ele retorna limpo, com o rosto inchado, coberto de hematomas. O bigodinho, aparado e vermelho, coagula. – Sente-se bem? Devia procurar um hospital.
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– Mas... é verdade? Não me reconhece? Da tevê? – Não assisto. Quer dizer, às vezes, novela, essas coisas. – Mas já me viu alguma vez. – Não me lembro, não senhor. O homem se contorce, buscando um tom meio... – Sou o presidente. – Da empresa?! – Da República. Osório sorri. – Faça logo o telefonema e vamos saindo. – Não acredita. – Acredito, claro. Precisa discar nove antes. – Pareço um louco pra você? Pareço? – Telefona. O homem remexe nos bolsos. Arranca papéis, dinheiro, agenda, chaves. Põe o gancho de volta, desabando na cadeira da recepcionista. – Que aconteceu agora? – A senha. – Que senha? – Perdi a senha.
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– Mas senha pra quê, meu senhor? – Falar em casa. – Vai. Telefonista. – Não acredito que eu perdi a senha. – Seu... qual é sua graça? – Pode me chamar de Antônio mesmo. – Seu Antônio, vamos agilizar essa questão aí. Quer que eu tente? Antônio o repele com um gesto nervoso. Suspira, ganha coragem e afunda os dedos trêmulos nos botões. – Alô. Boa noite. Bom dia. Haveria por acaso a possibilidade de acessar um dos ramais privativos da Granja do Torto? – Granja de quem? – pergunta a funcionária. – A residência do presidente da República. – Olha, a essa hora o torto já deve estar dormindo. – Espera! É importante. – Não posso manter a linha ocupada. – Moça, calma. Aqui fala o próprio. É. Antônio Galvão em pessoa – finge que não ouviu a risada. – Antônio Galvão. Presidente reeleito. E quero que faça o
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obséquio de telefonar, daí mesmo, se preferir, para minha residência, utilizando... Ninguém mais o ouve. Ele repõe o gancho no aparelho. – Seu Antônio, vamos falar sério, que tal? O senhor bebeu, passou um pouco da conta, se machucou... – Um momento. Não caí por estar bêbado não. Tropecei. – Tudo bem. Quer telefonar pra casa, telefona. Mas se pretende curar o seu fogo arriscando a integridade do edifício, e meu emprego, sinceramente não vou permitir. – Como era mesmo...? Dois, quinze... dois e quinze eu tenho certeza. Olha, são cinco números. Vê se ajuda! – Vinte e um. – Não. – Onze. – Não. – Noventa e nove... olha, é ridículo. Chamamos a polícia, eles decidem. – Deus me livre! Seria um escândalo. Eu pago.
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Quanto você quer? – Êpa. Tá me tomando por outro, doutor? – Qual é mesmo seu nome? – Vai me dedurar. – Mas dedurar por quê? E pra quem? – Pro meu chefe. – Dedurar pro teu chefe? – Vai me dedurar pro meu chefe. – Só quero saber seu nome! – Osório. – Osó... senhor Osório. Vou falar a verdade. A mais pura e crua verdade. Saí com alguns conhecidos, pessoal das antigas, com aqueles passados saudosos. Bebemos. Um pouco, mas bebemos. Já às tantas vi que a imprensa me esperava na saída. Não queria fofoca, sabe como é. A oposição jamais perdoaria um presidente alcoolizado. – Essa história de novo? – Mas é tão difícil assim você se lembrar da minha cara? – Seu Antônio, o senhor não abuse não. Osório, em segredo, meio envergonhado, presta
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atenção à fisionomia do outro. Algo ali parece realmente familiar. – Dá o telefone aqui – disca. – Alô? Pinto? Pinto, é o Jorge. – Que Jorge? – Osório, pô! Lambísgua. – Lambí? – Tava dormindo? – Aconteceu alguma coisa? – Não, é o seguinte: chegou um cara aqui, todo machucado... – Na seguradora? – É. O homem caiu. – Bêbado. – Algo assim. – Manda embora, Lambí. – Deixa eu te falar. O cara diz que é... Pinto, faz o favor de pensar no que eu vou dizer, porque... bom, o cara diz que é... você vai rir da minha cara. – Diz que é quem? O presidente da República? – Deixa quieto, Pinto. Amanhã te ligo de novo. – Fala o que tá acontecendo, senão mando a
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polícia aí! – Calma. Espera. Uma coisa. O presidente usa bigode? – Bigode? – É, bigode. – Bigode... usa bigode sim. – Certeza? – Não. Acho que ele não tem bigode. Você diz o Galvão? – É, o filho da pu... o tal. – Que bigode nada, Osório, manda esse cara pastar. – Será que não tem, Pinto? Faz um esforço. – Sei lá se o presidente usa bigode ou trigode, pô. – Mas você não conhece a cara dele? – Conheço a cara dele. Mas assim, no detalhe... – Me fala: tem umas sobrancelhonas peludas? – Sobrance... andou tomando, Lambísgua? Em serviço? – Tomando o quê, rapaz. Depois te ligo. Jorge Osório bate o telefone com raiva. O outro se levanta, recuando.
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– Calma. Eu saio. – Agora você fica aí. Osório disca novamente. Olha para o homem planejando matá-lo. – Claudete? É o Jorge. – Amor? Que aconteceu? – Nada, tô no serviço, tô sóbrio, trabalhando, não fiz nada de errado. Só quero te perguntar uma coisinha. O presidente da República tem bigode? – Quê?! – Não me desligue esse telefone! – Onde é que você está, Jorge Osório? – Trabalhando, porra. Só quero saber se o filho da mãe tem bigode. – E o que você ganha com isso? – Apareceu um sujeito aqui, ensanguentado, dizendo que é o presid... – Mas é um bêbado qualquer, filho de Deus. – Não é não. Ele... – baixa a voz – ele tá todo chique. – Faz o cara te dar dinheiro. Bobear é gringo. – Mas e se for mesmo o homem?
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– Presidente da República, Jorge? Presidente da República?! – Ué, vai saber. – Vê se descansa um pouco. Tá quase na hora de entrar no restaurante. – Claudete. Só uma coisinha. Última que te peço na vida. – Se o dito cujo tem bigode... – É. Tem? – Ora, Jorge... ele... ele... – Você não sabe. – Claro que sei. Momento só, que eu lembro. Também, a essa hora, três e... quatro da matina, fica difícil. Péra um pouco. Se tem bigode? É isso? Bigode? – É, cacilda! Se tem bigode. Sabe ou não sabe? – Sei não. – Beijo. Tchau. Osório encara o desconhecido. – Pelo amor de Deus! – ele exclama, erguendo as mãos espalmadas – Eu não tenho culpa do que fazem lá em cima. É como na seleção de futebol. Você põe os homens que lhe pedem, não dá pra ser totalmente
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correto nessas horas. – Chispa fora. Vai, segue teu rumo. – Espera. Só uma vez, por favor. – Uma vez o quê? – Telefonar. Só uminha. A última. O homem disca. – Telefonista, por gentileza, meu nome é Antônio Galvão, presidente da República. – E eu sou a rainha da Inglaterra. Ele insiste, manso. – Estou em sérios apuros aqui. Me machuquei, um pouco só, mas preciso de curativos. – Vou acessar a ambulância pro senhor. Qual o endereço? – É o seguinte: no hospital existem repórteres. Jornalistas. Na delegacia também. Não posso ir parar nesses lugares, você sabe... do jeito que a coisa anda, vão acabar comigo no Congres... – Escuta, meu senhor. Na boa. Procura o cêvêvê. Ele desliga. Não tem mais forças. Os homens se entreolham. Por alguma razão, Osório se compadece.
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– Seu Antônio. Senta. Senta! Um cigarro? – Oh, não, obrigado. Quero. – Toma. Isso. Fuma, que é bom. – Osório, tenta me entender. – Tô tentando, homem. Tô tentando. – Eu só queria dar umas voltas por aí, descansar a cabeça um pouco. – Todo mundo precisa. – Só que me perdi. Foi isso. – E tomou um pileque. Fogo brabo. – Tomei. Tomei o maldito uísque. Mas fazia tanto tempo! Não bebia desde a primeira campanha. Lembra? Aquela do Pinóquio? – Era o Pinóquio? Não tinha reparado. – Bom, aquela. A propósito, em quem votou? – No Galvão. – E não lembra de mim? – Vai começar a falar sério comigo, ô... – Calma. Eu falo. Todo mundo passa um pouco dos limites um dia, certo? – Certo. – Todo mundo bebe um tiquinho a mais, certo?
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– Certo. – Eu bebi. Um ti-qui-nho a mais. E quis andar, sozinho, pelas ruas, como o Sidarta. O Buda. – Bun...? – Um príncipe que decidiu sair pelo reino pra saber como era no lado de fora, pois ele nunca tinha conhecido a realidade de seu povo. – Tá. Saiu pra dar um rolê. – E me perdi. Só isso. – Bom, pelo menos acabou a história de presidente. – Esquece, acabou. Não sou ninguém. O telefone toca. – Seguradora. – Lambí, achei uma foto do cara. – Já foi. Não é presidente nada. Antônio ergue-se da cadeira. – Sou sim! Sou sim! – Pinto, o sujeito encheu a cara. Depois, sacumé, veio aqui encher outra coisa: o meu saquinho. – Jorge, só dá uma olhada, enquanto eu vou falando.
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– Tá. – Nariz pontudo. Meio careca. Sobrancelhas grossas. Feias pra burro. – Ahn. – Boca torta. Lábio carnudo. Lábio de baixo carnudo. – Carnudo. – Bom... acho que é isso. Olho preto. – Hmm. – E aí, Jorge? Confere? – Ah, mas tem uns duzentos mil nego assim no mundo. – É, tem. – Valeu, Pinto. – Olha, são quase cinco. A faxineira deve saber. – Nem a Claudete sabe, Pinto. – A Clau... cê ligou pra tua mulher, rapaz? Perdeu a noção? – Alguém deve saber como é o filho da puta. – Bom, a descrição é mais ou menos essa. Bateu? – Bateu. – Acha que é o cara mesmo? Tá bonitão?
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– Todo empetecado. Tem até cachecol. Risos. – Que cor? – Branco. – Ah, que coisa engraçada, cachecol branco? É bicha! – Tão tá bom, ô Pinto, deixa eu desligar. Depois a gente retoma. Te cá esse. Antônio e Osório olham-se confusos. – Parou de sangrar. – Dói pra cachorro. – Se eu pedir... olha, boa idéia, se eu peço pra telefonista... – Não, ela não pode te dar o número. Óbvio, senão todo mundo ligaria. – Mas como é que foi esquecer o telefone de casa? – O número eu sei. Problema é a senha. O ramal. – Um táxi. Que tal um táxi? – Não sei. A Dalva... – Dalva. – Minha esposa.
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– Puta merda. Agora tá ficando difícil. – Ela nem sabe que eu saí. – Alguma coisa de presidente o senhor tem. – Dá pra por favor parar de falar mal de... do presidente? – Qual é, Antônio? Vai defender o sujeito? Um canalha daqueles? – Olha... Antônio repensa. Está comovido, exausto, nauseado. Olha fixo para o vigia, resgatando as últimas forças. – Osório. Meu bom e velho Osório. Sou um homem probo, formado no exterior. Tenho esposa e dois filhos, um casal. Ótimas pessoas, acima de tudo. Como você. – Vai, continua... – ri – excelência. – Veja bem. Sempre, em toda a minha vida, em todos os momentos em que eu... – Não começa a encarnar o figura de novo não! – Calma. Falo de peito aberto. Prometo recompensá-lo quando tudo estiver resolvido. É só ninguém saber que eu vim parar aqui.
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– Como é que é? – Ninguém pode saber. – Por causa? – Da oposiç... da minha família. Eles não entenderiam. – Mas como é que o senhor ia ligar pra casa, se... Antônio deixa a cabeça cair para trás. – Tanto problema por causa de uma porra de um passeio! Cobre o rosto e começa a chorar. Os primeiros caminhões chacoalham nas ruas de pedra. Osório perde a paciência. – Deixa eu ver a identidade. – Pensei que isso não fosse necessário. – Dá o erregê. Antônio entrega. Osório procura. – Mas não tem nada aqui. Se fosse presidente, vinha escrito. – Antônio da Silva Galvão. Não sou eu? – E quantos Jorge Osório você acha que eu já encontrei? E esse da Silva? O cara não tem da Silva não, safado. Cadê a carteirinha? O crachá?
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– Mas que... – Como é que entra no Planalto? – Oras. – Assim qualquer um, puxa vida! – Lá me conhecem. – Que conhecem nada. – Chego de carro oficial, pela garagem. Ninguém precisa me ver. Pedir... crachá. Osório desiste. Vê as janelas ficando azuis. – Acho bom tomar logo uma decisão. – Verdade. Preciso sair daqui. Vou encarar a Dalva mesmo, não tem jeito. Melhor chamar um táxi, Osório. – Puta que o pariu, a faxineira! – Quem? – Corre. Se esconde. Não dá mais. Fica. Fica! Entra a mulher, arrastando os chinelos, já exausta da manhã. Assusta-se com o estranho ensanguentado. – Gente! Que aconteceu?! Assalto? Antônio se levanta, constrangido. Quer desviar, tenta sorrir, estende a mão, recua antes do cumpri-
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mento. – Não senhora. Só caí. Na calçada. – E ficou desse jeito? – Veja só. – E a ambulância não veio até agora. Ah, mas é sempre assim! Nesse país nada funciona direito, meu Jesus! O coitado do homem aí, sangrando, e ninguém pra socorrer. Bom, agora já tem ônibus. Passa num posto de saúde, que tá feio isso aí. O jornaleiro chega de bicicleta e aciona a campainha. O vigia recebe uma pilha de cadernos plastificados, que deixa na mesa da recepção. Pega o telefone e solicita um táxi. Antônio vai saindo. Osório acompanhao, sentindo já o calor reverberando no concreto dos prédios. A faxineira segue para o vestiário. – Se cuida, hein, seu Antônio. – Muito obrigado, Osório, por tudo. – Toma um café bem forte. Senão a patroa vai chiar. – É o que vou fazer... é o que vou fazer... – Até logo. Antônio
cambaleia
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até
o
carro.
Acena
e
desaparece na urbe atribulada. Jorge Osório tranca a porta. Alinha as cadeiras e arruma os objetos na mesa da recepcionista. Ela aparece no saguão. – Osório, bom dia. – Bom dia, dona Sílvia. Ele apanha um jornal, abre, folheia a seção de política. – Saiu alguém daqui agora? – ela pergunta. Osório vê a fotografia do presidente e sorri.
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A Colina da Providência Para Luis Buñuel 1 I As sutilezas da mulher ausente ficaram incrustadas na atmosfera da casa como as nódoas no carpete demarcam o repouso dos móveis. Os perfumes dos tecidos que a tocavam flutuam pelos contornos acolchoados, escapando com a minha fumaça janelas afora. Sem Beatriz os cômodos perderam o colorido, mas a solidão que os preenche é uma forma dela existir no vazio.
1
O título da novela remete a “O Anjo Exterminador” (Luis Buñuel, 1962), cuja ação transcorre numa casa situada em certa rue de la Providence. Além da homenagem sincera, a dedicatória ao mestre ilumina as referências simbólicas inspiradas pelo filme, particularmente no teor do manuscrito que o protagonista recebe de um misterioso andarilho. Retorno a este personagem, Sílvio, em “Os Três Mamilos de Acrimônia” (“Acrimônia”, 2002), abordando suas aventuras anteriores aos eventos aqui relatados. (N. do A.)
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Nas fotos ainda felicita nossa vida errante. Nunca vi essa mulher fora do visor da câmera. Só a tive desfeita de talentos ou hipocrisias, livre do instante valioso, protagonista das minhas buscas infrutíferas. Alguém fica eternamente ali, comigo, captando-a com a miserável abnegação dos que se sabem supérfluos. Não sorria quem a flagrava, não tanto, pelo menos, quanto a imagem no papel brilhante. O seu é um sorriso que sorri, abstrato e etéreo, sangue em preto e branco. O meu extinguiu-se antes de conhecê-la. Disse que voltaria logo, de um lugar misterioso que precisava conhecer. Jamais insisti para que dissesse a verdade. O fato de terem levado poucas roupas e quase nenhum brinquedo chega a soar insignificante nesta altura do que conheço. Mas o abandono é covarde por natureza, e prefiro fingir que a entendo. Contorno as reminiscências pelos quartos, à cata de fantasias no mormaço da madrugada. O homem do espelho flerta com a imagem que o espera, vindo aos tropeços, um e outro incompletos, buscando o par. No reflexo do miserável que se espatifa tentando subir além do possível existe outro, estúpido e brando, ancorado
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nas mãos que tenta levar consigo. Pisco para ele e nos evitamos, recíprocos até nisso. Então saio assobiando no silêncio deixado por Vera e sua mãe, remontando a saraivada de tropeços que me levou a cair assim, do voo sem destino, enfiando a mão no rio e tentando salvar uma verdade tristonha. II Hotel ínfimo e ordinário, escondido no centro mais anônimo da metrópole. Seis hóspedes de pijamas e chinelos, refestelados em poltronas díspares, assistem à única televisão do lugar. Sobre a mesa baixa, revistas de celebridades e um vaso com hortênsias moribundas. Deixo o tempo fluir no jogo de olhares e esquivas da senhora indiscreta no outro lado da sala, flertando com as atrizes inconcebíveis no vidro espesso do aparelho. O dia de nômade lateja nas plantas dos pés que ainda não se viram livres das meias e dos sapatos moles. Devo estar fedendo o equivalente. Ninguém compra meus purificadores de água. Repelem os folhetos que carrego como se me levasse
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dentro da maleta. Não precisam de filtros. Talvez comece algo diferente. O problema é que sempre esqueço o que havia para recomeçar. Outros maravilhosos filtros d’água para lares com sede? Acho que tentarei vender sedes maravilhosas para lares com filtros d’água. A TV provoca um estrondo risonho. O gerente, sempre enfiando a barra da camisa social para dentro das calças de ginástica, palita os molares e faz comentários imbecis sobre a novela. Se procurar conversa de novo, com sua carranca verminosa, juro que devolvo uma grosseria. Por um instante as vozes deixam de existir. A brasa entre os dedos me desperta e pulo da poltrona como se tivesse levado um chute. Abandono a sala sem falsas amabilidades. As cortinas desfraldam para dentro do quarto. Não acendo a luz. Arrasto a cadeira e pouso o queixo no peitoril da janela, ouvindo ires e vires de motores, buzinas, alarmes fugazes. Perco-me aos poucos, suspirando na geada, sugado pelos faróis convictos. As calçadas escuras, cobertas de lixo. A linha de semáforos unânimes que ondula com a avenida. Os prédios secula-
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res formando istmos de pontilhismo que ameaçam o firmamento pálido e ruidoso. Quando recobro a consciência, percebo as batidas suaves na porta. Encosto à madeira, depois abro e deixo apenas um vão de corredor escuro. O perfume a precede, forçando a passagem numa doçura suspeita. Bate os saltos amaciando os músculos do quarto. O luminoso do hotel percorre a parede com múltiplas sombras do seu perfil. Os olhos que me apertavam no térreo agora parecem lilases. Mal os retenho e já piscam verdes opacos. Encosto a porta, hesito, concedo em trancá-la. Puxo um cigarro do paletó. O fósforo cria volumes fulminantes no seu rosto, exagerando os contornos sob o queixo e as rugas da testa. A mulher foge da chama e para à janela, emoldurada pelo fundo gris. O semáforo pinta uma aura em torno do penteado cheio de fios rebeldes. Uma curva de elástico frouxo aparece debaixo da axila. Espera que eu tome qualquer iniciativa. Aos poucos me aproximo da silhueta, quase desejando uma reação contrária. Encosto os corpos sem resistência. Da blusa passeio às mechas rígidas, da res-
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piração congestionada mergulho no beijo arisco de inimiga. As mãos pesadas me agridem as costas, os braços e a nuca, apertam as unhas ao longo das roupas. Geme. Sussurra umas frases incompreensíveis. Encaixo nossos ventres. Sua língua rasteja, esfria o contrapelo do pescoço, intromete nas dobras da orelha, inunda, corrompe. Desvio o rosto e imediatamente recebo um tapa forte, sonoro, que me faz lacrimejar. A mulher se desvencilha e retrocede até um canto escuro do quarto. Corro para agarrá-la. Perdemos algum tempo disputando abraços, suas pernas me enlaçam firme pela cintura e logo estamos nos beijando com furor inédito. Arranca minha camisa, desce as calças sem abri-las, o zíper e a fivela do cinto raspam a púbis. Tento recuar, tropeço no pano e caio de costas, puxando-a contra mim. Despencamos juntos na cama rangente. Ficamos engalfinhados, ondulando nas molas do colchão. Respiro o agridoce da nuca, a tintura na penugem macia, o desodorante enjoativo. Ela ergue o tronco, espalmando a parede, tilintando as pulseiras, e tira a saia por cima. Desliza-me no vão das suas pernas. Comprime os ventres úmidos, abre-se no encaixe e for-
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ça uma estocada rude. Segura os próprios cabelos suspensos, relaxa, estica o torso para trás, rebola parecendo ganir, aumenta o ritmo. Susto a iminência por um segundo. Conduzo as mãos pelos seios, ainda sob o sutiã murcho, descendo à pele alva das costelas, cheia de pintas irregulares. Ela grita, fecha uma expressão dolorida, aumenta a velocidade, grita mais e remexe e bate. Pulo à frente, afastando-a para sair, dou um passo bêbado e caio de joelhos. Tento engatinhar, mas ela se joga pendurada sobre as minhas costas. Levo-a por metros no carpete inflamado. Esfrega os mamilos e as curvas liquefeitas, cravando os saltos nos calcanhares que repuxo. Vira-me de frente e pousa, certeira, profunda. Bate em meu rosto, dança, contrai, acelera, retesa. Esmorece com um derretimento grave. A cabeça pende numa gargalhada satisfeita. Tento abraçá-la, mas ela escorrega no suor, ajeita-se na posição que prefere e lambe e aperta e morde, corta, arranha, dói. Esfrega meu peito com as mãos vermelhas. Continua sussurrando uns insultos sem nexo. Ergo-a comigo, sufocando seus pulmões, prendendo o
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encaixe do corpo uno. Erro por apoios incertos nas portas do armário, nas paredes, na quina do colchão. Terminamos sobre as roupas caídas no meio do quarto. Ela deita e se exibe com um orgulho vadio. Os dentes acinzentam à penumbra. As contas do colar, serpeando entre os seios ofegantes, possuem uma lubricidade árdua e experimentada. O aro de batom manchado entreabre uma ventosa sôfrega que não beijo por milímetros, compartilhando nossos hálitos rançosos. Toda ela exige que a fira, que a contrarie, que a magoe. Seguro seus pulsos cruzados sobre a cabeça e recomeço os balanços vagarosos. Ela finge que não gosta. Aliso as axilas ásperas, as dobras flácidas na barriga, o ventre hirsuto. Sinto as coxas duras, os movimentos intensificam, ela volta a xingar e fica entreabrindo as pernas para então fechá-las com violência. Meu primeiro tapa é indeciso, manso, na cadência meiga dos movimentos. Um segundo tapa a desperta. Num terceiro, mais convicto, descontrola-se, dócil e tortuosa, horrorizada e suplicante.
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III Os barulhos crescem e terminam cavando uma fresta impaciente por onde a cabeça inunda com dores e náusea. Estendo o braço procurando a desconhecida, mas afago lençóis. A ausência estipula a certeza de que estou acordado e de que há murros na porta. Procuro respostas no teto, no criado-mudo, na janela incandescente. Estico-me e pego um cigarro, sem acendê-lo. Mantenho o filtro a pender nos lábios secos, na esperança vã de que a sensação familiar engrene os pensamentos. Doem as costas, os ombros, os joelhos bambos, o queixo, as gengivas rudes. O nariz pulsa, cheio de coágulos. Abro com veemência, e discirno apenas o odor de pólvora no buraco redondo que paira à minha frente. Recuo a tempo de entender que é um homem com marcas de varíola no rosto e que o revólver treme na sua mão. Ele escancara a porta num golpe, avança e chuta a cadeira, que se despedaça antes de cair. No relance entrevejo mais três ou quatro vultos correndo pelo quarto. Viram-me de rosto contra a pare-
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de. Torcem o braço para quebrá-lo, cravam as algemas com força desmedida. Recebo uma coronhada atrás da orelha. Solto um grito desesperado, mas apertam minha garganta e estrangulam-na até que eu pare de remexer. A joelhada no ventre lembra que ainda estou nu. Os sujeitos balançam o criado-mudo no ar. Da gaveta poeirenta caem a Bíblia cinza, uma fruta podre, fósforos. Reviram também a valise, espalhando os folhetos dos purificadores de água. Lençóis e roupas são enfiados num saco plástico. Tento protestar, mas recebo um chute na têmpora e afundo por uma escuridão sem arestas. Os parcos sentidos retornam aos poucos. Noto que sou puxado sob as axilas, arrastando os pés no carpete. Um gotejamento dedilha os lábios e escorre ao peito. – Não admito violência no meu hotel! É o gerente da carranca verminosa, bloqueando a saída. – O senhor nos dê licença para completarmos o flagrante. – Pelo amor de deus! Todo machucado!
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– Assassino perigoso. – Como, assassino? Vocês não disseram que tinha... – Vai saber. Hediondo igual. Reage apanha. E quem não colabora vai junto. – Pois eu não afino pra meganha. – Olha o desacato! – berra um policial. – Respeite a autoridade! Alguém repete meu nome e, por um fiapo de consciência, reconheço a voz. O hóspede, ancião de aparência doentia, usando calças de pijama e camiseta imunda, tenta abrir passagem pelos soldados. Um deles aperta a sola do sapato sobre a minha panturrilha. – Exijo explicações! Quem é o responsável? – Eu mesmo e não lhe devo maiores. Positivo? Tá interessado no xilindró? Então cala a boca e dispersa. Consigo me apoiar nos cotovelos. Encosto a cabeça no armário, implorando clemência. O velho fica emocionado e se joga de frente contra os policiais. É expelido com força, cambaleia de costas, bate na parede do corredor e cai sentado.
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– Abuso! – grita uma voz feminina. – Deixa o rapaz! – Não fez nada errado! Curiosos se apertam entre os batentes. O gerente recoloca o velho de pé, roxo e descabelado, urrando palavrões. O chefe dos policiais tenta atravessar o grupo e volta empurrado, tateando apoios. Os colegas acodem, o entorno se debate, a gritaria fica violenta, perigosa, física. Um disparo sólido ecoa no meio da balbúrdia. Permaneço encolhido ao pé do armário, de olhos apertados, esperando o pior. Pouco depois remexo os braços e as pernas, ergo o rosto e vejo que todos saíram. Um guarda continua próximo à porta, indo e voltando. Sento na beira da cama. Por entre o ferro das algemas um filete desenha a veia roxa sem saída. O escarcéu dissemina-se pelo edifício, cheio de fatalidades. Um estrondo abala toda a construção. Os ânimos paralisam num silêncio grave e retornam mais ruidosos, iminentes. Manco pelo quarto, esbarrando nos objetos. Com as mãos unidas agarro o saco plástico e puxo-o comigo. Espio a saída. Ao fundo, o policial discute com duas mu-
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lheres. Arrisco alguns passos na sua direção. Ele me descobre, manda que volte para dentro, aponta o revólver e leva um soco. O tiro chega tão próximo que meu ombro fica salpicado de pó e tinta. Largo as roupas e corro pelo único espaço livre, destrambelhado numa dança de aleijão. Desço dois andares, mas a perna ferida trava, calço vazio no susto, os degraus engasgam lances abaixo. Só paro de rolar na parede. Gritos fortes, pancadaria, estilhaços. Busco os apoios possíveis, roçando o corpo na parede até ficar novamente de pé. Sigo no corredor vazio. Um dos quartos está aberto. As vozes se aproximam. Arrasto o pé inerte para dentro e empurro a porta. – Pelado não dá, moço. Vão te prender na rua. A camareira me observa, segurando uma bolota de panos. Ri do meu estado, ela mesma um tanto maltrapilha e suja. Larga o amontoado no carpete, puxa dali uma bermuda amassada e a oferece. Não consigo me vestir sozinho. Tento de novo, fraquejo, tombo na cama. Ela toma a bermuda e se ajoelha à minha frente.
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Passa as aberturas pelas pernas, sobe, estala o elástico num sorriso maroto. Puxa-me à janela, mostrando que estamos no primeiro andar. Logo abaixo, a cobertura metálica do estacionamento. O novelo de panos amarrados se desenrola sobre a fachada. Trazemos a cama e atamos uma extremidade nos ferros da cabeceira. Sento-me no umbral. Deixo o peso pender e o móvel salta das mãos da mulher, indo se enroscar no parapeito. Sacolejo à frouxidão escorregadia dos nós. Desço de metro em metro, escorado na parede. Alcanço o telhado e engatinho nas calhas de lata quente rumo à borda que encobre o muro. Virado de bruços para pular à calçada, olho acima no prédio. A camareira acena. IV Mônica não parece muito divertida com as descrições que lhe faço dos quitutes de rodoviária. Sua forma de rir a contragosto é soltar chiados pelas narinas, empinando como se levasse pequenas descargas elétri-
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cas. Nos lábios tem um franzir nostálgico, meio insolente. Quase curva para não cabecear o quebra-sol da cabine, mas tampouco diminui as almofadas que adiciona ao banco. Os cabelos marrons cortados rentes e as orelhas sem furos lhe dão um aspecto andrógino que destoa das mãos muito delicadas no volante de diâmetro inverossímil. Os limpadores ondulam no para-brisa soltando estalos monótonos. Faróis se anunciam nos confins da rodovia, demoram, crescendo, e nos passam com um toque rápido na buzina. Mônica retribui. Liga o rádio, passeia por uma sucessão de grunhidos e desiste, soprando uma baforada ruidosa de fumaça. Então mergulha em profundo silêncio, concentrada na chuva que se projeta da escuridão. Recosto à porta, de pernas dobradas, cerrando os olhos. O ronco do motor me enche de paz e segurança. As curvas e os buracos mantêm vívida a noção do caminho, mas o movimento apazigua o desconforto e os relances fugidios que avermelham as pálpebras inibem o esforço de abri-las. Desperto assustado, espalmando o painel. O ca-
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minhão avança no acostamento, reduz as marchas, para num rangido exausto. O azul tênue de céu já anuncia a manhã. Abro a janela e recebo a brisa úmida, pássaros alegres, latidos, barulhos se aproximando logo atrás. Procuro-os pelo retrovisor. Um vulto coxeia na lama, curvado sob a mochila disforme. Calças imundas, casaco encharcado, uma barba selvagem exibindo frestas de pele curtida pelo frio. A aparição emerge com dificuldade à minha frente, apoiando as garras negras no batente. Arregala um sorriso castanho e pergunta nosso destino. Mônica responde por mim. Ambos trocam meneios familiares. Abro a porta e recuo para ele caber. O velho afofa sua mochila em cima da minha no vão atrás dos encostos, sobe à cabine e aconchega os quadris no assento com uma espécie de ginga. – Como vai, tudo bem? Olá. Pra falar a verdade, com licença, obrigado, pra falar a verdade não me importa onde estão indo. Ajuda a sentir o clima, sabem? É. As... como direi... emanações do ambiente. E o motorista sempre deseja que o carona tenha um rumo, não é justo? Hoje em dia aparecem uns folgados que grudam
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feito cachorro sarnento. Acho bom mesmo. Detesto cachorro. Ordenha o excesso de água da barba grisalha, dedilhando-o no tapete. Possui um ar mentecapto que o torna simpático e inofensivo, apesar da vivacidade talvez um pouco astuta demais. – Bonita manhã, bonita manhã. Parece uma tela de sir Reynolds, o pobre caolho. Pra falar a verdade, há bastante tempo eu não saía assim, pulando de condução, seguindo no rumo dos outros. Pra falar a verdade. Que jeito esquisito de fazer a pessoa acreditar na gente. Pra falar a verdade... E assim continuamos, debaixo da alvorada morna. O velho diz que se chama Sílvio, e que é um “abstracionista itinerante”. Ri fácil, numa expectoração catarrenta que possui o tom agudo e jovial da voz. Fica mexendo os dedos unidos pelas polpas, como se os deslizasse num espelho. Descola-os apenas para acender os cigarros tortuosos e manchados que tira de um maço disforme, cuja marca nunca vi. A fumaça tem fedor acrimonioso, tão inusitado que chega a sugerir alguma substância ilegal. Mas sua naturalidade e sua
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eloquência inibem suspeitas. Mônica demonstra não querer contatos desnecessários e me repele. Fico espremido em Sílvio, grudando na suas roupas úmidas, aspirando o fedor insalubre, recebendo os pingos da barba quando ele ri. Tento um gole de café decrépito. O velho aceita e continua falando. – “Qualquer homem que exija relações sexuais com a esposa, salvo exclusivamente para concepção, faz dela sua prostituta particular” – ele procura nossas reações e completa, de indicador em riste: – Alice Stockham, mil oitocentos e noventa e quatro. Mônica explode numa gargalhada inédita, que congela o interesse nos olhões vermelhos do outro. Ele se aconchega mais no meu corpo. Escolhe as palavras. Pigarreia arrastado, engole e assume um tom didático. – Vejam vocês. O rei ou o senhor feudal tinham garantido o direito de trepar, desculpem, de ir para a cama com uma recém-casada. Antes do esposo. Desde os sumérios isso acontece. Em Roma, a noiva era possuída pelo deus da fertilidade, um símbolo fálico esculpido em madeira ou pedra. Enfiavam o troço na coitada.
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Para os gregos era uma forma de adorar Príapo, filho de Afrodite e Dionísio, que vivia em permanente estado de ereção. No Camboja, os próprios sacerdotes budistas abençoavam as jovens, deflorando-as na véspera das núpcias. No Mediterrâneo carolíngio... V Os olhos pesam, ásperos. A cabeça gira. Moleques se penduram nas cordas da carroceria, já acostumados às minhas broncas. Acendo um cigarro apenas para senti-lo nos lábios. Mônica demora. Sílvio observa o horizonte no oceano. Fala sem parar, mexendo na areia da praia com o pé cascudo. Tosse as palavras mansas, interrompe frases ao meio, coça a barba enquanto matuta e sempre retoma o argumento. Há dias não lhe dedico atenção. Ela chega esbravejando contra a fila da padaria. Abrimos o tampo embutido na lateral do caminhão e dispomos as compras num esmero de banquete. Os sanduíches me fazem estremecer de sono. O movimento das famílias e dos vendedores começa a
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ficar insuportável. Fujo em silêncio, afrontado pelo sol, e acomodo-me na cabine preparando um repouso indiscutível. Os dois se levantam, limpando areia e migalhas, alongando as costas para retomarmos a estrada. Entre bocejos, descansando a vista, balanço ao sabor dos buracos. Mônica e o velho entornam o café recente, verdadeira raridade nas circunstâncias. Termino envolvido pela conversa amena de ambos, mas ela não é responsável por esta insônia miserável que me nauseia. Sentindo a boca ferruginosa, desisto de forjar o sono e acompanho o panorama ininterrupto de praias lotadas, céu azul, mar cintilante. Paramos numa fila de veículos e noto que Mônica me enfia um olhar preocupado. Meio corpo fora da janela, confirmo a inspeção da polícia rodoviária, cem metros à frente. – Vou pela praia. – Desço também – Sílvio emenda. – É melhor. Evita problemas. – Pega a gente lá, na torre. Número quatro. Combinado? Ela parece desconfortável, mas não se opõe. Eu e
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Sílvio pulamos para o acostamento. Saltitamos nas pedras quentes, cruzamos um trecho de mato e amaciamos a areia na direção da água. Passeamos pelos guarda-sóis, fingindo a calma dos turistas amanhecidos. Tiro a camisa, arregaço as calças até os joelhos. Sílvio aponta o infinito. – Tranquilo – murmura. – Tudo vai bem. Não olha em volta. O caminhão fica longe, preso entre os carros, bruxuleando na fumaça negra dos escapamentos. Passamos as viaturas e sentamo-nos à sombra do mirante número quatro. Próximo de nós, com as canelas enterradas, um ser de chapéu sem tampa, o rosto inchado e grená, tenta chamar a atenção dos transeuntes. Veste calção florido e um paletó negro e roto. As pessoas o ignoram. Ele cambaleia ao seu redor, sorrindo-lhes, fazendo mesuras. Afasta um pedaço de fazenda solto no peito, que já foi bolso, e no pequeno orifício aparece um mamilo escuro e arrepiado. Sílvio quase racha às gargalhadas. O maluco, igual a tantos outros, simpatiza com ele. Quando termi-
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namos de escalar a duna para o acostamento, ouvimos o grito do mendigo: – Eu e o rato! Balança os braços, de pernas abertas, violando a manhã bucólica. Dedos arreganhados, sorriso nos beiços poluídos, bate com os punhos no tórax. Embaça o vento com a poeira que seu corpo desprende. – Entre eu e o rato não há mais que pacto! VI Enfim o sol se desinteressa de nossos rostos e procura tocaia nos morros atrás da floresta. Sílvio chacoalha, a cabeça mole inclinando sobre meu ombro. Num ponto exato, os músculos despencam, as sobrancelhas arqueiam e ele retorna, balbuciando uma tosse. Mantém-se rijo, depois errático, até cair novamente. Mônica não esboça uma palavra há horas. Seus olhos franzidos procuram arrimo nos obstáculos invisíveis da estrada. O matagal que se avizinha do asfalto deixa entrever uma faixa turquesa de oceano. Não me canso de
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observá-lo, sumindo e reaparecendo, menos límpido e suave, apenas, do que o céu. Jogo no saquinho de lixo o maço vazio. Sem pedir, busco o dela no porta-luvas. Sílvio desperta com os primeiros quebra-molas de uma nova cidade. Enfia a mão no bolso interno do casaco. Acende o cigarro azedo, toma um copo de café e faz uma careta de nojo, lançando a gosma pela janela. Uma brisa úmida chega das montanhas, lembrando que ainda não dormi. O velho alisa seus cabelos para trás e me examina com uma espécie de carinho. Afastamo-nos do mar. De faróis já acesos, os veículos acumulam-se no trevo de acesso à grande rodovia que cruza a malha urbana e galga a escuridão da serra. Mônica gira o volante como se abrisse uma escotilha. O veículo manobra, pesado e ruidoso, invadindo parte do canteiro. Diminui, desvia para o acostamento, entra no atalho de terra e segue até um galpão iluminado, com três bombas arcaicas de combustível. Estacionamos numa fila de caminhões parados à penumbra. Risadas femininas e música sertaneja escapam das janelinhas cortinadas. Sílvio espreguiça, golpeia a terra com as botas
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frouxas, ajeita a cabeleira rebelde. Antes de sair, Mônica abaixa a barra da calça no tornozelo, cobrindo o seu pequeno revólver. Antecipa-se na direção do banheiro. Fazemos o mesmo. Depois entramos na lanchonete, pedimos dois cafés e esperamos por ela, apoiados no balcão. – Acho que a moça cansou da gente – Sílvio diz, num tom baixo e manso. – Podemos dormir aqui esta noite. Você tem dinheiro? Faço que não, vendo Mônica pela vidraça, marretando os pneus. Sílvio olha naquela direção. Volta a fitar-me, desta vez malicioso. Não reajo. Ele solta a fumaça para cima e pergunta ao balconista se há um quarto vago. Negociam rapidamente e o funcionário entrega-lhe uma chave. – Então? Quer seguir com a garota ou continuamos amanhã? Respondo que pretendo ficar. Mônica entra na lanchonete, cumprimenta uma senhora de avental e sobe no banco ao lado de Sílvio, como se ainda estivesse guiando. Põe-se a mascar um palito. Não consigo ouvir a conversa deles, mas posso adivinhá-la.
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Duas figuras curvadas se ombreiam na ponta do balcão. Um homem discursa em altos brados para o acompanhante, de ar entediado, que não tira os olhos dos bifes sobre a pia. – A praia? Tudo lixo. Bosta de cachorro, latinha, fralda suja. As barracas? Mais porcaria. Gente enchendo a cara, na beira da estrada, os carros passando, crianças correndo pra tudo quanto é lado. Perigosíssimo. Outro dia a patroa levou os sobrinhos da capital pra passear, cair um pouco n’água. “Alaôr, você precisa ver”, me contava, “um cachorro morto, caído ali, todo ensanguentado”. Porra. Mulher deitada, criança brincando. E o dono do quiosque, ele faz o quê? Vai e joga areia no bicho! Ficou o presunto ali, cheio de formiga. Imagine tropeçar na coisa? Ou um bebezinho pega naquilo, podre, nojento. Ah, seu Rodrigo, o senhor vai me dar razão! Sentimento vale por um segundo nessas horas. O ouvinte dá de ombros. Arreganha a boca num esgar de afogado e joga para dentro o líquido castanho do copo. Tece um comentário, que o outro responde imediato, correto, ganhando ênfase. – Trombadinha correndo, bate na gente, pega
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coisa. Levam até a esteira. E se alguém reage? Bala perdida. Essas correntinhas de moça. Puxar assim, muito rápido, pode até matar! Não, que polícia, nem na rua, ainda mais na praia. Quando tem é um ou dois gatos pingados bebendo água de coco. Parece até que estão em jogo de futebol. Mas daí eu que pergunto: e pra acabar com isso tudo? Sílvio baixa a cabeça, num esmorecimento zombeteiro. O orador gosta de saber que o ouvimos. Seu colega esboça uma reação, mas não tem chance de terminá-la. – Privatização das praias! Simples e justo, seu Rodrigo. Uma cerca alta. Guarita, bastante guarita, com os seguranças de binóculo e berro engatilhado. A pessoa compra todo mês um cartão, bonitinho, ou paga mensalidade, como se faz em clube. Ou então recebe um boné, esses chapeuzinhos de borracha, que tampa o sol, é... isso mesmo. Põe, o guarda vê, é da cor certinha, tudo bem. Pode entrar. Concorrência! Não tem licitação pra fazer obra pública? Taí: “serviços especializados de manutenção das praias.” Deu hora tal, depois de escurecer, toca uma sirene, sai todo mundo, fecha o portão.
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Uns holofotes grandes, iluminando a areia, pra facilitar a limpeza. Os funcionários passam recolhendo o lixo, depois separam e levam pra reciclagem. Pensou que beleza, seu Rodrigo? Não é? Percebo que Mônica saiu. De rosto franzido, Sílvio contém a risada e batuca o filtro do cigarro na unha do polegar. Chama o balconista. – Uma pura, faz o favor. Que entre eu e o rato não há mais que pacto. Olha-me de soslaio e dá um gole solto. Pede outras duas. Bebemos. – “Mais filhos dos aptos, menos dos inaptos, eis a questão-chave do controle de natalidade”. Margaret Sanger, mil novecentos e dezenove. Para sacramentar o dito, estala o copo no balcão. Chupa o bigode, larga umas notas amassadas, parte jogando acenos ao teto. Viro um trago indigesto e o acompanho. A cabine está acesa. O velho apoia no estribo, joga-me a mochila e sai com a dele nos ombros. Mônica diz que vai dormir no caminhão. Deseja-nos boa sorte, sem a melancolia que eu esperava. Não respondo. Estou
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muito cansado para lamentar alguma coisa. Ou para agradecer-lhe. Seguimos pelo cascalho lamacento. Chegamos a uma construção térrea, de alpendre mal iluminado, com uma sequência de portas e janelas pequenas. Abrimos o número doze. Há duas camas estreitas e uma cadeira. O papel de parede, com fotografias de paisagens nevadas, está coberto de rabiscos. São nomes, frases românticas, ditos espirituosos. Arranco os sapatos e as meias. Estico as costas no colchão, vértebra a vértebra, estalando as molas num alívio ruidoso. Sílvio apaga a luz e senta à penumbra, olhando por uma fresta da persiana. VII “Corre”, vem dizendo o menino. “Corre”. É bonito e feliz. Chega de braços abertos. “Corre”, insiste a voz aguda. Perto, o sorriso desaparece. Ele abana as mãos coloridas. Vem esparramar no meu paletó novo as mãos sujas de tinta.
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Sílvio balança-me pelos ombros. – A polícia! Chamaram a polícia! Rápido! Ouve algo, vai espiar na janela. Apalpo a escuridão metendo nos bolsos o que encontro. Visto as alças da mochila e corro para o lado oposto do quarto. Bato suavemente ao longo da parede, até sentir um ruído oco. Forço e desloco a proteção do buraco destinado a um improvável aparelho de ar-condicionado. Enfio-me no vão, arranhando as costelas, de frente para as estrelas e os rastros do luar. Saímos em silêncio. As mãos afundam na relva ciciante. Engatinhamos junto às paredes dos outros quartos e paramos na aresta da construção, diante de uma faixa iluminada. – Coragem – Sílvio murmura, logo atrás. – Andando normal. Vai. Cruzamos a luminosidade a passos trêmulos. Buzinas, freios, vozes, talheres, músicas desencontradas. Entramos no banheiro externo da lanchonete, fingindo naturalidade, misturados com os passageiros sonolentos de um ônibus que acaba de chegar. Paramos lado a lado nos mictórios. Sílvio apanha
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um maço de folhas amareladas, presas por volteios de arame rudimentar, com as bordas em frangalhos. Segura o caderno, buscando palavras solenes, mas acaba entregando sem dizê-las. Sai ereto, fechando o zíper da calça e perscrutando ao redor, como se deixasse um bordel. Vou ao seu encalço, atrapalhado com a mochila aberta, metendolhe o volume disforme, reordenando as coisas soltas. O velho espera na calçada. Não me olha. Apenas pousa a mão nas minhas costas e se afasta na plataforma. Conversa rapidamente com o motorista de um ônibus prestes a seguir caminho. Estende-lhe o dinheiro, recebe o troco, escarra no cascalho, arremessa a bituca e sobe os degraus. Sigo na direção oposta, fazendo um trajeto largo ao redor do estacionamento. Vultos passeiam no corredor dos dormitórios. A luz do número doze acende, espalhando sombras irrequietas no gramado. Mônica fuma diante do quarto. Os policiais precipitam-se para fora, gesticulam, gritam, dispersam pelo terreno. Ouço a terra crepitando com as solas apressadas. Silhuetas escuras cruzam os espaços luminosos entre os
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veículos. Assim que eles deixam a construção, corro até uma extremidade penumbrosa do alpendre. Tento uma porta. Forço: trancada. Busco a vizinha. Ainda não. Agarro a outra, já desesperado. Cede. Entro num salto, fecho rápido e giro a maçaneta com absoluta cautela. Mantenho o quarto escuro. Pelo vão da persiana, acompanho
os
movimentos
do
exterior.
Mônica
atravessa o pátio e se reúne com os homens uniformizados junto ao acesso para a rodovia. Conversam, procuram, depois seguem à lanchonete. Um barulho tímido agarra minha expectativa, logo atrás de mim. Viro-me gelado às trevas. Uma nódoa de fumaça envolve o canto do cômodo. As réstias da janela denunciam um volume claro remexendo ali. No próximo instante discirno o rosto jovem, limpo de sobrancelhas ou quaisquer pelos no crânio. Rugas brilhantes mantêm-se arqueadas acima dos olhos redondos. Está caído, encostado na parede, abraçando as canelas. – Padre! Avanço até ele, implorando silêncio. – Os loucos também te amam, padre! Rogai por
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nós pecadores, não se lembra? Não se lembra? Rogai por nós pecadores, agora e... Ajoelho à sua frente, abanando as mãos. O rapaz gargalha. – Ah, mas eu creio! Agora e na hora de nossa morte! Sento ao seu lado. Falto de gestos, ofereço um cigarro. Ele aproveita a brasa do outro. Dois tubos de fumaça quase paralelos saem da carranca oval. O olhar penetra e se esvai. – No princípio Deus criou a terra e o céu. E o espírito do Senhor foi levado por sobre as águas – faz uma expressão solene. – No horror da visão noturna assaltou-me o medo, e todos os meus ossos estremeceram. Girei a terra e andei-a toda, ele disse. A linha luminosa sob a porta salpica de sombras. Ele me toca no braço. – As juntas das tuas coxas são como uns colares fabricados por mão de mestre. O teu umbigo é taça feita ao torno, que nunca está desprovida de licores. O teu ventre é um monte de trigo cercado por açucenas. Todos a querem, a clamam, padre, bendita é ela entre as
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mulheres. Os seus peitos são como dois cabritinhos gêmeos, filhos da cabra montesa. O pescoço é uma torre... os olhos... são como piscinas... como piscinas... A cabeça nua encosta na parede, desenrolando fios de suor que se encontram na boca entreaberta. Ofega. Ergo-me num arrepio, soltando os passos à porta. Abro, espreito o corredor, saio do quarto. Continuo na escuridão e chego aos carros emparelhados. O ônibus de Sílvio já partiu. Um grito me paralisa. Ameaço virar e recebo a mesma ordem. Começo a correr, sentindo a marcha alheia no meu encalço. O cascalho vibra, imediato, como se ecoasse destas solas. Agacho atrás dos veículos, segurando as latarias, procurando através dos vidros embaçados. Eis que deparo com o homem de farda, tão próximo que ele tem um nítido sobressalto à minha aparição. Tento levantar, escorrego, arrasto a terra pedregosa, caio de novo, sinto um toque leve do chute no ar. Pulo num espaço livre. Sem ruídos: ele espreita. Respiro, seguro o ímpeto, aguço os sentidos. Grudado na lateral escura de um furgão, percebo algo que se move ali dentro. Fecho
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as mãos em torno do rosto e vejo uma pequena cadeira balançando. E nela um bebê. Ao fundo, no outro lado, o vulto esverdeado grita. Some e reaparece aqui. Empurro a porta, apanho o corpo mole, sua fragilidade anula meu impulso, caio, bato a cabeça, espatifo o cotovelo para subir, rolo no assoalho. O policial se coloca no espaço entre os carros, de arma apontada. Vemo-nos através da janela contígua. Ele vai e vem, esperando. O veículo trepida suavemente com o motor ligado. Seguro o bebê, sustentando-o para fora. Ele guincha como se vomitasse o esôfago. Berro mais alto que o choro. – Vou matar! Olha que eu vou matar! Aqui! Tô rasgando o pescoço! – Calma, rapaz. Deixa a criança. Ela não tem culpa. – Deixo porra nenhuma! – Vamos conversar. – Joga o ferro e sai. Joga e sai! – Pronto, aqui. Olha. No chão. Agora pensa no que vai fazer. – Penso o caralho. Vai embora. Longe, quero ver
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todo mundo longe daqui, senão eu mato. Vou matar! Meu equilíbrio levita, numa onda repentina, o motor explode, um solavanco me arremessa de joelhos no tapete. O céu desfila nos vidros, as luzes passeiam, os veículos recuam e o policial nos segue, rolando espremido nas latarias, até desfalecer. O furgão rasga o acostamento, patina pela terra do acesso, ganha aderência e arranca, deixando uma nuvem de poeira. Acelera no limite possível, ignorando os buracos, saltando nas mudanças de nível. Desembesta pela rodovia em ultrapassagens ziguezagueantes. Com as sirenes cada vez mais longínquas, mergulha numa vicinal estreita que atravessa um canavial. Não diminui a velocidade, arruinando as molas na trilha agreste, desbastando a vegetação que invade o caminho. Os ruídos e faróis desaparecem. – Verinha! Ô, meu amor, Verinha querida! A mamãe tá aqui. Longa mecha de cabelo negro esvoaça por cima do assento. Olhos franzidos espiam-me no retrovisor. Tenta apalpar a criança. – Tá machucada?
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Balbucio qualquer resposta, examinando o corpinho trêmulo em minhas mãos. – Tá machucada? Responde, porra! – Não. Acho que não. Eu... tentei proteger. – Passa ela pra cá. Põe a cadeira e o cinto. Obedeço, acomodando o bebê a seu lado. – Moça, desculpa, eu... – Depois. Não insisto porque sinto que vou desabar. Encolho no assento, formigando, encharcado. Vera silencia e adormece, embalada pela música suave que escapa do rádio. Tomado por uma descarga de soluços, permito que se esvaiam num choro quente, amargo e caudaloso. VIII Assunção Subimos a escarpa rodeada pela floresta. Apenas o mar nevoento brilhava ao pé da colina. O suspense da noite preenchia nossos ouvidos alertas, e nada mais ousávamos sentir.
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Finalmente chegamos ao palácio isolado no cume. Batemos às portas imensas, que abriram devagar. As luzes de dentro vieram berrar no penhasco. Entramos cheios de pudores, apertados uns nos outros, já partes da construção, perplexas janelas suas, olhares de vitrais sem cor. Perdemo-nos pela atmosfera pomposa, ofegantes mas cheios de respeito, sorrindo sob o horror de fojos, implorando licenças. Criados de uniforme perfilavam-se no salão. Entre eles havia uma tranqüilidade latente, opaca feito um pano fino que viesse acariciar nossas faces exaustas. Disseram que Lúcia dormia em algum cômodo no piso superior. Seguimos as ondulações do tapete nos degraus da escadaria. Plena e eternamente despertos, farejávamos a salvadora por miríades de pistas imaginárias. Cada fragmento de matéria exibia um resquício da sua magnífica passagem. Os serviçais não se opuseram. Permitiram que nos arrastássemos sequiosos pelos aposentos vazios. Onde olhávamos havia espelhos, perpetrando os quartos, as telas nas paredes, nossas esperanças incolores.
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Reviramos a mobília de todas as épocas humanas, os embolorados recônditos dos armários, os segredos ocultos das gavetas repletas de coisas alheias. Brincamos com os objetos, frágeis e valiosos, relíquias de prosperidades imemoriais, petrechos de entalhes únicos. Mapas de lugares imaginários, instrumentos de serventia fictícia, relógios parados em outroras incógnitos, marcando as rotinas de quem ousou esperá-la. Sim, tivemos sorte. Velamos o sonho daquela mulher para sempre guarnecida em mistério, como se a víssemos por um vidro de sepulcro. Ama de todos, múltipla criatura de tantas especulações, dissipadora de sua própria divindade. Se não há um deus apenas, indagávamos, nenhum é mau? Cela Fomos conduzidos até um vasto porão, iluminado por candelabros de fina ourivesaria. As poltronas rescendiam à naftalina das roupas expostas nos cabides, escancarando uma pompa antiquada. Pelo reves-
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timento de papel escorregavam manchas de umidade, ondulando-o de bolhas que trincavam ao passear dos insetos no fundo insondável. Inúmeras vezes abrimos a porta. Sabíamos que a mantinham destrancada. Mal enfiávamos as cabeças para fora, contudo, recuávamos de costas, assombrados por um obstáculo intangível. De novo encenávamos a fuga, e novamente a imaginação do perigo nos dissuadia. Depois chegava o empregado, a passos corretos, na mais atordoante polidez. Queria saber se nos faltava algo, um capricho qualquer que substituísse a mínima visão de Lúcia. Mas não queríamos lenitivos, mais água, mais vinho, mais comida. Estávamos fartos de ansiá-la. Alguns berravam. Outros armavam planos de emboscada, fingiam lucidez para inspirar cumplicidade no serviçal. E novamente ele negava, solícito, as imprecações. Devíamos esperar, repetia, e encostava a porta desnecessária. Permanecemos nas dependências do subsolo por um tempo de quimera, incapazes de sair, mas des-
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feitos de ânsias forras. O grupo aumentava. Diariamente surgiam novas pessoas insistindo em vislumbrá-la, os neófitos com uma veemência que os antigos menosprezavam. Nos seus olhos sandeus e em suas mãos crispálidas estavam nossos fins. E éramos o deles. As refeições, numerosas e abundantes, transcendiam a saciedade numa espécie de banzo. Só então conversávamos, em sussurros quase inaudíveis, desviando os olhares de culpa e tédio. Creio que intuíamos as perguntas e respondíamos a nós mesmos, para que os ouvidos captassem as incertezas que latejavam no ar viciado. Uns pouco se interessavam pelos outros. Mal nos conhecíamos. A maioria se encontrara pela primeira vez naquela madrugada incerta, e o resto ainda mais tarde. Os grupos dispersavam, formando novos, e assim rearranjavam uma permuta constante de estranhezas. ***
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Rito Uma garota abalou-se pelo porão, sem objetivos claros, esbarrando contra os móveis. Doeram-lhe os ombros e a cabeça nas coisas que podiam atingir. Espatifou em pé, de frente, os braços abertos, grudada no papel fofo e putrefeito. Esferas inflamadas nas pontas dos dedos, roxas unhas sem esmalte, agredia sua parede como se estivesse deitada nela. Era raiva, misturada a algo que lembrava um mimo infantil, uma teimosia suspeita de risinhos e lamentos, no limiar onde o cansaço vislumbra a loucura. As demais tentaram detê-la, em vão. Depois vieram a mim, pedindo ajuda. Não reagi. Lúcia valia mais do que todas juntas, incontáveis delas, mais do que uma fogosa multidão daquelas menininhas raquíticas de fertilidades e sabedorias. Disse-lhes que cuidassem da jovem como pudessem e, evidentemente, não o fiz com essas palavras. Gritaram e choraram até que eu não suportasse mais, ameaçando agredi-las. O empregado apareceu à soleira da porta. Com
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sua bondade irrecusável, pedia que diminuíssem o barulho, para não ecoar ao jardim e aos que se acotovelavam na ânsia de travar contato com Lúcia. Quanto mais silenciosos fôssemos, garantiu, maior a chance de recebermos uma visita da anfitriã. As mulheres correram a ele. Quiseram agarrálo, talvez até seduzi-lo, mas era inútil. Sua expressão etérea nos paralisava. Os eventuais golpes iniciados dissipavam numa coreografia de menções, esmorecendo no trajeto interrompido. E o serviçal não parecia alterado em notar que o odiavam. Deixava sempre a passagem livre para que os mais atrevidos arriscassem a libertação. Ele sabia que em seguida voltariam, cegos de prantos, alucinados de incompletudes. Deitaram a garota enlouquecida num sofá. O mais velho do grupo ergueu sua consternação, vociferando um desespero que suplantou os berros dela. Gritou com tamanha ferocidade que todos silenciaram e, de onde estivessem, na posição em que foram surpreendidos pela explosão saliva e rouca, viraram-lhe os rostos, quase flexionando os sobressaltos.
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Afirmou que deveríamos abrir a porta e sair. Não lhe importava mais a vida, ali dentro ou fora do palácio. Tudo seria decidido no gesto de abandono do cômodo, a qualquer custo, ainda que padecêssemos tentando. A algazarra não deixou que terminasse. A sensatez do velho já não servia a ninguém. Não podíamos falar ou refletir ou prometer atitudes. Nenhuma voz nos uniria. Transe As carícias pediam que a carne purgasse a falta maior. Eviternecidos de compaixão e desejo, lutávamos contra a inapetência dos corpos, no deslumbramento infinito da nudez e de suas impossibilidades. O sobressalto nos olhares, globos nubígenos, temerosos de sensações impróprias àquele mundo, era uma comunhão de arrependimentos entregues. Todos dormiam, e não dormiam, com a mesma pessoa. Os corpos vaguejavam pelo cenário, batendo-se unidos, implorando alentos que os sentidos desconhe-
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ciam. Sublimavam os gozos num pânico de oração. As pessoas se engalfinhavam em cima dos móveis, arrastando louças e pratarias, sujando os tapetes vetustos. Cada grito o único nome, idêntica ausência, o fato indivisível da vergonha. Por Lúcia nos agarramos aos tacos do assoalho com as garras febris. As gargantas enxutas de amargura, as feridas arreganhadas em gotejares convulsos, os poros sedentos, bocas minúsculas babando vida. Urgíamos, delirantes de ofensas, entregues ao desamparo que nos justificava. Terminávamos prostrados, em nós fundidos, como se amássemos nossos reflexos. Desespero comum. Antigo. Ódio supremo. Pode haver memória e inteligência sem amor, diziam os sábios, mas não pode haver amor sem memória e inteligência. Digo que não pode haver amor sem consternação. O triunfo glorioso de um mal que nos define e que nos salva do absoluto. Perdemos o privilégio de fingir que seríamos capazes de amar sem amá-la. Restaram exclamações de volúpia oca, arruinadas no desassossego de arra-
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nhar uma fresta que jamais se entreabriu. Ressonamos despertos, sonhando uma saudade a contratempo do revés total. Sempre o mesmo revés, as mesmas saudades, puxando acima violências e traições. Âmagos eviscerados, satisfeitos e feridos, estávamos prontos para ela. Catarse As verdadeiras orgias são vãs. Apenas um pássaro que observa a queda vertiginosa de outro, rumo ao desconhecido abismo íngreme, somente a ave que fica na frincha segura da pedra conhece o absurdo que antecede a revelação. Mas nenhum saber preservado naquele que hesita e sobrevive suplanta as vertigens maravilhosas da queda. Lúcia entrou no sótão levando-o consigo. O despertar azul refulgia uma sequela mísera de sua beleza eterna. Era dela a abóbada brilhante da manhã. Surgiu como quisemos que surgisse. Humildes, vulneráveis, nunca. Pertencia aos nossos sonhos, não estes a ela. Teve o fim planejado, que tanto semeou nos
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súditos famintos, a devoradora das fomes torpes. Quando veio, sabíamos o que fazer. Homens e mulheres, velhos, jovens, infantes, lúcidos e perdidos, sincronizados pelo mesmo instinto, precipitamo-nos juntos para agarrá-la. Ninguém pôde ouvir seus berros na multidão de fora, submersos naquela tautofonia alucinante de êxtases, louvores, cânticos rituais. Espremidos na selvageria da refrega, debruçados sobre os restos vívidos que ainda tremiam, despedaçamos o corpo frágil, mordemos, arrancamos a pele, as veias, os tendões, os músculos, as mínimas cartilagens. Pelos eriçados, olhos insanos, dentes expostos, glotes feridas como se não a engolíssemos, mas ela a nós, respingávamos uns nos outros com enlevo indescritível, no ápice do esplendor. Tive-a. Consumi seus fluídos até saciar com a essência que evanescia do pequeno coração viscoso. Aspirei o calor do sangue que me atraía à vida, escorrendo, palpitante, em minhas mãos. Rasguei suas fibras para desvendar o sopro do pulso primevo. Esmaguei sua ternura quente, de natimorto satisfeito, exa-
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lando o perfume que ele aprisionava nas tramas da carne virgem. Mastigando, sem notar que também chorava, sem saber se o que me pintava o corpo era ainda o seu sangue puro, ou se misturava o de ambos, lembrei o momento em que ela entrara no sótão. Já a atacavam desde a porta. Inquinando-me de triunfos, veio mansa e prestimosa, ciente do mergulho derradeiro. No sorriso um avesso de dó. Expirando a meus pés, ofereceu-se maravilhosa, na integridade ferida que tortura o porvir dos insensíveis, perpetuada sorridente pelos artistas afora. E ali, caída, mãe do sempre, balbuciou: – O espírito não está sozinho. IX Raios dourados contornam as nuvens imóveis. Por entre os arbustos que escondem o furgão acompanho os riscos luminosos crescendo, explodindo e dissipando na estrada. Beatriz e a filha dormem no colchonete, cercadas de sacolas, brinquedos e ferramentas.
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Vera se mantém agarrada ao polegar da mãe, nua, imperceptível como anjo a pairar sobre o corpo santificado que possuí sem culpas, ruídos ou afagos. Ambas estremecem juntas, roçando as rugas no lençol com pedaladas gêmeas. Beatriz estende o braço livre, tensiona a mão numa concavidade estranha, repuxa o espaço entre os seios, dobra um pouco as pernas e junta os pés, toda curva, no suplício de uma crucificação luxuriosa. Enfio na mochila o caderno coberto pelas garatujas de Sílvio. Esfrego os olhos cansados de ler e reler na penumbra da lanterna. Bocejo. A essa hora da manhã já não dormirei tão fácil. Logo continuaremos seguindo ao norte, ainda por um dia ou dois, para trocarmos de carro num esquema que ela julga infalível. Não tenho disposição nem liberdade para questionar detalhes. Visto a bermuda, calço os chinelos, corro a porta do furgão, afundo os passos nas folhas secas. Afasto-me do matagal e cruzo um descampado inútil, aberto para receber alguma construção que nunca houve. Subo numa pedra do barranco, onde fumo observando a alvorada.
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Um pouco desta incompletude vem de Beatriz. Há um doloroso travo de indiferença no seu modo esquivo de se envolver comigo. Na sedução dura e mecânica, no esmerar dissimulado com que realiza as coreografias mais eróticas, mesmo quando nina o bebê, alheia às trevas de qualquer refúgio inóspito. Só embriagada ela parece autêntica, limpa do siso maduro que não permite graças simplórias e dos carinhos protocolares com os quais julga aplacar minhas impaciências. Então sorri, brinca, aceita pequenas irresponsabilidades. E então reconheço, no fundo morno dos seus olhos noturnos, uma centelha rara de afeição. Ali me aconchego até que retorne a Beatriz ensolarada e ladina, irritante e irritada, senhora dos outros. Sei que também sou cúmplice de algo. O nome que descobri no documento do carro, a soma desmedida que ela guarda no estepe e as malas irrisórias sugerem que nossa viagem é um exercício de fugas complementares. Diz que pretende voltar para casa, mas a palavra conota muitas coisas vagas, inclusive uma espécie de convite. Submisso e disponível, órfão de alternativas, respondo com minha presença calada.
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Cincos
O escriba passou as últimas horas de quarta-feira corrigindo sua peça teatral. Lendo e relendo, arruinando, cortando, garimpando falhas irrisórias, lapidando até as serifas. Já nos precipícios da madrugada, exausto e insatisfeito, abandonou a encomenda construída em tempo recorde. Eis que desperta maravilhoso. Às cinco e meia da tarde encontrará o diretor do espetáculo, portando os papéis grampeados e exibindo o sorriso insano do triunfo. Um legítimo Fitzcarraldo literário. Mas ainda falta um detalhe. Atualizado e preguiçoso que é (uma coisa leva à outra, dizem), o escriba labuta na frente, e em cima, e apesar, do famoso computador. Pois bem. Aquilo que existe feito zeros e uns no cérebro de areia não se materializa sem alguns pingos de tinta sobre o papel. Do símbolo à prática, portanto, há outro mecanismo indispensável, chamado impres-
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sora. Acontece que, estando quebrada, a impressora não imprime, e tudo permanece nos zeros e uns. Quebrada e inútil, a impressora do herói. Como prometeu o mimo na forma palpável, ele arranja uma impressora alheia. Grava o texto inestimável, apanha o disquete e segue tratar da vida. Encaminha-se à prefeitura, onde assinará um contrato de estágio. Coisa rápida. Tem o dia inteiro a seu dispor. Sente-se
valorizado
na
egrégia
repartição.
Mesmo sem saber, este cidadão trivial é digno de possuir vários documentos secretos, de suma importância. Entre eles o tal certificado de reservista, cuja serventia sempre lhe pareceu duvidosa. Outrora convocado para “jurar à bandeira”, o teimoso jurou que não iria. “Não vou”, repetiu, ao longo dos anos, feito um desertor. Não foi mesmo, ficando sem o certificado. Agora descobre para quê serve a bandeira. Sai da municipalidade levando uma listagem dos papéis valorosos que deveria ter trazido. Solicita o CIC na agência dos Correios. A moça diz que sai “em dois ou três meses." Sic. Mas vale o protocolo. Tá. Segue a
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romaria. Dirige-se à Junta Militar. Solicita a guia de pagamento da taxa. A multa que os brasileiros pagam sobre as segundas vias da nação. Tem que ser no Correio. – Mas... – Próximo! Correio de novo, fila, trânsito infernal, de novo a Junta. Fila. A senhora do balcão recebe a guia carimbada, coloca-a sob um clipe, entrega as outras. – Aguarde o secretário chegar. – Secretário? – Ele tem de estar aqui para – nunca se ouve essa parte. – Mas... – Próximo! O herói evade sem a guia e sem esperar. Encontra o dono da impressora e lhe confia o disquete. Faz o voluntário repetir o prazo umas cinco vezes. Mais sereno, corre pegar a Junta aberta. O papel ficou pronto. Obrigado, senhor secretário, por ter chegado antes de acabar o expediente. Quinze e dez. Faltam duas horas e vinte minutos. Tempo de passar em casa,
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apanhar os documentos que faltam e voltar à prefeitura. Quinto andar. Senha número seis mil, trezentos e quatorze. O cubículo está tão cheio que é necessário sair alguém para ele caber. – Doze! – Treze! – Próximo! Por que não falaram quatorze? Abre caminho entre os corpos e se espreme no balcão. Apresenta os papéis à encarregada como se fossem cabeças. Ela confere. Reconfere. Parece desapontada. Bom sinal. – Cadê as fotos? – a mulher pergunta com ar vitorioso. Quase eufórico, ele pousa as três-por-quatro lado a lado. A funcionária derrotada apanha as cópias, verifica-as mais uma vez e devolve os originais. Menos a carteira de trabalho e o comprovante de matrícula da universidade. Ela apanha os xeroques, bate o calhamaço para alinhá-lo e grampeia com alarde. Catec! Anexa o termo de compromisso, grampeia tudo. Catoc! Esqueceu o atestado de matrícula. Cratoc! Põe junto as fotos,
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grampeia as fotos. Cratonc! Pega a carteira de trabalho, enfia numa pasta e... grampeia as folhas na pasta. Cratrunc! Pronto. Livre como um páss... – Espera lá fora pra receber o certificado. – Certificado? – Próximo! O escriba planeja um atentado a bomba contra a palhaçada secular da burocracia. Náusea. Falta de água. Calor. O tique-taque no relógio enorme. Ele escapa ao corredor e busca a janela. Respira fundo. As pombas bicam e defecam no telhado de uma construção, cinco andares abaixo. Ocorre-lhe que ali fica a agência bancária do paço. Lotada, filas absurdas de gente que precisa quitar suas contas. Fila para pagar. Sob o telhado onde os pombos cag... defecam. O herói rosna, meio tonto, fazendo uma careta muda ao redor. Fila para... pagar. Será possível? Não consegue tirar os olhos daquele telhado onde os pombos, onde eles cagam. Fila pra pagar. Nota que ainda tem uma hora e aquieta-se. Con-
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seguiu o mais difícil, terminar uma peça de teatro em algumas noites. Falta só imprimir. Estaria tudo bem com a impressão? Eis que o chamam. Folhas datilografadas. Sérias. Documentos de suma importância. – Aqui vai a rubrica do seu diretor de curso. Tem que ter carimbo. Dando visto. E concordando. – Mas e o atestado de matrícula? Aquele, preso na pasta que a funcionária guardou. Oficial, timbre, marca d'água. Pago por ele, depois de uma enorme fila no banco da universidade (“No banco? Pra voltar aqui? Mas...” “Próximo!”). – Esse é outro. Diretor do curso, entendeu? Depois você volta e faz o mesmo que hoje. Então a moça te entrega o contrato de estágio. O escriba não pensa mais. Ri. Pega as folhas e sai. O carro, pelo menos, sem multa. Voa até a casa da impressora. Trinta minutos. Clima pesado na quitinete do voluntário. Uma babel de celulose inútil embala o cenário. A máquina estrebucha, soltando barulhos horrendos, cuspindo uma sanfona interminável de folhas em branco. Os
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calhamaços se enrolam e desabam pelo chão. O dono do monstro estapeia sua carcaça plástica. O autor pega o disquete de volta, agradece e parte bufando. Vinte minutos, sabe, é atraso demais. Mesmo assim decola, espalha terror pelas avenidas e chega ao teatro. Corre pelo estacionamento mostrando o tesouro na mão erguida. Passa a portaria, ignora o guarda, sobe a rampa a passos de atleta. O corredor de camarins está silencioso e escuro. A porta fechada. Bate. Ninguém. Dezoito horas e dez minutos. A faxineira confirma: todos foram embora. De volta ao carro, oculto nas trevas, o herói chora um pouco. Depois se sente melhor. Algo lhe diz que ainda é possível, e ele acredita. Volta para casa. Procura na agenda o número do diretor teatral. Nisso toca o telefone. A namorada. A namorada! Marcaram filme para esta noite. – Oi, tudo bem? – ela pergunta. – Não. – Levou a peça? – Não. – Que aconteceu?
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– ... – Vamos ao cinema? – Qual é o horário? – Nove e vinte. – Pego você às nove. Dá tempo. Faltam duas horas. O escriba começa a apertar as teclas do aparelho e ouve a campainha. É um velho amigo. – Quanto tempo! – Nossa, meses! – E aí? Correria? – Aquela coisa de sempre. – Bicho, sem tomar uma contigo eu não te largo. E o escriba topa. Disca para o diretor. Pode ir até lá? Pode. Confirma o endereço e desliga. Saem escriba e amigo, rasantes. Vinte horas e dezoito minutos. O diretor abre a porta de pijama. – Não tinha compromisso. Podia deixar pra outra hora. O herói quase gargalha. Espanta uma gota de suor da testa e entrega o disquete como se contivesse os códigos do míssil inimigo. O rapaz puxa conversa. Escri-
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bas topam. Os três discutem elencos, cenografias, autores do cânone. O amigo dá palpites. Às quinze para as nove deixam a casa do diretor. O carro desabala em órbita insana, violando os cruzamentos. Param no primeiro bar que aparece. Uma cerveja, a conta, dois maços. Tudo junto. Agora. Nove em ponto. A cerveja desintegra-se em cinco talagadas. Um cigarro, para arrematar. O amigo conta segredos e planos revolucionários. Pura chantagem. Amigos falam, namoradas esperam. Faltam dez minutos. Para o filme começar. O amigo, simpático, aceita voltar a pé. Antes de se despedirem, o escriba já arrancou furioso. A namorada está linda e carinhosa. Nem sabe que horas são. Ele prefere não dizer e arremete em direção ao shopping. O cinema é no segundo andar. Correm à bilheteria. Cinco minutos de atraso. Tudo bem. Quando se chega na hora, há comerciais. Fila. Na sua vez, o escriba acha que a vendedora tem um rosto familiar.
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– Para a sala cinco, é no piso inferior. – Mas a entrada não fica neste? – Próximo! Nove e meia. Desembestam pelos degraus da escada rolante, esbarrando nos velhinhos vagarosos. Nova fila na outra bilheteria. Falta troco. A moça chama o gerente. Fila para pagar. Ele afasta o pensamento e procura distrair-se roendo a quina da unha. Vinte e uma horas e quarenta e cinco minutos. A namorada faz que vai reclamar, percebe o ânimo do herói e silencia. O filme começou, evidentemente. Mas dá pra entender, né? Ótimo. Não vão brigar. E a projeção transcorre sem percalços, embora ele permaneça teso, ofegando, à espera de qualquer acidente. Um ataque de taturanas cinéfilas, por exemplo. Saem às onze e cinquenta e cinco, sãos e salvos. O herói sabe o horário porque vê o relógio de uma vitrine fechada. Nesse instante, olhando os ponteiros quase juntos, um arrepio o paralisa. – Que dia é hoje? – pergunta. – Cinco de maio. – Quinta-feira.
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– Por quê? – Mil, novecentos e noventa e quatro. Um mais nove mais nove mais quatro. Cinco. Do cinco. Do... cinco. Ela acha a coincidência peculiar e dá de ombros, seguindo o passeio diante das lojas vazias. O escriba sorri pela última vez nesse dia irrepetível, pensando entender alguma coisa.
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Natal
Seus olhos quedaram arregalados às luzinhas que refletiam nos embrulhos de presente. Num minúsculo sobressalto de foco notou a árvore, os galhos de varetas, as franjas de fios metálicos, a estrela pendendo no topo, as bolas cintilantes. De plástico, para que a neta não quebrasse. A pequena atravessou a sala correndo. Quase tropeçou nos chinelos, livrou-se deles, a mãe chamou da cozinha. A agulha há muito estalava no centro do vinil, ondulando, indo e voltando na faixa limpa. Uma agradável combinação de perfumes culinários flutuava pela casa, recheando-a de confortos, de alívios demasiados para o ralo padecimento que ele tentava banir. Sentar-se não bastara. Esticou bem as pernas, esfregando os pés no tapete branco, soltando um gemido preguiçoso. Abandonou o sofá traiçoeiro e passeou
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falto de rumos. Encostou à porta da sala de televisão. Duas senhoras arrumadas para festa assistiam ao show de Roberto Carlos. Remanescentes de proles imensas, unidas à força pelos acasos das genealogias, dialogavam aos monossílabos, sem tirar os olhos vagos do aparelho. Aninha abraçou as pernas de uma e a outra arrastou um pigarro ciumento. Ele deu por si pensando na morte. Seguiu lento, fingindo não se perceber no grande espelho do corredor. Trancou a suíte, ficou nu, amontoou as roupas no cesto do banheiro. Uma brisa morna chacoalhava as cortinas de tule. Fez a barba num esmero que já não usava sequer para os tribunais. Cedeu à tentação da cama e saboreou alguns minutos fitando o teto, a capa do disco espremida sob uma perna. O tempo deixado num acostamento irrecuperável. Toda a felicidade ali, abaulando com o peso da panturrilha pálida. Levantou-se no ímpeto de um embarque. Abriu o armário, apanhou as calças certas, a camisa certa, as meias certas. Penteou o cabelo na diagonal. O vinco no
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crânio abriu uma estrada de terra, o sol brilhando na relva grisalha, a lâmpada franzindo os olhos com a lembrança de um verão perdido e feliz. Os corpos salgados. A janela aberta incomodava, talvez porque chamasse atenção para o calor que suportaria na ceia. Teve um estremecimento dúbio e foi baixar o vidro. Mas escancarou a persiana. Ouvira um barulho. Inclinou o corpo, encarando a noite sobre o quintal, e percebeu que os ruídos vinham da entrada, no lado oposto da casa. Usou a calçadeira para encaixar os sapatos novos, terminou de esticar os panos e voltou à monotonia natalina. Acionou o disco na vitrola pela enésima vez. Atravessou a porta da rua, passou atento pelos carros, puxou o folheto da grade. Desdobrou uma fotocópia de texto datilografado, manchas tortuosas de letras pequenas, mal ajambradas na metade da página. O título: “Dicas para pensar o Natal”. Depois, quatro ou cinco tópicos entusiasmados, bradando contra a corrupção política, a miséria, as injustiças, a alienação da classe média. Leu a coisa por cima, habituado a percorrer trivialidades processuais. Farejou a escuridão silencio-
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sa. Abiu o portão e saiu a tempo de antever o vulto dobrando a esquina. Correu atrás dele. – Por favor – chegou esbaforido. – Isto é seu? Deparou com um jovem magro, de óculos, camisa branca enfiada nas calças jeans. Apertava o calhamaço enrolado fazendo menção de escondê-lo. Mais tentava acentuar sua contrariedade, mais inofensivo parecia, como um bicho acostumado a fugir. – Tem muitas cópias? – Duzentas no total. Agora menos. – E por quê? – Nunca pensei no assunto. Acho que preciso me sentir útil de alguma forma. – Que coisa. O rapaz deu um passo à frente e parou sob a luz do poste. – Se me permite – murmurou – queria saber a sua opinião. O advogado sorriu com benevolência. Olhou ao redor. O bairro quieto o fez sentir uma vulnerabilidade incômoda. Um carro passou devagar, cheio de crianças arrumadas.
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– Radical demais – sugeriu o autor. O outro aspirou todas as respostas possíveis. – Tem um cigarro? – perguntou de súbito, apalpando-se. – Não senhor. – Venha comigo. Minha casa é logo ali. Saiu decidido, forçando o outro a acompanhá-lo, entre desapontado e submisso. Empurrou-o pelos ombros quando passaram o portão. – Vamos entrando, fique à vontade. O rapaz avançou apenas o suficiente para que a porta fechasse. Ana veio correndo, gargalhando peralta, estacou diante do intruso e voltou à cozinha. Surgiu uma mulher de vestido elegante sob o avental, limpando as mãos no pano de prato. Esforçou-se para sorrir. – Boa noite. – Márcia, este é o... – Carlos. – Carlos. Minha filha. – Prazer – disseram juntos. O pai decidiu não dar satisfações e continuou a vasculhar a sala. Márcia olhou-o com estranheza, mas
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saiu quieta. – Sente-se, Carlos. Por favor. Bebe alguma coisa? Uísque, cerveja, refrigerante? – Não, obrigado. – Nada? – Não senhor. Ocuparam poltronas opostas, separados pela mesinha de centro. O anfitrião deixou ali a garrafa de uísque e um recipiente com gelo. Encheu o copo e ficou girando as pedras no interior. – Gosta de música? – Às vezes – Carlos balbuciou. – Que tipo? – O que toca no rádio. Não tenho muita preferência. – Frank Sinatra? O visitante fez uma expressão respeitosa. – Conheço de nome. – Sérgio Mendes? – Sérgio... – Burt Bacharach? – Não senhor.
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– Os ídolos da minha época. Tinha fila nas lojas quando lançavam – deu um gole e pousou o copo no vidro. – Momento só. Passou rápido pelo cômodo, sumiu no corredor e voltou com um álbum antigo, de papelão espesso, corroído nas bordas. Sobre o fundo verde escuro, uma jovem morena, talvez nua, envolta em chantilly fofo, levando um pouco à língua. Segurava um botão de rosa. Whipped Cream & Other Delights – Herb Alpert’s Tijuana Brass. Atrás, como se fizesse parte do fundo amarelecido, uma dedicatória em letras redondas e caprichosas: “Luz – Lindeza – Te amo. Tudo é inalcançável, inatingível, inenarrável, todo o amor, toda cor, toda felicidade – sem você. Paz, Paz, Paz – com você. Que cada luz do prisma infinito da sua existência reflita o meu amor – carinho – toda coragem paciência e vida pra você em 66. Te amo. MC”
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Carlos devolveu o tesouro com um gesto solene. – Foi o nosso primeiro Natal – o homem falou, acarinhando o escrito. – Em Maresias. Queimei o dedo na solda, abriu sangue. Olha. Esticou o indicador a meio caminho. Mostrou rápido a cicatriz imperceptível e recolheu-a cerrando o punho. – Dois adolescentes – sorriu. – Duas crianças apaixonadas. Ana despontou escorregando. Aprendeu os braços girando à frente, aprendeu os calcanhares freando e parou rija, meio atônita com a iminência que acabara de sustar. Deixou cair um monte de peças coloridas e partiu em busca de nova remessa. – Eu pus tudo a perder – o velho murmurou, cabisbaixo. – Que desperdício lamentável. Suspirou com uns saltos curtos que os lábios apertaram. Coçou os olhos miúdos. Acendeu outro cigarro. – Ficaram juntos? – Carlos perguntou, cheio de lirismo. – Casaram-se? O doutor soprou o ar entalado.
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– Não. Claro que não. Desfez o semblante como se empurrasse um peão no tabuleiro. Recostou e pôs-se a acompanhar a trajetória serpeante da neta. Márcia bateu travessas na pia, abriu o fogão rangente e fechou-o com barulho desnecessário. Seu pai sondou os pensamentos do convidado. Então deu um tapa leve no seu joelho e ergueu-se. Puxou duas garrafas da prateleira. – Chocolate ou menta? – De qualquer forma preciso ir... O doutor estendeu-lhe um cálice com ares de magistrado e voltou à poltrona. Carlos bebericou fazendo uma grata surpresa. Ficaram em silêncio, compartilhando sorveres, de colunas tesas e pés unidos no tapete. Cruzavam olhares de júbilo, admiravam os coloridos da árvore e assentiam para o aconchego fraterno da casa. Certos da despedida próxima, deixaram fluir o momento, sufocando muita vontade de falar.
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Bêbado I “Segue impasse entre governo e petroleiros”. Abaixo, com respingos: “Veja quem forma a elite científica do Brasil”. O resto da página rápido absorveu, quente ainda, o sangue da puta. E ele tão chumbado. Errático, bamboleante, aprendeu a distância que o separava do chão e desceu como podia. Dedilhou os fios de cabelo que grudavam no asfalto. Partido em dois, o globo azul do brinco. A orelha, pequena e rosada, estranho, muito limpa. Ao redor, no tronco retorto, uma baba escura fazendo constelações de borrifos. Mexendo em presunto desconhecido, nos cus do Judas, mais pra lá que pra cá, procurando nexos depois do terreno baldio, nos piscares prateados da cidade, e acima, na lua
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gorda, bocarra prateada de azia vindo, e voltou, e irrompeu de vez o jorro nojento. Golfou numa só, expurgando a inhaca putrefeita, recolocando-se, choroso e acostumado, nas urgências imediatas. Aliás revolteou por que não aparecia ninguém ali, no um, dois terceiro andar? A janela, ameaçando bote, vertia seu olhar de luz sobre o mato à frente. Na face escura do predinho, apenas pálpebras de alumínio opaco. Teria caído? Stop breaking down! Ouviu que era mesmo um Stones velho de guerra bombando em pleno pardieiro de subúrbio, perdido no meio do nada perdido nas franjas do nada maior. Contou de novo e três. De cara é certeza. Terminou de espalhar as folhas abertas sobre o cadáver. A visão rodopiou e ele devolveu os cadernos à pilha de lixo abandonado no meio-fio. – Aí! Ô! Em cimaê!
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Vacilou no rodopio da vertigem e notou-se naquele estado seboso: calor de razão na medula. Endireitou com ar meio falso de percepção das coisas, pronto para interagir com estranhos. Já que estava mesmo disposto a levar o assunto às últimas, pegou uma pedra e chegou de queixo caído, feito no dentista. Mirou puxando pipa, mirou puxando pipa, foi na parede do prédio, errado e torto. Fez barulho. Estariam dormindo? Shine a light on you... – Aê! Terceirô! Ei! Tomá no cu! Ia e vinha, abanando os braços. Revezava o corpo esparramado com a música na janela cada vez mais o corpo, a janela, cada vez mais a puta, caída. Porra veio se achegando, acocorou quase triste. Quanto sangue. Menina, ainda. Seus olhos arderam, golfaram de cera quente. A garganta doeu e fechou. Que jovem.
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Nem tinha coragem de fitá-la, tão disforme, coitada. Pegou numa ponta menos grudenta do jornal e descobriu centímetros de carne exposta. Tampou como se ela soltasse um grito agudo na madrugada. Atravessou a ruela procurando uma pedra maior, um tijolo. Muito? Descartou. Jogou com raiva um troço mais leve do que parecia, fez pouco estrago. Lata. Podre. Continuou procurando. Roncos de manada na cidade em ganas de escalar o precipício. Meio tijolo? Meio tijolo. Mandou girando. A coisa entrou que nem bola. Estrondo seco, bastante. Mas, depois, quietude. Avisar a Pinguim? Ideia que, se não apenas estúpida, vodca morna. Quente. Com a Pinguim! Bastava daquilo por hora. Confirmando que guardara a chave dela na carteira, fez que sim e a boca torta parecia responder: és boçal? Era. Com a gordinha tarada. Gente. Precisava de-
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pois lembrar que certas coisas não se conta pra qualquer um. Espalhava na primeira. Virava buchicho, fácil, fácil. Caraca. Só ele mesmo. Destrancou a porta do prédio. Esgueirou-se para dentro do saguão apertado, negro, cheirando mofo e decrepitude. Apalpou até esbarrar no interruptor. Saltou pela escada antes da luz apagar, velhaco, atentíssimo para não encontrar com a Pinguim de novo, caso descesse por causa do barulho. Sem problema. A guria morava no lado oposto do prédio, muito acima. Além disso, tão chaperdada quanto ele, deveria estar dormindo de roncar e babar (quase que não sozinha!) e, continuasse assim, continuariam assim. Perto dela a Isabel virava modelo de grife. No terceiro andar, roquenrol ecoando pelo concreto, independente de vizinhos abstêmios. As portas fechadas, aquela com filete de luz por baixo. Tocou a campainha e tocou pela impaciência afora. Ba teu, bateu mais, esmurrou. E ficou esmurrando até perder o motivo.
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Absurdo. Mas no exato instante em que pensou largar mão e sumir, ressoou: deixa de conversa mole, Luzia deixa de conversa mole... e o pacóvio sorriu, mareado, estapeando o vácuo para religar a luz. Itamar veio como um bat-sinal da loucura galáctica. Tomou impulso e chutou. Mais para trás e nem se apercebeu da própria figura deixando pegadas na porta alheia. Assistia ao mundo através de uma neblina estroboscópica, peixe no aquário turvo respirando a própria excreta. Queria só recobrar o laço com a matéria, tomar porrada, tiro, faca no goto, sentirse ferido e real para purgar a visão da gordinha de quatro e o fogo de vodca morna. Quente. Por isso não deixou nem um derradeiro foda-se antes de arrombar. Com música naquela altura os de baixo não poderiam mesmo a janela escancarada, buraco de céu preto. O tapete, estilo persa, ocupando o encaixe quadrado, rodapé a rodapé. Um negativo do apartamento da outra. – Ô de casa!
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Entrou soando aplausos, calcanhando forte no chão para acordar os vizinhos, o síndico, a rádio-patrulha. Queria porrada, tiro, mordida, furo no goto amargo. Queria delegado, revista no apartamento da Pinguim, os dois em cana fácil. O indicador girou, hesitante, procurando o botão incerto no aparelho de som. Calou-o num baque de soluço. Ergueu o tronco aspirando uma tonteira de queda livre. Tão absoluto, o silêncio agora lhe pareceu opresso. E na giração com que emergiu a mesa de canto espatifada pelo tijolo, farelos de enfeite, um hematoma terroso na parede, as mucas desiguais do barro vermelho. Catou-as, dificultoso, flatulento, segurando nas duas mãos. Levantou imitando surfista que bus ca prumo na onda. Expeliu os pedaços através da janela, ouvindo o mergulho fofo deles no mato lá embaixo. Corredor pequeno, quartinho único. Chaplins tristes nas paredes. Dois colchões mal ajambrados num casal que acordou com pressa. No carpete bege, quase uma estopa rala e encardida, manchas de cinzas pisa-
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das. Camisetas e saias e cobertores e toalhas no embutido branco cheio de estrias de fita adesiva. No outro armário, maços de cabides com paletós, gravatas, jaquetões de couro. Um capacete de motoqueiro. Mulher peituda no pôster de borracharia colado à porta. Sorriu gostosa ajeitando o pau, despertando uma quina de enxaqueca. Cogitou mastigar chiclete, sintoma de paz interior. Quem tinha falado aquilo? Um psico-algumacoisa, tio de um sócio pernóstico, bicha e cocainômano, que apresentou uma enfermeira doidivanas, a Isabel, cuja prima era a Pinguim, vulgo Eleonora, que fugiria com a grana do estacionamento. A bicha, não a gorda. Mas o lesado então, pelo menos ali, flanando no lar de outrem, não lembrou toda a história. Só a frase menos: a idéia nela contida: você mascar chiclete: paz interior. – “Eu vezjo izso”. O eco do próprio sussurro o fez gostar de si mesmo. “Eu vezjo iszo.” Montou na voz e teletransportou-se para a anciã Ribeirão Preto dos tempos sem leis
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nem sisos, de apuros isabéis e chutação desvairada. Enrolando os lábios moles de baba etílica, dizia “Eu vezjo iszo” enquanto o doutor tentava convencê-lo de que chicletes ajudavam a parar de apalpou os bolsos vazios, procurando embaixo na bagunça. Achou um isqueiro roxo. “Lá na Vila, Isabel, quem é bacharel não tem medo de bamba...” Costumava cantar isso pra ela. E, claro, fazê-la rir era meio caminho andado. Agora sério. Catou o isqueiro e sondou cigarros. Teve, no criado-mudo, Pall Mall inteiraço, vermelho, no lacre. Abriu, tirou, surrupiou o resto. Aspirou, sugando fundo, e soltou com barulho. Foi ao banheiro. Não dava nem para um boquete digno. Sabia-o por experiência própria. Ladrilhos marrons de gastos, o aquecedor roçando quem está no vaso, as cracas de sabonete nas curvas da pia. Mijou nelas. Queria sair fora, antipático e desgostoso da vida. Confirmou no espelho: bebaço, molhado, puto. Abriu-o, jogando-se de lado. Uma escova azul e uma rosa no copo de vidro. Fio dental, lâmina de barbear, pincel de
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espuma com mecha mais clara no meio. Fechou o armário, puxando-se de volta. Os olhos numa curva de buldogue, tenebrosos. Capengou à cozinha. Dois copos americanos enxutos no escorredor. Dois pratos, saca-rolhas, garfos, colheres. Na pia, um mingau de formigas em orgia sobre restos de miojo. Seco, fedorento. Salivou e largou ali uma golfada de cuspe. Na sala, defronte ao sofá de boneca, prateleiras com o televisor recatado, tomos azuis dos “Tesouros da Juventude” e, embaixo, precisava quase deitar para vêlos coelhinhos de porcelana trepando. Pelo chão, muitas fotografias coloridas. Nada que lembrasse aquela micro-saia justíssima de couro brilhante, as meias pretas rendadas, os saltos agulha. A maquiagem borrada, quase maior que os rasgos no rosto. O mesmo rosto. Comprovou, remoinhando as fotos. Os mesmos olhos há pouco arregalados. Não os vira tão verdes. Admirou-a num balanço de parque, sorrindo, casaco laranja e calça brim. Feliz, maliciosa,
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singela surpreendida, naquela cozinha, virando-se de costas nuas os dentes tão cabelos soltos e molhados, em tranças, revoando pudicos gente estranha, famílias, moçadinha bebendo, aniversário não os vira tão brancos. “O mundo me condena, e ninguém tem pena falando sempre mal do meu nome, deixando de saber se eu vou morrer de sede ou se vou morrer de fome...” Puta coisa nenhuma. Virou-se para sair, tornejou abaixou em zigue zague, pegou uma foto qualquer, meteu-a no bolso de trás. Repensou a pantomima incerta e olhou ao redor, atiçado no delito, querendo mais segredos. Não custava procurar pelo menos um documento. Conhecêla. Mas lembrou foi de si mesmo, encagaçado pela
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ressaca emergente, já não querendo mais porrada, mordida, ferro no goto cru. Estava frouxo, delicado, se afogando num romantismo de trovador. E convencido de que havia algo a temer, pairando na salinha esfumaçada, um vírus mortal inoculado pelos invasores sóbrios comedores de carne louca. A face anônima do perigo. Fardas. Jalecos. Aventais. Togas. Debandou batido, largando a porta aberta, a luz acesa, uma trilha de fumaça. Desceu rápido demais e precisou deixar um fio de bile na curva do primeiro andar. O mesmo silêncio na calçada. A vida faminta de si própria, colinas além, respirando os fossos negros entre piscares prata e bronze, vermelho aqui, amarelo acolá, verde repente. As têmporas opressas, trêmulo inteiro, com dor. Vá “se foder, Isabel. Porra.” Talvez até lúcido. Merecia uma cerveja, depois do coletivo, se é que a civilização lhe permitiria arrematar a noite ingrata. Sentiu gotas de chuva e encolheu de frio ne-
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nhum. Passou fugido pelo corpo, fazendo-se transeunte assombrado. O pó da Pinguim no embrulho fofo. Apertou-o entre os dedos e ganhou embalo com a sensação promissora de estar acompanhado. Por último virou espiando na silhueta estendida sob o lençol de notícias os contornos suaves da puta. Não, não era mais puta. II Descobriu uma biboca bruxuleante no mar de casebres. Àquela hora, sob um temporal zangado, verdadeiro oásis. Amigo e humilde, passou por forasteiro e recebeu guarida. Verteu a primeira num desafogo. O dono sumiu pelas ruelas prometendo trazer um cheio. Pediu que esperasse com a balconista, dandolhe segurança e companhia. Ele aceitou fazer as vezes, embora planejasse declinar do bagulho. Fome e sono enchiam o saco. Não ofereceria o pó, em respeito à Pinguim. E
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porque estava egoísta, cônscio do tesouro, antevendo a manhã implacável. Nem queria saber de voltar para casa. O futuro, minuto a minuto, nebuloso. Minuto a minuto a foto da moça na grama, olhando o céu como se estivesse num teto. Um copo d’algo contra a ideia do corpo da puta. Nunca bêbado, nem sóbrio, “nem ama nem desama, Isabel!” Lembra? Lembra. Espaireceu fumando, lendo o futuro na enxurrada lodosa. Em certo momento quis posar de útil e quando cansou percebeu que tentava abocanhar goteiras com um balde. A moreninha de pés azulados arrastava o rodo no chão de pedra. Só os dois no recinto. “Acabo comendo.” Sem condução até às cinco e quinze. Dormiria lá? Na Pinguim, a algumas quadras tortuosas? Nem ama nem desama. Era o antropólogo dela, fazendo escarcéu para os outros casais na festa. Isabel tratava o maridão como se fosse um estuprador de freiras bebês. Que nem ele mesmo seria tratado, logo de-
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pois. Aquela maturidade falsa e incoerente, a monogamia vagabunda, a libido polida na casca safada. Ordinária. Por ela falavam as narinas quando, atentas, os risos as puxavam. Lembra, fraco? Um ao outro fadados, traga, sopra, sorriso, olho na boca no olho na boca. O corno ali. Antropólogo e corno. Bela merda. Tre-ze a-nos antes, unindo suas brasas no pulsar cósmico de um ponteiro gigantesco de segundos, tombando atados, sem escapatórias nem freios, direto para o abismo. Incapaz de amar? De fato, um pouco, era. Eram. Nada que os submetesse. A âncora de um medo indizível atada às personalidades de eucalipto, centenárias. Simples calma lá. Encostou-se com mais corpo ao balcão, já que era lembrar: simples mente complementares, metades de um mesmo egoísmo, fazendo-se íntegros no encontro de ocos. Tesudos até mandar chega.
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Ô, se lembra. Dos bate-bocas indecentes, deles sós, da mentira, do cinismo. Encontros furtivos e riscos desnecessários. Carinhos bandeirosos, vexatórias indiretas, brincadeiras de mão, apelidos pornográficos. Motéis à tarde para que pudessem filar um prato executivo cortesia. O corno torrando na universidade, vendo lousa e letra. Perguntou à menina encharcada se podia pegar um pouco de amendoim. Japonês, atrás do balcão. Não podia, mas pôde. Abriu o freezer, uma gelada. No mostruário, um maço de cigarros. E uma canequinha do tal amendoim. Quando falasse amendoim da próxima vez ela entendesse. A chuva começou a rarear. A cabeça assentava, saciada. Baforou um arroto de vodca morna, quente, gorgolejando, e cuspiu no asfalto esfumaçado. Olhou a foto da moça na grama, o reflexo do céu nos pontículos dos olhos. Puta nada. Morta no asfalto. O cenário vacilou. Num golpe arrancou a nota do bolso e conferiu
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que era menos do que devia. A garçonete passou com o balde cheio de água turva em direção à cozinha. Seguiua, pegou o balde, verteu na pia, ela gostou. Beijou o ombro salgado, o pescoço raquítico, puxou pela cintura, sondou a boca, ela empurrou forte, as unhas cravaram de leve e ele entendeu. Saiu do bar assim mesmo, deixando perplexidade e prejuízo. Venceu as calçadas com o desprezo afoito de quem possui o que fazer. Reuniões importantíssimas. Chegando à esquina, acendeu um cigarr engasgou no susto e pendeu para trás do poste. Duas viaturas: fachos espalhados girando nas paredes do predinho. Vozes roucas nos rádios, baforadas de tédio, passeios a esmo. Pelo ritmo dos guardas pôde sentir que estavam satisfeitos. No asfalto sobrava apenas uma poça marrom. Ou talvez fosse o barro do matagal lavado pela chuva. Algumas janelas exibiam seus platônicos da miséria de outrem. Solidários na ocorrência. Braços de farda apareceram para puxar as venezianas do terceiro andar. As luzes apagaram.
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Teria de combinar com a Pinguim. Estiveram juntos. Ponto. Com a dura não tem essa de vexame. E as digitais? Haveria? Decidiu que não, rindo. Só o mijo na pia, né, animal. O primeiro carro saiu, o outro ficou mais uns quinze minutos. Um senhor de paletó sobre o pijama veio conversar. Os policiais ouviram, impacientes, apertando as pontas dos coturnos em falsas bitucas, lucubrando pretextos. Foram embora, agradecendo. O velho fechou a porta com chave. III Esperou três dias para reaparecer ali. Mas, antes, os três dias. IV O boteco de sempre. Abriu o tabloide no balcão e ficou pinçando es-
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quisitices. “Mané folgado sai no tapa com vovó por causa da esmola.” Folheava, antevendo os títulos. Morta nenhuma. Bonitinha daquelas seria primeira página certa. – Uma de carvalho, faz favor. E a parcial. Para conferência. Uma vida financiando o empreendimento e ainda tinham a desfaçatez de roubá-lo. Ou assim lhe parecia, e ele tinha sempre razão. Aproveitou duas fichas de esmola do português e discou a Pinguim, mas o gesto ficou romântico demais. Ele odiava carão, foras, sacumés. Desligou libertando a chatinha, não sem antes imaginar tolices isabéis que abalassem o tédio e fornecessem gargalhadas. Abandonou a ideia de acordar a ex, de resto impossível, mas sentindo-se felizardo pela perspicácia. Tanto fazia. Outra? Outra. Amassara sem querer a foto, sentando nela, por insistência de algum solitário. Não gostava de ficar nas mesas, ilhado e vulnerável, enquadrando a bunda. Seu elemento fulcral era o vidro morno sob os cotovelos, as
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rodelas liquefeitas pelos copos, os ires e vires dos pedidos, as bazófias da turma. Assim nunca se achava solitário. Talvez só um pouco abandonado, cantarolando sou tímido e espalhafatoso torre traçada por Gaudí para quem se dispusesse a não entendê-lo. Sem mágoas estavam todos ali. Os mesmos, regulares e previsíveis. Bom se sentir em terreno pisado. Sorver o ardume vomitivo que sai da chapa quando os moleques a limpam com vinagre. Os golos careteiros, os arrotos de lava corajosa. Os cigarros abençoados, bastões de esquiadores mambembes que se entregam às colinas da incerteza, para derreter sua neve num aconchego discernível como falácia de quenga. A palavra já não o fazia mais lembrar a moça anônima. Fazia-o senhor dos hábitos, das horas vadias, do eterno adiamento. Fazia-o crédulo, refém das teorias conspiratórias do cabeludo com fiapos de salame nos dentes, fadado ao azar ambíguo de começarem a falar de mulheres. Ou seja, sempre, dos passados isabéis. Nunca foi
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tão bom quanto aflitivo. O próprio bar assim: a segunda sem terça mas cheia de quartas-feiras cheias de recomeços. O mistério, o canto, a quaresma, coqueiro. Não cantaria mais. Acordou bêbado, embora tivesse mandado três aspirinas com bicarbonato antes de cair. Bêbado mas inteiro, o cachorro vivo é melhor que o leão morto. Viu num filme. A sensação de estar participando de algo importante diluiu-se nas horas úteis, pelas mãos sádicas de uma entidade imponderável que o queria eternamente à deriva dos pudesse-seres. Tomou banho, viu televisão e ruminou dois croquetes na padaria, estalando os chinelos nos calcanhares. Telefonou para a Pinguim, que não atendeu. Teve medo de qualquer coisa repentina, e fermentou o pressentimento por toda a trajetória esquecível do sol. No começo da noite prometeu, severo e probo, não cumprindo às oito e meia, de volta ao balcão. Manteve a foto em cima da vitrine de acepipes, o papel já meio zoado, umedecido pelos copos. O rosto no infinito
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e vice-versa, a grama quase da cor dos olhos, não tivessem estes céu no cerne. Bifes batidos, ovos de codorna enterrados em vinagrete, uma peça amarela de gorgonza, fazendo fundo. Eu digo sempre que melhor que apodrecer ao lado dela é ir mofando entre o torresmo e a moela. Roda de violão: perigo delicioso. A certeza de ter mil vidas notáveis. Um pensamento não surgia, mas vingava, sem estorvos, no âmago das letras que ele sabia de cor. E conhecia-as todas, enciclopédico, tradicional e saudoso. A ideia que o ameaçava saía daquela imagem, feito uma entrega autômata que lhe vinha entornando bebida à garganta: a beleza da morta. “Moça de atributos”, dizia o português das melhores clientes. Linda. Os recheios na blusa mal erguida acima da cintura, seu umbigo feito sombra pela copa de alguma árvore atrás do fotógrafo. Ali aprendeu que o ciúme era igual a uma ressaca sem curas possíveis, um cagaço que o enfraquecia mais
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do que a gana de apanhar. Bebeu-o naquela madrugada, julgando-se o descobridor dos anéis de pólvora que levavam a brasa até seus dedos amarelos. No dia seguinte era a resultante, ou melhor, suas cinzas. Um poço angustiado de vontades. Só queria correr ao encontro dela, poder assisti-la sem ser visto, horas a fio, até que dormisse, e então ficar mais um pouco, ter sono e desaparecer. Poder ouvir sua voz. Inalar o cheiro nos cabelos, nas costas das mãos. No pescoço. Nos pés. Estava morta? Era o de menos. V Se tivesse planejado, não iria com as roupas de uma semana, os caraminguás insuficientes, os cigarros esmagados no maço. Foi de inopino, quando ficou inviável não ir. Andou e andou, que nem trabalhador zumbi, para economizar os mil-réis do coletivo. Uma mulher varria a frente, expurgando a calçada arenosa. Mancha nenhuma no asfalto, mas ele continuava enxergando
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alguma coisa ali. Cumprimentou a faxineira com pose de morador. Galgou as escadas e espreitou o saguão minúsculo. Tudo hermeticamente silencioso, maciço de vidas invisíveis. A porta sem trinco nem meio batente (os fiapos de madeira arreganhados), coberta pelas faixas amarelas da perícia. Os olhos-mágicos espreitando, túneis de paciência delatora. Perdeu a coragem. Meia volta, sem olhar, insuspeito. A Pinguim? A Pinguim. Subiu até o nono. Tocou duas, três, mil vezes, forçando o barulho caprino que ela tanto odiava. Sabedor, bateu de leve com os nós dos dedos (tun tun-tun-tun tun, tun-tun), chamando baixinho. O farol redondo escureceu. A baixinha roliça, de arregalar bravio, faltou só despi-lo ali mesmo. Beijo seco, de fissura, esmagando os melões soltos debaixo da camiseta. Bateram a porta num coice, giraram apartamento adentro e caíram de joelhos, debruçados na mesa de vidro. Três horas depois: o nariz latejando aspereza, a garganta morta, as pontas dos dedos faiscando marmó-
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reas contra os objetos. Um tinir longínquo. Ondas de fervor e de ameaça que não existiam. Precisão de falar, andar, fungar, mexer, fumar outro, correr os canais da TV, de novo outro, falar mais, rir um pouco, vodca? Vodca. Morna. Desaconchego no sexo exausto de fricção, a pele vibrando nas bocas mole-duras, as arcadas palpitando com mordidas que se mordiam. Frio e calor em lados desiguais da alma. Duas e meia. Sem busão. E ela vinha deitando seus lábios em bico molusquento, as mãos procurando corpos novos no corpo ainda suado, catando pelos nas costas, eriçando tudo menos a vontade. – Dorme aí, gatinhô, puxa vida. Jogou-a no sofá. Sem reparar nas dobras da barriga curva e na pelagem loira que subia do ventre, apoiou os pés dela nas suas clavículas. Encaixou o pinto meio mole, balançou e sentiu bem a fervura, satisfeito em se reconhecer ali dentro. Recomeçou, exato, paciente, no consolo de achar que fingia, exibindo-se másculo e desejável, com a estranha sensação de que a Pinguim até que trepava bem.
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VI Cinco e quarenta e dois no rádio relógio. Os fluídos volatizando púbis, umbigo, peito, sovacos, nariz acima. Teve de escorar na parede, as pernas bambas, para vestir a calça. A Pinguim dormia, finalmente, de bruços no sofá, desengonçando a nudez feia. O abajur de cúpula colorida velava os escombros da batalha entre as fumaças e os cheiros corporais, sem vencedores, nauseabunda. Um clarão sutil, só perceptível quando se sabe das horas, antecipava a manhã fria na cidade ao longe. Tudo absolutamente ressonava. Ela não acordaria nem debaixo de murro. Seria demais roubar o restinho da vodca? Levou a garrafa. Abriu a porta com zelo. Outra visada no apartamento azul escuro. E um pozinho, vá lá. Coisa pouca no alumínio do cigarro mesmo o grosso fica no vidro. Não dará pela falta. Salti-
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tou suave até a cozinha, cheio de remorsos. Despejou a vodca num copo de plástico, deixou a garrafa vazia na pia e se sentiu correto. Saiu naquela suspensão de ouvir seu nome lá dentro, mas não recuou nem ficou dando chance. Equilibrou o copo no terremoto da descida, bebericando para baixar o nível. Soltou as tiras de fita presas nos batentes. Empurrou de leve a porta, mas ela não andou. Empurrou mais, e os quebrados rangeram. Lambendo nos dedos o líquido salpicado pelo empuxo, deu uma catada certeira no interruptor. Mas foi tanta clarividência que se arrependeu e desligou. Permaneceu por segundos num breu cheio de faíscas, recobrando o costume. Abriu a janela. Os postes da rua e a certeza tênue do firmamento nu revelaram as caixas de papelão, grandes cubos marrons no meio da sala oca. Haviam levado o sofá, o tapete, a estante anã com os livros e os bichinhos fazendo amor sacana. Driblou os volumes e passeou pelo apartamento, pisando espaçado, antevendo sem ver. Quarto vazio, câmara de ecos. Cheiro de poeira antiga. E de cigarro
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amassado. Acendeu um e aproveitou a chama: nada nos armários escancarados. Tampouco papel higiênico, toalhas, sabonete no banheiro. A pia da cozinha imaculada, a geladeira muda secando aberta. Sentou-se entre as caixas, olhando em volta, sondando ruídos. Querendo mexer, querendo já ter ido embora e mexido em tudo. Abriu a abas soltas e meteu as mãos num conteúdo fofo. Pano leve e sedoso, estampas de flores assustadas. Cheirou-as, fungando até formigar. As meias, delicadas, passou na ebulição do rosto. Vestidos, camisetas, malhas, cada peça dobrada com zelo de passamento. Blusas. Echarpe. Um barrete vermelho de algodão. Vestiu-o. Inclinou trazendo outra. Que horas seriam? Bateu em coisas duras. Pôs-se de joelhos, rodopi ou até fincar o eixo. Riscou um fósforo. Batuque aflito no pescoço. Envelope manchado, soltando uma algazarra enjoativa de perfumes. Cacos de vidro no interior. Um cachorrinho de pelúcia embolorada. Uma tiara. Estojo de madeira esculpida: pincéis de olho, batons, espelhos,
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pinças, alicates, lixas. Pasta entufada, fotos e cartões postais. Relógio parado, uma e trinta e nove. Selvas de pulseiras e colares tilintantes e miçangas. Escavou o novelo movediço apertando e brincando na massagem de arestas e argolas e pontas e esferas. Largou a distração. Amanhecia, quase céu, pássaros, latidos, um possível ronco de motor. Apoiando atrás para subir, ficou de quatro e foi vertendo os objetos no chão. Descobriu uma caixa de sapatos. Chacoalhou, pesou, apalpou a solidez dos volumes. Rasgou a etiqueta que vedava a tampa. Forçou a vista embaçada para discernir o conteúdo levantou num pulo de choque e saiu imediatamente, abraçado ao tesouro, com o gorro de saci na cabeça. VII CARNAVAL 89 Ela veste uma bermuda jeans muito curta, a barra desfiada contornando o diâmetro das pernas.
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Tênis brancos, pequenos, sem meias. O rosto de passeios suaves, contente, vermelho e suado. O batom, na primeira vez, cor de uva. Um sol inca dourado sobre a camiseta de seda branca. Olhos erráticos, sérios quando alheados, estranhos no flagrar. Mais zoom neles e desviam, vivazes, fazendo que não querem. Sua nuca no meio das tranças. Vira-se, pálida, talvez abatida. Polpas cansadas sob o lápis cleopatrino que a faz lúbrica e esguia. Um bico de beijo, agora róseo. Multidão alvoroçada. Serelepe, a moça vai buscar alguém no meio das gentes. Acotovelam-se, alguns sem camisa, garotas enfeitadas, cabeças estranhas, ela para olhando em volta, o abelhudo costumeiro surge e acena. Um grupo de mulheres cantando num êxtase incompreensível. Metais e bumbos atravancados misturam-se em explosões de roncos. Barulhos demais para discerni-los. Semblantes alheios nos grupos de conversa e pândega. Um beijo cheio de línguas. Ali um gordo baba
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a cerveja da garrafa, aqui alguém tampa o rosto. Fecha nos rapazes, bolotas de pano enfiadas nas bocas, a gargalhada chacoalha. A voz dela, próxima, suas faces brilhantes, os lábios assados, olhos perdidos nas órbitas. Traz um casal de piratas, lesos e safados, que sai correndo para a balbúrdia. Ela fica sozinha, tonta, sem graça. A lama de copos plásticos, bitucas e serpentinas, pés descalços, confete, abanadores de papelão. Mexendo a dentição perfeita, inaudível, aponta. Multidão de braços para cima, saltando sem ritmo, luzes roxas e amarelas no fundo esfumaçado. De mãos na cintura, ela finge impaciência. Um homem chega por trás e encaixa. Seus músculos são desproporcionais para aquela fragilidade alva, franzina, delicada. Aperta os olhos dela, como se fosse esmagar-lhe o crânio. Enfia o rosto sob a orelha passou à frente. Não. Jamais: veria tudo. Voltou, congelando no rosto para que o olhasse, trêmulo, quase fechando os brilhos verdes, guardados num contínuo de paralisia.
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Entreolharam-se desde seus mundos inconciliáveis. Ele de gargalo nos dentes, soluçando os goles temerários. E, quer saber? Deixou que vivesse mais um pouco. Então viu quando o brutamonte lambeu o pescoço e o lóbulo, quando a girou num rodopio delicioso, quando a jogou no ar para catá-la feito bailarina. E viu quando se beijaram, fundo, lambidos, eróticos. Disposto, hipócrita, a fazer daquela a última vez. VIII 016 Samantha rola escadas abaixo, empurrada pelo pai bêbado. Entra em coma profundo. Um rapaz apaixonado, gênio da computação, instala um poderoso chip no cérebro dela. A moça renasce numa criatura abominável de força inumana. Há uma velha, das vizinhanças, que coleciona as bolas de basquete que os garotos deixam pular no quintal. Samantha vinga-se das crueldades da velha explodindo sua cabeça com uma
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das bolas. No ápice da violência, acaba fuzilada pela polícia. Mas algo diferente surge no interior do cadáver recolhido ao necrotério. Comerciais. – Eu tinha esquecido que trabalhar cansava tanto... – É. Meus pés estão ardendo nesses sapatos. – Vamos conversar com o doutor Fúlvio ainda hoje. – Sem falta. Imagina se o Thiago sobe e vê a gente ali? “Coisa linda é mais que uma ideia louca Ver-te ao alcance da boca Eu nem posso acreditar”... Inflou de coragem e lançou mão do controle remoto. Rangel veio da cozinha com duas garrafas e deixou uma na mesa da sala. Quieto e respeitoso, mordomo fantasmagórico, sumiu de novo para o quarto, como se aquele não fosse o seu apartamento. Ele sabia do estorvo, mas o Rangel tinha videocassete. E um coração gigante, de palerma sempre feliz.
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Ouviu-o rilhar a cama, até nisso cuidadoso para não melindrar o comparsa. O Golpe no Paraguai, edição exclusiva. Tentou adivinhar de quando seriam aquelas imagens. O apresentador era muito jovem. As vinhetas, de antanho. As propagandas, inverossímeis. Pôs tudo para correr. Só não havia jeito de empurrar a sensação molesta, parecendo vômito engolido pelas narinas, azedando as respirações. Ergueu o tronco exausto, cigarro apagado nos lábios, e foi ter com o fim de tarde nublado. Vapores nas ruas, o vidro embaçado com o calor de dentro. Olhou seu reflexo estranho, de gorro vermelho pontudo, misturado na alucinação urbana que ele fitava do sexto andar. O calor de dentro. Abriu a caixa e pegou a próxima fita. Acendeu o cigarro, quase sem tragar, apenas para tê-lo fumegando na vista. Sentou-se de volta no carpete, a cara grudada na tela. ***
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IX 08 MALUCA 1994 Deixou-a paralisada, os dentes maravilhosos ondeando na tela por minutos. De repente um programa surgiu berrando e ele se descabelou para achar o ela rindo. Alguém muito importante a filmá-la, tremelicando seu rosto. Alguém que a faz corar, simpática e rechonchuda. Já bem mais madura, os olhos espertos, de um fitar entregue. Pousa o indicador no bico e se afasta na casa luxuosa. Tudo meio róseo sob o sol de frente. Volta embalando um filhote adormecido. Alisa-o, maternal. Sussurra. – Fala oi pra câmera, fala. “Oi, câmera! Eu não sou uma fofura?” Retornou à sua vinda com o bicho. Duas, três vezes, quatro, tenra e tola, quase mulher completa, apetitosa. Minissaia escura, casaco preto masculino, de motoqueiro. Forçou uma derradeira repetição, soprando junto as palavras, rindo com o riso, apertando os dentes ao
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notar minúcias inéditas. Então a libertou num gesto solene. Mesa de bar lotado e caótico. Rugidos de música exorbitante. Garçons depositam copos e mais copos de chope. Cinzeiros fumacentos. Sua voz, perdida na confusão, forjando solenidade. – Ao vivo e a cores para todo o país. O riso evidente dos outros. Procura, brusca, rodeando as conversas. Assenta num rapagão corado que entorna um jarro de líquido amarelo, banhando-se de espuma. O som do ambiente uma só constância gutural. – Malucá! – É... – O Guzo! Rápido! – ...filma o Guzo, filma o Guzo! Encontra-o. Dentaduras cintilam na atmosfera sépia. Alguém deixa cair uma bituca apagada em seu copo, os outros explodem, o tal Guzo não percebe e continua bebendo. Uma loira, de cabelos muito curtos e espetados, não gosta da brincadeira. Toma suco e abana. Procura
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alguém por cima das cabeças. As toalhas manchadas, pontas de cigarro, cinza, copos vazios, pires empilhados. Um dedo girando a aliança na outra mão. Canudos mordidos. Fósforos extintos. Uma rosa de guardanapo, o caule retorcido, picotes diversos de seda branca. Palma gigante escurece a imagem. Os músicos no salão repleto. Aproximam, afastam-se, param dominando o quadro. Violão, atabaque, pandeiro. “De tudo que é nego torto, do mangue, do cais do porto, ela já foi namorada...” Fez a circunstância escorregar, afoita, numa confusão de ricochetes e vibrações e ademanes desinteressantes. Os tons mudaram de repente, ficando granulados, suaves, oníricos. Um alpendre vazio. Das lâmpadas, manchas borradas, escapam siriris. Melodia romântica insinua-se de algum lugar distante. Grilos, sapos, conversas remotas, animadas. Uma silhueta na penumbra indecisa. De vestido brilhante e garboso, o colo exposto,
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ainda pouco mais que aparição opaca. Taça borbulhando entre as unhas grenás. Cigarro longo nos dedos que acenam. Pede para não ser filmada. Atônito, já meio borracho, decifrou a elegância da figura por segundos. Maquiagem carregada, cachos negros escorrendo junto às faces rubras de blush, pingentes, um colar sutil que ressaltava a tez lívida. – Você não para com essa coisa. Tá filmando mesmo? – Faz uma declaração de amor. – Declaração de quê?! Riso alto, solto, gostoso. Balança as coxas sob o pano que desvela seus volumes. A barra nos joelhos, montículos de pele rosada. Canelas reluzentes: descalça. Zoom nos pés juntos, nos dedinhos formando vírgulas, nas minúsculas unhas pintadas. Sobe, desliza, brinca no côncavo do umbigo oculto. Nos seios redondos que seguram o vestido. Fecha no rosto feliz que solta uma baforada impaciente. – Declaração de amor pra mim, poxa. Paralisou as covinhas afundando, a meio gesto
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de exibir um brilho simpático entre elas. Tenta escapar, constrangida e falsa. Encosta no batente. – Eu não – sorri. A luz de trás ofusca o instante mágico. Ela some num vapor luminoso que borra a imagem. A câmera faz movimentos incertos, aproxima-se, o foco oscila até fixar o riso. Muito próxima. – Faz... – Não. – Faz uma declaração pra mim. – Te amo. Retrocedeu. – Faz... – Não. – Faz uma declaração pra mim. – Te amo. Pausou nos olhos sonsos, quase fechando. Voltou. – Não. – Faz uma declaração pra mim. – Te amo.
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–...claração pra mim. – Te amo. – Te amo. – Te amo. Eu também, ele murmurou, de olhos rasos. X Encostou as pontas dos dedos na janela fria. Como se quisesse despertar a madrugada barulhenta do pesadelo viaduto. Deixaria uma graninha para o Rangel, quando entrasse alguma. Um mártir, o Rangel. Ela o detestava. “Mas vocês rimam, Isabel”. Lembra? Infelizmente. Decidiu não aporrinhar mais o coitado. Barulhos absurdos subiam do tráfego na metrópole infame. Exibiu-se rijo e severo para os carros indiferentes. Obelisco erigido à manhã vindoura. Cala a boca, Isabel! Porra. Gritaria novamente, se pudesse antever a separa-
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ção? Ou no fundo queria mesmo aquilo, um pretexto, uma chance de escapulir da barca furada? Mas e a vergonha? E o copo de chope gelando na cara um tapa de dia seguinte eterno? Os faróis não paravam de passar. Ninguém queria vê-lo. Chorou que nem um filho da puta por causa dela. Agora toda balbúrdia roncos na vidraça murmurinhos chocados no bar da memória completavam-se numa única reverberação de angústias familiares. Um fosso que a janela separava a muito custo da loucura. Duas lágrimas chegaram juntas aos lábios franzidos. As mesmas duas lágrimas que escaparam quando Isabel se levantou e abandonou-o, molhado, trêmulo de afrontas, diante de comensais perplexos. Jamais voltaria. Mas descobriu um jeito de o notarem. Arrancou a fita do aparelho e escancarou a janela. Arrumou a carapuça no coco zureta. Mirou volteando um laço imaginário e
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mandou: o volume desenhou uma parábola, sumiu no ar gelado, espatifou-se no asfalto em pedaços quicantes. Os pneus velozes trituraram as manchinhas de plástico. Justo no apê do Rangel, que idéia mais imbecil. Outra? Outra, fácil. Da pilha na mesa. Fraca demais, perdeu-se debaixo do elevado, num estrondo surdo. As trevas berraram e ele ergueulhes o dedo médio. Animado, foi buscar uma garrafa na geladeira, pé ante pé, rindo consigo. Entornou a cerveja, espantou a cascata do queixo, soltou um arroto aos motores que o desafiavam. Ah é? Puxou a fita do carnaval, pesou, estimou e arremessou. O projétil foi caindo vagaroso bateu numa via quando o carro despontou na oposta, fez um pequeno arco à frente e explodiu na lateral que passava. De susto o motorista guinou, derrapou até a sarjeta, voltou girando, tentou endireitar,
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outro vinha correndo e pau. O próximo reduziu, desviou por pouco. Desfrutou as silhuetas gesticulando, o princípio de controvérsia, a correria para impedir novas colisões, o rebu armado. Calculou os alvos girabundos, virou-se para apanhar munição na caixa e nisso o vulto do Rangel, boquiaberto, as mãos erguidas numa súplica desesperada: momento caótico de explicações que não havia, pulsando no intervalo perplexo que o susto precisava para desmoronar no gesto calmo garrafa sobre a mesa nas catadas aflitas cigarro, fósforos, moedas e nos passos quietos até a porta. Fechou-a
com
extremo
desvelo,
pois
não
confiava naquele frenesi de miragens e raciocínios abortados: era possível que o Rangel ainda estivesse dormindo no quarto. Não queria acordá-lo à toa.
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XI Usava a gravata de apoio para pedalar nas coisas, pendurado no bíceps anônimo, suspendendo um ! raivoso, salsicha esgoelada, soltando baba azeda. Gargalhadas no goto, diva sensível, pensava esconder o orgulho ferido com a rispidez de tão inculta plateia. Estrebuchou como epiléptico até cair de queixo, mesureiro, sob aplausos de bofetes e pescotapas gratuitos. Ovacionado, tentava emergir tá difícil pra todo mundo, porra e se feria nos ladrilhos ô, nego chato arrastado de bruços joga na rua quebrando as unhas leva o filho da puta pra no calçamento áspero fora daqui senão eu queimando as carnes quentes e lascando os ossos
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rebeldes nos cacos do trajeto ainda faço uma besteira. A dor o pôs de joelhos antes do primeiro chute ? que passou raspando no ouvido. Repuxou a esparramação gosmenta da sobrancelha para lembrar o resto do monólogo. Mas nem adiantou retomá-lo, porque o segundo chute acertou ... gritando no oco do catarro os pulmões. Tudo aquilo passaria. Mesmo que o proprietário da baiúca não ajudasse, mesmo que ninguém viesse acudi-lo no matagal, estava decidido a recomeçar mira a cabeça do lazarento sóbrio verdadeiro novo em folha acaba logo com essa merda e miraram ( a cabeça). Não padeceria mais. Por ninguém. Retomaria as rédeas do cotidiano vulgar
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levanta de novo que eu te furo com agradecimentos solenes aos distintos espectadores. Rogando perdão pelas mentiras, pelos exageros e falsos testemunhos. Devolvendo os maços filados. Pagando cada conta pendurada. Nunca mais poetas vilões. Nunca mais saudades. Bastava de sofrimento inútil. Convicto de que sairia daquela enrascada mesmo que o panorama da coisa não parecesse exatamente animador quis compartilhar a novidade com a turma: calma pessoal porque ninguém vinha salvá-lo e já nenhuma extática ele ainda podia ser lhe restava das garrafadas, nem um fio de sangue culpado permanecia debaixo da nudez profana um novo homem onde os dentes de vidro mascavam § suas adiposidades imundas. Então notou que não ardiam mais, soltando nas gengivas o gosto repulsivo de acetona. Aliviado e generoso, como prova de ma-
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jestade se ao menos parassem para ouvi-lo quis legar à turba o gorro de saci (cadê?) e até a foto amassada que ficara no balcão. Súbito quis mostrar se ele conseguisse fugir daqueles ermos desconhecidos como era bonita, refletindo o céu nos olhos felizes, certa de que nunca mais choraria. E repousou a cabeça aberta, imerso numa apoteose deslumbrante de recomeços.
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