Criptaritmética do Cambuci

"Les plus grandes productions de architectures sont moins des oeuvres individuelles que des oeuvres sociales; plutôt l'enfantement des peuples en travail que le jet des hommes de génie; le depôt que laisse une nation; les entassements que font les siècles; le résidu des évaporations successives de la societé humaine; en un mot, des espèces de formations" (Victor Hugo)

Em memória de Prof. Dr. Joaquim de Britto.

Agradecimentos

Antes de tudo, gostaria de declarar que me sinto realizado pela oportunidade de dar continuidade a uma das pesquisas mais intrigantes, realizada durante meu processo de formação. Trata-se da pesquisa sobre a “Antiga Mesbla Veículos de São Paulo”, que me levou a perceber o mundo da arquitetura de outro ângulo: o universo dos arquitetos, engenheiros e construtores que fizeram parte da história e identidade da cidade, mas que permaneceram incógnitos em suas épocas de atuação, pois nadaram em “correntes contrárias” aos paradigmas estabelecidos, apesar da magnitude ou do caráter social de seus projetos.

Agradeço a Fundação Armando Alvares Penteado por ter me proporcionado uma grande experiência ao longo destes anos, por ter me propiciado momentos tão bons entre colegas e professores, assim como momentos amargos, de ‘pura ansiedade e conflito’, que me ajudaram a amadurecer diante dos obstáculos sociais e acadêmicos que surgiram em meu caminho.

Agradeço a minha orientadora, Prof.ª Fabiana Stuchi, pelos incríveis diálogos, por todo suporte em um curto espaço de tempo, por ser uma fonte de inspiração devido a sua percepção apurada e sensível da arquitetura e do espaço urbano, a quem também sou grato por expandir meus horizontes em relação ao tema. Por fim, sou grato pelo privilégio de ter conhecido uma pessoa tão incrível na última etapa desta fase acadêmica.

Agradeço a Prof.ª Dra. Anna Canez por ter imprimido em seus trabalhos uma análise sistemática e sensível, cuja leitura me trouxe grande satisfação , e que inspirou, em grande parte, toda esta pesquisa sobre o arquiteto paulistano Arnaldo Gladosch, bem como pelo suporte e abertura em dialogar sobre o assunto apesar da distância.

Agradeço ao Prof. Dr. Marcio Novaes Coelho Junior pela grande contribuição em minha formação como arquiteto, pelos seus conselhos, pela ternura e inspiração, por compartilhar suas visões repletas de admiração pela arquitetura, e principalmente por resgatar minha motivação e ter me ensinado a não perder a esperança. Marcio, “Se você quisesse o céu, eu escreveria sobre o céu com letras, que planariam a mil pés de altura. Ao Mestre, com carinho”.

Agradeço ao Prof. Dr. Vitor José Baptista Campos pelas broncas e pela paciência, por me lembrar de nunca negligenciar a virtude. Pelo fato de ter sido o responsável por eu ter afirmado minha vocação e não ter desistido no início do curso, e por ter sido muitas vezes meu ‘pai acadêmico’, a quem sou grato por tantos conselhos. Guardarei sempre com muito carinho cada um de seus conselhos, como “Deixe as crianças se divertirem” , alusão pessoal que me ensinou a superar, a partir de um olhar mais ciente, meus sentimentos de revolta perante certas injustiças.

Agradeço ao Prof. Francisco Carlos Barros pelo semestre mais lúdico durante minha formação, pela insaciável sede de aprimoramento, pelas noções da poética do espaço que me

remonta a uma “Sociedade dos Poetas Mortos”, onde a poesia é recitada a partir do traço, da forma, da estrutura e da sinergia do desenho. Pelo carinho e empatia, e por me lembrar de que, independente das trevas que venham a surgir na vida, “no final tudo passa”.

Agradeço a Prof. Dra. Maria C. Wolff Carvalho, por ser tão atenciosa, pelo auxílio em solidificar a primeira etapa desta pesquisa em 2016, que originalmente tinha como objetivo se tornar uma contribuição para as pesquisas do DPH (Departamento de Patrimônio Histórico) de São Paulo, sobre o imóvel em questão. Por compartilhar de sua episteme sobre o universo da arquitetura e pelo seu espírito de uma verdadeira mestre.

Agradeço a Prof.ª Ana Marta Ditolvo pela inspiração, por sua devoção à profissão demonstrada em suas incríveis aulas sobre patrimônio, as quais alimentaram meu amor pela história, memória, cultura e identidade da cidade de São Paulo.

Agradeço a todos os outros professores que contribuíram para minha formação não somente como arquiteto, mas também como indivíduo, durante este processo que ora se finda, fim este que é um novo começo, repleto de espavento.

Agradeço a Arq.ª Isabel Pires por ter alimentado a minha sede de conhecimento pelo mundo acadêmico, ao sabor de ‘sapere aude’. Por todo suporte e estímulo ao estudo, pelas divertidas e inspiradoras histórias que orbitam o universo da arquitetura, e pelo privilégio de ter como parente alguém que, aos meus olhos, é uma verdadeira valquíria.

Agradeço a Thalita Miranda pela incrível coincidência nas vésperas do encerramento deste trabalho, por toda sua generosidade, disposição e abertura em discutir em nome da Igreja Pentecostal Deus é Amor, e por compartilhar comigo as ‘peças que faltavam para completar o quebra-cabeça’.

Agradeço a minha família por todo amor, que serve de oxigênio para alma, que independente da fadiga é fonte inesgotável de força, que supera qualquer obstáculo, por mais impossível que pareça.

Agradeço aos meus amigos que em muitos momentos foram meus braços e pernas, minha fonte de energia durante dias que pareciam intermináveis, meu conforto nas fases difíceis. Amigos que me sinto privilegiado por ter conhecido, em especial Érika Nascimento, Gabriel Prado, Roxanne, Vicente, Dany Cohem e José L. Aquino.

Sem mais delongas também agradeço e celebro a fé que, mesmo que estivesse por um ‘thríks’ , nunca me abandonou, por mais deslocado que eu estivesse, por mais caótico que estivesse meu mundo interior e aquele me me cercava.

Sumário

Introdução ao tema

pg. 11

Cap. I: Contextualização do Tema

pg. 14

1.1 1.2 1.3 1.4

pg. 15 pg. 16 pg. 19 pg. 24

‘Criptaritmética do Cambuci’ A Fragilizada ‘Expressão Urbana’ do bairro A Memória apagada do Cambuci O Exílio da antiga Mesbla Veículos de São Paulo

Cap. II: O Incógnito Arnaldo Gladosch

pg. 28

2.1 2.2 2.3 2.4

pg. 29 pg. 32 pg. 34 pg. 37

O arquiteto do “Edifício e a Metrópole” Paulistano crescido em território teutônico Influências nacionais e internacionais Certas obras de Gladosch

Cap. III: A Antiga Mesbla Veículos de São Paulo

pg. 42

3.1 3.2 3.3 3.4 3.5

pg. 43 pg. 47 pg. 54 pg. 55 pg. 66

Lojas Magazine Mesbla e Mesbla Veículos Breve Histórico da Mesbla Veículos de São Paulo Ficha Técnica do conjunto Análise Arquitetônica do conjunto Representações e Levantamentos

Cap. IV: Diagnósticos do Cambuci

pg. 72

4.1 4.2 4.3 4.4 4.5 4.6 4.7

pg. 73 pg. 76 pg. 78 pg. 79 pg. 80 pg. 82 pg. 84

Evolução urbana a partir do traçado Uso e Ocupação do Solo Densidades e aspectos socioeconômicos Equipamentos urbanos e atrativos metropolitanos Análise de Mobilidade Aspectos socioambientais Mapas elaborados pelo autor

Cap. V: O Patrimônio em Questão

pg. 110

5.1 5.2.

5.3 5.4

pg. 111 pg. 118 pg. 122 pg. 126

O patrimônio industrial da região do Cambuci Relações de Ambiência em um entorno imediato A antiga Mesbla Veículos como Patrimônio Destinação à Faculdade

Cap. VI: Prognósticos do Cambuci

pg. 128

6.1 6.2 6.3

pg. 129 pg. 130 pg. 132

Projetos e propostas estudadas Planos de expansão do Metrô e CPTM A Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí

Cap. VII: Ensaios de Intervenção

pg. 138

7.1 7.2 7.3 7.4 7.5

pg. 139 pg. 142 pg. 145 pg. 150 pg. 154

Prognostico adotado Implantação Parque Linear Tamanduateí Praça Várzea do Cambuci Ensaios em quadras consolidadas

Cap. VIII: O Projeto de Faculdade

pg. 162

8.1 8.2 8.3 8.4 8.5 8.6

pg. 163 pg. 164 pg. 172 pg. 174 pg. 179 pg. 202

Cursos da Faculdade Conceitos e Referências Plano de Massas Programa de Usos Memorial do Projeto Desenhos

Cap. IX: Epílogo

pg. 235

Bibliografia

pg. 237

Introdução

Foto de abertura do Capítulo Fonte: CNES / Airbus e elaboração do autor

“(...) a diferença entre o passado e o futuro, sob o ponto de vista da teoria do conhecimento, consiste precisamente no fato de que o passado é em parte experimentado agora, e que, sob o ponto de vista da ciência urbana, pode ser este o significado a dar às permanências; estas são um passado que ainda experimentamos. (...) as persistências podem-se relevar através dos monumentos, os sinais físicos do passado, mas através ainda da persistência dos traçados e do plano. (...) Por vezes estes fatos permanecem, são dotados de vitalidade contínua, por vezes perecem; fica então a permanência da forma, dos sinais físicos, do locus” (ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade. 1966 p. 64)

Introdução Introdução

O tema deste trabalho gira em torno de um projeto de intervenção em um suposto patrimônio, destinado à faculdade para os cursos de ‘Engenharia da Inovação’ e ‘Psicologia & Coaching’ na antiga loja Mesbla Veículos de São Paulo, para que venha a ser um ‘gancho metropolitano’ para o bairro do Cambuci, usando diferentes prognósticos de transformação urbana como plataforma.

A priori, o tema foi desenvolvido à partir da preocupação com o patrimônio imóvel, como uma forma de identidade urbana que deve permanecer salvaguardado para as próximas gerações. Em vista disso, surgiu a possibilidade de darmos continuidade a uma pesquisa sobre a “Antiga Mesbla Veículos de São Paulo”, que foi estruturada para ser oferecida como doação ao acervo do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH), reconhecendo o conjunto edificado em questão como patrimônio industrial e um bem imóvel de valor histórico, cultural e afetivo que até então não era reconhecido como tal por nenhum dos órgãos de preservação.

A edificação em questão é uma “joia rara” no cenário urbano paulista, pertencendo a um estilo único criado pelo desconhecido arquiteto Arnaldo Gladosch. Ela expressa, além do caráter arquitetônico, parte do reflexo de uma paisagem cultural histórica da cidade de São Paulo da primeira metade do século XX. Atualmente, encontra-se subutilizada e parcialmente descaracterizada por conta de uma reforma executada no ano de 2006 que teve como objetivo adapta-la para servir de templo religioso da Igreja Pentecostal Deus é Amor.

Figura 01: a antiga Mesbla Veículos de São Paulo. 2017 | Acervo do autor

Dadas as suas características monumentais, como a sua própria escala, fica evidente seu grande potencial para uma grande variedade de usos, com prioridade para usos que beneficiem a população paulista e integrem a paisagem urbana, e explorem seu potencial em relação a cidade. Devem ser desenvolvidas propostas que visem a requalificação da edificação e que, consequentemente, paralisem ou anulem o processo de degradação que atualmente acontece em seu entorno imediato.

11

Em uma primeira leitura do contexto urbano do imóvel, verifica-se que se trata de um patrimônio ainda incógnito na metrópole paulistana, apesar de sua localização na região do centro expandido. Ao estudar seu entorno, nota-se a degradação do bairro causada, principalmente, pela descaracterização de parte dos imóveis (no perímetro edificado), assim como a desfiguração de seu tecido urbano, compreendida pelas intervenções viárias como a construção do “tampão” sobre o rio Tamanduateí na Avenida do Estado.

A partir da análise de diversas questões que orbitam a antiga Mesbla Veículos de São Paulo, conclui-se que um projeto de intervenção, restauro e destinação do conjunto edificado teria pouca eficácia em uma região que há tanto tempo foi esquecida. Para que tal projeto fizesse sentido, seria necessário um ‘olhar urbano’ para as demais relações do edifício com seu entorno imediato. Portanto, para a proposta do projeto, adotam-se prognósticos de diferentes planos e projetos para a região visando a requalificação para o desenvolvimento sustentável e socioambiental daquela região.

Após uma leitura aprofundada das necessidades do conjunto edificado em questão, assim como da região do recorte de estudo, foram estabelecidas várias necessidades, entre elas resgatar o valor histórico e cultural do bairro e destacar a identidade do Cambuci em relação ao marcante contraste dos bairros no entorno (Liberdade, Brás, Aclimação, Sé, Mooca, e Ipiranga) dentro do contexto fragmentado no recorte de estudo, colocando a antiga Mesbla Veículos como o bem imóvel protagonista do recorte estudado.

Devido aos problemas socioambientais gerados pelo processo de urbanização do bairro do Cambuci no contexto metropolitano, o trabalho propõe a retirada da infraestrutura originalmente concebida como “Viaduto sobre o Rio Tamanduateí”, atualmente utilizada pelo Expresso Tiradentes. Tal infraestrutura, além de diversos impactos ao longo de sua extensão, como a segregação e fragmentação do bairro do Cambuci, não atendeu às expectativas relativas à sua utilidade para a metrópole. A partir disto, propõe-se a ‘recostura’ do cenário urbano bem como a implantação de parques como forma de requalificação ambiental e abastecimento das demandas da região.

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Considerando os planos e projetos previstos em correlação direta com o projeto, como a expansão metroferroviária e a Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí (OUCBT), o projeto adota um prognóstico geral mesclando as diferentes propostas às hipóteses próprias de intervenção formuladas durantes a análise da região, visando gerar um resultado com base na soma somática das questões patrimoniais e socioambientais com a exploração dos potenciais desta região muito bem localizada, a fim de integrar diferentes áreas atualmente fragmentadas e segregadas.

Por fim, a partir de uma plataforma estipulada com base nos prognósticos e hipóteses de intervenção, surge o projeto, destinado à faculdade, de intervenção no conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos de São Paulo.

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Capítulo I: Contextualização

Foto 14 de abertura do Capítulo: Vista para o topo da torre da antiga Mesbla Veículos. Acervo e elaboração do autor

“Como escreveu André Corboz, a cidade é um hipertexto que é preciso decifrar, feito de estratos, muitos dos quais estão ocultos ou esquecidos não só por causa de guerras, mas também em razão dos processos de destruição planejada e sistemática do tecido histórico, para que sejam substituídos por novos produtos urbanos” (MONTANER, J. MÚXI, Z. Arquitetura e Política p. 160)

Criptaritmética do Cambuci

A dificuldade em sintetizar os estudos, diagnósticos e propostas a respeito de todo universo relacionado à antiga Mesbla Veículos e sua paisagem cultural levou ao título ‘Criptaritmética do Cambuci’.

O prefixo ‘Cripto’ significa ‘oculto’, do grego kruptus, e ‘Aritmética’ é referente a ciência dos números, do grego arithmetike1, que juntas dão origem à palavra Criptaritmética: “ciência e arte de resolver criptogramas”. É uma criação de Simon Vatriquant, na edição de maio de 1931 da revista Sphinx, um periódico belga de matemática recreativa. A palavra também pode ser considerada sinônimo de Restauração Aritmética, termo inventado na Índia durante a Idade Média, que significa “um tipo de criptograma onde a maioria ou todos os dígitos foram substituídos por símbolos”.

Portanto, a palavra ‘Criptaritmética’ surge como uma analogia à própria pesquisa desta monografia, que tem o intuito de examinar, desvendar e recuperar uma área fragmentada da metrópole, bem como tentar compreender quais foram as origens e motivos que levaram a antiga Mesbla Veículos de São Paulo, o bairro do Cambuci e o arquiteto Arnaldo Gladosch ao oblívio em relação a memória coletiva.

A analogia é empregada também pela ideia de explorar hipóteses de intervenção, lidando com a preexistência, no intuito de reestabelecer e resinificar uma área fragmentada, em uma postura de acordo com conceitos contemporâneos, com um valor que “(...) cultiva uma concepção do tecido urbano como algo necessariamente fragmentado, um ‘palimpsesto’ de formas passadas, sobrepostas umas nas outras, uma colagem de usos correntes, muitos dos quais efémeros”2.

1. FIGUEIREDO, Candido. Diccionário da Língua Portuguesa. 1913 2. HARVEY, David. A Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Loyola, 1992. p. 69

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“Na era da globalização, interessa cada vez mais aos especialistas, que na linha da frente procuram investigar e interpretar a diversidade dos documentos e testemunhos da industrialização, não já o Patrimônio Industrial como ‘monumentos relíquia’, mas como sinais sociais da história comum e da cultura técnica. (...) não são as sociedades de hoje herdeiras das sociedades industriais? Não foram os territórios e as paisagens industriais uma construção das últimas?” (CUSTÓDIO, Jorge. Património industrial: conceitos de hoje, valores de futuro. Revista Património, Lisboa, n. 3, p.82-94, dez. 2015)

A Fragilizada ‘Expressão Urbana’ do bairro do Cambuci

“Conhecido desde o século 16, o Cambuci é um dos bairros mais antigos da cidade que se têm registro. Seu nome nasceu devido à grande quantidade de cambuci, uma árvore de boa madeira e com um fruto apreciado em infusão com aguardente, que existia no local” . (ALVES, Danilo Janúncio. 2004)1

Localizado na região central do município de São Paulo, o bairro do Cambuci – homônimo ao distrito no qual se situa –, é predominantemente residencial com comércio e serviço locais, e ainda guarda vestígios de uma era industrial paulistana, seja pelas industrias propriamente ditas ou pelas tipologias residenciais operárias, típicas em toda região centro-leste.

Como coloca Lynch sobre os bairros, “um certo reforço de indicadores é necessário para a produção de uma imagem forte. Quase sempre existem alguns sinais distintivos, mas não em número suficiente para uma unidade temática plena. Quando assim é, a região pode ser reconhecível para alguém familiarizado com a cidade, mas ela não terá força ou impacto visual algum”2. No bairro do Cambuci encontram-se poucas singularidades, poucos sinais distintivos, exceto por uma grande quantidade de edifícios de uso religioso que circundam o trecho da Av. do Estado, que cruza a região, e alguns edifícios de caráter industrial remanescentes do século XX, em especial o conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos.

Estas são as poucas singularidades que formam a imagem bairro, porém não a ponto de destacar o bairro de forma perceptível em relação aos bairros presentes em seu entorno: o bairro da Liberdade conhecido pela marcante presença oriental, repleto de ‘toriis’ e ‘suzurantos’ como elementos marcantes; o bairro do Brás e o bairro da Mooca, conhecidos pelo típico co-

mércio e varejo e uma marcante presença de tipologias operárias e patrimônio industrial, entre outros.

“O bairro torna-se, pois, um momento, um setor da forma da cidade, intimamente ligado à sua evolução e à sua natureza, constituído por partes e à sua imagem. [...] o bairro é uma unidade morfológica e estrutural; é caracterizado por uma certa paisagem urbana, por um certo conteúdo social e por uma função” (ROSSI, Aldo. 1966)3

O Cambuci apresenta um histórico que resultou em um bairro que se esmaeceu em relação à sua identidade, não somente devido às intervenções contemporâneas, mas desde sua concepção junto à região do Glicério e de toda região da Várzea do Carmo, no que se refere a sua paisagem urbana e seu conteúdo social, porém não em sua função.

“Bairro e comunidade indicam conceitos populares dos planejadores e assistentes sociais. Eles proporcionam um quadro de referência para organizar em subáreas manejáveis a complexa ecologia humana de uma cidade, também são ideais focais que se alimentam na crença de que a saúde da sociedade depende da frequência de atos amistosos e do sentido de associação comunitária. Porém, Suzanne Keller tem demonstrado que o conceito de bairro não é tão simples assim. A ideia de bairro do planejador dificilmente coincide com a do morador. Um distrito bem definido de acordo com as suas características físicas e denominado no plano da cidade com um nome proeminente pode não ter realidade para os habitantes locais” (TUAN, Yi-Fu.)4

A paisagem urbana do Cambuci, assim como a de outros bairros da região do centro expandido, sofreu descaracteri-

1. ALVES, Danilo Janúncio. História dos Bairros Paulistanos: Cambuci. Banco de Dados Folha. São Paulo, 2004 2. LYNCH, Kevin. A Imagem da Cidade. p. 74 3. ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade. 1966 p.70 16

zação do tecido urbano por conta de intervenções viárias e implantações de infraestruturas que usavam como premissa maior abastecimento na mobilidade urbana da metrópole paulista, em especial as intervenções viárias idealizadas na década de 1970 como a implantação do projeto originalmente concebido como “Viaduto sobre o Rio Tamanduateí”, que geraram diversos impactos socioambientais levando os bairros envolvidos à fragmentação em relação a cidade.

Porém, essa descaracterização não ocorre somente por conta das intervenções viárias. O Cambuci, assim como a região do Brás e da Mooca, era o local onde diversas fábricas de valor cultural e arquitetônico se instalaram, como a antiga fábrica da Industria Villares, a antiga fábrica da Johnson & Johnson, as antigas oficinas da Light, a fábrica da Chicle Adams e, em particular, a belíssima fábrica da Chapeos Ramenzoni, demolidas nas últimas décadas para a construção de empreendimentos condominiais residenciais, subestações de energia elétrica e lojas de materiais de construção.

Em relação à sua função, o Cambuci é um bairro que, curiosamente, abriga uma grande quantidade de templos religiosos, principalmente no perímetro voltado para a Avenida do Estado, atraindo uma considerável quantidade de fiéis nos dias de culto, comumente realizados nos finais de semana. Além da presença destes edifícios de uso religioso e institucional, é um bairro predominantemente residencial.

“Não se pode afirmar, nem mediante uma análise histórica, nem mediante uma descrição da situação atual, que a residência é uma coisa amorfa, pouco mais que uma zona cuja conversão seja fácil e imediata. A forma com que se realizam os tipos de edificações residenciais, o aspecto tipológico que os caracteriza, está intimamente ligado a forma urbana” (ROSSI, Aldo.

1966)5

Como coloca Rossi, de fato não se pode afirmar que esta área residencial consolidada, que hoje ainda mantém uma quantidade razoável da tipologia operária que originalmente ocupou o solo do bairro, pode ser fácil e imediatamente convertida. Porém, dadas as demandas da população em relação a região central da cidade despertou-se uma exploração imobiliária na região do bairro que, a partir do remembramento dos lotes do parcelamento original, passou a erguer condomínios

residenciais verticais, voltados às classes média e alta, deixando de seguir a morfologia original nestes recortes predominantemente residenciais e afetando diretamente a paisagem urbana do bairro. Como no próprio caso da quadra e sua área envoltória onde encontra-se o imóvel protagonista do tema, a antiga Mesbla Veículos, há pouquíssimos resquícios do parcelamento original, dado as novas implantações de condomínios residenciais.

“Aqui, entramos em outros meandros dos processos contemporâneos de urbanização: a dissolução da memória plural e complexa, um mecanismo político que pretende impor novas identidades coletivas, concepções simples e manipuladas do social. Certos traumas urbanos se produzem de maneira silenciosa e velada. Podemos falar de um apagamento sistemático da memória coletiva que ocorre em situações não explicitamente traumáticas, sem conflitos sociais aparentes, de uma maneira lenta e oculta, como consequência do desenvolvimento tardo-capitalista e neoliberal das grandes urbes, que querem estabelecer identidades simples para o controle interno e comunicação externa, voltadas aos investimentos e ao turismo, e que se transmitem convenientemente adoçadas por meio de campanhas publicitárias” (MONTANER, J. MÚXI, Z)7

De acordo com Rossi, Poète coloca que “Através das diversidades das épocas e das civilizações é, pois, possível verificar uma constância de motivos que assegura uma relativa unidade na expressão urbana” (ROSSI, A. 1966). Porém, a expressão urbana do bairro do Cambuci é muito debilitada, e somente se expressa efetivamente na metrópole quando em conjunto a toda região centro-sudeste, onde predominava a população de imigrantes e operários.

A expressão urbana, que segundo Rossi acerca da obra de Poète tem uma parcela que é assegurada por “uma relação mais ou menos aparentes entre as formas das coisas através das épocas”, assim como a identidade, imagem dentre outros termos usados para designar o mesmo contexto, estão diretamente relacionadas a memória coletiva pois sem ela não há história, não há heterogeneidade, não há identidade e logo, a única expressão urbana possível é análoga às outras regiões que sofreram do mesmo processo. A partir do momento em que há “um apagamento sistemático da memória coletiva que ocorre em situações não explicitamente traumáticas, sem conflitos sociais aparentes, de uma maneira lenta e oculta”, há também um

4. TUAN, Yi-Fu. Topofilia. p. 289 5. ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade. 1966 p. 80 6. ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade. 1966 p. 233 17

“apagamento sistemático” da expressão urbana.

Sendo assim, conclui-se que o bairro do Cambuci atualmente está fragmentado não somente por conta de intervenções viárias, mas também por conta de uma expressão urbana fragilizada, vítima de um ‘fantasma modernista’ da era da máquina, que não apenas assombra o bairro do Cambuci como também toda metrópole paulistana.

“Cada vez que se arrasa a vida comunitária e o patrimônio existente, ocasiona-se um processo de estabelecimento de uma falsa memória sobre a existente. É sabido que os grandes operadores financeiros e imobiliários exigem terrenos em ótimo estado – limpos de habitantes e livres de qualquer construção – para poder implantar uma cidade genérica e homogênea”. 7

Discutindo os aspectos em prol da ‘urbanidade’ do Cambuci, antes fosse uma memória falsa benéfica ao solo urbano, a um processo de requalificação, como houve diversas cidades europeias no século passado (apesar de certa controvérsia).

Porém, ao que tudo indica, foi apenas prejudicial. Não foi apenas um processo de ‘amnésia’ da memória coletiva, mas também resultou em um bairro inexpressivo fragmentado do tecido urbano, uma ‘cidade do interior’ em plena região central da metrópole paulistana.

7. MONTANER, J. MÚXI, Z. Arquitetura e Política. p. 160

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“Nós podemos viver sem a arquitetura, adorar o nosso Deus sem ela, mas sem ela não podemos recordar” (RUSKIN, John. A Lâmpada da memória, Cap. VI, pg. 61)

Rastros de uma Memória Apagada

Da memória do bairro, pouco se tem a interpretar a partir dos vestígios do tempo ali remanescentes. Ao pesquisarmos o histórico do bairro enfrentamos certo problema em encontrar a identidade do Cambuci em meio a tantas transições de nomenclatura, pois o mesmo é também resultado de diversos perímetros distintos. Apesar de hoje ser comumente confundido pela população por falta de uma expressão urbana singular, em um passado não muito distante era bem distinguido, de fácil leitura apesar de uma grande heterogeneidade de suas partes.

Vale citar, para manter a salvo na memória do bairro, alguns dos perímetros antes consolidados que se perderam ao longo do tempo, assim como diferentes bens imóveis característicos. Como já citado anteriormente, Yi-Fu Tuan coloca que “a ideia de bairro do planejador dificilmente coincide com a do morador. Um distrito bem definido de acordo com as suas características físicas e denominado no plano da cidade com um nome proeminente pode não ter realidade para os habitantes locais”. Portanto, o bairro é uma delimitação perceptível e/ou afetiva, diferente do distrito que é uma delimitação fiscal, e aqui trataremos da memória de uma antiga delimitação perceptível do Cambuci.

Alguns destes perímetros eram o Morro do Piolho, atualmente no limite entre os distritos do Cambuci e da Liberdade, localizado próximo à rua do Lavapés e com vista para as oficinas da Light onde havia uma rua originalmente chamada de Caminho do Cambuci, atual Rua Espírita1. A partir da década de 1940 esta área do Morro do Piolho foi desaparecendo por conta do início do processo de verticalização da cidade (e da atuação da especulação imobiliária).

As oficinas da Light, também conhecidas como “as Oficinas do Cambuci”, localizadas na rua Lavapés2, tiveram uma atuação secular no bairro. Apesar de seu valor histórico e arqui1 Nota: A rua Espírita foi rebatizada em homenagem aos feitos de Antônio Gonçalves da Silva, um entregador de jornais apelidado como “Batuíra” e fundador do jornal espírita “Verdade e

Luz”, que possuía uma chácara nesta rua onde abrigava escravos foragidos nas décadas antes da Abolição e onde fundou um centro espírita.

2 Nota: A rua Lavapés teve seu nome não em homenagem aos atos bíblicos de Cristo para seus apóstolos, mas por conta de um terreno com a presença do córrego da aclimação, antiga-

mente conhecido como o riacho do Lavapés, onde era comum lavar os pés e os calçados antes de entrar na cidade, depois de percorrer o caminho do mar à cidade.

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Figura 02: Cartão publicitário da antiga fábrica da Chapeos Ramenzoni, de 1920, demolida para a construção de uma sub-estação de energia elétrica | Fonte: Vitruvius Figura 03: Morro do Piolho com vista para as antigas oficinas da Light | Fonte: DPH (Departamento de Patrimônio Histórico de São Paulo) Figura 04: As antigas oficinas da Light na rua dos Lavapés | Fonte: Vitruvius Figura 05: Sinval Rosa, fundador da escola de Samba Império Cambuci, atual Império Negro. | Fonte: CHK.com 20

tetônico e do importante papel exercido, elas evaporaram-se também da memória do bairro. Em seu lugar hoje há um enorme vazio que se sobressai na mancha urbana da metrópole, entre os distritos do Cambuci e da Liberdade.

As antigas fábricas da Industria Villares, que era lindeira à antiga Mesbla Veículos de São Paulo, era também um grande conjunto industrial de valor arquitetônico que no final do milênio desapareceu junto com algumas tipologias operárias da mesma quadra, dando espaço para a presença de novos condomínios residenciais voltados à classe média, exterminando-se dessa forma a relação da quadra com a rua Luís Gama. A antiga fábrica da Chicle Adams, com suas pilastras coloridas em referência ao produto ali fabricado, entrou em processo de degradação e descaracterização, e hoje no local funciona uma loja da GoodStorage.

A antiga fábrica de Chapeos Dante Ramenzoni & Cia., fundada em 1894, tem estilo eclético e valor histórico. Após a sua falência a fábrica virou propriedade do governo do estado, que optou pela sua implosão em 1988 para a construção de uma subestação de energia elétrica.

Há também uma cultura ‘quase morta’ de escolas de samba no Cambuci, sendo a Lavapés a primeira escola de samba do início do século passado. Posteriormente veio a Império Cambuci, em meados da década de 1950, que atualmente se desvinculou do bairro e tornou-se a Império Negro, no Ipiranga.

Figura 06: Cine Cambucy | Fotografia de Caio Quintino Figura 07: A escola de Samba do Lavapés | Fonte: Arquivo Dona Lucia, Primeira Costureira da Lavapés

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Mapa 01: Delimitação oficial de perímetro dos distritos da região centro-leste (em tracejado) vs. delimitação subjetiva dos bairros (destacados em cor de rosa) | Elaboração do Autor

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“Em primeiro lugar, o que entender por monumento? O Sentido original do termo é o do latim ‘monumentum’, ele próprio derivado de ‘monere’ (advertir, recordar), o que interpela a memória. A natureza afetiva do destino é essencial: não se trata de fazer verificar, de fornecer uma informação neutra, mas de excitar, pela emoção, uma memória viva” (CHOAY, Françoise. Alegoria do Patrimônio. p. 17)

O Exílio da antiga Mesbla Veículos

Projetada pelo arquiteto Arnaldo Gladosch, a antiga Mesbla Veículos de São Paulo, localizada no bairro do Cambuci, marca fortemente um período onde os carros passavam a ser uma tendência de consumo e uma solução para o deslocamento na cidade. Concebida na década de 1940, no mesmo período onde os carros se tornavam mais baixos, longos, com um aspecto mais amplo e muito mais pesado, com o início da transmissão semiautomática introduzida por Hudson (Hudson Motor Car Company). 1 Na Mesbla Veículos de São Paulo vendiam-se como o próprio título original já dizia, veículos e até mesmo lanchas, porém as vendas não se limitavam somente aos automóveis.

Vendiam-se também joias, perfumes, relógios, aparelhos eletrodomésticos, entre outros, assim como as lojas Mesbla Magazine, em menor escala.

O enfoque principal das vendas eram os automóveis, dispostos ao longo dos elegantes showrooms, encontrados nos galpões dispostos como naves. A loja também era ponto de encontro para diversos jovens da época, dada a sua escala monumental e estilo único, marcada por uma grande torre de relógio e grandes espaços de fruição como as generosas calçadas voltadas ao Rio Tamanduateí.

“(...) sobre a composição e o estilo, é que esta é incidente e determinante na constituição os fatos urbanos quando está em condições de assumir todo o alcance civil e político de uma época; quando ela é altamente racional, compreensiva e transmissível. Em outras palavras, quando pode ser julgada como estilo” (ROSSI, Aldo. 1966) 2

O que dizer sobre a composição e o estilo de um conjunto edificado em São Paulo, os quais nunca tiveram precedentes, ou ao menos eram totalmente incomuns no país? Era este o propósito do francês Luis La Saigne, antigo diretor da Mesbla S.A. Percebe-se no conjunto da Mesbla Veículos de São Paulo 1. CANEZ, Anna Paula. Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole.

2. ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade. 1966 p. 170 3. MONTANER, J. MÚXI, Z. Arquitetura e Política. Cap. Metrópoles pg. 117 24

diversas influências arquitetônicas, tais como traços do Expressionismo alemão; da escola de Amsterdã; da escola de Chicago; e nítida influência da formação europeia de Arnaldo Gladosch.

Como coloca Rossi, em relação a composição e o estilo, o conjunto da antiga Mesbla Veículos de certa maneira assume um caráter monumental e único, que a partir de todos seus elementos transmite um momento da história, voltado à chegada do transporte individual automotivo no desenvolvimento da cidade.

A loja funcionou perfeitamente durante décadas, assim como muitas outras filias da Mesbla S.A, que atingiu o seu ápice de sucesso econômico na década de 1980. Porém, duas décadas depois, mais precisamente no ano de 1999, a empresa foi a falência, restando somente a nostalgia de diversos clientes e funcionários que hoje compartilham suas memórias em blogs entre outras comunidades físicas e virtuais, de uma época não muito distante em que trabalharam na loja.

A consequência do encerramento de todas as unidades e filiais da empresa, seja da Mesbla Veículos ou da Mesbla Magazines, distribuídas pelas capitais do país, foi a venda dos característicos imóveis da empresa, inclusive da Mesbla Veículos de São Paulo, que de acordo com a matrícula do imóvel foi vendida antes mesmo da falência da empresa, para uma empresa filial da FIAT. Ela foi então transformada em unidade de depósito, manutenção e revenda de peças de automóvel, e poucos anos depois revendida à Igreja Pentecostal Deus é Amor para se tornar a sede principal da Igreja.

AAo que tudo indica, diferentemente da boa situação econômica das demais lojas da Mesbla S.A espalhadas pelo país antes da falência da empresa, a situação econômica da unidade paulistana não era favorável. Talvez este fato esteja vinculado de alguma maneira à consolidação do projeto do “Viaduto sobre o Rio Tamanduateí”, posteriormente popularizado como “tampão

Figura 08: Vista do outro lado do Tamanduateí para o conjunto da antiga Mesbla Veículos, obstruída pelo “tampão” da Av. do Estado, 2016 | Fonte: Acervo do Autor

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da Avenida do Estado”. Notícias das décadas de 1980 à 1990 evidenciaram que o projeto não apenas não foi entregue no tempo estimado, como trouxe diversos problemas socioambientais, criou rupturas entre os dois lados do Rio Tamanduateí fragmentando o bairro e, consequentemente, originou uma desvalorização do solo urbano.

uso, sua acessibilidade por meio de pontes, túneis, e nós viários.

A Cidade real, agora invisível pela velocidade e posição elevada do automóvel, já não é um lugar para o compromisso e para a cultura crítica. (...) o tráfego se transforma na organização simbólica e efetiva da cidade, e o automóvel é sua célula básica, que configura uma maneira de ser individualista e competitiva, violenta e insolidária” (MONTANER, J. MÚXI, Z)3

“Criou-se um mundo pensado para ser servido eficazmente a partir das entradas e saída das rodovias, conformou-se o urbano exclusivamente com base em sua vampirização, seu

Figura 09: Vista da passarela do Expresso Tiradentes para o conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos de São Paulo e a Avenida do Estado, 2017 | Fonte: Acervo do Autor

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Capítulo II:

O Incógnito Arnaldo Gladosch (1903 - 1954)

Foto de abertura do Capítulo: Vista para detalhe do bloco do conjunto da antiga Mesbla Veículos na rua Luís Gama. Acervo e elaboração do autor 28

“Na condução de ser convenientemente interpretado, o testemunho das antiguidades suplanta o do discurso, simultaneamente pela sua fiabilidade e pela natureza da sua mensagem. ‘É muito mais seguro citar uma medalha do que um autor, já que nesse caso não confiais em Suetónio ou Lampidus, mas no próprio Imperador ou no Senado romano e no conjunto dos seus membros’” (CHOAY, Françoise. Alegoria do Patrimônio, p. 66)

O arquiteto do ‘Edifício e a Metrópole’

Para compreendermos melhor o contexto de origem do conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos, a discussão sobre o arquiteto que a concebeu é imprescindível. Arnaldo Gladosch, nascido em São Paulo em 1903, de família alemã, foi educado na Europa desde os 11 anos até formar-se arquiteto em 1926, na cidade de Dresden. A faculdade na qual se formou, a ‘Technische Universität Hochschule’ (Escola Politécnica de Dresden) serviu de grande influência em sua obra e vida profissional, e grande parte dos arquitetos lá formados foram influenciados por diversas tendências e movimentos antecessores e contemporâneos, como a obra de Schinkel, o expressionismo alemão, o intercâmbio entre a Escola de Chicago e os alemães, a Escola de Amsterdã, entre outros.

Estas influências são boas hipóteses para estabelecer as origens da arquitetura singular de Arnaldo Gladosch, podendo ser colocada em alguns casos como “uma modernidade austera, monumental e corporativa”, encontrada nas principais obras industriais de Peter Behrens, com rasgos expressionistas para resolver situações especiais e ao mesmo tempo emocionar nos interiores. Na questão da materialidade, uma referência às arquiteturas de Behrens e Hans Poelzig e, também Fritz Höger, como no caso de Sprinkenhof que possui detalhes salientes do

plano principal da fachada, como seus tijolos vitrificados de reflexos dourados, que compõe uma arte disposta em malha diagonal.

Estabeleceu-se no Rio de Janeiro onde, além da realização de projetos de certo interesse, participou da equipe do urbanista francês Alfred Agache (equipe da qual Atílio Correa Lima e Affonso Eduardo Reidy também participaram em início de carreira), e entre os anos 1927 e 1930 elaborou o Plano Diretor da cidade. Em 1938, pela municipalidade de Porto Alegre, seu Plano Diretor cuidou dos zoneamentos e de alguns espaços específicos importantes, mas uma falta de recursos inviabilizou a sua implantação. No entanto, seu trabalho paralelo com os projetos de edifícios contribuiu de modo decisivo na fisionomia da Av. Borges de Medeiros, em Porto Alegre, onde no curto espaço de seis anos edificou também os edifícios Sul América, União, edifício sede do IAPI, edifício Chaves e Mesbla, dispostos em outra área da cidade. Era, portanto, o artífice da cidade de Porto Alegre, que unia o edifício à cidade e vice-versa.

“(...) Pequenos gestos relacionados com a cidade, que parecem pouco preocupados com o ser ou não moderno e mais centrados em uma competência profissional do manejo dos operados projetuais” (CANEZ, Anna Paula. 2008)1

Nota: Em pesquisa para sua tese de doutorado sobre Arnaldo Gladosch, a Drª. Profª. Anna Paula Canez relatou sobre diversos professores e arquitetos paulistas consultados, como Júlio Artigas, Álvaro Puntoni, Angelo Bucci, dentre outros, dos quais revelaram desconhecer a existência de Gladosch, e de que ficaram surpresos ao saberem do fato do mesmo ter nascido em São Paulo, devido ao caráter arquitetônico singular da Mesbla Veículos, usada como exemplar de Gladosch na cidade de São Paulo, e presente na memória de diversas pessoas.

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volviam lotes de esquina com generosas dimensões e ótimas localizações, os quais eram demandas excepcionais de grandes empresas. Projetos com gestos em prol da urbanidade, que além de repletos de relações entre o indivíduo, o edifício e a cidade e conceitos que na época eram considerados ultrapassados pelos arquitetos influenciados pela retórica do CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna), também exploravam estilos inspirados nas correntes europeias.

Esta reação era derivada na natureza das concepções artísticas de Gladosch, consideradas retrógradas quando comparadas aos seus colegas do mesmo meio, formados nas primeiras turmas de arquitetos e adeptos da corrente carioca de Oscar Niemeyer, que apelavam com frequência ao rótulo do Estilo Internacional e a linguagem moderna. Havia momentos em que o arquiteto sofria de zombarias e críticas destrutivas chegando, inclusive, a ser rotulado como “nazista” devido às suas concepções artísticas e sua influência europeia.

Gladosch foi uma figura disputada, porém, apesar de suas qualidades e atuação com excelência no mercado trabalho, era rechaçado por colegas contemporâneos de sua área de atuação profissional. Quando foi convocado para participar no Plano Diretor de Porto Alegre, foi chamado de “forasteiro em detrimento de técnicos locais”1. Entretando, ele era na verdade um engenheiro e arquiteto capacitado que atuava com maestria nas questões do planejamento urbano, principalmente devido à sua rica formação.

“(...) com muitas reações adversas a que a produção do arquiteto esteve sujeita nesse período. (...) Um forasteiro em detrimento de técnicos locais” (CANEZ, Anna Paula. 2008)2

Quando Gladosch ingressou na área de edifícios, sofria do rechaço devido a projetos até então incomuns que en-

Figura 10: J.G. Faber Industrie (1920) de Peter Behrens | Fonte: Pinterest Figura 11: Sprinkenhof de Fritz Höger | Fonte: oliverheissner.net Figura 12: Plano Alfred Agache (1927 - 1930) | Fonte: Vitruvius Figura 13: Av. Borges de Medeiros e o Edifício Sulacap, Porto Alegre | Fonte: prati.com.br 30

Em contrapartida à reações adversas a que sua produção esteve sujeita no seu período, projetos como o do Instituto de Previdência do Estado (Oscar Niemeyer) e da Viação Férrea do Rio Grande do Sul (Affonso Reidy e Jorge Moreira) foram olvidados por conta de não seguirem “princípios estéticos e de respeito às tradições, questões climáticas e outros argumentos” conforme descrito por Demétrio Ribeiro (engenheiro, jornalista e político brasileiro, e o primeiro Ministro da Agricultura da República do Brasil) contribuindo de certa maneira para que Porto Alegre se tornasse um cenário para o destaque de Arnaldo Gladosch.

“(...) por muitos não é considerado nenhum realizador de obras excepcionais, mas de exemplares que fazem parte de uma mesma família de obras que se podia encontrar nas publicações da arquitetura europeia, sobretudo alemãs e francesas (...)”

(XAVIER, Alberto. 2008)3

Apesar dos estilos incorporados por Arnaldo Gladosch serem questionáveis ao ‘clero intelectual’ influenciado pela retórica dos CIAMs, ao ‘movimento antropofágico’ e desejo ‘nacionalista’ envolvendo grandes nomes de escritores, poetas, jornalistas e artistas, que repulsavam a chegada de uma ‘cultura importada’ não dando abertura a novas relações com a presença do exterior; a relação de suas obras, sejam planos urbanísticos, propostas,

desenhos e projetos com a cidade, era de plena coexistência, sempre em respeito ao contexto urbano onde se inseriam e a cuidados e sutilezas com o pedestre e a perspectiva, fazendo algo que torna-se eficientemente parte da cidade, fazendo algo que hoje usaríamos como referência de soluções urbanas, ao invés dos seus colegas ‘modernos’ influenciados por um estilo internacional que priorizavam o funcionalismo, edifícios isolados desvinculados da vida urbana.

Sendo assim, hoje devemos reconhecer que, independe da linguagem estilística, o rechaçado arquiteto Arnaldo Gladosch ao invés de retrógrado poderia ser considerado um arquiteto muito à frente de seu tempo, ou pelo menos um arquiteto sensível que priorizava as relações entre o ‘edifício e a metrópole’ como um todo, independente do que era estabelecido por uma retórica intelectual no campo da arquitetura. Ao compararmos o contexto das “três eras da cidade” que Christian Portzamparc descreve, enquanto os colegas de Gladosch mergulhavam nos conceitos da ‘2ª era da cidade’, Gladosch executava projetos de valores e características que hoje são descritas na ‘3ª era da cidade’.

Ilustração: Arnaldo Gladosch, por Moacyr Marques

1. CANEZ, Anna Paula. Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole. p. 17 2. CANEZ, Anna Paula. Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole. p. 12 3. XAVIER, Alberto. O ostracismo deliberado de Arnaldo Gladosch. 2008 31

Paulistano com formação ‘em território teutônico’

De acordo com Canez, Arnaldo Gladosch estudou na Europa desde os 11 anos de idade, primeiramente no Lar Educacional Kefikon (onde desenvolveu atividades artísticas), em seguida na escola de Thurgau, na Suíça, e posteriormente garantindo uma formação de qualidade, se formou na Technische Universität Hochschule em Dresden (Escola Politécnica de Dresden), uma formação que lhe proporcionou um rico e impecável histórico escolar.

Vale ressaltar que sua formação serviu de grande influência em sua obra e vida profissional. A passagem de Arnaldo Gladosch pela Alemanha foi no período no qual o país se recuperava das cicatrizes da primeira guerra, com uma grande deficiência na economia, marcada em 1923 pela absurda taxa de 48.000 marcos por dólar, o que de certa maneira tornaria mais fácil para a família de Gladosch bancar seus estudos na Alemanha devido a esta “grande inflação”1.

Em seu retorno ao Brasil, Gladosch foi sócio do Club de Engenharia do Rio de Janeiro, reconhecido principalmente pela elite que compunha os seus cargos, formada por engenheiros e empresários de destaque sociopolítico. O clube revelou também um pequeno currículo escrito pelo proponente com suas principais atividades e obras:

“• Engº Urbanista da Comissão do Plano da Cidade do Rio de Janeiro sob a direção do Arq. Alfred Agache; • Organizador do Plano da Cidade de Porto Alegre • Diplomado pela Escola Superior Técnica da Saxônia em 1926 • Carteira Profissional nº 38D – CREA 5ª Região • Arquiteto premiado Concurso Internacional de Barcelona • Construção de prédios na Cidade do Rio de Janeiro”2

A Technische Universität Dresden (TU Dresden)3 encontra-se entre as mais antigas instituições desse tipo na Alemanha, fundada em 1828 como Real Escola Politécnica da Saxônia, fundada 34 anos depois de sua “versão francesa”, a École Polytechnique, fundada em 1794. A Technishe Universität foi uma escola inovadora no ensino superior alemão, da qual unia disciplinas técnicas como matemática e engenharia adotando uma orientação prática, e inicialmente dedicava-se somente ao ensino, e posteriormente às pesquisas.

O Ensino da arquitetura em Dresden sofreu inovações desde meados do século XIX, impulsionadas por Gottfried Sem-

Figura 14: Techinische Universität Hochschule Dresden | Fonte: TU-Dresden.de

1. ECKARDT, Wolf Von; GILMAN, Sander L.A. Berlim de Bertold Brecht: Um Álbum dos anos 20. Rio de Janeiro: José Olympo, 1996 p.17 2. CANEZ, Anna Paula. Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole. p. 60 32

per (o qual, em sua direção, pregava “conciliar aspirações artísticas elevadas com a realidade do ensino prático” e posteriormente por Hans Poelzig (um dos ícones do expressionismo alemão) o qual acreditava na “inexistência das contradições entre a arte e a indústria na superioridade do trabalho do arquiteto”, consagrados arquitetos que revolucionaram com novas propostas a instrução (sendo esta a hipótese de um dos motivos pelo qual Gladosch optou pela formação em Dresden).

Gladosch cita em especial, como seus mestres e essenciais para sua formação, os professores Adolf Muesmann e Oswin Hempel. Vale ressaltar também que Gladosch vivenciou justamente o período onde o curso ‘city planning’ passou a ser incluído nas universidades, além dos seminários anuais sobre problemas urbanísticos, os quais passaram a ocorrer a partir de 1904, em Charlottenburg, na Alemanha, o que de certo modo também deve ter contribuído para sua formação nas questões urbanísticas.

3. Nota: Foi fundada com um dos propósitos de impulsionar o desenvolvimento industrial nacional, do qual se encontrava defasado comparado à Inglaterra, França e Bélgica. A partir deste propósito, vale ressaltar também as novas demandas da Alemanha na época posterior da qual Gladosch vivenciou na TU Dresden, como demandas para combater a estagnação do desenvolvimento do país, como ênfase no campo das técnicas mecânicas, industrialização, e ao incentivo para “o desenho e modelagem, e o refinamento do bom gosto a ele associado”, princípio do qual o movimento Deutscher Werkbund também adota.

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Influências Nacionais e Internacionais

Além da influência de sua formação acadêmica em Dresden, como já citado no tópico anterior, Arnaldo Gladosch possui diversos vestígios procedentes de seu período de vivência na Alemanha e arredores. Influências de vertentes clássico-românticas, remontando a Schinkel, que estavam presentes também na arquitetura de Albert Speer, que “utilizou a arquitetura monumental como instrumento de dominação de propaganda do Estado” 1.

A priori, devemos ressaltar “uma modernidade austera, monumental e corporativa”, encontrada nas principais obras industriais de Peter Behrens, arquiteto que alcançou maior influência entre os líderes da geração posterior, como Ludwig Mies van der Rohe e Le Corbusier, os quais trabalharam em seu escritório; assim como rasgos expressionistas para resolver situações especiais e ao mesmo tempo emocionar nos interiores.

Levando em conta um quadro de referências construído a partir das inter-relações norte-americanas (principalmente

Chicago e Nova Iorque, e os movimentos da Escola de Chicago e posteriormente das Praire Houses tendo Wright como protagonista) com as europeias (principalmente Alemanha), somado às vertentes que enfatizam o “anticlássico”, presentes também na arquitetura alemã e holandesa (como os movimentos do expressionismo alemão e posteriormente da Escola de Amsterdã) do período, da qual foram permeáveis as influências de Frank Lloyd Wright, percebe-se o resultado atingindo a formação de Gladosch.

“Sem dúvida, a maneira de fazer de Wright, expressa como foi publicada na edição alemã, demonstrava uma nova maneira de fazer, em que a simetria foi substituída por uma assimetria equilibrada, a horizontalidade passou a prevalecer, os planos com a dissolução da caixa passaram a protagonistas, a comunicação entre os espaços é fundamental, o espaço interno passou a se estender plenamente para o exterior – grandes inovações que seduziram os europeus, e principalmente os ale-

Figura 15: Water Tower (1911) de Hans Pöelzig | Fonte: Pinterest Figura 16: Neues Schauspielhaus (1821) Karl Friedrich Schinkel | Fonte: openbuildings.com Figura 17: Reichskanzlei (1934) de Albert Speer | Fonte: openbuildings.com 34

1. CURTIS, William J. R. Arquitetura moderna desde 1900. 3. Ed. Porto Alegre: Bookman, 2008, p. 351 2. CANEZ, Anna Paula. Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole p. 98

mães, mesmo que tão apegados (...) a um viés clássico” (CANEZ, Anna Paula. 2008)2

Outra importante influência foi a leitura de Adolf Behne, importante teórico de arquitetura alemã que direcionou, junto a Walter Gropius e Bruno Taut, o “objetivo de conectar a arte à sociedade”. Behne tinha um profundo conhecimento do expressionismo alemão e observações referentes à obra de Berlage, Erich Mendelson, Peter Behrens e a influência de Wright na Alemanha em que Gladosch viveu.

Por fim, vale ressaltar também a influência do movimento da Escola de Amsterdã3, definido como organicista devido a seus conceitos, em cuja materialidade prevalecia o uso do tijolo nativo (o de Leiden, o de Gouda, e o de Utrecht, cidades com cerâmicas próprias e tratamentos distintos dados à cor e fabricação dos tijolos) e concreto, destacados em superfícies onduladas.

Caberia ressaltar a comparação dos primórdios deste movimento com as influências de Wright e, posteriormente, ao chegarmos novamente a Gladosch, devemos lembrar de sua atuação no Brasil seguindo a mesma linha mestra nas questões da materialidade, como por exemplo o uso local das “olarias de fabrico de tijolos que auxiliaram a prosperar a região”, como acontecia em alguns bairros da cidade de São Paulo, em meados 1910, entre outras materialidades que podem ser contextualizadas por Lemos em diferentes contextos, no capítulo “Tijolo e cal, principalmente”, no livro Alvenaria Burguesa.

Em seu retorno ao Brasil, logo após se formar em Dresden, Arnaldo Gladosch foi empregado pela Wayss e Freytag, importante empresa de construção cuja história está ligada às primeiras descobertas e experimentos com concreto armado.

Nesta empresa, obteve êxitos importantes como ter instalado um laboratório que integrou à direção de Moersh, lançando princípios de modernas teorias e primeiras conclusões racionais sobre o comportamento do concreto armado.

Figura 18: Perspectiva Beurs van Berlage (1902), Petrus Berlage | Fonte: openbuildings.com Figura 19: Woga Komplex (1925) de E. Mendelson | Fonte: Pinterest Figura 20: Exemplo da escola de amsterdã: Hat Schip, de Michel de Klerk | Fonte: Pinterest 35

Figura 21: Metaalfaber (1912) de Wayss & Freytag | Fonte: strabrecht.nl

3. Nota: A Escola de Amsterdã foi um movimento ligado a estética propósitos do expressionismo alemão, com a valorização de ornamentos constituídos por pequenas peças, esculturas e frisos. Atuaram de 1915 até meados de 1930 em várias cidades dos Países Baixos, e tendo como principais expoentes os arquitetos Michel de Klerk, Pieter Lodewijk Kramer e Johan van der Mey. 36

Certas Obras de Gladosch

A partir de agora convém conhecer alguns projetos de diferentes categorias elaborados por Arnaldo Gladosch, exemplificados no livro “Arnaldo Gladosch: O Edifício e a Metrópole” de autoria da Prof.ª Dra. Anna Canez. O objetivo é compreender melhor este arquiteto incógnito e suas diferentes soluções que transitavam entre diversos conceitos e estilos.

A Moradia

Uma das primeiras obras de Gladosch ao retornar ao Brasil foi o projeto intitulado “A Moradia”, destinado ao seu pai, Hans Walter Gladosch. Atualmente não se encontram vestígios deste projeto, que foi apresentado para a revista A Casa, em 1926, com o intuito de informar ao leitor leigo questões projetuais que deveriam obrigatoriamente serem respeitadas na “Casa de Moradia”.

Gladosch descrevia questões que apenas um profissional da arquitetura estaria apto a resolver, discorrendo sobre os dormitórios com a intenção de tratar sobre os outros espaços internos da residência na revista. Neste artigo, Gladosch apontava questões relacionadas à higiene e salubridade, apontando pontos como a localização da entrada de luz e ventilação e a relação de tais atributos com os usos cotidianos de uma residência.

Figura 22: Plantas do projeto “A Moradia” | Fonte: CANEZ, Anna Paula. Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole Figura 23: Perspectiva “A Moradia”| Fonte: CANEZ, Anna Paula. Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole

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Edifício Itahy

O Edifício Itahy foi construído em 1932, no Rio de Janeiro, na Av. Nossa Senhora de Copacabana, por Scott & Urner.

O edifício possui uma forte conotação Art Déco no acesso ao hall de entrada (o que não é comumente encontrado nas obras de Gladosch), decorado com elementos representativos da fauna e flora marinhas realizados pelo artista Pedro Correa de Araujo. A solução adotada para a fachada foi a de bow windows (janelas semicirculares que se projetam para fora das paredes) intercaladas, muito presentes na arquitetura tradicional inglesa com a finalidade de buscar formas alternativas de se trabalhar com a luz.

O pavimento tipo possui dois apartamentos distribuídos simetricamente, com vestíbulo, sala com varanda embutida, elevador social, três dormitórios, banheiro, circulação de serviço, elevador de serviço, cozinha, área de serviço e quarto de empregada. Vale ressaltar também que grande parte dos móveis eram embutidos (assim como Wright o faz em parte de suas Praire Houses). O capitel/coroamento do edifício é assimétrico, em contraste com a simetria do pavimento tipo.

“A referencia ao edifício da rua Franklin, em Paris, de August Perret, tanto pela planimetria, corpos laterais avançados e subtração central, quanto pelo material, concreto fornecido pela ‘Cimentos Portland’; o olhar urbano: mímesis aos vizinhos; o estilo Art Déco, na portaria e no hall de entrada, com o ‘portão de acesso em ferro batido com desenho de algas estilizadas, emoldurado por sofisticados painéis corrugados de majólica (cerâmica esmaltada) verde e corredor de ingresso, na mesma linha decorativa” (CONDE, Luiz Paulo. 1996)1

Figura 24: Hall itahy | Fotografia de Marcelo Nacinovic Figura 25: Cartaz do edifício | Fonte: Publicidade Figura 26: Planta Itahy | Fonte: CANEZ, Anna Paula. Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole

1. CONDE, Luiz Paulo; ALMADA, Mauro. Guia de Arquitetura Art Déco do Rio de Janeiro. Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, 1996. p. 82 38

Edifício Itayá

O Edifício Itayá foi construído em 1937, no Rio de Janeiro, na Rua Rainha Elizabeth. Desta vez, com um estilo influenciado pela Escola de Chicago, com grande semelhança ao projeto Francis Apartments, de Frank Lloyd Wright. O edifício apresenta vestíbulo, elevador social, sala em dois ambientes, dois dormitórios, banheiro, cozinha, banheiro de serviço, área de serviço, quarto de empregada e elevador de serviço, claramente setorizados assim como no edifício Itahy, já apresentado anteriormente, e espelhado em dois blocos a partir do eixo central.

A ideia desta arquitetura é manter uma sintonia com a rua e mostra preocupação com o bem-estar de seus moradores em integração com a rua, a partir de uma abertura em generoso espaço que se entende desde o limite da rua até o hall de entrada, fornecendo também melhor proveito para distribuição dos apartamentos.

Figura 27: Francis Apartments de Frank Lloyd Wright | Fonte: Pinterest Figura 28: Edifício Itayá | Fonte: CANEZ, Anna Paula. Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole Figura 29: Plantas do Edifício Itayá | Fonte: CANEZ, Anna Paula. Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole 39

Intervenções na Av. Borges de Medeiros

Vale lembrar uma das mais significativas obras de Gladosch, da qual faz parte o Plano Gladosch para Porto Alegre, que são as intervenções na Av. Borges de Medeiros, incorporada ao cenário de Porto Alegre, destacando o “Quarteirão Masson” (parte do plano cujo alcance é social e econômico) que marca um período de verticalização da cidade, na década de 1940, e que é o cartão postal da cidade. É um exemplo que mostra, como Alberto Xavier (1007) descreve, que o “ostracismo deliberado” ao qual Gladosch foi submetido não o impediu de perpetuar suas ideias e proposições ao longo dos planejamentos urbanísticos decorrentes.

Por exemplo, as “galerias de ontem e hoje” que “caracterizam a cidade” 2, que são passagens cobertas para pedestres protegendo-os no passeio público, formadas a partir do avanço dos pavimentos superiores sobre o pavimento térreo, as quais serviram de modelo e foram posteriormente adotadas por diversos planos.

Figura 30: Avenida Perimetral com Galerias, Porto Alegre | Fonte: CANEZ, Anna Paula. Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole Figura 31: Projeto de Reloteamento do Quarteirão Masson, Porto Alegre | Fonte: CANEZ, Anna Paula. Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole

2. CANEZ, Anna Paula. Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole 40

Edifício Sulacap

O Edifício Sulacap foi um multifuncional de residência e comércio construído em 1938, em Porto Alegre, na Av. Borges de Medeiros. A Proposta deste edifício partiu dos conceitos de Gladosch levantados em seu plano para Porto Alegre, e emula, como já mencionado acima, as “passagens cobertas para pedestres os protegendo a partir do passeio público, formadas a partir do avanço dos pavimentos superiores sobre o pavimento térreo”. O Edifício, conforme Canez (2008), possui relações de proporção e altura condizendo ora com as Avenidas Borges de Medeiros e Salgado Filho, ora com a Rua da Praia, com uma composição simétrica das partes e assimétrica do conjunto, e da decomposição dos volumes em volumes, e dos volumes em planos (uma nítida influência de Frank Lloyd Wright).

Figura 32: Edifício Sulacap, Porto Alegre | Fonte: Fórum Skycrappercity.com Figura 33: Plantas do Edfício Sulacap | Fonte: CANEZ, Anna Paula. Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole

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Capítulo III:

A antiga Mesbla Veículos de São Paulo

Foto de abertura do Capítulo: Vista da Rua Luís Gama para a Torre. Acervo e elaboração do autor 42

“(...) olhar para o património histórico e cultural de uma cidade é olhar para esse percurso. Umas vezes corporizado em pedra, outras vezes em aço; umas vezes vivido no dia-a-dia, outras vezes lembrando como simples efeméride; é sobre este tecido invisível de identidades metafísicas passadas que cidade real está – vai sendo – construída” (RODRIGUES, L.F. Manual de Crimes Urbanísticos. p. 209)

Lojas Mesbla S.A

As lojas Mesbla têm origem francesa, anteriormente “Etablissement Mestre & Blatgé”. A partir de 1939 passou a se chamar Mesbla S/A, mais conhecida como as Lojas Mesbla, como ainda memorado por gerações posteriores pelo refrão publicitário “Mesbla tem”. Hoje em dia, após a extinção da rede, as unidades remanescentes são reconhecidas pelas novas gerações, em Porto Alegre, por exemplo, devido aos edifícios que abrigaram lojas por sua localização ou por sua arquitetura, como sendo “cuidadosamente elaborada com tijolos de belos matizes terra, registrada, inclusive, em postais promovidos pela prefeitura municipal” (CANEZ, 2008).

Em grande parte do séc. XX a Mesbla foi uma potência comercial. Em suas lojas compravam-se desde joias, perfumes e televisores, até lanchas e automóveis, tendo mais de 12.000 empregados e 48 lojas espalhadas por dezoito estados brasileiros.

“O Passado francês vem de longa data – desde o início do século passado, 1905, para ser mais precisa, quando duas pequenas lojas especializadas em equipamentos e peças para automóveis se fundiram. –” (A indústria automobilística se iniciava há apenas vinte anos atrás) “- Cinco anos depois o negócio próspero expandiu-se para além das fronteiras, abrindo filiais em Madri, Bruxelas, Berlim, São Petersburgo, Buenos Aires e Rio de Janeiro” (CANEZ, 2008)1

As Lojas Mesbla tiveram sua origem comercial com a venda de automóveis, incluindo peças e acessórios. Vendiam-se carros de fabricação europeia como Fiat, Lancia, Renault e Mercedez Benz, e representavam marcas como Leon Bellé e Branicier. Em 1916, devido aos acontecimentos econômicos decorrentes da Primeira Guerra Mundial, a loja do Brasil foi prejudicada, o que levou a matriz francesa a optar pela transferência de um funcionário, que até então ocupava a filial em Buenos Aires, para dirigir a filial no Rio de Janeiro. Tratava-se do francês Luis La Seigne, que após ser chamado para dirigir a filial nestes tempos de prejuízos, optou por importar carros americanos, e em 1917 a Mesbla vendeu o primeiro carro americano da Chevrolet, e acrescentou à sua linha de produtos tintas e uma linha de bici-

1. CANEZ, Anna Paula. Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole. p. 257

Figuras 34 e 35: Antigas Propagandas da Mesbla Veículos | Fonte: propagandashistoricas.br

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cletas, que cresceu após o termino da guerra com a inclusão de motocicletas e carros das marcas Ford, Chandler, Buick, Cadillac, entre outras.

Em 1924 foi criada a S. A. Brasileira Mestre & Blatgé, construída com a colaboração de parte de seus antecessores, La Seigne, sócios e amigos. Posteriormente, a Mesbla de La Seigne tornou-se independente da matriz, e em 1927 foi colocado em prática o plano de expansão geográfica da Mesbla, justamente um ano após Arnaldo Gladosch se formar.

indústria contribuía com novos utensílios e objetos de consumo para a vida urbana.

Na principal unidade da Mesbla, por exemplo, a “Mesbla do Passeio” localizada no Rio de Janeiro, cujo projeto original fora concebido por Henri Sajous, a empresa optou posteriormente por uma ampliação e intervenção do prédio, chamando agora Arnaldo Gladosch para tal projeto, onde o arquiteto executava a intervenção respeitando a materialidade original, com conceitos que poderíamos até mesmo associar a teóricos do patrimônio.

"A ampliação proposta por Gladosch interviu de maneira respeitosa na arquitetura de Sajous, interferindo de maneira mínima no edifício existente, acrescentando dois pavimentos no topo. Este acréscimo superior, em conjunto com a ampliação lateral, englobou a obra anterior com uma unidade compositiva própria, através da variação no ritmo das perfurações, cor e textura diferenciada, porém sempre em diálogo com a paleta existente. Um exemplo é a retomada do petit pois da torre, que Gladosch propõe em de peças menores de alvenaria saliente na cor tabaco, ligando de maneira sutil o novo ao antigo, sem se utilizar da simples cópia" (MANCINI, Francine Trevisan. 2014)2

Como mencionado, as identidades visuais dos edifícios da empresa eram propositadamente únicas e, apesar do realce da identidade visual, os projetos da Mesbla em geral nunca deixaram de se relacionar com a cidade a partir de implantações que criavam vínculos e generosidades com o contexto urbana onde inseridas, como os típicos tratamentos de esquina, alinhamentos e emolduramento da paisagem, entre outros. Estas características eram visíveis, por exemplo, na Mesbla Magazine da rua 24 de Maio em São Paulo, cuja estrutura foi recentemente reaproveitada para implantação do Sesc 24 de Maio, projeto do arquiteto Paulo Mendes da Rocha, e a Mesbla Veículos de São Paulo, marcada por uma torre e um generoso espaço na esquina entre a rua Luís Gama e a Av. do Estado.

Na gestão das lojas Mesbla era incomum o aluguel de edifícios originalmente pertencentes a outras firmas. A empresa fazia questão de ter seus próprios edifícios, construídos com uma identidade visual singular para a empresa, e por isto estavam tão vinculadas à assinatura de arquitetos exclusivos como o francês Henri Sajous e posteriormente o paulistano Arnaldo Gladosch. Comum na empresa eram as ampliações em suas sedes e unidades, adaptando-as a novas funcionalidades conforme a 2. MANCINI, Francine Trevisan. Sajous architecto: presença e atuação profissional 1930-1959. 2014. Dissertação: Mestrado em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo - FAU USP, São Paulo, 2014 44

Entre as lojas Mesbla, destacavam-se duas tipologias diferentes: As Mesbla Magazines, voltadas majoritariamente à lojas de departamento que eram comuns no país naquela época, e ainda comuns em países europeus, como a Fnac, ‘El Corte Inglés, entre outras; e as lojas Mesbla Veículos, voltadas principalmente aos automóveis e, portanto, com tipologias distintas como rampas, pés direitos maiores, entre outras características.

Figura 36: O Arquiteto Henri Sajous e a Maquete da Mesbla da Rua do Passeio | Fonte: Acervo Janine Pagès

“Havia um estilo de vida associado aos produtos vendidos nesses locais, de ser o espaço de vendas de produtos industriais produzidos em massa por preços populares para atender a uma nova sociedade de consumo, que valorizava e almejava o moderno para seu cotidiano. A intenção dessa arquitetura racionalista era demonstrar solidez da instituição comercial, através da robustez de sua arquitetura. Com predominância de cheios sobre vazios, materialidade em tijolo à vista, por vezes com assente diferenciados marcando base corpo e coroamento, com rigidez na simetria e alinhamento de elementos na composição e ritmo

Distribuídas entre Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo, as Lojas Mesbla Veículos representam o universo de lojas de Arnaldo Gladosch, e a complexidade das relações existentes. Os showrooms de automóveis, dedicados também a serviços e reparos, sintetizavam um funcionalismo utilitário, assim como as lojas de departamentos do início do séc. XX em Chicago, localizadas em trechos específicos de grandes avenidas, mantendo uma contiguidade temática, numa época que viu uma grande expansão das fábricas de automóveis.

de fachada bem marcado através de esquemas de modulação (grelha ou grid). Em geral, os edifícios Mesbla Veículos possuíam duas particularidades em seu programa de necessidades que os diferenciavam na composição e espacialidade dos Magazines Mesbla. São essas: necessitar rampas largas para o acesso e fluxo de veículos expostos e armazenados em loja e pés-direitos duplos em função de abrigar por vezes outros veículos maiores em altura como tratores, por exemplo” (LODER, Luiza. 2014)3

Cada uma das lojas Mesbla destinadas aos automóveis, apesar de serem todas da autoria de Arnaldo Gladosch, possui uma identidade própria, singular, adaptada ao contexto local de cada implantação, com diferentes soluções adotadas.

3. LODER, Luiza. Reconfigurando Gladosch. 2014. (Dissertação: Mestrado para título de Mestre em Arquitetura - UFRGS, Porto Alegre, 2014) p.36

“As soluções empregadas por Gladosch, em especial nas das edificações projetadas para a Mesbla, como o tijolo aparente e a adoção de uma simplificação imponente dos cânones clássiFigura 37: Maquete 2 x 2 da “Cidade Mesbla” | Fonte: CANEZ, Anna Paula. Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole

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cos, são características exclusivas de suas obras. Nas décadas de 1930 e 1940, quando a arquitetura projetada oscilava do branco ao cinza, os tons terrosos dos tijolos de Gladosch estabeleceram um contraponto e uma identidade. Gladosch não se segue o emprego dos ornamentos do academicismo exacerbado e nem o streamline art-decó que compunham a paisagem urbana daquele momento. Gladosch produz uma obra única no Brasil que transitava a arquitetura clássica e a moderna” (RRA, 2012)4

Na década de 1980, quase duas décadas antes da falência da empresa, a Mesbla vivia seu auge econômico, e celebrando o momento de sucesso econômico que a empresa vivia foi elaborada uma maquete com cerca de 4 metros quadrados para uma exposição permanente na sede principal da Mesbla do Passeio, chamada ‘Cidade Mesbla’, contendo todos os edifícios.

"E nós por aqui, chegamos a ver uma maquete de mais ou menos 2 por 2 m2, onde você tinha a Cidade Mesbla, que era composta de quê: somente prédios próprios, com alamedas e ruas, que montou uma cidade, a Cidade Mesbla, só de prédios próprios (...) a Mesbla normalmente não alugava, construía seus próprios prédios” (GONÇALVEZ, Emir, 2010)5 (figura 37).

Figura 38 e 39: Mesbla Veículos de Porto Alegre, de Arnaldo Gladosch e exposição Pontial 1941 | Fonte: mesbla.blogspot.com Figura 40: Mesbla Veículos do Rio de Janeiro, de Arnaldo Gladosch | Fonte: Acervo Henrique de Botton

4. RRA. Proposta de Requalificação Arquitetônica: Rua General Polidoro 74 - Bota fogo. Rio de Janeiro, 2012. p. 30 5: GONÇALVEZ, Emir, funcionário da Mesbla em depoimento a pesquisa do Programa Carioca. Disponível em: https://www.yt.com/watch?v=5w9iP7rXI8M 46

“No valor artístico relativo estriba-se a possibilidade de que obras de gerações anteriores possam ser apreciadas não só como testemunhos da vitória sobre a natureza através da força humana, criadora, como também possam ser apreciadas a respeito da concepção, forma e cor que são especificamente delas” (RIEGL, Alois. O Culto moderno dos Monumentos. P. 43)

Breve Histórico da antiga Mesbla Veículos de São Paulo

A Mesbla Veículos de São Paulo compreende um conjunto edificado de blocos localizados na Av. do Estado, na altura do número 5000, na quadra entre as Ruas Luis Gama e Alexandre Levi, ocupando metade da quadra, no bairro do Cambuci, Subprefeitura da Sé, na região central de São Paulo. Percebe-se nitidamente no conjunto da Mesbla Veículos de São Paulo diversas influências arquitetônicas, tais como traços do Expressionismo alemão, da escola de Amsterdã, da escola de Chicago e, nitidamente, a influência da formação europeia de Arnaldo Gladosch, com por exemplo “(...) fachadas internas e externas bem marcadas, porém com “gestos de refinamento”” (LODER, Luiza. 2014)1

Foi implantada em 1942, época da São Paulo metrópole; da imigração crescente na cidade; dos cassinos; do rádio; do cinema; das vedetes, e espetáculos, na mesma década em que o MASP de Lina Bo Bardi foi inaugurado. Época que precedia o fim da 2ª Guerra Mundial, e posteriormente quando os Estados Unidos passaram a demonstrar seu poder militar, sócio-político e econômico, influenciando diversos polos do mundo com a crescente cultura do consumismo. Época em que São Paulo vivia um crescimento efervescente, tendo fábricas como Johnson’s, Chiclets Adams, se propagando pela mesma região onde a Mesbla Veículos foi implantada, marcando as novas demandas da sociedade, e também uma época em que de acordo com Pompeu de Toledo “(...) São Paulo ultrapassava Minas Gerais (6.736.416 habitantes) como estado mais populoso, e a cidade de São Paulo já ameaçava a liderança do Rio de Janeiro (1.764.141 habitantes) como a mais populosa do país (...) Entre os estrangeiros, os portugueses haviam roubado a habitual liderança dos italianos (...)”

(TOLEDO, R. Pompeu de. 2015).

elaboração do plano urbanístico Alfred Agache da cidade do Rio de Janeiro.

A loja Mesbla Veículos de São Paulo marca fortemente um período onde os carros passavam a ser uma tendência de consumo e uma solução para o deslocamento na cidade. Em São Paulo era oferecido exclusivamente na unidade da Mesbla Veículos da Av. do Estado o serviço de manutenção e reparos de veículos. No mesmo endereço funcionavam também pequenas concessionárias para diferentes marcas, que eram delimitadas por guichês dispostos nos prédios do conjunto. A Mesbla Veículos de São Paulo também oferecia outros tipos de produtos e serviços voltados à agropecuária, que não eram comuns em outras lojas da empresa. Cerca de uma década depois de sua construção, conforme nota-se na comparação de fotografias aé-

Outra curiosidade sobre seu ano de implantação é a construção quase simultânea do conjunto IAPI Várzea do Carmo, na área ao oeste da antiga Mesbla Veículos, projetada pelo arquiteto Attilio Correa Lima, o qual foi colega de Arnaldo Gladosch na

Figura 41: Mesbla Veículos de São Paulo, de Arnaldo Gladosch | Fonte: Acervo Henrique de Botton

1. LODER, Luiza. Reconfigurando Gladosch. 2014. Dissertação: Mestrado para título de Mestre em Arquitetura - UFRGS, Porto Alegre, 2014) p.37 2. TOLEDO, R. Pompeu de. A Capital da Vertigem: uma história de São Paulo de 1900 à 1954. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. p. 383 47

reas de 1954 e 1958, foi construído também um novo edifício no conjunto fazendo uma ampliação do bloco voltado para a rua Luís Gama, e cerca de três décadas depois, também comparando fotografias aéreas, foi executada uma ampliação nos galpões.

Poucos anos antes da falência da Mesbla (1999), o imóvel foi vendido para outra empresa que suspostamente seria filial da FIAT, funcionando como unidade de depósito, manutenção e revenda de peças de automóvel, até que no início do milênio foi vendid para a Igreja Pentecostal Deus é Amor para se tornar a sede oficial da Igreja. Neste momento de câmbio entre proprietários, diversas alterações internas e externas foram feitas no conjunto, como mais construções e ampliações na área livre do conjunto, assim como a descaracterização da fachada original voltada para a Av. do Estado, onde optou-se pela demolição da marquise original assim como das paredes em alvenaria de tijolos ornamentadas por uma trama de tijolos salientes do plano da fachada, para a construção de uma cobertura de vidro.

A atual proprietária, Igreja Pentecostal Deus é Amor, na época da aquisição realizou, além de reformas na fachada – como o fechamento de grande parte das aberturas e nichos da alvenaria de tijolos –,reformas principalmente internas, visando adaptar o conjunto para uso como igreja. As naves passaram a ser usadas para fins religiosos, e no lugar de veículos e guichês colocaram-se bancos e púlpitos, nos mezaninos, há construções sob a rampa helicoidal, e diversas outras adaptações ao programa da igreja, incluindo abrigos temporários dentro do conjunto destinados aos visitantes e fiéis vindos de regiões muito distantes da cidade.

Apesar de o conjunto ter sido parcialmente descaracterizado por reformas empreendidas por proprietários posteriores, o caráter monumental continua nítido. É uma arquitetura que se difere do parâmetro estabelecido pelos arquitetos paulistas em sua época de concepção, seguindo a linguagem singular de Gladosch, assim como parâmetros próprios das Lojas Mesbla.

Nota-se grande prestígio na estrutura da Antiga Mesbla Veículos, a partir da forma singular do conjunto edificado, que além do caráter monumental permeia uma enorme gama de funções.

“(...) quando visitamos um monumento desse tipo, ficamos surpresos com uma serie de questões intimamente ligadas à ele; sobretudo, surpreende-nos a pluralidade de funções que Nota: Comparando a figura acima com a figura 40, nota-se algumas questões: a presença do gradil; a fachada parcialmente descaracterizada; o fechamento do hall de entrada em outro assentamento de tijolos; a presença de pichações; a pintura sob o perímetro do relógio e o próprio relógio; a diminuição da marquise; a presença de uma platebanda sobre a marquise; e por fim, outra curiosidade perceptível: os buracos consequentes da fixação do antigo logotipo da Mesbla.

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Figura 42: Antiga Mesbla Veículos, atual “Templo III” e “estacionamento da IPDA”, totalmente vazio durante os dias da semana. 2017 | Fonte: Acervo do Autor

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um palácio desse tipo pode conter e como essas funções são, por assim dizer, totalmente independentes da sua forma, mas é precisamente essa forma que fica impressa em nós, que vivemos e percorremos a cidade, e que, por sua vez, a estrutura” (ROSSI, Aldo. 1966)3

Hoje em dia é sabido por grande parte dos arquitetos que a sustentabilidade tem um papel fundamental em qualquer projeto e obra, sendo incluída na Tríade Vitruviana que originalmente consiste de ‘firmitas’ ‘utilitas’, e ‘venustas’, respectivamente, ‘estrutura’, ‘função’ e ‘beleza’, como um quarto elemento criando um “Quaternário Vitruviano”. Porém, a demolição integral dos edifícios continua sendo um recurso usual na metrópole paulistana, apesar da herança industrial apresentar potenciais para uma “pluralidade de funções” que são “totalmente independentes da sua forma”.

Atualmente, o conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos infelizmente não possui uma função que explore os potenciais do conjunto, nem mesmo os gestos e princípios de relação com a cidade que existiam originalmente. Há cerca de 10 anos, a Igreja Pentecostal Deus é Amor transferiu o seu templo para uma área localizada entre o Eixo Radial Leste e a Av. do Estado, no limite da antiga Várzea do Carmo, em frente ao Parque Dom Pedro II e a cerca de 300 metros da antiga Mesbla Veículos. Assim que sua atual proprietária concluiu a obra de sua sede oficial no ano de 2006, o conjunto edificado passou a ter um uso de caráter ocioso, sendo usado efetivamente apenas durante os dias de culto como estacionamento de veículos (carros e fretados) para a chegada dos fiéis.

Decorrente do caráter ocioso, um aceleramento no processo de degradação fica eminente por conta da inviabilidade financeira para uma manutenção cautelosa assim como uma

Figura 43: Limite do conjunto na rua Luís Gama, 2016 | Fonte: Acervo do Autor Figura 44: Atual sede principal da Igreja Pentecostal Deus é Amor, 2016 | Fonte: Acervo do Autor Figura 45: Vista para a fachada descaracterizada na av. do Estado em um domingo, 2016 | Fonte: Acervo do Autor 50

maior vulnerabilidade ao vandalismo. Como coloca Choay, “A herança industrial desafectada” é em grande parte adaptável às “normas de utilização actuais”; porém, a “reconversão dos edifícios depende quer de uma conservação histórica, quer de uma saudável economia logística” (CHOAY, Françoise)4.

permanência de um bem imóvel que, até então, era invisível aos órgãos de preservação e vulnerável a especulação imobiliária, desconhecido em relação a memória coletiva das novas gerações e presente apenas na lembrança daqueles que em breve perecerão.

Apesar da parcial descaracterização do conjunto da antiga Mesbla Veículos de São Paulo devido à reformas empreendidas pelos proprietários posteriores do imóvel, se olharmos com atenção as transformações ocorridas nas últimas décadas no invólucro da Mesbla notaremos que grande parte do patrimônio industrial que ali existia foi simplesmente apagado da cidade, tornando então o conjunto edificado um dos últimos fragmentos da memória coletiva do Cambuci, uma das últimas incógnitas expressivas - um ‘palimpsesto’ predominantemente apagado. Portanto de uma maneira indireta, a Igreja Pentecostal Deus é Amor contribuiu para a

Figura 46: Relação com a calçada em dias de culto e a obstrução da vista para o conjunto, 2016 | Fonte: Acervo do Autor

3. ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade. 1966. p. 16 4. CHOAY, Françoise. Alegoria do Patrimônio, pg. 234 51

Figura 47: Vista interna do conjunto para a torre, 2018 | Fotografia de Thalita Miranda Figura 48: Esquina da Rua Alexandre Levi com a Av. do Estado, 2016 | Fonte: Acervo do Autor Figura 49: Vista para torre em um domingo, 2016 | Fonte: Acervo do Autor Figura 50: Vista para a nave interna utilizada como estacionamento, 2016 | Fonte: Acervo do Autor 52

Figura 51: Fachada original do conjunto para a Av. do Estado, década de 40 | Fonte: Acervo Henrique de Botton Figura 52: Conjunto da antiga Mesbla Veículos em meados da década de 60 | Fonte: CANEZ, Anna Paula. Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole Figura 53: Esquina da rua Alexandre Levi com a Av. do Estado | Fonte CANEZ, Anna Paula. Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole 53

Ficha Técnica

• Ano de Construção: 1942 • Área Construída: Aproximadamente 37.000 m2 • Área do Terreno: Aproximadamente 17.000 m2 • Materialidade: Tijolos, concreto, aço, vidro, esquadrias e caixilharias metálicas • Nome Original: Mesbla Veículos • Nome Atual: Templo Três - Igreja Pentecostal Deus é Amor • Localização: Av. do Estado nº 4938 à 5102 (Adotar nº 5000) • CEP: 01516-901 São Paulo, SP • Autor: Arnaldo Gladosch • Proprietário Original: Luis La Seigne (ou) Mesbla S/A • Proprietário Atual: Igreja Pentecostal Deus é Amor • Uso Original: Comércio e Serviços – Loja de Veículos • Uso Atual: Ocioso – Estacionamento e Depósito de material gráfico • Zoneamento: Zona Mista de Alta Densidade (PDE 2004) / Zona Mista (PDE 2016) • Projeto da última reforma oficial: 2006, pelo Arq. Omar de Castro • Estado de Conservação: Razoável – Parcialmente descaracterizado

Figura 54: Implantação (2017) | Fonte: Google Earth™

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“(...) Interessam-nos no monumento não as marcas da influência dissolvente da natureza que se fez valer no tempo decorrido desde a sua génese, mas o facto de ter sido criado outrora como obra humana. O Valor histórico é tanto mais elevado quanto mais claro for o grau em que se revela o estado coeso, original, que o monumento possuía imediatamente ao ser produzido (...) ” (RIEGL, Alois. O Culto moderno dos Monumentos. p. 34)

Análise Arquitetônica

De início, vale ressaltar uma comparação do conjunto da Mesbla Veículos de São Paulo com os conjuntos da loja em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. Nas três unidades projetadas por Arnaldo Gladosch foi adotado o tijolo aparente, em composições distintas que apresentam diferentes tonalidades, nos rememorando os padrões da Escola de Amsterdã em relação ao ‘tijolo nativo’, entendendo o tijolo como um material tipicamente vernacular que apresenta diferentes tonalidades dependendo da origem de matéria prima.

“Em São Paulo, a Mesbla Veículos ocupa todo um quarteirão numa composição de volumes diferenciados. De todos os projetos de Gladosch para a Mesbla, esta filial é que mais se remete a arquitetura fabril. A própria tonalidade do tijolo que reveste a fachada é diferente das demais, de cor terracota avermelhada contra o ocre da filial de veículos de Porto Alegre. (...) a linguagem clássica também está presente, assim como na filial de Porto Alegre, com as colunas de inspiração dórica e cornijas ornadas com gotas” (RRA, 2012)

Para uma melhor compreensão de cada edifício do conjunto edificado, foram estabelecidos blocos no intuito de analisar pontualmente cada parte do conjunto, considerando então um total de 6 blocos. Os blocos são predominantemente simétricos que, em contraste, são dispostos assimetricamente no conjunto, variando em volumes e formas que ora se relacionam com a Av. do Estado, ora com as ruas Luís Gama e Alexandre Levi, gerando diversos campos de visão em diferentes perspectivas. A Mesbla veículos foi originalmente concebida com toda sua área externa trabalhada em tijolos em assentamento francês, marcada por uma torre de 5 andares com um relógio no topo que marca a esquina, no cruzamento da Av. do Estado com a Rua Luis Gama, que pousa sobre uma laje apoiada em 4 pilares esbeltos, e um estilo único que envolve diversas influências arquitetônicas difundidas pelo arquiteto Arnaldo Gladosch.

Diagramas 01 à 07: Blocos estabelecidos na análise arquitetônica

1. RRA. Proposta de Requalificação Arquitetônica: Rua General Polidoro 74 - Bota fogo. Rio de Janeiro, 2012. p. 30

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Bloco I

O primeiro bloco é um galpão composto por 3 naves que se prolongam paralelas à Av. do Estado, e uma nave que se prolonga paralela à Rua Luís Gama. A primeira nave se estende a partir da torre, prolongando-se até o terceiro bloco; já a segunda e a terceira naves são interrompidas ao se encontrarem com o quarto e o quinto blocos. A estrutura do galpão consiste em arcos alongados que se apoiam em consoles ligados a pilares em forma de tulipa, sustentando a cobertura com o lanternim, gerando espaços internos expressionistas e cenográficos. Originalmente era onde se locavam os showrooms e os guichês

dispostos entre as naves, lembrando uma feira expositiva, onde cada guichê tinha um papel diferente. No interior das naves também havia diferentes instalações especiais voltadas a assistência mecânica dos veículos.

Ambas as naves se estendem horizontalmente até seus limites, e interligam os demais blocos2. Com base nas fotografias antigas do acervo de Henrique de Botton, genro de La Seigne, e na descrição da Dr.ª Anna Canez, a primeira nave era onde se localizava um showroom, tendo sua fachada trabalhada na mesma trama de tijolos, acompanhando o ritmo das pilastras do terceiro bloco e com enormes aberturas que funcionavam como vitrines. Um avanço da laje superior criava uma espécie de marquise, e uma relação de ‘expansão da cidade ao interior do conjunto’.

Os tijolos do conjunto, encontrados tanto nas fachadas dos galpões quanto na torre, são dispostos em assentamento francês ou flamish bond. São tijolos cerâmicos provavelmente de origem das olarias paulistanas, como a olaria de pinheiros, e possuem trama de tijolos queimados salientes do plano da fachada formando um padrão geométrico em losangos que passaremos a chamar de Diaper 3. A presença deste tipo de ornamentação é extremamente rara no cenário da arquitetura brasileira e uma

Figura 55: Vista interna da 3ª nave, nota-se as aberturas dos segundos lanternins totalmente vedadas e o espaço adaptado ao templo vazio. 2017 | Acervo IPDA 2 Nota: Em uma hipótese, a estrutura projetada pelo arquiteto pode ser derivada da influência do período de atuação de Gladosch na firma Wayss & Freytag.

3 Nota:“Diaper: A pattern formed by small, repeated geometrical motifs set adjacent to one another, used to decorate brick surfaces in architecture and as a background to illuminations in

manuscripts, wall painting or panel painting” (VADNAL, Jane. Glossary of Medieval Art and Architecture. University of Pittsburgh, 1997) 56

assinatura de Arnaldo Gladosch e suas influências europeias no conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos.

Posteriormente, as três naves foram alteradas na última reforma empreendida pela Igreja Pentecostal Deus é Amor. A primeira nave foi adaptada para funcionar como estacionamento, e sua fachada principal – onde havia um ritmo estruturado por paredes de alvenaria de tijolos trabalhadas em diaper – foi descaracterizada, com a criação de aberturas maiores e manutenção apenas os pilares, com uma estrutura de pele de vidro sobre as aberturas; a segunda nave foi adaptada para o culto religioso; por fim, a terceira e a quarta naves foram transformadas em uma espécie de lobby. Como já mencionado, atualmente não funcionam mais cultos no chamado ‘Templo III’ (denominação da Igreja para o conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos).

Figura 56: Guichês e veículos em exposição no showroom, década de 40 | Fonte: Acervo Henrique de Botton Figura 57: Vista da entrada na torre após reforma de 2006 | Fonte: CANEZ, Anna Paula. Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole Figura 58 e 59: Detalhe da estrutura da cobertura e a adaptação a templo religioso, 2006 | Fonte: CANEZ, Anna Paula. Arnaldo Gladosch: o edifício e a metrópole Figura 60: Vista para a ampliação dos galpões, 2018 | Fotografia de Thalita Miranda 57

Bloco II

O segundo bloco, é uma torre que marca a esquina, nascendo na laje da marquise. Possui um relógio que antecede o mirante da cobertura, detalhe que está presente em diversas lojas Mesbla projetadas por Gladosch e Henri Sajous, e era uma estratégia comercial da Mesbla que os edifícios que marcassem a hora. Possivelmente, no contexto histórico em que se insere, simboliza “o novo ritmo em tempos modernos em decorrência das revoluções industriais”. A partir das fotografias mais antigas do acervo de Henrique de Botton, genro de Luis La Seigne, nota-se que originalmente o relógio da torre era de um material metálico, uma hipótese é que sua tonalidade seria dourada, como nos demais relógios presentes em outros edifícios da Mesbla.

Atualmente, o relógio está pintado de preto e sob ele há uma pintura branca criando destaque, porém não temos conhecimento sobre a origem desta intervenção.

A torre, como um elemento vertical, fax contraste com o primeiro bloco horizontal, ocupado pelas naves. A torre causa a ilusão de ser visualmente o elemento mais alto do conjunto, porém ao analisarmos o projeto notamos que o gabarito de altura da torre é equivalente às cotas mais altas dos demais blocos.

Durante a primeira reforma empreendida pela filial da FIAT, segunda proprietária do imóvel, os acessos à torre foram alterados e passaram a ser por uma guarita preexistente. Posteriormente, na segunda reforma empreendida pela terceira proprietária, o último pavimento da torre foi adaptado para uma estação de rádio gospel da Igreja que funcionou por pouquíssimo tempo, mas as antenas externas permanecem até hoje.

O bloco da torre pode ser comparado com algumas influências sofridas por Gladosch em seu processo de formação, como Berlage e J.G Farben de Behrens. A torre, como já mencionado, possui um tratamento ornamental em diaper. Em outra hipótese, podemos considerar o diaper como uma referência a Fritz Höger em Hamburgo. O hall da torre originalmente tem uma abertura generosa alinhada com a esquina e voltada ao rio Tamanduateí com quatro pilares que apoiam a laje da marquise.

Atualmente, porém, o hall foi fechado com outro assentamento de tijolos empreendido pela reforma posterior, impedindo a legibilidade em relação ao projeto original.

Figura 61: ‘Zoom-in’ da torre, 2016 | Fonte: Acervo do Autor

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Blocos III, IV e V

O terceiro bloco, localizado na esquina da Av. do Estado com a Rua Alexandre Levi, possui um elemento que marca a entrada e que consiste em esquadrias de vidro (que estão presentes em grande parte das lojas Mesbla feitas por Gladosch, e se assemelham muito à Beurs de Berlage). Conforme descreve Canez (2008) trata-se de uma “grelha metálica de quadrados profundos e envidraçados, incrustada na parede de tijolos”. De acordo com Luiza Ludwig Loder, “(...) o mesmo elemento de grelha metálica mais fechada aplicado à fachada também repete-se nessas duas sedes – Referindo-se a Rio de Janeiro e , sendo que a paulista tem esse elemento em verde musgo e a versão porto alegrense, pintado em vinho” (LODER, Luiza. 2014)4

A fachada consiste em pilastras que se salientam do plano da fachada com as janelas e terminam no capitel no qual se apoia a cornija, antecedendo o telhado. Em planta, é resolvido por uma malha disposta simetricamente a partir do eixo longitudinal central, assim como os demais blocos. Originalmente, o conjunto aproveitava um generoso recuo para dar destaque ao pé direito duplo do pavimento térreo, ao mesmo tempo em que também criava um generoso ‘calçadão’ para a face voltada para um outro rio Tamanduateí.

Atualmente, a fachada principal do conjunto, a qual envolve também este bloco marcando o limite da quadra no cruzamento com a Rua Alexandre Levi, tem seu hall fechado e está cercada por um gradil que se prolonga por todo limite do terreno até o cruzamento da Rua Luís Gama, criando um impedimento visual da fachada e removendo o aspecto de generosidade para

Figura 62: Fotomontagem da paginação do diaper disposto em assentamento francês Fonte: Elaboração do Autor

4. LODER, Luiza. Reconfigurando Gladosch. 2014. (Dissertação: Mestrado para título de Mestre em Arquitetura - UFRGS, Porto Alegre, 2014) p.38 59

a calçada. A fachada lateral para Rua Alexandre Levi se encontra totalmente pichada, com vidros desbotados que omitem o interior por conta da implantação de insufilm, e com parte das pilastras repletas de fuligem provenientes das fogueiras de moradores de rua.

O quarto bloco consiste em uma forma cilíndrica revestida de tijolos em assentamento francês, encaixado entre o terceiro e o quinto bloco. Trata-se de uma rampa helicoidal para carros criando a circulação de veículos entre o primeiro, o terceiro e o quinto bloco ao longo dos pavimentos, conectando patamares do terceiro e do quinto bloco disposto em meio nível um em relação ao outro. Atualmente, entre todos os blocos do

Figura 63: Vista para os blocos 4 e 5, 2016 | Fonte: Acervo do Autor Figura 64: Vista para a grelha metálica da Av. do Estado, no bloco 3, 2017 | Fonte: Acervo do Autor Figura 65: Vista interna da rampa helicoidal | Fotografia de Thalita Miranda 60

conjunto, é o que menos sofreu alteração após as reformas empreendidas pelas proprietárias posteriores.

O quinto bloco é a continuação do terceiro bloco, interligada pelo quarto bloco da rampa helicoidal. Diferentemente do terceiro bloco, é resolvido por uma malha disposta simetricamente a partir do eixo transversal. Nas laterais voltadas ao interior do conjunto, precisamente na fachada sul, é onde se encontravam as caixas de circulação e os sanitários, assim como no terceiro bloco.

Bloco VI

Por fim, o sexto bloco se localiza no limite do terreno, com frente para a rua Luís Gama. A fachada para Rua Luís Gama mantém a identidade do conjunto com as pilastras e a trama de tijolos. Diferente da fachada da Rua Alexandre Levi, ela possui outro ritmo estrutural e outro intervalo entre as pilastras, com janelas maiores comparadas às do terceiro bloco. Outra nuance da fachada são as pequenas rupturas na marquise, dando legibilidade à unidade do bloco destacada do primeiro bloco das naves.

Ao contornar o bloco, chegando próximo ao miolo do conjunto, a fachada recua em um dente ligando o bloco à uma ampliação feita poucas décadas depois da construção do conjunto, conforme mostrado pelas fotografias aéreas, tornando a parte voltada ao interior do conjunto lisa e monocromática, em contraste com as demais fachadas, e formando a tipologia do bloco delimitada agora a partir de um átrio, com as caixas de circulação vertical e banheiros encostados em um dos limites do átrio acompanhando a mesma tipologia ao longo dos pavimentos.

A área construída do bloco se estende até o limite do terreno, sendo encerrado por uma empena cega na divisa de lotes. Atualmente, suas entradas para a rua se encontram permanentemente encerradas, com as mesmas tipologias de pichação encontradas na fachada para a Rua Alexandre Levi, marcas de fuligem nas pilastras, e uma razoável quantidade de moradores de rua que se abrigam sob a marquise.

Figura 66: Vista interna do bloco 3 sentido Av. do Estado, 2018 | Fotografia de Thalita Miranda Figura 67: Vista interna do bloco 5 com vista para o interior do bloco 1, 2018 | Fotografia de Thalita Miranda Figura 68: Adaptação ao púlpito e sala pastoral no bloco 3, 2018 | Fotografia de Thalita Miranda 61

Figura 69: Vista para o Bloco 6 em contato com o Bloco 1, 2017 | Fonte: Acervo do Autor

Figura 72: Vista para a estrutura de cobertura do Bloco 6, 2018 | Fotografia de Thalita Miranda

Figura 70: Detalhe do contato, 2017 | Fonte: Acervo do Autor

Figura 73: Vista para a ampliação do bloco 6 e ampliação do bloco 1, 2018 | Idem

Figura 71: Vista da rua Luís Gama sentido Av. do Estado, 2017 | Fonte: Acervo do Autor 62

Figura 74: Vista da parte original do bloco para a parte da ampliação, 2018 | Fotografia de Thalita Miranda Figura 75: Janela do bloco 6 com vista para a torre, 2018 | Idem Figura 76: Detalhe da caixilharia original, 2018 | Idem 63

Situação Atual

A fotografia abaixo é uma imagem significativa do bem imóvel, e deixa nítida a marca do conjunto no cenário do Cambuci, na altura da Av. do Estado. Trata-se da Avenida do Estado vista do alto, a partir do terraço do Edifício Altino Arantes, tirada em 2008. Também se destaca na paisagem o “tampão” sobre o rio Tamanduateí. A imagem mostra o conjunto pouco depois da reforma. Com esta fotografia, podemos perceber que o bem ainda estava em bom estado de preservação, provavelmente devido a seu uso constante como templo religioso naquela época.

Figura 78: Vista Superior do Conjunto Mesbla, 2008 | Fotografia de Carlos Alckmin

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A marca do conjunto da Mesbla continua forte, apesar da descaracterização da fachada, alterada e escondida sob uma estrutura de vidro, que tirou seu caráter de volume de ligação na mesma materialidade dos demais blocos do conjunto, afastando visualmente a torre dos demais blocos lindeiros à Rua Alexandre Levi. Quando comparamos a imagem abaixo com as anteriormente apresentadas do conjunto original, podemos perceber que fachada original criava um volume de ligação, que hoje não existe mais.

Figura 79: Vista interna do pavimento-tipo do bloco 6, 2018 | Fotografia de Thalita Miranda Figura 80: Contraste entre a largura das janelas sentido rua Alexandre Levi e sentiro Av. do Estado , 2018 | Fotografia de Thalita Miranda Figura 81: Por-do-sol, 2018 | Fotografia de Thalita Miranda 65

Representações e Levantamentos

Infelizmente, com exceção de fotografias e ilustrações publicitárias, não há registros oficiais históricos da época de construção do conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos de São Paulo, sendo então de grande dificuldade a determinação das estruturas originais do edifício. A única planta oficial do edifício encontra-se em estado precário e com um ínfimo nível de detalhes, sendo ela a planta da escritura do conjunto edificado, que foi utilizada pela equipe da Igreja Pentecostal Deus é Amor para a elaboração de um asbuilt do conjunto para realizar o pedido de anistia na época da adaptação para templo religioso. Porém, o desenho apresenta diversas falhas e incompatibilidades, visto que serviria apenas para aprovação da reforma.

Para este trabalho, foi criado uma base de estudo e propostas de intervenção do conjunto edificado, feita a partir dos desenhos desenvolvidos pela Igreja Pentecostal Deus é Amor; junto a reajustes em relação ao Mapa Digital da Cidade e georreferenciamento via satélite; algumas medidas retiradas in loco, como o espaçamento entre os nichos e pilastras, alturas do pé direito e inclusive a medição dos próprios tijolos em assentamento francês, durante as visitas ao local; e por fim aproximações de medidas hipotéticas que não constavam nos desenhos a partir da averiguação por fotografias antigas e atuais.

Diagramas 08: Cronologia do conjunto da antiga Mesbla Veículos

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67

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Corte bb

Corte CC

Esc.: 1 : 750

Esc.: 1 : 750

FACHADA ATUAL (Av. do ESTADO) Esc.: 1 : 700

70

Corte DD Esc.: 1 : 750

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Capítulo IV:

Diagnósticos do Cambuci

“Segundo uma lenda associada à conquista da cidade de Tróia pelos gregos, consta que o engenhoso Ulisses terá planeado construir um cavalo de madeira destinado a servir de oferenda grega pela suposta vitória dos seus inimigos. Vendo o belo presente estacionado à porta da muralha, os troianos recolheram-no sem prever a surpresa que ele continha: um grupo de soldados gregos infiltrados no interior do cavalo (...) ainda que destituídos desta dimensão dramática, muitos erros urbanísticos acontecem em consequência da aplicação do mesmo princípio atrás descrito para a cidade de Tróia: a mais inofensiva e apelativa intenção urbanística pode revelar-se a médio e longo prazo como uma intenção perniciosa com consequência onerosas” (RODRIGUES, L.F. Manual de Crimes Urbanísticos.

Lisboa, 2017 p. 131)

Foto de abertura do Capítulo: Avenida do Estado e o Rio Tamanduateí, com sobreposição de jornais antigos. Acervo e elaboração do autor 72

“Por isso cuidado meu bem, há perigo na esquina. Eles venceram e o sinal está fechado para nós, que somos jovens” (REGINA, Elis. Como os Nossos Pais. Falso Brilhante 1976)

Evolução urbana a partir do traçado

O primeiro traçado que circunda o perímetro do distrito foi feito por chácaras, semelhante ao bairro do Bixiga, também na região do centro expandido, e que surge incialmente a partir do traçado da Chácara das Jabuticabeiras. Uma curiosidade é que parte das chácaras que deram origem aos bairros eram batizadas com o nome popular das espécies vegetais predominantes em sua região.

Assim como o Bixiga, que anteriormente foi Jabuticabeiras dada a vasta quantidade da espécie no atual território ítalo-brasileiro, o Cambuci tem seu nome originado pela alta quantidade da espécie correspondente ao seu nome, o pé-de-Cambuci ou Cambuci propriamente dito; porém, o nome do bairro não surge da chácara correspondente à sua localização, que se chamava Chácara do Glicério. Outra curiosidade é que, comparado a outros bairros batizados no mesmo contexto, o Cambuci é um dos bairros onde ainda é possível encontrar pés-de-cambuci espalhados pela região, como por exemplo nas ruas Luís Gama e Lavapés, Praça Hélio Ansaldo, dentre outros.

“Nos primórdios da São Paulo de Piratininga, passava pela região de Cambuci uma trilha que dava acesso Caminho do Mar, utilizado por tropeiros para chegar em Santos. Aos poucos, principalmente a partir de 1850, desenvolveu-se ao redor da trilha um pequeno comércio e algumas chácaras, sítios e fazendas.

No passado, a região era considerada uma divisa entre a cidade e a zona rural. O que separava essas zonas era um córrego que existiu no lugar onde hoje é a rua dos Lavapés. Lá, para os tropeiros e viajantes que entravam na cidade pela baixada da Glória, era hábito lavar os pés e dar de beber aos animais antes de seguir para a zona urbana (...) A construção do Museu do Ipiranga, em 1890, e da linha de bonde que atravessava o Cambuci, ligando o centro da cidade ao museu, valorizou as chácaras da região que começaram a ceder espaço a exploração imobiliária. Nessa mesma época, com a chegada de imigrantes europeus, a maio-

ria italianos, começou a ampliação do limite urbano no Cambuci, com a abertura de ruas e a construção das casas. Várias fábricas também começaram a ser instaladas na região, como a Chapéus Ramenzoni, a Nadir Figueiredo e a Villares” (ALVES, Danilo Janúncio. 2004)1

AAo longo do tempo, conforme é possível perceber de mapas anteriores a Planta Geral de São Paulo de 1897, o bairro se originou do parcelamento das glebas e as ocupações começam a surgir com maior intensidade. Neste mesmo mapa é possível notar em tracejado o projeto de retificação do Rio Tamanduateí, que se originou durante a gestão de João Teodoro Xavier de Matos, entre 1872 a 1875. Este projeto visava tanto a formação de um eixo viário entre a região sudeste da metrópole e o centro, quanto uma forma de previdência para controlar a malária, uma epidemia que atuou fortemente na época.

Ainda antes da retificação, nota-se no mesmo mapa que o traçado original cruzava o próprio rio Tamanduateí, com uma considerável quantidade de pontes ao longo do trecho estudado. Após a finalização do projeto de retificação do Rio Tamanduateí no trecho que atravessa o bairro, surge a Av. do Estado, como demonstra mapa SARA Brasil de 1930, três décadas depois do mapa da Planta Geral de São Paulo. O traçado original do bairro prevaleceu mesmo após a mudança do leito do rio Tamanduateí, com ambas as partes do bairro ligadas por pontes nas vias originais mais extensas.

A Av. do Estado possuía diversas torres da antiga linha de abastecimento de energia elétrica ao longo de sua extensão, localizadas em alguns momentos paralela à avenida, e em outros momentos fundadas sobre o rio. Conforme se pode observar no mapa SARA Brasil, a primeira edificação próxima da antiga Mesbla Veículos foi uma Escola de Economia Doméstica (tipicamente voltada ao público da área agrícola). A área residencial

1. ALVES, Danilo Janúncio. História dos Bairros Paulistanos: Cambuci. Banco de Dados Folha. São Paulo, 2004 2. BOTTI, Alberto. “Em nova via elevada, o carro é secundário”. Jornal o Estado de São Paulo, Agosto de 1974

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mais consolidada nesta época é a área no invólucro da Igreja N. S. da Glória.

Pouco tempo depois, conforme é possível observar a partir da ortofoto de 1940 (FM5-107), a densidade construtiva aumenta consideravelmente. Começam a surgir também terrenos em preparo para a construção civil, como a área de várzea do rio correspondente ao conjunto residencial IAPI Várzea do Carmo, do arquiteto Atílio Corrêa Lima, e o terreno do conjunto da antiga Mesbla Veículos, de Arnaldo Gladosch. Pouco tempo depois, começa a construção simultânea dos projetos, no ano de 1942.

Comparando-se, então, com a ortofoto de 1954 (FX5237), nota-se uma consolidação do bairro como o conhecemos hoje, inclusive com a presença da antiga fábrica da companhia canadense Light no terreno do Lavapés, e o preparo da fundação para a expansão do conjunto residencial IAPI Várzea do Carmo que acabou por ser cancelado. Uma outra curiosidade, que não passa desapercebida, é a forte presença de arborização viária no perímetro da Av. do Estado, tanto nas calçadas quanto na margem interna do Rio Tamanduateí.

Observando o contexto da região duas décadas depois, o mapa GEGRAN 1974 (pertencente a EMPLASA) revela um aumento considerável de área construída na região do recorte de estudo, e no invólucro do bairro passam a surgir mudanças viárias, fruto dos decretos finais do Plano Urbanístico Básico e de gestões políticas. Passam a surgir também alguns elementos verticais no recorte da região, além da formação de novas vilas com ruas internas em pequenas quadras ocupadas originalmente por galpões industriais.

Por fim, chegando ao novo milênio e comparando todos os registros até então citados com o Mapa Digital da Cidade de 2004 e com a ortofoto de 2000 (FX27-0044), nota-se a mais drástica das mudanças: a consolidação de uma nova malha viária sobre a preexistente, repleta de viadutos, nós viários e pontes. A bizarra forma intermodal dos nós viários sobre o Parque Dom Pedro II, entrelaçados a um “tampão” sobre o Rio Tamanduateí, as diversas extensões viárias do eixo Radial Leste-Oeste e suas conexões com a Avenida do Estado. Evidentemente, toda a vegetação que ocupava a margem do rio desapareceu, dando espaço a pilares de sustentação do “tampão”. Além disso, a Diagramas 09: Evolução do traçado urbano, elaborado a partir da sobreposição dos mapas: Carta de São Paulo (1897), SARA (1930), VASP (1954), GEGRAN (1974) e MDC (2004)

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arborização viária nas calçadas da Av. do Estado lindeiras ao rio também foram removidas.

Com relação direta ao recorte de estudo, surge a construção do dique sobre a Av. do Estado, o projeto “Viaduto sobre o Rio Tamanduateí”, iniciado em 1974. De acordo com o antigo presidente da Empresa Municipal de Urbanização (Emurb), o arquiteto Alberto Botti:

“Pela primeira vez, a paisagem e a cidade serão mais importantes do que o automóvel. Para a construção de vias expressas, é comum traçar uma linha reta, desapropriar tudo o que estiver na frente, derrubar e fazer uma verdadeira rodovia dentro da cidade. (...) cria-se o caos urbano, desalojam-se pessoas, despersonalizam-se regiões ou bairros, separam-se populações, uma de cada lado da ‘via expressa’. A cidade sempre sai ferida de uma aventura assim, e guarda marcas impossíveis de apagar. (...) por isso, o projeto do viaduto sobre o Tamanduateí, onde as necessidades do automóvel serão consideradas depois das prioridades urbanas, é visto pela Emurb como um marco e um princípio, que estabelecerá, como ponto de partida de qualquer projeto, o respeito pela cidade” (BOTTI, Alberto. 1974)2

fragmentação a partir da ruptura do tecido preexistente. Posteriormente, a estrutura de sete quilômetros de extensão sobre o Rio Tamanduateí foi a plataforma para o projeto Fura-Fila (atual Expresso Tiradentes).

Outra nuance do rápido aceleramento do processo de verticalização ocorrido entre 1974 e 2002 e que não passa desapercebido, incluindo até mesmo a área lindeira da antiga Mesbla Veículos, deu origem ao condomínio residencial vertical das Palmeiras, com a presença de diversos muros e cercas surgindo principalmente nas quadras lindeiras à Av. do Estado.

Porém, não foi a primeira vez que “a paisagem e a cidade” seriam “mais importantes do que o automóvel”, pois não apenas os projetos de vias expressas “despersonalizam-se regiões ou bairros, separam-se populações” como também o próprio projeto do “Viaduto sobre o Rio Tamanduateí” o fez. No recorte de estudo, o Viaduto subdividiu o distrito do Cambuci interrompendo todas as travessias remanescentes do primeiro processo de retificação do Rio Tamanduateí, tornando-se um limite, uma barreira física adicional ao próprio rio Tamanduateí, que o vedou no trecho que percorre do Parque Dom Pedro II à Praça Palmira Teixeira.

Diferentemente das barreiras físicas naturais, como o próprio rio Tamanduateí que tanto contribuiu para formação da cidade de São Paulo, presente desde sua origem, e outras barreiras físico-históricas como a ferrovia que desempenhou papel fundamental para o crescimento econômico de São Paulo entre os séculos XIX e XX, estas intervenções viárias não supriram suas expectativas de mobilidade desde o período em que foram implantadas. Apenas serviram como uma geratriz de impactos socioambientais negativos, desvalorização do solo urbano, e Figura 83: Passeio de Barco no Tamanduateí, 1910 | Fonte: Acervo Instituo Moreira Salles Figura 84: Criança filosofando em frente ao Tamanduateí, na Várzea do Carmo, 1906 | Fonte: Biblioteca Nacional (Brasil)

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Uso e Ocupação do Solo

No trecho da Av. do Estado que cruza o bairro do Cambuci, o uso do solo é predominantemente religioso, sendo que muitos dos imóveis, a maioria galpões e tipologias fabris, que estão dispostos ao longo da avenida pertencem a diferentes entidades religiosas, como no caso do conjunto da Antiga Mesbla Veículos. Conforme nos afastamos do trecho da Av. do Estado que cruza o bairro do Cambuci, nota-se uma graduação entre uso misto de comércio e serviços locais à uso residencial, que se intensifica nos miolos de bairro.

Uma hipótese a ser levantada sobre o uso do solo majoritariamente por instituições e entidades religiosas ao longo do trecho da Av. do Estado refere-se ao fato de estar em uma localização estratégica, dentro da região do centro expandido.

Além disso, Av. do Estado desempenha um papel de via estrutural dentro da metrópole paulista, ligando a região do ABC à região central, e posteriormente à Marginal Tietê. Outro fato é que estas instituições e entidades religiosas desempenham papéis de ‘ganchos metropolitanos’ para a região do Cambuci, pois os usos específicos e sua grande dimensão atraem um grande deslocamento de fiéis (principalmente em dias de culto) que são residentes de diferentes municípios da região metropolitana.

Em uma ampliação do recorte de estudo, é possível notar uma das questões que assombram o imóvel: em todo seu entorno nota-se uma verticalização cada vez maior para a construção de edifícios residenciais de médio padrão, o mesmo contexto presente em diversos bairros da antiga classe operária do município de São Paulo. Isso acontece quando passa a haver uma maior demanda de moradias e menor presença do uso industrial em funcionamento em uma área localizada na região do centro expandido.

A dimensão desses lotes atiça o interesse do mercado imobiliário, e os antigos galpões, oficinas, armazéns e fábricas são os primeiros a serem demolidos para a construção de empreendimentos. Conforme os grandes empreendimentos vão ganhando espaço neste cenário urbano, passa a haver uma maior pressão sobre os pequenos lotes pertencentes às tipolo-

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gias operárias, que aos poucos vão esmaecendo e então, quando atingem um valor de área suficiente para o empreendimento, os lotes são remembrados para viabilizar a construção de condomínios verticais. Exemplos nítidos desse fato são encontrados nas quadras em frente a antiga Mesbla Veículos, no outro lado da Av. do Estado.

O uso predominante neste trecho é residencial, de baixo à médio padrão, havendo uma fração de médio a alto padrão em grande maioria nos condomínios verticais. Do remanescente, há certos equipamentos públicos como uma unidade da polícia militar, assim como um colégio tradicional da região (Colégio Nossa Senhora da Glória) e hospitais nas extremidades do distrito. Porém, não há uma quantidade significativa de equipamentos comparado a outras regiões do centro expandido.

O gabarito de altura das edificações no recorte do estudo apresenta uma média entre 2 a 7 pavimentos, sendo então a predominância estabelecida entre baixo à médio gabarito. Nota-se que os pontos de maior verticalização ao redor da antiga Mesbla Veículos são relativamente recentes, provenientes do remembramento de tipologias de lote operárias e antigos lotes de galpões e indústrias.

Comparando o zoneamento e a lei de uso e ocupação do solo dos anos de 2004 à 2016, não há diferenças significativas além de um acréscimo do coeficiente de aproveitamento em determinadas áreas como na região do miolo de bairro a partir do Largo do Cambuci, e o incentivo a um aumento da densidade habitacional voltada a habitações de interesse social.

O zoneamento revogado não contém especificações quanto ao uso e ocupação do solo, e na região se voltava servia unicamente para estabelecer relações de gabarito e recuos, e setorizações por coeficiente de aproveitamento diferentes visando diferentes controles da densidade construtiva, populacional e habitacional. O bairro foi classificado predominantemente como ZM 2 (Zona Mista de média densidade) e ZM 3 (Zona Mista de alta densidade). Quanto aos distritos vizinhos, nota-se a pre-

sença das ZCPs (Zonas de Centralidade Polar) comumente relacionadas à infraestrutura de transporte e mobilidade como o Metrô, CPTM, SPTrans e eixos estruturais rodoviários. Na Mooca há uma predominância de zoneamento voltado ao uso industrial com diversas quadras demarcadas como ZPI (Zona Predominantemente Industrial).

No atual zoneamento, as zonas predominantemente industriais permanecem em suas respectivas delimitações com uma pequena nuance que são os novos perímetros destinados as ZOEs (Zonas de Ocupação Especial, as quais tem um tratamento totalmente diferenciado em relação ao estabelecido pela LPUOS, zona comumente empregada em áreas governamentais ou federativas, aeroportos, entre outras), como o antigo galpão de areia em frente à estação Mooca da CPTM e o Hospital Militar da Área de São Paulo.

As mesmas áreas delimitadas como ZCPs pelo zoneamento revogado passam a ser parte ZC (Zona de Centralidade) e parte ZEU (Zona Eixo de Estruturação Urbana). As ZCs visam promover atividades típicas em áreas centrais de bairro como o comércio e serviço, com um aumento razoável da densidade construtiva comparado às zonas mistas. Já as ZEUs, assim como as antigas ZCPs, tem um vínculo direto com as questões de mobilidade e transporte, assim como um estímulo ao aumento da densidade construtiva, populacional e habitacional.

Surge também no atual zoneamento a presença das ZEIS-3 (Zonas de Interesse Social), nos trechos predominantemente ociosos do bairro, como a quadra das antigas oficinas da Light e o IAPI Várzea do Carmo. As ZEIS-3 são comumente estabelecidas em regiões com um considerável número de imóveis caracterizados como ociosos, subutilizados, encortiçados ou em degradação em regiões abastecidas com certo grau de infraestrutura. Por fim, nota-se que não há novas mudanças significativas no remanescente do bairro, que ainda permanece como uma ZM (Zona Mista).

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Densidades e aspectos socioeconômicos

A vulnerabilidade do IPTU, registrada pelo Setor Censitário de 2010 é predominantemente homogênea, estando entre “baixíssima vulnerabilidade” a “vulnerabilidade baixa”, conforme classificado pelo IBGE. Os trechos de vulnerabilidade baixa estão predominantemente localizados nas quadras de tipologia residencial operária e as quadras de uso predominante industrial, enquanto os de baixíssima vulnerabilidade estão localizados predominantemente nas quadras que já passaram pelo processo de verticalização.

Os trechos onde prevalece uma maior taxa da densidade habitacional estão localizados nos núcleos de cada distrito, porém sempre afastados de barreiras físicas, compreendidas como viadutos, elevados e vias de grande porte.

Nota-se no mapa 04 (pág. 91) que no trecho da Av. do Estado que cruza o perímetro do bairro do Cambuci há um valor baixo de densidade habitacional, exceto pela quadra da Rua Luís Gama, Avenida do Estado e Rua Alexandre Levi, que expressa um valor razoável de densidade habitacional comparado ao seu entorno no trecho sul da Av. do Estado, onde encontra-se o condomínio residencial ‘Reserva das Palmeiras’.

Nota-se também que a densidade habitacional neste mesmo trecho aumenta gradativamente conforme se aproxima dos núcleos de cada distrito no invólucro da antiga Mesbla Veículos, e o único ponto onde há um valor razoável de densidade habitacional ao longo do perímetro sul da Av. do Estado, é aquele ocupado pelo IAPI Várzea do Carmo, projeto do arquiteto Atillio Correa Lima, lindeira ao imóvel em questão. Em geral, os pontos de maior densidade habitacional, de acordo com os dados do IBGE, são condomínios residenciais verticais e cortiços.

A vulnerabilidade social causada pelo IPTU, de acordo com os dados do Setor Censitário de 2010, apresenta certa homogeneidade ao longo do distrito. A média geral do invólucro da antiga Mesbla Veículos é uma “vulnerabilidade baixa”.

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O trecho mais desocupado, tendo uma densidade habitacional variante de 0 à 100 hab/he, é justamente as áreas lindeiras a Av. do Estado, assim como a área lindeira a ferrovia, entre o limite do distrito com a Mooca. O remanescente da região apresenta uma densidade mais homogeneizada, variante entre 50 à 150 habitantes por hectare, não sendo significativa para a região do centro expandido. Ao que tudo indica, a baixa densidade demográfica na região não é fruto de limitações das tipologias operárias remanescentes, mas sim consequência das barreiras físicas do entorno, assim como porções de áreas predominantemente utilizadas como galpões, depósitos, e edifícios ociosos.

No mapa 05 (pág. 93) nota-se um polo com uma considerável quantidade de cortiços na divisa de distritos entre o Cambuci e a Liberdade, que conforme o mapa da página anterior é um dos pontos que apresentam maior quantidade de densidade habitacional e um dos pontos onde a vulnerabilidade estabelecida pelo IPTU passa de “baixa” à “média”. Assim como grande parte da região do centro expandido abriga diversos cortiços, o mesmo ocorre no interior do Cambuci.

Uma primeira hipótese seria a alta demanda na região central, que sugere que a proximidade em relação ao centro da cidade de São Paulo leva a uma necessidade natural dos indivíduos de morarem próximos ao local de trabalho, principalmente indivíduos vindos de municípios vizinhos (devido a locomoção e mobilidade). Levando em conta a morfologia urbana nesta região, onde ainda predomina o primeiro loteamento voltado principalmente à moradia operária, os lotes dispostos em “filetes” (tipologia retangular esbelta) que ocupam majoritariamente a região abrigam tipologias residenciais horizontais.

A segunda hipótese, ainda relacionada à primeira, seria a de que, dada a alta demanda do centro, os proprietários destes imóveis encontraram um modo de faturar com a exploração do imóvel em relação a situação urbana, assim como aos indivíduos que tem maior necessidade de habitar a região.

Equipamentos Urbanos e Atrativos Metropolitanos

No mapa elaborado para mostrar equipamentos e pontos de interesse (mapa 06, pág. 95), nota-se primeiramente que a área sudoeste à Av. do Estado é mais bem abastecida comparada com a área nordeste. Nota-se que, embora não haja distância geográfica, a Av. do Estado atualmente é uma grande barreira física, havendo pouquíssimas maneiras de cruza-la além das poucas passarelas dispostas ao longo de seu perímetro, tanto para veículos quanto para pedestres, dada a presença do dique sobre o rio Tamanduateí, atualmente utilizada pelo Expresso Tiradentes.

Embora a área em geral seja razoavelmente abastecida por equipamentos de educação de ensino médio e fundamental, são majoritariamente particulares e inacessíveis a certa parcela da população local. Dentro do recorte de estudo, há apenas um equipamento voltado a cursos profissionalizantes. Não existem unidades de ensino superior na região do recorte de estudo, apenas nas circunvizinhanças como a Aclimação onde há uma faculdade de tecnologia voltada a ciência da computação e tecnologia da informação (TI), a universidade Anhembi Morumbi da região da Mooca e Catumbi, e no limite do bairro da Liberdade com o bairro do Bixiga, razoavelmente abastecidos por unidades de ensino superior. Como já dito anteriormente, há uma enorme presença de instituições religiosas, incluindo sinagogas e mes-

quitas. Predominam, porém, as igrejas evangélicas, pentecostais, presbiterianas e baptistas, concentradas principalmente na região lindeira a Av. do Estado.

Os equipamentos voltados à cultura, entretenimento e acervos se concentram nos limites com o bairro vizinho, próximos à área central da Liberdade, e sua quantidade aumenta drasticamente ao cruzar para o lado oeste da Av. 23 de Maio. Há uma boa distribuição dos equipamentos ligados à saúde e segurança, porém em baixa quantidade apesar da baixa densidade habitacional do bairro. A região do conjunto edificado IAPI Várzea do Carmo é uma das regiões mais bem abastecidas por equipamentos, incluindo educação, saúde e policiamento, instaladas tanto no interior do conjunto como em seu entorno imediato.

A área nordeste a Av. do Estado apresenta baixo abastecimento de educação de ensino médio e fundamental, bem como uma situação crítica em relação aos equipamentos urbanos. Além desse conflito urbano há a questão da fragmentação por conta das intervenções viárias. A área está totalmente ilhada, tanto pela Av. do Estado quanto pela Av. Alcântara Machado, assim como pela presença da ferrovia, gerando diversas dificuldades de transposição.

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Análise de Mobilidade

Como já mencionado anteriormente, a região do recorte de estudo sofreu grandes impactos com as intervenções viárias, principalmente as executadas na década de 70. A ausência de transposições, estruturas de grande porte que impactam drasticamente a paisagem onde se instalam, obstruindo a perspectiva e a percepção do indivíduo e segregando ambientes, vias automobilísticas de alto fluxo ininterruptas (que interrompem vias supostamente inferiores em uma hierarquia viária), são características de um planejamento urbano que prioriza veículos a pedestres, sendo o carro o protagonista. Estas intervenções, sejam estruturas sobrepostas como viadutos ou ampliações viárias que descaracterizam o parcelamento original deixando nesgas como vestígios, originam diversas barreiras físicas e afetam a mobilidade local.

porções. A porção norte dificilmente se relaciona com a porção sul, apesar de não existir distância geográfica entre ambas, enfatizando a fragmentação do bairro.

A mobilidade está diretamente relacionada e associada a acessibilidade. Apesar do intuito do plano do Expresso Tiradentes de ampliar a mobilidade, a acessibilidade em escala local fica comprometida. No caso do recorte de estudo, é evidente que a estrutura do dique sobre a Av. do Estado cria uma ruptura do tecido urbano da região, fragmentando o bairro e prejudicando drasticamente os fluxos de uma parte à outra. Para o transeunte pedestre há apenas duas transposições entre a área norte e a sul do Cambuci, ao longo da Av. do Estrado, com um intervalo de cerca de 1000 metros entre elas.

Como se não bastasse a Av. do Estado, o trecho norte do distrito se fecha e se delimita por conta do eixo Leste-Oeste, na altura da Av. Alcântara Machado. Ao Leste, a presença da Ferrovia que em partes pode ser comparada ao recorte da Av. do Estado carece de transposições e tem caráter inseguro.

A quantidade de conexões viárias neste trecho equivale à quantidade de transposições, porém a distância entre as atuais conexões viárias no recorte da Av. do Estado pertencente ao distrito do Cambuci chega a ser cerca de 2500 metros, um intervalo cerca de cinco vezes maior do aquele anterior à implantação da estrutura sobre o Rio Tamanduateí, e cerca de seis vezes maior que os intervalos entre as conexões viárias na Av. 23 de Maio.

Uma curiosidade é a de que o atual intervalo é semelhante ao implantado em diversas autoestradas, e uma controvérsia é a de que é superior à média da marginal tietê.

É visualmente perceptível que há uma segregação do bairro, assim como distrito do Cambuci que o subdivide em duas

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Atualmente, a estrutura do dique sobre a Av. do Estado é utilizada principalmente pelo Expresso Tiradentes, um sistema de transporte que pode ser comparado ao BRT. Entretanto, esse sistema não atende as demandas que no passado justificaram a implantação do eixo, e sua presença provoca uma degradação progressiva. Além de ser utilizada pelo Expresso Tiradentes, é usada como via de trânsito rápido em mais quatro faixas, duas no sentido Noroeste e as outras duas no sentido Sudeste; porém, em relação ao tráfego, possui um problema crônico de lentidão e engarrafamentos.

A partir de um método empírico, e para fins de esclarecimento acerca da hierarquia viária do recorte de estudo, as vias estabelecidas como “estruturais” são as vias que exercem um papel metropolitano, conectando as extremidades da metrópole ao centro da cidade.

Quanto a rede de ônibus que atende o distrito do Cambuci, ao todo existem quatro corredores de ônibus, cinco considerando o Expresso Tiradentes da SPTrans. Os quatro corredores são: o da Rua Clímaco Barbosa que se conecta à região da Mooca; o corredor da Rua dos Lavapés e Rua da Independência que se conecta à região do Ipiranga; na Av. Lins de Vasconcelos que se conecta ao Largo do Cambuci, uma praça que é um dos principais núcleos do bairro; e o corredor da Rua Muniz de Souza, que conecta o bairro do Cambuci à região da Aclimação e ao bairro da Liberdade.

A maioria dos pontos de ônibus atualmente implantados estão dispostos majoritariamente na região dos corredores, e os remanescentes em vias em que há faixas de ônibus.

As faixas de ônibus estão mais uniformemente implantadas no perímetro do distrito porém, ao observar o mapa, nota-se que não há nem pontos de ônibus nem faixas de ônibus em grandes porções de área, principalmente nas regiões norte do distrito, ilhadas pelas duas avenidas e pela ferrovia, noroeste na divisa com a Sé, e centro-leste nas quadras posteriores a antiga Mesbla Veículos.

A área do distrito não possui estações de Metrô e CPTM implantadas; as linhas de Metrô que passam na circunvizinhança do distrito atualmente são a Linha 1 – Azul (estações São Joaquim, Liberdade e Sé) e a Linha 3 – Vermelha (Estações Sé e Dom Pedro II). Há, no entanto, linhas da CPTM, com a contrastante presença da ferrovia da Linha 10 – Turquesa, onde localiza-se a Estação da Mooca, na divisa de distrito entre o Cambuci e a Mooca.

Por fim, de acordo com os mapas, apesar da localização do distrito na região do centro expandido, pertencente a subprefeitura da Sé, a região do recorte de estudo enfrenta um conflito de mobilidade e acessibilidade , que é uma das justificativas para o caráter de ‘cidade de interior’ do bairro dentro de um núcleo metropolitano.

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Aspectos socioambientais

A topologia do bairro e do distrito do Cambuci se divide entre dois tipos predominantes. Uma área mais íngreme e de solo mais rígido presente nos miolos de bairro, conforme se aproxima das colinas e de uma cota mais alta da cidade nas proximidades com outros distritos, e uma área predominantemente plana que se expande além do distrito do Brás e circunda tanto o rio Tamanduateí como a ferrovia.

A região do imóvel objeto deste estudo está situada em uma área sujeita a inundação, devido a própria topografia, assim como à ocupação dos leitos originais do Rio Tamanduateí. Curiosamente, o trecho demarcado como área sujeita a inundação pela carta geotécnica é justamente onde o curso original do Rio Tamanduateí transitava antes de sua retificação no início do séc.

XX. Outros pontos de áreas sujeitas a inundação são encontrados ao longo dos córregos.

No bairro do Cambuci, em especial na região do Glicério ou Várzea do Carmo, as enchentes, inundações e alagamentos são conflitos ambientais históricos, desde os primeiros processos de retificação do Rio Tamanduateí e posteriormente potencializados com a canalização dos córregos que nele desaguavam, como o córrego Aclimação que teve um importante papel histórico vinculado à Rua dos Lavapés. Até hoje o problema acontece com certa frequência, porém, não foram implantadas quaisquer medidas de prevenção ou projetos de requalificação ambiental.

A arborização viária no bairro é razoável, sendo predominante nas proximidades do miolo de bairro e quase nula nas vias de grande porte como a Av. do Estado. Como dito anteriormente, a arborização viária era significativa na Av. do Estado, assim como na margem interna do Rio Tamanduateí, que desapareceu com a chegada da estrutura do “tampão”.

A presença de áreas verdes e áreas permeáveis é outro ponto que chama a atenção, pois não há nenhuma área verde significativa, e as áreas permeáveis em grande maioria são compostas de terrenos ociosos, como a área das antigas oficinas da

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Light, na Rua dos Lavapés. Os trechos onde se encontra uma maior quantidade de área verde são os da Praça Hélio Ansaldo, o Largo do Cambuci e paisagismo do IAPI Várzea do Carmo, assim como a Praça Nina Rodrigues que o circunda. Em relação aos outros distritos, a massa verde passa a ser mais intensa nas proximidades com os bairros da Aclimação e Ipiranga.

Os espaços descampados, praças e abrigos sob os viadutos são comumente ocupados por acampamentos com uma considerável quantia de moradores de rua, principalmente na área que circunda a Av. do Estado. Há uma outra condição que também chama a atenção: os “moradores de rio”, que se abrigam sob a estrutura do “tampão” na Av. do Estado ocupando parte de uma região subterrânea.

Em uma análise subjetiva da ambiência no espaço urbano do Cambuci, foram mapeados em um mapa ‘psicogeográfico’ os espaços: desagradáveis, referentes à áreas que geram insegurança; espaços neutros, referentes àqueles que não geram nenhuma emoção em especial; espaços agradáveis, referentes aos espaços hospitaleiros e convidativos. Esta análise se baseia na definição de ambiência descrita em “Recomendação de Nairobi”, mesclados a certos conceitos de Gordon Cullen no livro “Paisagem Urbana”, de 1971. Esta análise também conta com uma sobreposição georreferenciada de diferentes bases de dados, como da Secretaria de Segurança Pública, relacionadas a infrações e ocorrências como assaltos, furtos, assassinatos, agressão física ou verbal, assédio sexual, xenofobia, racismo, homofobia e transfobia ocorridos nos últimos 3 anos.

A partir de uma leitura do recorte do estudo, este mapa (mapa 13, pág. 113) estabelece uma hierarquia de ambiente inóspito à ambiente agradável com base na tipologia viária, conforto visual, ausência de vegetação, conforto termo acústico, e nível de degradação. Como fica evidente no mapa, a região mais inóspita do recorte de estudo é justamente a Av. do Estado, e ao redor desta, assim como ao redor de outras vias estruturais, encontram-se os locais com maior quantidade de assaltos, homicídio, dentre outros.

Figura 85: Enchente no Cambuci após retificação do Rio Tamanduateí| Fonte: Acervo Instituo Moreira Salles Figura 86: Alagamento no Cambuci, na região do Glicério 1964 | Autoria Desconhecida | Fonte: Pinterest Figura 87: Alagamento no Cambuci, na região do Glicério 2016 | Fonte: Uol Notícias 83

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Capítulo V:

O Patrimônio em Questão

Foto 110 de abertura do Capítulo: Vista para o conjunto da antiga Mesbla Veículos. Acervo e elaboração do autor

“É dever nosso preservar recursos materiais e as condições ambientais em sua integridade, sendo exigido métodos de intervenção capazes de respeitar o elenco de elementos componentes do Patrimônio Cultural. É dever, também, de preservar o saber brasileiro fazendo com que os conhecimentos de fora valorizem-no em vez de anularem-no, o que anda cada vez mais difícil (...)” (LEMOS, A. Carlos. O que é Patrimônio Histórico. p.25)

O Patrimônio Industrial na região do Cambuci

Como colocado no capítulo I, a região do Cambuci ainda guarda vestígios de uma era industrial paulistana, seja pela presença das industrias propriamente ditas ou pelas tipologias residenciais operárias, típicas entre toda região centro-leste. O Cambuci, assim como a região do Brás e da Mooca, era o local onde diversas fábricas com valor cultural e arquitetônico se instalaram e que foram demolidas nas últimas décadas para a construção de empreendimentos condominiais residenciais, subestações de energia elétrica e lojas de materiais de construção.

Antes do atual cenário de ‘amnésia’ urbana quase integralmente consolidada na região do Cambuci, é importante ressaltar que ainda está na salvaguarda da memória coletiva do bairro parte de sua identidade e expressão originais; uma região rica de patrimônio industrial.

“O patrimônio industrial é uma das criações do patrimônio cultural mais recente. Emerge na Europa e no mundo depois da 2ª Guerra Mundial, associado a uma significativa transformação econômica, social e tecnológica que alterou os paradigmas das sociedades industriais dos séculos XIX e XX, herdeiras da Revolução Industrial britânica. ” (CUSTÓDIO, Jorge. 2015)1

“Todo este conjunto de bens, recentemente designados por ‘bens industriais’ ou ‘bens da industrialização’ tem um caráter comum entre si: resultaram da introdução de sistemas técnicos e de inovação, expõem a natureza e a valorização da divisão do trabalho à mão e à máquina, em novos tipos de espaços de laboração, cuja identificação se impõe para conhecer os diferentes sistemas de organização industrial. Por sua vez, trata-se de bens sujeitos a uma constante transformação da produção, facto que os ia tornando obsolescentes, num ritmo mais vertiginoso que a exposição ao tempo dos edifícios antigos, gerando uma situação rápida de desvalorização funcional” 2

Primeiramente, um dos fatores que contribuíram para este caráter industrial da região foi a presença da ferrovia, no atual limite entre os distritos do Cambuci e da Mooca, que teve um papel fundamental para o desenvolvimento econômico da cidade, sendo historicamente a ‘São Paulo Railway’ apelidada, na época de sua implantação, como Inglesa.

“(...) O Barão de Mauá consegue do Império, em 1856, uma concessão para construir uma estrada de ferro em São Paulo, que ligaria Santos, no litoral, até a região de Rio Claro, no interior da província. Para os trilhos se consolidarem, Mauá aliou-se aos ingleses e é então que, em 1859, surge a The São Paulo (Brazilian) Railway Company Limited , empresa que seria responsável pela implantação da primeira ferrovia do solo paulista: a São Paulo Railway. (...) em 16 de fevereiro de 1867, a São Paulo Railway é inaugurada oficialmente. A data marcaria o início de uma transformação surpreendente no território paulista. Conhecida apenas pelas suas iniciais, SPR – ou mesmo pelo seu apelido, Inglesa –, a estrada de ferro levava modernização por onde passava. Os trilhos do progresso mudariam a economia, a geografia, a cultura e até a sociedade” (ANTUNES, Camila. 2014)3

A ferrovia é um dos principais marcos da chegada da era industrial a São Paulo, e sua implantação propiciou o surgimento de fábricas, oficinas, armazéns, dentre outras tipologias industriais, assim como vilas operárias geralmente próximas ou até mesmo lindeiras à estas fábricas. Vale lembrar também que no Cambuci, em especial nas proximidades com a região da Várzea do Carmo, este crescimento sofreu retardos por conta da dificuldade em lidar com as inundações do Tamanduateí.

“A Mooca se transformou em centro importante, necessitando de conexões por meio de transporte público. Por isso, em 1910, foi concedida aos Irmãos Fatchi e Cia., fabrica situada na Vila Prudente, licença para a construção de uma linha de bon-

1. CUSTÓDIO, Jorge. Património industrial: conceitos de hoje, valores de futuro. Revista Património, Lisboa, n. 3, p.81, dez. 2015 2. CUSTÓDIO, Jorge. p. 87 3. ANTUNES, Camila. Entre trilhos: uma viagem de histórias pela primeira estrada de ferro paulista, a São Paulo Railway. 2014 p. 17 111

des para transporte de materiais e passageiros da Mooca à Vila Prudente. No ano seguinte foi dada uma concessão para uma linha de bondes ligando a Mooca ao Cambuci” (LOPES, Rodrigo Herrero. 2011)4

Consequentemente, em um curto período o cenário urbano da região mudou totalmente, surgindo então uma identidade para toda região centro-leste, marcada pela era industrial e a presença de diversos imigrantes, os quais em grande parte eram os próprios operários.

Como resultado deste processo histórico marcado por uma era industrial, foi consolidada a parte morfológica da paisagem cultural da região do Cambuci assim como de grande parte da região centro-leste, um cenário urbano que expressava a origem do crescimento econômico da cidade que um dia se tornaria a metrópole como a conhecemos hoje.

Portanto, não apenas por uma questão de vulnerabilidades, mas também por uma questão cultural e pela influência exercida pelo CIAM em escala internacional – que faz uma forte apologia ao perigoso processo de renovação –, a região rica em patrimônio industrial foi mudando drasticamente, e ano após ano desapareciam e ainda desaparecem bens imóveis testemunhos desta paisagem cultural, que até pouco tempo era resultado de um todo, fruto de uma ambiência típica, um cenário cultural, uma expressão urbana.

“(...) a evolução e as revoluções da arte e do gosto, cujos exclusivos e entusiasmos determinaram fases distintas no tratamento e seleção dos monumentos históricos a proteger, iam mesmo, no caso das vanguardas arquitectónicas do século XX, até a militância contra a conservação dos monumentos antigos: o Plan Voisin de Le Corbusier (1925) arrasava a velha Paris e não deixava subsistir senão uma meia dúzia de monumentos. Esse manifesto do movimento moderno fez escola após a Segunda Guerra Mundial e inspirou as ‘renovações’ destruidoras levadas a cabo até aos anos sessenta do século XX e para além” (CHOAY, Françoise)5

Em questão de poucas décadas quase todo patrimônio industrial desapareceu, não somente por conta da especulação imobiliária, de um planejamento urbano cauteloso, ou de um modelo cultural que priorizava os aspectos econômicos, mas 4. LOPES, Rodrigo Herrero. Face Leste: revisando a cidade. São Paulo, 2011. p. 40 5. CHOAY, Françoise. Alegoria do Patrimônio, pg. 136 6. RODRIGUES, L. F. Manual de Crimes Urbanísticos. Pg. 111 112

também pela ausência da legislação de tombamento para estes imóveis. Os órgãos de preservação são relativamente recentes no país quando comparados aos países europeus e orientais, como o IPHAN que surgiu no século passado, em meados da década de 1930, com uma considerável contribuição de Mario de Andrade e Gustavo Capanema. Porém, naquela época, antes da chegada das Cartas Patrimoniais, os conceitos que orbitavam o termo patrimônio arquitetônico tinham valores diferentes. Edifícios em estilo eclético, assim como qualquer outro estilo ‘importado’, eram abominados por grande parte dos modernistas, não somente pelos arquitetos, mas também pelos poetas, jornalistas, escritores e artistas; consequentemente, tais construções não tinham méritos para serem protegidos no ‘livro do Tombo’.

A atuação do arquiteto Arnaldo Gladosch é um ótimo exemplo disso. Como já estudado no capítulo II, ele sofreu muito rechaço por “nadar contra a corrente” tão bem recebida pelos seus colegas modernistas, em um momento em que a retórica do ‘clero intelectual’ do país estabelecia apenas a apologia à cultura nacional, negando manifestações artísticas estrangeiras e incentivando, na construção civil, a estética do estilo moderno.

Em particular, a ideia de negar a cultura estrangeira soa como um grande equívoco, uma enorme contradição. Afinal, nosso país foi fruto de uma riquíssima miscigenação, um grande sincretismo religioso e ideológico, uma ‘centrífuga’ de diferentes culturas, o que deve sempre estar explicito em nosso território, sendo nosso reflexo cultural materializado.

“Se a cidade comporta diversos bairros, distintas arquitecturas projectadas por diferentes autores em diversas épocas histórias para diversas pessoas (muitas delas com pontos de vista divergentes), há que reconhecer que a estética urbana tem necessariamente uma dimensão plural, produto desses gostos subjectivos” (RODRIGUES, L. F. 2016)6

Os órgãos de preservação de escala estadual e municipal em São Paulo surgiram mais tarde. O CONDEPHAAT no ano de 1968, e o CONPRESP na metade da década de 1980. As consequências deste suposto atraso para a preservação do patrimônio são evidentes; neste meio tempo uma grande porção do patrimônio paulistano foi perdida. Além disso, somente mais tarde outras categorias de patrimônio foram incluídas como alvo de estudo e pesquisa dos órgãos de preservação, que até então privilegiava mais os imóveis que fossem marcos da arquitetura

moderna assinados por grandes nomes da arquitetura, por conta de seu ‘valor arquitetônico’, do que bens imóveis representativos com certo valor cultural e/ou histórico para as gerações vigentes.

“(...) a expansão do campo cronológico da nossa herança histórica levanta um problema inédito, o do património industrial, que, para além disso e apesar do seu nome, escapa geralmente à empresa da indústria cultural. Se eu evoco as condições da sua reutilização em primeiro lugar, é com a finalidade de mostrar que, apesar da sua denominação comum, esse património não pode e não deve ser confundido, como é muitas vezes, com o património da era pré-industrial” (CHOAY, Françoise)7

Neste segundo período, onde estabeleciam-se novos ideais para a preservação, a situação de diversos bens imóveis se comparava a de ‘um cego em tiroteio’, havendo em muitos casos uma manobra sorrateira dos promotores imobiliários e proprietários, que optavam pela demolição assim que surgisse qualquer hipótese de um possível tombamento por conta do receio de novas restrições construtivas e de uma suposta desvalorização monetária. Sendo assim, a partir do momento que

o bem imóvel perdia a relação de logística econômica positiva e tornando-se ocioso, e que sua utilidade para o proprietário fosse comprometida, a venda do terreno para um novo proprietário – dada a grande demanda pelo solo –, resultava quase sempre na demolição, afinal reformas ou ‘retrofit’ (a ideia de explorar táticas de modernização do edifício em um projeto de reforma) eram até então incomuns na construção civil empreendida pelo mercado imobiliário.

“Toda ação humana ganha em honra, em graça, em toda a verdadeira magnificência, por sua consideração pelas coisas que virão. É a visão distante, a paciência serena e confiante, que, acima de todos os outros atributos, distancia o homem do homem, e o aproxima de seu Criador; não existe ação ou arte, cuja grandeza não possa ser medida por esse critério. Assim, quando construirmos, lembremo-nos de que construímos para sempre. Que não seja pelo deleite presente, nem para o uso presente apenas (...)” (RUSKIN, John)8

Atualmente, conforme consta no mapeamento de bens imóveis tombados assim como os ‘bens imóveis representativos’ delimitados por ZEPECs (Zona Especial de Preservação

Figura 88: Industria Villares entre a década de 1980 e 90, demolida para a construção de condomínios verticais. Nota-se a antiga mesbla Veículos ao fundo. | Fotografia de Carlos Fatorelli

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Cultural) pelo zoneamento vigente, já mostrado no capítulo IV, há uma quantidade ínfima de imóveis estabelecidos como patrimônio pelos órgãos de preservação, tendo destaque apenas a Igreja N. S. da Glória, na região do largo do Cambuci, e outros imóveis que aparecem nos limites de outros distritos, como a antiga Fábrica de Tecidos Labor, no limite com o Brás, e a antiga fábrica da Antarctica e estação Mooca, no limite com a Mooca. É assombroso o resultado da comparação entre o Cambuci, com menos de 10 imóveis tombados, com o bairro ao Bixiga, também na região do centro expandido, com cerca de 900 imóveis tombados, como consta na Resolução 22/02 do CONPRESP.

Porém, apesar de tudo, em 2016 surge enfim uma nova possível garantia de preservação de parte do patrimônio remanescente do Cambuci. Trata-se da Resolução nº 04 do CONPRESP, a saber:

“CONSIDERANDO que os imóveis listados, localizados no Bairro do Cambuci são exemplares arquitetônicos que marcaram o território paulista e a paisagem urbana; CONSIDERANDO que essas construções são remanescentes e indutoras de ocupação urbana iniciada no final do século XIX e

7. CHOAY, Françoise. Alegoria do Patrimônio, pg. 234 8. RUSKIN, John. A Lâmpada da memória, Cap. X, p. 69 9. CONPRESP, RES. 04/16. São Paulo 114

meados do século XX, marcando a formação histórica da região do Cambuci em suas diversas fases; CONSIDERANDO que essa diversidade arquitetônica é característica das construções do Bairro do Cambuci e agrega valor afetivo e referencial para a população local; CONSIDERANDO os estudos elaborados pelo DPH que reconhecem a importância cultural do Conjunto de Imóveis do IGEPAC – Complementar do Bairro do Cambuci; e CONSIDERANDO o contido no processo administrativo nº 2015-0.318. 472-9.

RESOLVE: Artigo 1º- ABRIR PROCESSO DE TOMBAMENTO para os IMÓVEIS LISTADOS NO QUADRO I, situados no BAIRRO DO CAMBUCI, pertencente à Subprefeitura da Sé. (...)”9

A resolução lista, no “Quadro I”, os números SQL (setor, quadra e lote) relativos ao conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos de São Paulo, assim como a Gráfica Municipal de São Paulo, a belíssima Mesquita Brasil, recentemente restaurada, parte do conjunto do IAPI Várzea do Carmo, e outros 19 imóveis, para seja aberto o processo de tombamento.

Figura 88: Mesquita Brasil (que entrou em processo de tombamento na mesma resolução), vista pelo viaduto da Av. do Estado, 2017 | Fonte: Acervo do Autor Figura 89: O extenso muro dos condomínios provenientes da demolição da Industria Villares, vizinha a antiga Mesbla Veículos, e a perda de relação com a Luís Gama. 2017 | Acervo do Autor Figura 90: Vista da Torre ao conjunto IAPI Várzea do Carmo, pela Passarela do Expresso Tiradentes, 2017 | Acervo do Autor

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Figura 91: Recorte da Ortofoto de 1940 - 2 anos antes da construção da antiga Mesbla Veículos assim como o conjunto IAPI Várzea do Carmo | Fonte: VASP Figura 92: Recorte da Ortofoto de 1954 - nota-se ambos projetos já construídos, e outra importante curiosidade: a Av. do Estado repleta de arborização viária | Fonte: VASP Figura 93: Recorte da fotografia área de 1958 - nota-se a ampliação no “bloco 6” co conjunto da Mesbla Veículos e a consolidação da indústria Villares | Fonte: Geoportal Figura 94: Recorte da Ortofoto de 2000 - nota-se a presença do “tampão” sobre a av. do Estado assim como a demolição da industria villares para a construir um condomínio. | Fonte: VASP 116

Figura 95: Mapa de imóveis construídos e demolidos entre 2002 à 2018, elaborados pelo autor a partir da sobreposição de fotosatélites do GoogleEarth™.

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“Ambiência: Para os casos dos conjuntos históricos ou tradicionais, quadro natural ou construído que influi na percepção estática ou dinâmica desses conjuntos, ou a eles se vincula de maneira imediata no espaço, ou por laços sociais, econômicos ou culturais” (RECOMENDAÇÃO DE NAIROBI – UNESCO, 19ª Sessão, Nairóbi, 1976)

Relações de Ambiência em um entorno imediato (2017)

A relação do antigo conjunto edificado com seu entorno pode ser analisada a partir de três partes distintas, uma para cada rua que circunda o conjunto. Tratam-se da Rua Luis Gama, a Rua Alexandre Levi, e a Av. do Estado. A Avenida do Estado faz, atualmente, um drástico contraste com as demais partes. A presença do “tampão” obstrui totalmente a vista do transeunte em ambas as margens do Tamanduateí. A relação visual preexistente, envolvendo alinhamentos e enquadramentos a partir do tecido urbano entre ambas as margens do rio, foi perdida.

Apesar de uma generosa calçada com aproximadamente 13 metros de largura, há um gradil que foi implantado há cerca de duas décadas no limite do lote, com o intuito original de afastar a presença de moradores de rua do final da década de 1990, remanescendo apenas cerca de 3 metros, uma largura ligeiramente estreita para calçadas de vias de grande porte como a avenida em questão. Há um ponto de ônibus implantado na calçada que durante os horários de pico gera um certo estreitamento por conta do acúmulo de pessoas, dificultando a passagem. A pavimentação em geral está negligenciada e uma considerável quantia de lixo é visível.

Quanto à outras questões sensoriais, há um forte ruído por conta do fluxo na avenida, que se intensifica ao entardecer, e em determinados pontos é perceptível um cheiro de urina impregnado. Há também uma quantidade ínfima de animais sinantrópicos como ratos, periodicamente visíveis entre os nichos do “tampão”. Em relação às demais ruas do entorno imediato, a Av. do Estado é mais quente, e não possui arborização viária apesar de um dia ter sido predominantemente arborizada, tanto nas calçadas quanto na margem do Tamanduateí.

Em uma relação de gabaritos de altura, há uma relação ligeiramente harmônica entre o conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos e o IAPI Várzea do Carmo, onde a antiga Mes-

bla Veículos, depois da extensão horizontal dos galpões marca a esquina com a torre, que é o elemento vertical de destaque da vista, razoavelmente mais alta que os edifícios do IAPI Várzea do Carmo. Outro elemento que não passa desapercebido é a passarela na cor amarela, projetada por Ruy Ohtake e replicada algumas vezes ao longo da Av. do Estado para o Expresso Tiradentes.

Na Rua Luís Gama há primeiramente a relação com o IAPI Várzea do Carmo, obra moderna inconcluída do arquiteto Attilio Correa Lima, concebida na mesma década da antiga Mesbla Veículos de São Paulo, portanto também inserida na paisagem cultural aqui defendida, sendo então uma vizinha de longa data, assim como a antiga fábrica da Indústria Villares, demolida para a construção dos condomínios residenciais da quadra.

“O grandioso conjunto da Várzea do Carmo (1942), se totalmente executado, abrigaria uma população de 22.000 habitantes numa área de 185.000 m2, adotando como densidade final a relação de 1250 habitantes por hectare, índice considerado alto pelo urbanista, justificando-se que ‘a adoção de planos com índices baixos é ilusória, pois o desenvolvimento da cidade e o tempo paulatinamente forçarão o plano inicial aos imperativos de valorização de terrenos e de adensamento da população, de forma desordenada e imprevisível, de vez que não obedeceu a um plano previamente estudado e projetado’. Tal adensamento se daria mediante a construção de blocos de apartamentos de doze e/ou quatro pavimentos, servidos por clube, cinema, restaurante, hotel, posto de gasolina, comércio, serviços gerais, consultórios, escola, creche, posto de puericultura. Todas as edificações ficariam isoladas dentro de parques, prefigurando a unidade de vizinhança, décadas mais tarde adotada em Brasília. (...) Preconizava Correia Lima uma cidade com densidade de quinhentos habitantes por hectare, com 17,5% de área construída e 82,5% de terreno livre, com índice de 20m2 de área verde por habitante. As quadras teriam as dimensões da ordem de 400m

10. SEGAWA, Hugo. Viver coletivamente: das vilas operárias à Carta de Atenas. Projeto, São Paulo, 1987

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Figura 91: Moradoras do conjunto IAPI Várzea do Carmo, com a torre da Mesbla Veículos ao fundo. Meados da década de 1970 | Fotografia de Raul Garcez

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de extensão (200m a menos que uma unidade de Brasília) com circulação de veículos diferenciada de pedestres e com rede de pistas para ciclistas. Previam-se comércio, escolas e áreas de recreação” (SEGAWA, Hugo.1987)10

Em relação ao entorno imediato do conjunto, a Rua Luís Gama tem um caráter predominantemente local que, provavelmente, hoje seria muito distinto caso o ‘projeto de Brasília’ fosse integralmente construído. Há uma baixíssima quantia de transeuntes, sejam veículos ou pedestres, e o único trecho onde passa a surgir certo movimento é a partir do cruzamento com a Rua Silveira da Mota, no cruzamento com a Rua Demóstenes Marquês, onde começa a delimitação do IAPI Várzea do Carmo.

Há também a presença de uma quadra em frente ao conjunto,

onde há diversas tipologias operárias em bom estado de conservação, voltados para a Rua Viêira Ravasco e em frente ao IAPI Várzea do Carmo.

A questão mais incômoda e menos receptiva da Rua Luís Gama no entorno imediato é a relação da empena cega do conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos com os condomínios residenciais, que nesta rua não criam aberturas em sua implantação. A delimitação de seus enormes estacionamentos no pavimento térreo criam apenas espaços ociosos com um extenso muro de quase 4 metros de altura que, assim como os muros do IAPI Várzea do Carmo, é coberto por arame farpado e possui aproximadamente 150 metros de extensão, impossibilitando qualquer possibilidade de relação com a rua.

Figura 92: Vista interna da Passarela próxima ao conjunto da antiga Mesbla Veículos, 2017 | Fonte: Acervo do Autor

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Há pouca arborização viária na rua, porém há uma boa quantia de área verde no interior dos muros das quadras pertencentes ao IAPI. Conforme a Rua Luís Gama se aproxima da Av. do Estado, a poluição por lixo na rua ganha intensidade e surgem algumas cabanas de moradores de rua, em especial sob a marquise do conjunto da antiga Mesbla Veículos.

Na Rua Alexandre Levi, em comparação com as demais ruas, há um belo tratamento de pavimentação nas calçadas e uma razoável quantidade de arborização viária. Há também a presença das portarias dos demais condomínios residenciais voltados à classe média, e um maior número de transeuntes se comparado à Rua Luís Gama. Em frente ao conjunto, onde haviam pequenas oficinas dentre outras tipologias industriais, há

um terreno feito a partir de um remembramento massivo de vários lotes, em processo de terraplanagem. A seguir do terreno há, em frente aos condomínios, uma parcela das tipologias originais onde passa a haver um maior movimento.

Em outra relação de gabaritos de altura, há quase um visível escalonamento entre os blocos mais altos da antiga Mesbla Veículos com os demais blocos dos condomínios, que aumentam de gabarito conforme se aproximam da Rua Silveira da Mota.

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“Não acusemos, pois, esses espíritos imobilizados na contemplação do presente ou apegados a preconceitos paramentados com o nome de tradição, fechado os olhos diante das riquezas do passado, e pretendendo datar a humanidade a partir do dia em que nasceram (...) Mas o que dizer desses fanáticos, pesquisadores de alguns tesouros, que não permitem que se mexa num solo que eles negligenciaram, considerando o passado como uma matéria a ser explorada através de um monopólio, e declarando em alto e bom som que a humanidade só produziu obras boas de se coligir em certos períodos históricos por eles delimitados (...)” (VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Restauração, pg. 35)

A antiga Mesbla Veículos como Patrimônio

Mesmo que o conjunto edificado ainda não esteja tombado, a partir do momento em que se compreende a originalidade dos conceitos difundidos por Arnaldo Gladosch na composição do conjunto monumental e a sua relação com a cidade, pertencendo a um estilo único que pode ser considerado uma centrífuga dos conhecimentos adquiridos pelo arquiteto em sua rica formação acadêmica; expressando o reflexo de uma paisagem cultural da década de 1940, assim como parte de um cenário urbano que hoje está fragmentado; assim como por um grande valor afetivo ainda na salvaguarda das gerações que a vivenciaram; a antiga Mesbla Veículos de São Paulo é vista neste trabalho como patrimônio histórico, remanescente de uma era industrial da cidade de São Paulo na região centro-leste.

“A humanidade, que toma cada dia consciência da unidade dos valores humanos, considera-os como um património comum e, face às gerações futuras, reconhece-se solidariamente responsável pela sua salvaguarda. Ela compromete-se a transmiti-los em toda a riqueza de sua autenticidade” (Carta de Veneza, 1964)11

Compreendida então como patrimônio, deve-se em primeiro lugar descartar sua demolição assim como a descaracterização do conjunto edificado conforme recomendações das cartas patrimoniais, e deve-se estabelecer diretrizes para possíveis transformações futuras que venham então a analisar cautelosamente a escolha dos conceitos de intervenção, sempre respeitando composição original e a ambiência propiciada pela mesma.

“Do restauro à reutilização, passando pela encenação e pela animação, a valorização do património apresenta formas múltiplas, de contornos imprecisos, que muitas vezes se confundem ou se associam” (CHOAY, Françoise.)12

A partir deste momento, quando é necessário analisar cautelosamente quais seriam os conceitos de intervenção “de restauro para reutilização”, questionaríamos quais conceitos, entre as possíveis correntes do restauro, poderíamos adotar para uma intervenção no imóvel em questão.

Como coloca Choay13, há duas doutrinas opostas que são representadas por grandes teóricos, sendo Ruskin e Morris representantes ingleses de uma doutrina “anti-intervencionista”, e Viollet-le-Duc e Gilbert Scott representantes europeus de uma doutrina “intervencionista”.

“Para Ruskin e Morris, querer restaurar um objeto ou um edifício é ferir a autenticidade que constitui o seu próprio sentido. Parece que para eles o destino de qualquer monumento histórico é a ruína e a desagregação progressiva. (...) do lado francês, a doutrina e a prática do restauro são dominadas pela figura de Viollet-Le-Duc (...) é fácil retirar uma imagem da sua obra que o opõe, ponto por ponto, à obra de Ruskin. Desde há quase um século que a contribuição de Viollet-le-Duc é, geralmente, reduzida a uma célebre definição do seu Dicionário: ‘Restaurar um edifício é restabelecê-lo num estado completo que pode nunca ter existido num dado momento’”13.

Apesar da oposição entre os teóricos, ambos apresentam diversos conceitos inspirados em ideais muito bem defendi-

10. SEGAWA, Hugo. Viver coletivamente: das vilas operárias à Carta de Atenas. Projeto, São Paulo, 1987 11. Carta de Veneza: Carta Internacional sobre a Conservação e Restauro dos Monumentos e dos Sítios, ICOMOS, 1964 12. CHOAY, Françoise. Alegoria do Patrimônio, p. 228 13. CHOAY, Françoise. p. 158 122

dos, voltados predominantemente ao caráter historicista, porém, que se aplicam em diferentes contextos. De herança destas doutrinas, há um vasto leque de opções que não necessariamente tem de seguir à risca ambas as teorias, como foi colocado posteriormente por diferentes teóricos do patrimônio, e futuramente discutidas na elaboração das cartas patrimoniais.

A postura ‘anti-intervencionista’ marcada por John Ruskin, se seguida à risca, dificilmente poderia ser aplicada no contexto paulistano ou qualquer outro contexto de ambiente subdesenvolvido, sendo poucos os casos em que ela realmente faria sentido, como por exemplo na antiga Escola das Meninas, atualmente em ruínas e dominada pela vegetação, na Vila Maria Zélia.

Porém, pode-se adotar uma fração específica dos conceitos presentes na doutrina da consolidação da ruína, como por exemplo a intervenção nas paredes de alvenaria de tijolos da Pinacoteca de São Paulo, que pode ser associada ao mesmo ideal estético por trás da doutrina, enquanto o remanescente da intervenção discorda em todos os outros aspectos da mesma.

Assim também, a postura intervencionista marcada por Le-Duc, se seguida à risca, correria o risco de resultar em um falso histórico no que diz respeito a uma possível invenção no lugar da composição original. Porém, existem diversas outras recomendações em sua teoria que não se limitam a sua ‘definição do termo restauro’ em seu ‘Dictionnaire’, como: “Se o arquiteto encarregado da restauração de um edifício deve conhecer as formas, os estilos pertencentes a esse edifício e à escola da qual proveio, deve ainda mais, se for possível, conhecer sua estrutura, como se ele mesmo a tivesse dirigido, e adquirido esse conhecimento, deve ter à sua disposição vários meios para empreender um trabalho de recuperação” 14 assim como: “Nas restaurações, há uma condição dominante que se deve ter sempre em mente. É a de substituir toda parte retirada somente por materiais melhores e por meios mais eficazes ou mais perfeitos. É necessário que o edifício restaurado é tenha no futuro, uma fruição mais longa do que a já decorrida” (VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel.)15

Mediando ambas as teorias, surge também Camillo Boito como um ponto de equilibro e fazendo ajustes em alguns aspectos entre as diferentes doutrinas, a partir de critérios de intervenção para a conservação e restauro, “em particular a que exige que se assinale visivelmente qualquer intervenção moderna” 15 Figura 93: Escola das Meninas, Vila Maria Zélia, 2017 | Fonte: Veja SP

14. VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Restauração, p. 56 15. VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. p. 54 16. ALOISE, Julia. O Restauro na Atualidade e a Atualidade dos Restauradores. IPHAN, 2016 123

Surgem também, pouco tempo depois, os demais teóricos com abordagens não exclusivamente historicistas, como Gionvannoni e Alois Riegl. Riegl, como explicado no ‘Culto Moderno dos Monumentos’, prioriza não o valor histórico mas sim o valor que mais fizer sentido para o ‘monumento’, em especial o valor afetivo do patrimônio, uma questão fundamental. Por fim, surge posteriormente Cesare Brandi, que apesar de ter um foco mais voltado às obras de arte contribui muito para conceitos aplicáveis à arquitetura.

“Brandi é capaz de nos situar em uma postura passiva em relação à obra de arte que nos cabe restaurar – o que fizermos deve ser reversível e distinguível, declaradamente diverso do que é original e servindo somente a melhorar a leitura deste, jamais pretendendo uma maior importância que a preexistência” (ALOISE, Julia. 2016)16

Todos estes teóricos e muitos outros contribuíram para a elaboração das Cartas Patrimoniais, que foram discutidas por séculos, e evidenciam que, apesar de haver diferentes teorias, todas sabiamente defendidas, as intervenções partem também uma questão de ideal, partem do partido do projeto.

Portanto, o exercício da sensibilidade precisa ser aplicado a fim de interpretar quais e como seriam aplicadas estas intervenções, em qual ‘locus’ elas se relacionam, quais os status e significados do patrimônio em questão. Note-se que o mesmo conceito de intervenção não precisa ser necessariamente aplicado homogeneamente em todo o projeto.

Por fim, a partir de uma análise cautelosa das recomendações e conceitos destes diferentes teóricos do restauro, é proposta para o projeto a adoção de múltiplas escolhas, estabelecidas caso a caso conforme diferentes exigências das partes do conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos de São Paulo, para a destinação17 para uso da faculdade como um gancho metropolitano para a região do Cambuci.

17. Nota: Destinação: “A conservação dos monumentos é sempre favorecida por sua destinação a uma função útil à sociedade; tal destinação é portanto, desejável, mas não pode nem deve alterar à disposição ou a decoração dos edifícios. E somente dentro destes limites que se deve conceber e se pode autorizar as modificações exigidas pela evolução dos usos e costumes” (CARTA DE VENEZA – ICOMOS, Veneza, 1964, art. 5) 124

Figura 94: Ruínas do Castelo de Pierrefonds, em 1855 | Fonte: Cornell University Library Figura 95: Castelo de Pierrefonds restaurado por Le-Duc, em 1874, suposto “Falso Histórico” (CHOAY, Françoise) | Fonte: Cornell University Library

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“(...) atribuir-lhe um novo destino é uma operação difícil e complexa, que não se deve fundar apenas sobre uma semelhança com o destino original. Esse destino deve, antes de tudo, ter em conta o estado material do edifício que, hoje em dia, exige ser apreciado em função dos seus utilizadores potenciais” (CHOAY, Françoise. Alegoria do Patrimônio, p. 234)

Destinação à Faculdade

Em uma primeira tentativa de estipular uma destinação do conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos visando sua requalificação e restauro, mas ainda sem considerar as relações com a escala metropolitana ou até mesmo com seu entorno imediato, procuraríamos estabelecer usos que fossem compatíveis com aqueles originalmente propostos, no intuito de garantir o máximo de integridade.

Porém, entraríamos em certa contradição: necessitaríamos compreender o porquê de se propor o retorno de showrooms destinados à venda de veículos, ou até mesmo uma concessionária, quando devemos levar em consideração a realidade em que vivemos assim como as tendências de um futuro breve.

Compreender o presente e as tendências do futuro e propor a destinação para um uso em prol de nossa atual realidade apontou para a busca de potenciais de uso do conjunto edificado.

O significado da antiga Mesbla Veículos transcende a questão do seu uso ou função original. Os usos ou “essas funções são, por assim dizer, totalmente independentes da forma, mas é precisamente essa forma que fica impressa em nós” (ROSSI, 1966)18. Portanto, a forma da composição e os conceitos materializados na obra de Gladosch, bem como a relação de urbanidade e os valores afetivos, são os verdadeiros significados do conjunto edificado.

17. ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade. 1966 p. 43

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Como coloca Choay, atribuir um “novo destino é uma operação difícil e complexa, que não se deve fundar apenas sobre uma semelhança com o destino original”. Portanto, em uma nova tentativa de estipular uma destinação do conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos, visando agora sua requalificação e restauro e considerando as relações com a escala metropolitana e seu entorno imediato, as hipóteses de funções e usos significativas passam por uma varredura.

Portanto, levando também em consideração os benefícios da relação universitária com a cidade, considerando os diagnósticos e prognósticos da região, a fragilizada expressão urbana do bairro do Cambuci, a atual segregação do bairro assim como de grande parte da região centro-leste, a ausência de ‘ganchos metropolitanos’ e uma pequena quantidade de equipamentos urbanos voltados a educação na região do recorte de estudo, opta-se por funções e usos que sejam potencialmente significativos para a região, usando um dos últimos vestígios do patrimônio industrial do Cambuci como expoente de identidade do bairro, assim como um gancho metropolitano para reforçar a reconexão do bairro à metrópole. Sendo assim, estabeleceu-se que o projeto destinará o conjunto à uma faculdade, vinculada a uma área comercial da economia criativa que pode ou não se relacionar com os cursos aplicados na faculdade.

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Capítulo VI:

Prognósticos do Cambuci

Figura de abertura do Capítulo: A ‘recostura’ do tecido urbano do Cambuci. Elaboração do autor

“Você pode até dizer que eu tô por fora ou então que eu tô inventando, mas é você que ama o passado e que não vê (...) que o novo sempre vem” (REGINA, Elis. Como os Nossos Pais. Falso Brilhante 1976)

Projetos e propostas estudas

Como dito no início deste trabalho, a análise de diversas questões que orbitam a antiga Mesbla Veículos de São Paulo levou à conclusão que um projeto de intervenção, restauro e destinação do conjunto edificado pouco teria eficácia em uma região há tanto tempo esquecida.

Para que a intervenção fizesse sentido, seria necessário lançar um ‘olhar urbano’ para as demais relações com seu entorno imediato, seria preciso contar com prognósticos de diferentes planos e projetos para a região visando a requalificação para o desenvolvimento sustentável e socioambiental daquela região.

Após a leitura da área do recorte de estudo em sua atualidade, conclui-se que há problemas mais eminentes: os vestígios do patrimônio industrial ameaçados pelos promotores imobiliários; a carência de infraestrutura voltada à mobilidade de transporte público; a carência de áreas verdes no recorte de estudo, assim como em grande parte da região centro-leste ao redor ao Rio Tamanduateí; os problemas de drenagem urbana ao enfrentar frequentes inundações, alagamentos e enchentes; a presença de diversas barreiras físicas e a fragmentação do bairro do Cambuci em relação a metrópole; um déficit habitacional e populacional de um bairro na região do centro expandido; os impactos socioambientais consequentes da desastrosa estrutura do “tampão” sobre o rio Tamanduateí. Sem contar com planos e projetos para a região, o projeto não surtiria efeitos significativos independente de suas intenções.

Sendo assim, foram analisadas primeiramente as propostas de ampliação da infraestrutura de mobilidade do Metrô, CPTM e SPTrans para o ano de 2043, assim como as intenções da Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí (OUCBT 2015), e considerada como futuramente estabelecida a já discutida Res. 04/16 do CONPRESP, tombando cerca de 23 bens imóveis que permanecerão na salvaguarda de futuras gerações.

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Planos de expansão do Metrô e CPTM

Ao observar diferentes propostas apresentadas pela Secretaria dos Transportes Metropolitanos, chamam a atenção aquelas que atingem e influenciam na região do recorte de estudo. Em relação ao invólucro do conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos, há uma expansão da Linha 6 - Laranja da estação São Joaquim até a estação Cidade Líder na Zona Leste, ao sul da atual estação Corinthians/Itaquera da Linha 3 – Vermelha.

Nesta expansão da Linha 6 –Laranja há a presença de 3 estações locadas no recorte de estudo, cujas nomenclaturas variam conforme o mapeamento que surge, sendo elas:

• Estação Aclimação / Estação Lavapés / Estação Glicério: localizada na região da Rua Espírita com a Rua Lavapés, próxima às antigas oficinas da Light, atual vazio urbano.

• Estação Cambuci / Estação Alberto Lyon: localizada na quadra ao sul do conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos de São Paulo, entre as ruas Silveira da Mota e Cesário Ramalho.

1. METRÔ. Relatório de Sustentabilidade 2013. São Paulo. p. 44

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• Estação São Carlos / Estação V. Monumento / Estação Henry Ford: localizada nas proximidades da Praça Alberto Lion.

De acordo com o Metrô, a extensão São Joaquim – Cidade Líder ainda está em fase de estudos e financiamento para aprovação, enquanto o trecho Brasilândia – São Joaquim já foi aprovado pelo Conselho Gestor de Parcerias Público-Privadas e já se encontra em construção, com uma demanda prevista de 633.600 passageiros por dia.

As linhas que serão construídas nas proximidades da região do Cambuci serão: Linha 19 - Celeste, ligando a região sudoeste à região nordeste da cidade, que fará baldeação com a estação Bela-Vista na Linha 6 – Laranja; e a Linha 18 – Bronze, que se conectará com a Linha 10 – Turquesa da CPTM e a Linha 2 – Verde do Metrô.

Há também duas linhas que exerceriam com mais eficácia o atual papel do Expresso Tiradentes, conectando as regiões atendidas pela infraestrutura atualmente utilizada pela SPTrans. Seria a já mencionada Linha 18 – Bronze, ligando a Estação Tamanduateí à região de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul, e a Linha 16 – Prata, que de acordo com o Relatório de Sustentabilidade do Metrô 2013 seria uma “Ligação entre a Vila Prudente e o Hospital Cidade Tiradentes, passando por Oratório, São Lucas, Camilo Haddad, Vila Tolstói, Vila União, Jardim Planalto, Sapopemba, Fazenda da Juta, São Mateus, Iguatemi, Jequiriçá, Jacu-Pessêgo, Érico Semer, Márcio Beck, Cidade Tiradentes e Hospital Cidade Tiradentes, em integração com a Linha 2-Verde na Estação Vila Prudente, com 24,3 quilômetros de extensão, 17 estações e 54 trens. A linha terá um trecho entre Vila Prudente e Ipiranga, integrando com a Linha 10-Turquesa, da CPTM, com mais 1,8 quilômetro e uma estação, totalizando 26,1 quilômetros de extensão e 18 estações, e será

uma linha de monotrilho em via elevada” (METRÔ. 2013)1.

Considerando a implantação das linhas 18 – Bronze, 16 – Prata e 14 – Ônix, a ociosa estrutura do “Tampão” da Avenida do Estado, assim como o elevado em sua extensão, atualmente utilizadas pelo Expresso Tiradentes, seriam novamente passíveis de demolição como em todos os outros momentos em que houve tentativas de dar uma utilidade ao fracassado projeto do “Viaduto sobre o Rio Tamanduateí”.

Considerando a extensão da Linha Laranja no trecho São Joaquim – Cidade Líder, assim como as linhas implantadas nas redondezas do bairro, e em particular as três estações dentro da área de estudo, o prognóstico imediato é de um aumento considerável da densidade populacional e habitacional, resultando na grande maioria das vezes em um caráter metropolitano.

Figura 96: Trecho da rede metroferroviária previsa para 2025 | Fonte: Metrô, 2013

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“Não é surpresa que a arquitetura seja motivo de controvérsias, nem que seja a forma de arte mais abertamente criticada pelo público, com paixão e entusiasmo. O papel de destaque desempenhado pela arquitetura exige atenção especial do cidadão e isto requer que a sociedade seja informada e exigente em relação à qualidade” (ROGERS, Richard. Cidades para um pequeno planeta. p. 68)

Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí (PL 723/2015)

Ao estudar as estratégias específicas para a região em relação ao Plano Diretor Estratégico de São Paulo, surge o destaque para a Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí (OUCBT), uma operação visando a requalificação dos bairros dispostos ao longo do Rio Tamanduateí no perímetro municipal, envolvendo os bairros do Cambuci, Mooca, Ipiranga, Vila Carioca e a Vila Prudente, dentro da MEM (Macroárea de Estruturação Metropolitana) do Arco Tamanduateí.

As metas apresentadas pela OUCBT constam no Guia Ilustrado, e discutem inicialmente quais seriam as formas de atuação para solucionar cada um dos objetivos, como por exemplo: • “Melhorar a mobilidade urbana”, a partir de um plano viário e cicloviário que reestabeleça conexões entre os bairros, garantindo acessibilidade à região (em especial, chamam a atenção as pontes sobre o Rio Tamanduateí que reconectam o Cambuci e parte do bairro do Ipiranga à Mooca, resgatando parcialmente o tecido urbano original da região); • “Qualificar a vida urbana dos bairros”, por meio de um adensamento populacional significativo que será distribuído passivamente ao longo dos anos a fim de preservar características culturais, e a proposta de um sistema de espaços públicos e rede de equipamentos sociais articulados, implantação de arborização viária e incentivos ao uso misto; • “Orientar o crescimento da cidade nas proximidades do transporte público”, induzindo novas construções para serem instrumento de recuperação ambiental e paisagística; • “Reorganizar as dinâmicas metropolitanas promovendo o desenvolvimento econômico da cidade”, que visa a manutenção de territórios produtivos nas regiões abastecidas por

conexões ferroviárias e rodoviárias ‘macrometropolitanas’ como polos de desenvolvimento econômico, como os incentivos às atividades industriais no setor Henry Ford, e incentivando ao uso misto em regiões de caráter local para promover oferta de empregos. (Uma das táticas que chama a atenção nesta meta é a de “adquirir edifícios tombados, e promover restauro e reconversão, para o uso voltado a economia criativa”1); • “Incorporar a agenda ambiental ao desenvolvimento da cidade” a partir de uma relação mais imposta da Quota Ambiental dentro da LPUOS (Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo), cujos destaques são a proposta de ampliação de áreas verdes com a implantação de 11 novos parques, e incentivar a permeabilidade nas áreas de encosta.

• “Preservar o patrimônio e valorizar as iniciativas culturais” compreendendo uma parcela das “presenças históricas” da região (Nesta meta há estratégias positivas como o “incentivo a preservação de bens culturais por meio de transferência de potencial construtivo”, porém há somente uma parcela ínfima de bens imóveis reconhecidos como patrimônio).

“A tematização das cidades é o resultado da perda da memória crítica. Uma das características das sociedades contemporâneas é o aumento dos riscos e das fragilidades, apesar da elevação geral da renda per capita durante a última década do século XX e a primeira do século XXI. Tudo isso ocorre com base em uma tendência geral do sistema de construção das cidades de apagar a memória urbana, com o objetivo de debilitar as redes sociais e comunitárias, que poderiam se opor a determinados projetos urbanos e, portanto, econômicos” (MONTANER, Josep. MÚXI, Zaida)2

Há, finalmente, a proposta de demolição do “tampão” assim como a de sua extensão em um viaduto para a ‘recostura’

Nota: “Operação Urbana Consorciada é um instrumento de intervenção pública, previsto pelo Plano Diretor Estratégico (PDE) e aprovado mediante uma lei municipal, que estabelece regula-

mentação urbanística específica, contrapartidas financeiras, incentivos ao adensamento populacional e construtivo para um perímetro previamente definido. Tem por objetivos alcançar metas de qualificação para os bairros, por meio de um conjunto de diretrizes urbanísticas, como estabelece o Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257 de 2001)” (Operação Urbana Consorciada: Bairros do Tamanduateí. Projeto de Lei nº 723/2015. São Paulo, p. 04) 132

do tecido urbano. A fim de ordenar o desenvolvimento da cidade em uma relação de coexistência com o Rio Tamanduateí, é proposta uma relação de “Recuo Especial” das edificações em frente à Av. do Estado, considerando a área lindeira ao rio como APP (Área de Preservação da Paisagem).

No que se refere propriamente ao Cambuci, há o setor ‘Lavapés’ da OUCBT, onde são propostas áreas verdes de pequena dimensão, que surgirão a partir das intervenções viárias como na Rua Vicente de Carvalho, e no novo parcelamento da quadra das antigas oficinas da Light. A implantação do Parque Silveira da Mota é questionável, pois desapropria duas quadras inteiras e cerca de 60 imóveis em bom estado de conservação. Também é proposta uma rede cicloviária que conectará a região do bairro com o Brás e a Mooca, atravessando o Tamanduateí.

Nos projetos viários propostos pela OUCBT no ano de 2014 há uma via que se estende da Rua Otto de Alencar até a Rua Vicente de Carvalho, exigindo a desapropriação de 12 imóveis e a desapropriação parcial de 4 imóveis, formando uma praça em frente a possível locação da estação Cambuci da Linha 6 – Laranja.

Portanto, considerando que Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí ainda está em desenvolvimento, convém adotar neste plano somente as metas que não entram em um conflito direto com os demais prognósticos estudados, e propor, a partir de hipóteses de intervenção, complementos e adaptações em relação aos demais prognósticos que poderão ocorrer no futuro, simultaneamente.

Figura 97: Plano Urbanístico Específico da OUCBT 2015 | Fonte: OUCBT 2015

1. Operação Urbana Consorciada: Bairros do Tamanduateí. Projeto de Lei nº 723/2015. São Paulo, p. 11 2. MONTANER, J. MÚXI, Z. Arquitetura e Política. p. 159

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Capítulo VII:

Ensaios de Intervenção

Figura de abertura do Capítulo: Ensaios de ocupação no recorte de estudo. Elaboração do autor

“O desenvolvimento de uma cidade acontece quando essa cidade é economicamente sustentável (as finanças municipais não são deficitárias, a cidade gera receitas e emprego), socialmente (as pessoas sentem-se confortáveis onde vivem, possuem uma identificação cultural com o local) e ambientalmente (os sistemas ecológicos como contribuem para a qualificação do meio urbano)” (RODRIGUES, L.F. Manual de Crimes Urbanísticos. p. 77)

Prognóstico Adotado

Considerando a implantação das linhas previstas do Metrô e demais conexões de transporte metropolitano envolvendo a CPTM e a SPTrans, em especial a extensão da linha Laranja no trecho São Joaquim – Cidade Líder, assim como as linhas implantadas nas redondezas do bairro, o prognóstico imediato é a de um aumento considerável da densidade populacional e habitacional, resultando na grande maioria das vezes em um caráter metropolitano.

Quanto a OUCBT, as demais metas apresentam em geral características significativas para requalificação do bairro do Cambuci, assim como de outros bairros presentes no perímetro delimitado pela operação. Convém, aqui, destacar aspectos relevantes como a requalificação da Av. do Estado, o adensamento populacional, a efetivação das metas discutidas, as propostas viárias, entre outros.

A meta de “Preservar o patrimônio e valorizar as iniciativas culturais” proposta na OUCBT no que diz respeito ao bairro do Cambuci, não leva em conta a Res. 04/16 do CONPRESP; portanto, convém aqui considera-la como deferida e incorporar os demais bens imóveis tombados no mapeamento proposto para que sejam aplicados os mesmos incentivos fiscais.

Considerando o trauma causado na região com a implantação do “Viaduto sobre o Rio Tamanduateí” e os diversos impactos socioambientais consequentes, somados ao desejo de reestabelecer a relação visual dos edifícios ao longo da avenida, incluindo o conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos com o Tamanduateí, e a outra meta da OUCBT de “Incorporar a agenda ambiental ao desenvolvimento da cidade” que prevê 11 parques, convém neste trabalho propor que um parque linear de maior escala seja construído no perímetro do “tampão”, conectando tanto o Parque Dom Pedro II à Praça Palmira Teixeira/Praça Alberto Lion, quanto propondo conexões aos dois parques previs-

tos também da OUCBT para a região da Mooca.

Como mencionado anteriormente, a meta de “Incorporar a agenda ambiental ao desenvolvimento da cidade” prevê especificamente dois parques para a região do Cambuci. Nesta perspectiva, o projeto propõe que seja implantado um parque no terreno ao leste do conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos e que, conforme visto nos diagnósticos, é um ponto estratégico para a implantação de um ‘wetland’.

Em relação ao projeto de destinação para faculdade do conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos, a estação mais significativa será a estação Cambuci da Linha 6 – Laranja, que conectará a região à apelidada Linha Universitária”. Somando este fator às metas estabelecidas pela OUCBT, em particular a de “orientar o crescimento da cidade nas proximidades do transporte público”, e aos diagnósticos elaborados discutidos no capítulo IV, a área do recorte de estudo demandará adaptações ao novo caráter metropolitano; sendo assim, também convém aqui propor hipóteses de construção em respeito à preexistência consolidada.

O projeto propõe o ‘Parque Linear Tamanduateí’ como ‘tentativa de compensação’ pelo trauma causado pelo projeto do “Viaduto sobre o Rio Tamanduateí”, usando como referência a obra de requalificação do rio Cheonggyecheon, em Seoul, Coréia do Sul, onde ocorreu um processo similar com a região estudada. Será proposta também a ‘Praça Várzea do Cambuci’, que envolverá a implantação de um ‘wetland’ inspirada no Parc du Chemin de l’ile, em Nanterre, França. E, por último, o estudo de implantação para reabilitação da Rua Luis Gama e adaptação ao caráter metropolitano das quadras ‘Luis Gama – Av. do Estado – Alexandre Levi’ e ‘Alexandre Levi – Av. do Estado – Rua dos Alpes’.

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Figura 98: FotosatÊtile Dezembro de 2017 | Fonte: GoogleEarth™

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Prognóstico + hipotese de intervenção

tese Hipó

de i

n

ven ter

ção

na antiga Mesbla Veículos de São Paulo

Hipótese de intervenção

Projeto de destinação à faculdade

tico Prognós

Figura 99: Plano de massas sobre a fotosatélite, evidenciando as delimitações do prognóstico, as hipóteses e do projeto | Elaboração do Autor

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‘Parque Linear Tamanduateí’

No final da década de 1950, o governo da cidade de Seoul passava pela mesma problemática paulistana em relação a mobilidade: grandes investimentos voltados a planos rodoviários repletos de viadutos, nós viários, entre outros, investindo no transporte automotivo individual (carro), como solução de mobilidade para a cidade, seguindo os passos da retórica influente do CIAM. Assim como o Rio Tamanduateí, o Rio Cheonggyecheon também tem um papel histórico para a sua cidade, porém isto não impediu o governo coreano de implantar um projeto de viaduto tampando todo o rio. O projeto foi completado em 1977, e assim como o “tampão” do Tamanduateí ele causou impactos socioambientais onerosos, fragmentando a cidade a partir das rupturas no tecido urbano que originalmente atravessava o rio a partir de diversas pontes.

Com a eminente presença de impactos socioambientais e a lenta degradação do ambiente, uma década depois já havia propostas de requalificação com o intuito de tentar reaproveitar a estrutura do viaduto promovendo usos mistos sob e sobre a estrutura. Os projetos, porém, fracassaram, e finalmente no ano de 2003 o governo optou pela demolição da estrutura e a proposta de um projeto de requalificação ambiental do Rio Cheonggyecheon, quando também todas as transposições originais sobre o rio foram novamente implantadas fazendo a ‘recostura’ do tecido urbano daquela região da cidade de Seoul.

Foi implantado então um parque linear acompanhando o leito do rio Cheonggyecheon, resgatando, além da relação visual, a relação ambiental e a relação com as águas em um perímetro urbano com um rico projeto de paisagismo que criou diversos ambientes distintos ao longo de sua extensão, se relacionando com as edificações em seu entorno, e resgatando o valor histórico e cultural do rio. O projeto usou também de tecnologia de ponta para medidas de manutenção das águas e controle de volume, e a implantação sistemas de segurança e alarme para eventuais cheias, e usando também canais subterrâneos nas laterais do rio funcionando como piscinões.

“Since expansion of the width ot Cheonggyecheon Stream was impossible as stores and roads along it were built decades ago, they dug the streambed to maintain water flow

and residual water level for a projected 200 years into the future.

In principle, they constructed terrace lands on two sides of the Stream at a width of 3.5 meters for vegetation, walking and maintenance purposes, and built low-water channels on both sides at a width of 14-24 meters. For landscape and to create a habitat for living things, they fomted the low-water channels for tho water to flow zig-zag. They also installed flood treatment facilities far the inflow of rainwater in the drainage system into tho main stream. They minimized the loss of maintenance water by basing the stream bed with bentonite. On both sides of the stream, they built vertical concrete cut-off walls. They also buried intercepting sewers, waterworks pipes and maintenance water pipes within the banks on each side of the stream” (CHEONGGYECHEON MUSEUM, 2017)1

Comparando o rio Cheonggyecheon ao Tamanduateí, podemos encontrar diversas características em comum. Ambos os rios são cercados por avenidas e possuem originalmente transposições do próprio tecido urbano sobre eles; os rios têm uma largura quase equivalente; e ambos os rios têm valor histórico para as suas cidades. Entretanto, ambos foram tamponados por intervenções viárias que, a priori, em suas épocas de implantação, eram algo sofisticado, sinônimo de tecnologia e mobilidade, mas que anos depois, com a presença dos impactos socioambientais e degradação eminente, se revelaram um erro.

Figura 100: Viaduto sobre o rio Cheonggyecheon, década de 1970 | Fotografia de Timoteo Yoo

1. CHEONGGYECHEON MUSEUM 청계천박물관. Refusrbishment of Drainage Systems. Seoul, 2017 145

Figura 101: ReferĂŞncia do Rio Cheonggyecheon atualmente. | Fonte: Museu Online de Seoul

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A diferença é que uma gestão coerente optou pela demolição de uma das estruturas em 2003, optando pela recuperação dos valores históricos, ambientais e culturais, enquanto no que diz respeito ao Tamanduateí houve ainda diversas tentativas de tentar lidar com um projeto fracassado, ao invés de assumir o erro da era funcionalista e também optar por sua demolição, visando à requalificação do rio. Uma curiosidade é que, durante a gestão de José Serra no ano de 2005, foram discutidas hipóteses de demolição do “tampão” porém, infelizmente, por conta de ‘sentimentos econômicos’, optou-se pela sua permanência e novas tentativas de dar uma utilidade relevante à estrutura. O que deu errado na era do “Fura-Fila” e “Paulistão”, continua até hoje no “Expresso Tiradentes”, e enquanto o Cheonggyecheon tem hoje seu nome lembrado, o Tamanduateí é um rio que ‘precisa de legenda’.

Portanto, a partir da compreensão dos valores do projeto de requalificação do rio Cheonggyecheon e sua situação urbana, justifica-se aplicar os mesmos partidos e conceitos do projeto no que diz respeito ao Rio Tamanduateí, e por isto se propõe o ‘Parque Linear Tamanduateí’ como hipótese de parque linear para a cidade de São Paulo, realizando a ‘recostura’ do tecido urbano nas ruas Luís Gama, Alpes, Barão de Jaguará e Serra de Paracaína, além de propor o resgate da relação entre o cidadão e a água no meio urbano, assim como a arborização nas margens do rio como originalmente fora um dia, propondo transposições de nível em cada uma destas travessias para uma fruída acessibilidade ao parque.

Figura 102: Planta ilustrada do projeto de requalificação do rio Cheonggyecheon | Fonte: Museu Online de Seoul Figura 103: Maquete do projeto de demolição do viaduto sobre o Cheonggyecheon, no Museu Cheonggyecheon | Fotografia de Timoteo Yoo Figura 104: Maquete do projeto de requalificação do Cheonggyecheon, no Museu Cheonggyecheon | Fotografia de Timoteo Yoo 147

Parque linear tamanduateí ESC.: 1:2000

Perspectiva 01: Vista do parque linear Tamanduateí para o conjunto da faculdade proposto sobre a antiga Mesbla Veículos

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‘Praça Várzea do Cambuci’

O projeto propõe um parque no terreno ao leste do conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos, um ponto estratégico para a implantação de um ‘wetland’, sendo este um ecossistema artificial envolvendo diferentes espécies vegetais e até mesmo peixes, que promove uma requalificação ambiental a partir de processos de filtragem, purificação e drenagem da água, podendo ou não estar vinculado ao próprio Tamanduateí, colaborando significativamente para a drenagem e microdrenagem urbanas e reduzindo os impactos ambientais das enchentes e inundações da região.

“Os sistemas de “wetlands” construídos são, pois, ecossistemas artificiais com diferentes tecnologias, utilizando os princípios básicos de modificação da qualidade da água das “wetlands” naturais. Do ponto de vista da comunidade científica internacional, estes trabalhos vêm apresentando um grande avanço, sendo que foram realizadas conferências internacionais para a troca de informações e avaliação das eficiências dos diversos sistemas utilizados” (SALATI, Eneas)2

Usando o ‘wetland’ como premissa para a drenagem urbana local, se prevê um auxílio significativo contra as inundações e enchentes de presença histórica da região, além de promover uma relação com o próprio rio Tamanduateí, como no caso do Parc du Chemin de l’ile, em Nanterre na França, e o Milliken State Park Wetlands, em Detroit nos Estados Unidos, entre outros exemplos que vem sendo implantados ao redor do globo.

Além do ‘wetland’, a hipótese da ‘Praça Várzea do Cambuci’ permite a possibilidade de implantação de um rico programa, mas será destinada majoritariamente às questões ambientais, com um paisagismo de características construtivistas em sua paginação, permeando diversas possibilidades de fluxos e criando alinhamentos na perspectiva, valorizando percursos como para o Tamanduateí e para o projeto de destinação à faculdade do conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos. Com o intuito de criar uma relação gradativa das calçadas na Av. do Estado, propõe-se uma extensão da calçada fazendo um alinhamento entre o limite do terreno ao ‘calçadão’ do conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos.

2. SALATI, Eneas. Controle de qualidade de Água através de sistemas de Wetlands construídos. FBDS. Rio de Janeiro. p. 5

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Figura 105: Parc du Chemin de l’ile, Nanterre, França | Fonte: Flickr Figura 106: Milliken State Park Wetlands, Detroit, EUA | Fonte: Flickr Croqui: corte esquemático do wetland Praça Várzea do Cambuci 151

Perspectiva 02: Vista do da praça “Várzea do Cambuci”.

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“(...) o pós-modernismo cultiva uma concepção do tecido urbano como necessariamente fragmentado, um ‘palimpsesto’ de formas passadas, sobrepostas umas nas outras, uma colagem de usos correntes, muitos dos quais efémeros” (HARVEY, David. A Condição Pós-Moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 1992. p. 69)

Ensaios de Ocupação em Quadras Consolidadas

Propõe-se uma intervenção no entorno imediato à antiga Mesbla Veículos para a integração do edifício às edificações envoltórias da nova estação de metrô, a fim de suprir parte das novas demandas da região em relação à confirmação do caráter metropolitano do Cambuci, assim como aproveitar este momento para colocar em sinergia propostas de requalificação e reabilitação das quadras afetadas.

situação precária, apoiando parte das novas ocupações nas empenas dos edifícios preexistentes.

A principal questão que vem a orientar os estudos de requalificação e adaptação em perímetros consolidados é a hipótese de evitar, na medida do possível, a desapropriação total ou demolição de edifícios de médio à alto gabarito de altura, compreendendo estas táticas como inapropriadas e contraditórias em relação a preservação da paisagem. Para isto, estes ensaios usam como referência diversos conceitos e partidos difundidos entre diferentes projetos de diferentes épocas:

“A proposta era organizar e dar forma aos espaços vazios deixados entre os prédios, onde moradores viviam de forma precária e insalubre, com novos edifícios, migrando os moradores dos barracos para os apartamentos, criando espaços públicos e áreas de lazer. Além disso, reurbanizar a área e fornecer uma articulação entre pedestres e veículos, área pública e área privada. Após a demolição dos prédios construídos parcialmente e danificados e a remoção dos barracos, foi realizada a requalificação do espaço. Criou-se um sistema viário interno, onde não há guias nem sarjetas, reforçando a ideia de unidade. (...) optou-se por edifícios baixos, de diversas tipologias, de no máximo cinco andares, a fim de gerar uma relação amigável com os pré-existentes e a vizinhança” (VIGLIECCA & ASSOCIADOS, 2015)3

Em uma intervenção no conjunto residencial Silvio Baccarelli na região de Heliópolis em 2013, o arquiteto Hector Vigliecca executou a implantação de novos edifícios em um conjunto habitacional incompleto, locado nas áreas vazias do projeto onde anteriormente estavam ocupadas por barracos em

Um outro projeto estudado que também trata de intervenções em áreas consolidadas, que porém não foi construído, é o projeto Low2No proposto pelo escritório REX: trata-se de um projeto premiado de um concurso elaborado pelo ‘Sitra’ (The Finnish Innovation Fund) e o governo da cidade de Helsinki na Fin-

Figura 107: Intervenção do escritório Vigliecca & Associados em Heliópolis | Fonte: Vigliecca & Associados Figura 108: Planta Intervenção em Heliópolis | Fonte: Vigliecca & Associados

3. VIGLIECCA & ASSOCIADOS, Heliópolis Gleba H. disponível em: <http://www.vigliecca.com.br/pt-BR/projects/> acesso: outubro de 2017 154

lândia. Apesar do tema do concurso ser voltado principalmente a questões de ecologia e sustentabilidade, esta proposta apresentou conceitos que transcendiam a discussão. Implantado sobre uma antiga área portuária da cidade de Helsinki, o projeto visava o adensamento construtivo, habitacional e populacional tentando preservar ao máximo o caráter de ‘cidade dispersa’, ao invés de propor uma solução de desenho racionalista.

Os usos supostamente permanentes foram aplicados em duas torres residenciais e uma base de escritórios, locados sobre um grande embasamento que contorna a quadra. Neste embasamento foram propostos usos de ‘necessidades variáveis’ como restaurantes, estúdios, galerias, academias, teatros, lojas, capelas, comércio e serviço diversificados e espaços comuns, que circundam o pátio interno com uma considerável massa arbórea, dispostos de maneira independente da estrutura deste embasamento com o intuito de promover a heterogeneidade da ‘cidade dispersa’ dentro do conjunto ‘híbrido’, formando fachadas ativas e permitindo uma grande flexibilidade de usos e futuras adaptações4.

Quanto às tipologias de blocos, a partir do momento em que se compreende a inviabilidade e ausência de justificativas plausíveis para a demolição dos edifícios pertencentes aos condomínios da quadra do conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos, o perímetro disponível para alguma intervenção torna-se ligeiramente estreito, o que levou à optar por formas lineares.

Portanto, foram estudadas as relações com a disposição e forma de projetos que adotam tipologias com forma lineares, como: a Casa Bloc em Barcelona, projeto de Josép Lluís Sert, Josep Torres Clavé e Joan Baptista Subirana em 1936, onde a implantação cria ora uma relação direta entre a rua e os edifícios e ora uma relação com os pátios internos, sempre mantendo a fruição dos pátios internos suspendendo os blocos sobre pilotis; o Conjunto Habitacional de Aveiro, em Portugal, projeto de João Lucio Lopes em 2004, onde a disposição dos blocos do conjunto acompanham o desenho da quadra e cada bloco possui um gabarito de altura distinto que se relaciona com a sua frente; e, em especial, o conjunto habitacional Park Hill, no Reino Unido, projetada por Jack Lynn e Ivor Smith em 1961, onde a disposição dos blocos foi elaborada em orientação aos pátios internos da implantação e às ruas que circundam o conjunto, ao invés da disposição em relação a orientação solar.

Figura 109: Casa Bloc | Fonte: historyofbarcelona.weebly Figura 110: Maquete Casa Bloc | Fonte: historyofbarcelona.weebly

4. FÉRNANDEZ PER, Aurora. This is Hybrid. Vitoria-Gasteiz: a+t architecture publishers. p. 69. 2014 155

O projeto do Park Hill resultou em uma disposição não ortogonal dos blocos lineares ao longo do conjunto, que em certos momentos se integravam tanto à escala interna quanto à escala externa. As problemáticas deste projeto foram a sua localização em uma periferia distante e de difícil acesso e um uso exclusivamente residencial, tornando-se um ‘condensador social’, apesar da flexibilidade da forma, que contribuíram para a degradação do conjunto ao longo do tempo.

“Park Hill nació como respuesta a una nueva manera de hacer ciudad frente al modelo funcionalista de l’Unitê d’habitation. Fue la primera materialización de las ideas impulsadas por los miembros del Team 10, aunque los autores del proyecto fueron unos jóvenes arquitectos que no formaban parte del mesmo. Lynn y Smith habían propuesto la calle elevada en varios concursos como el del Golden Lane, en el que participaron los Smithson sin éxito. Su llegada a Sheffield, de la mano del arquitecto municipal Lewis Womersley, les dio la oportunidad de ensayar el modelo a una escala inesperada. La diferencia con respecto a los funcionalistas no era la calle elevada que ya estaba presente desde los anõs 20, sino la mezcla de usos y la vinculación con la ciudad a través de pasarelas que introducían la complejidad urbana en la sección vertical. EI obstáculo fue que Park Hall, como su nombre indica, estaba situado en un alto y separado por las vías del ferrocarril de la llamada ciudad compleja, que quedaba 600 metros colina abajo. EI conjunto de las casas mil viviendas en alquiler, dotado con servidos para la comunidad, se convirtió en un gueto a pesar de los esfuerzos de las instituciones por cohesionar a los inquilinos, y los servidos dejaron de funcionar” (FÉRNANDEZ PER, Aurora. 2014)4

Figura 111: Park Hill Reino Unido | Fonte: Dezeen Figura 112: Planta do projeto Park Hill no Reino Unido | Fonte: Dezeen

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Figura 113: Conjunto Habitacional em Aveiro, Portugal | Fonte: JLLA Arquitectos Figura 114: Diagrama dos usos da â&#x20AC;&#x2DC;cidade dispersaâ&#x20AC;&#x2122; noprojeto Low2No | Fonte: Rex-ny.com Figura 115: Maquete do projeto Low2No | Fonte: Rex-ny.com 157

Ensaio de Ocupação Quadra ‘Luis Gama – Av. do Estado – Alexandre Levi – Silveira da Mota’:

uso de comércio e serviço locais e diversificados, seguindo os conceitos da “Fachada Ativa” incentivada pelo PDE de São Paulo, e também no intuito de resgatar a hospitalidade da Rua Luís Gama e a relação com a rua, perdidas desde a construção destes condomínios na área onde originalmente havia tipologias residenciais operárias e as oficinas da indústria Villares.

São propostos também no projeto diferentes emolduramentos criados a partir dos vazios do embasamento, alinhados às ruas que cruzam a Rua Luís Gama e orientam os transeuntes para praças internas voltadas à área comum dos novos edifícios, assim como pontos de comércio e serviço. Por fim, também é proposta uma rua para pedestres, visando diminuir distâncias dos percursos e adaptar a quadra às recomendações da nova LPUOS (Art. 43)5.

Compreendendo a implantação da estação Cambuci na nova quadra gerada pelas intervenções viárias da OUCBT adotadas, nas proximidades do cruzamento da Rua Silveira da Mota e a Rua Luís Gama, propõe-se a desapropriação parcial dos três condomínios da quadra do conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos, considerando que são áreas pavimentadas sem construções, atualmente usadas como uma ampliação de estacionamentos privados destes condomínios, para a implantação de edifícios lineares voltados ao uso residencial, sobre um embasamento que contornará o desenho da quadra voltado ao

O programa preliminar estabelecido leva em conta a futura implantação da Linha 6 - Laranja do metrô, o que reforça o caráter metropolitano. A apelidada “Linha Universitária” prevê atender diversas faculdades, e contando com o projeto de destinação à Faculdade da antiga Mesbla Veículos, propõe-se que os edifícios sejam voltados também ao público estudantil. No pavimento térreo será estabelecido o uso predominante para comércio e serviço locais e diversificados, dispostos ao longo do embasamento. O primeiro pavimento será destinado para uso coletivo. E, finalmente, os pavimentos adjacentes terão uso residencial, para moradia estudantil.

5. Nota: De acordo com 1º parágrafo do Artigo 43 da Lei 16.402 (LPUOS) de 2016: “a área máxima de quadra no território da zona urbana do Município é de 20.000 e o comprimento máximo da face de quadra é de 300m (trezentos metros), observados os limites menores estabelecidos para as diferentes zonas. §1: Nas faces de quadra com comprimento superior a 150m, deverá ser prevista obrigatoriamente via de pedestre a cada 150m”.

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PAV. TÉRREO ESC.: 1:2000

1º PAVTO.

ESC.: 1:2000

Caixa de circulação vertical

2º À 6º PAVTO. ESC.: 1:2000

Gráfico 01: Proporção do programa e Taxa de Ocupação Perspectivas 03 e 04: Vistas do ensaio de ocupação

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Ensaio de Ocupação Quadra ‘Alexandre Levi – Av. do Estado – Alpes – Jerônimo de Albuquerque’:

A partir destas hipóteses em quadras consolidadas é proposta também uma outra ocupação, contornando as tipologias originais remanescentes na quadra e servindo também de delimitação construída para a ‘Praça Várzea do Cambuci’. Apesar de não adotar o embasamento como opção neste caso, também é proposto o uso de ‘fachada ativa’ voltada ao comércio e serviços no pavimento térreo do edifício, podendo ter relações logísticas ou administrativas com a ‘Praça Várzea do Cambuci’.

É proposto também um alinhamento com o edifício anexo, proposto no projeto de destinação à faculdade do conjunto edificado da antiga Mesbla Veículos, espelhando o chanfro do bloco anexo a fim de gerar um emolduramento que marque a transposição entre o caráter metropolitano no perímetro da Av. do Estado e o caráter residencial da Rua Alexandre Levi. Como mencionado, as formas se baseiam nos contornos das preexistências, sejam elas das próprias tipologias ou do tecido urbano.

Estas formas tem o intuito de promover uma relação visível de integração entre o novo e o preexistente, assim como a valorização do campo visual e suas repartições voltadas para a rua. As formas em geral partem de um ‘gride’ modular e linear, que tem

6. ROGERS, Richard. Cidades para um pequeno planeta. p. 74

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a quebra de sua racionalidade nos momentos em que segue o contorno da preexistência. A disposição linear destes edifícios propostos, em geral, é adotada tanto por conta de uma relação de conforto quanto por conta de uma maior versatilidade da forma a diversos usos possíveis, entendendo que o projeto original possa ser alterado diversas vezes por conta de adaptações consequentes de novas demandas do futuro.

“Além de emoldurar a vida pública, os edifícios atendem a necessidades específicas de seus usuários. Isto suscita uma questão prática de como projetar para satisfazer essas exigências. A vida moderna está mudando muito mais depressa do que os edifícios que a abrigam. Um local que hoje abriga um centro financeiro pode, em cinco anos, precisar transformar-se em um escritório, ou em uma universidade depois de dez anos.

Assim, edifícios fáceis de serem modificados terão vida útil mais longa e representam uma utilização mais eficiente de recursos.

Porém projetar tendo em vista a flexibilidade de uso dos edifícios inevitavelmente desloca a arquitetura das formas fixas e perfeitas. A beleza da arquitetura clássica, por exemplo, advém de sua composição harmoniosa: nada pode ser adicionado ou retirado.

Mas quando a sociedade exige edifícios capazes de atender a necessidades em modificação, devemos proporcionar tal flexibilidade e buscar novas formas que expressem beleza dentro de um padrão de adaptabilidade” (ROGERS, Richard.)6

No entanto, e prevendo esta flexibilidade, estes edifícios tem no pavimento térreo o programa de comércio e serviço que pode ou não ter relação com a ‘Praça Várzea do Cambuci’. Quanto aos pavimentos superiores, os espaços serão destinados para uso como escritórios, consultórios e lajes coorporativas, que permeariam possibilidades de integração com a faculdade.

Caixa de circulação vertical

pav. térreo ESC.: 1:2000

1º À 6º PAVTO. ESC.: 1:2000

Cobertura ESC.: 1:2000

Gráfico 02: Proporção do programa e Taxa de Ocupação Perspectiva 05: Vistas do ensaio de ocupação

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Capítulo VIII:

Projeto ‘Faculdade Várzea do Cambuci’ Figura de abertura do Capítulo: Rehabilitação da Fachada da antiga Mesbla Veículos. Elaboração do autor

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Cursos da Faculdade

Para estabelecer as graduações específicas da faculdade levando em conta tendências do futuro, são propostos dois cursos de graduação recentes e não obstantes, que de alguma maneira pudessem estar vinculados às características históricas e atuais do bairro, sendo eles o Curso de Engenharia da Inovação e o Curso de Psicologia & Coaching.

O Curso de Engenharia da Inovação é uma formação acadêmica relativamente recente no país e no mercado em geral. Atualmente, é fornecido na metrópole paulistana apenas pela ISITEC e pela Unifesp. O engenheiro de inovação é o profissional capacitado para atuar em diversas áreas dado o caráter versátil de sua formação, porém que necessita futuras especializações. A formação envolve uma noção geral de diversas disciplinas como: computação; inovação e design; matemática; mecânica; bioquímica; eletrônica, hidráulica, materiais; automação e controle; robótica; gestão; marketing; economia e finanças; entre outros. Em outras palavras, o engenheiro de inovação seria o “clínico geral da engenharia”, sem especializações. Com o que diz respeito a promover uma relação de coexistência na região, o caráter versátil do curso apresenta as mais diversas possibilidades que podem auxiliar também em novas formas de economia criativa, podendo gerar e participar de novas ofertas locais e até mesmo se relacionar com a área industrial.

Já o Curso de Psicologia & Coaching é focado em diferentes vertentes da psicologia, desde a Psicologia Comporta-

mental, incluindo a crescente atividade de ABA (Applied Behavior Analysis, que vem se demonstrando um auxílio efetivo para o público Autista), Psicanálise, Psicologia Analítica das doutrinas de Jean Piaget e Lev Vygotsky na Psicologia do Desenvolvimento Humano, tendo como complemento o panorama fornecido pelo Coaching, como o PNL (Programação Neurolinguística) e doutrinas recentes de métodos psicoterapêuticos como de Bert Hellinger e a Constelação Familiar, além de vertentes da parapsicologia. Em uma distinção entre o ‘coach’ e o psicólogo, poderíamos dizer que o psicólogo prioriza pacientes que apresentam certas vulnerabilidades, ou até mesmo quadros psiquiátricos, e o ‘coach’ – que em tradução literal significa ‘treinador’ –¬, atua principalmente com pacientes que buscam o desenvolvimento pessoal em diferentes aspectos, como profissional e pessoal, porém que não demonstram as mesmas vulnerabilidades.

O Curso de Psicologia & Coaching não é tão recente quanto o de Engenharia de Inovação. Além disso, ele faz parte do grupo de “ciências humanas” enquanto o de Engenharia está mais integrado à “ciências exatas”. Esta contraposição é proposital levando em conta os momentos em que as grades de ambos os cursos se encontram, com o intuito de promover auxílio mútuo e troca de informações interdisciplinares, beneficiando ambos. Coletivos de Psicologia e Coaching podem contribuir efetivamente para projetos da Engenharia da Inovação quando exigirem uma noção mais apurada dos padrões da psique humana, por exemplo.

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Conceitos e Referências

Além de conceitos e recomendações de teóricos do patrimônio empregados no projeto, foram estudados também alguns projetos de intervenção em patrimônio industrial, visando explorar possíveis soluções espaciais para a implantação do programa no projeto. Entre eles, destacam-se os projetos: Remodelação do ‘Hughes Warehouse’, pelo escritório Overland Partners em San Antonio, nos Estados Unidos; Planos de intervenção ‘Industrial Heritage Reuse Project’ da Preservation League of New York State; o projeto ‘Leszczynski Antoniny Manor Intervention’, do escritório NA NO WO architekci, de destinação à um complexo habitacional para idosos e assistência médica em um antigo conjunto industrial, em Leszno, na Polônia; a reutilização da estrutura de antigos galpões para uso institucional no projeto do Metropolitan Design Centre de Buenos Aires, do arquiteto Gaston Flores, na Argentina; a reutilização da estrutura do Matadero de Madrid para um complexo cultural, empreendida por diferentes arquitetos, na Espanha; a reutilização de uma antiga estrutura fabril para o projeto Z Gallery, do escritório O-Office em Shenzhem, na China; a adaptação da antiga fábrica Lingotto da Fiat para um conjunto multifuncional, de Renzo Piano em Turim, na Itália; e relativamente próximo ao recorte de estudo, o projeto de destinação e ampliação à Universidade Anhembi Morumbi, na antiga fábrica da Alpargatas, pelo arquiteto Valter Caldana, na região da Mooca.

O projeto da remodelação do Hughes Warehouse explora potenciais do antigo armazém através da instalação de espaços comerciais destinados à escritórios e área de coworking, a partir da recuperação parcial da estrutura e da demolição das partes que estavam comprometidas. Há características que chamam mais a atenção no projeto, como a mudança total da disposição da preexistência, a demolição da cobertura de uma das naves, mantendo apenas as paredes da fachada, e a criação de um pátio interno com nova fachada interna recuada, a nova materialidade que se destaca do original, e uma nova relação de fachada ignorando a toda caixilharia original. Porém, é um projeto que, diferentemente dos demais, não deve ser comparado a uma intervenção em patrimônio histórico, e sim como uma proposta de ‘retrofit’, compreendido aqui como ‘modernização’.

1. CHOAY, Françoise. Alegoria do Patrimônio, pg. 232

Figura 116: Hughes Warehouse antes da intervenção | Fonte: archdaily Figura 117: Hughes Warehouse após intervenção de Overland Partners | Fonte: archdaily Figura 118: Interior do projeto Hughes Warehouse | Fonte: archdaily

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“Modernização: procedimento novo, que falta mais abertamente ao respeito devido ao património histórico, ela coloca em jogo o mesmo desvio de atenção e a mesma transferência de valores pela inserção do presente no passado, mas sob a forma de um objecto construído e não de um espetáculo.

Modernizar não é então dar aspecto de novo, mas colocar no corpo das velhas construções um implante regenerador. Nesta simbiose imposta está implícito o facto de o interesse suscitado pela obra do presente se repercutir sobre a obra antiga, estimulando assim uma dialéctica. Cálculo de riscos consideráveis, mais uma vez” (CHOAY, Françoise.)1

Embora uma ‘modernização’ possa se tornar uma potencial descaracterização de bens imóveis, em casos de ausência de valor afetivo, arquitetônico, histórico e cultural do patrimônio industrial, ela se justifica. Comparando ao diferente contexto de valores da antiga Mesbla Veículos, qualquer proposta de ‘modernização’ deve ser cautelosa e bem justificada, como dito por Choay, “cálculo de riscos consideráveis, mais uma vez”.

O projeto ‘Leszczynski Antoniny Manor Intervention’, do escritório NA NO WO architekci, apresenta outra solução ousada, mas também justificada considerando o projeto como um todo. No processo de destinação à um complexo habitacional para idosos e assistência médica de um antigo conjunto industrial, optou-se pela demolição de um dos edifícios posteriores do conjunto para a construção de um novo edifício em um gabarito de altura similar, devido ao estado comprometido da estrutura, uma maior dificuldade de intervenções dado a tipologia, assim como a ausência de valores comparado ao edifício fabril principal do conjunto, que teve sua fachada restaurada e uma nova ampliação no último pavimento.

Os revestimentos das fachadas e da ampliação são elementos modernos visíveis que se relacionam com a cor dos tijolos do edifício mantido, criando uma legibilidade entre os tempos do conjunto, o que poderíamos associar a conceitos de Camillo Boito. Comparando ao contexto da antiga Mesbla Veículos, também há ampliações do conjunto que descaracterizam parcialmente a composição original, e que apresentam uma estrutura comprometida assim como uma falta de flexibilidade.

Figura 119: Conjunto industrial antes da intervenção Leszczynski Antoniny Manor | Fonte: Dezeen Magazine Figura 120: Projeto Leszczynski Antoniny Manor Intervention, do escritório NA NO WO architekci | Fonte: Dezeen Magazine Figura 121: Restauro da fachada e ampliação na cobertura | Fonte: Dezeen Magazine 165

Nos projetos do Metropolitan Design Centre de Buenos Aires, Matadero de Madrid, e Z-Gallery em Shenzen, foram propostas estruturas internas que, em grande parte, são independentes da estrutura fabril preexistente que as envolve, e também evidenciam as novas construções a partir da forma, disposição e materialidade, criando também uma legibilidade entre os tempos do edifício e uma relação de coexistência. Comparando ao contexto da antiga Mesbla Veículos, a implantação das estruturas independentes sob as naves que interligam todo o conjunto torna-se uma boa solução para abrigar parte do programa voltado à convivência e apoio, mantendo a permeabilidade visual de todo conjunto.

Quanto ao projeto de destinação à um edifício multifuncional da antiga fábrica Lingotto da Fiat, Renzo Piano utiliza os potenciais da forma preexistente para explorar diversas funções para a estrutura do edifício, criando um rico programa de usos assim como novos elementos que ora são distinguidos pela da cor turquesa – como a tubulação dos dutos de ventilação –, ora pela própria materialidade e revestimentos, podendo se associar a conceitos de Brandi e Boito. É empregada também ‘tecnologia de ponta’ nas adaptações da estrutura e da circulação vertical podendo se associar a alguns conceitos de Viollet-le-Duc, e finalmente, insere uma ampliação que pousa sobre a cobertura preexistente, de estrutura de vidro e formato esférico.

Por fim, o projeto de destinação à faculdade da Universidade Anhembi Morumbi do antigo complexo industrial da Alpargatas, onde o arquiteto propõe um novo edifício anexo ao conjunto em uma outra linguagem arquitetônica. No novo edifício estão locadas as áreas especiais e esportivas da faculdade; no edifício vertical de tipologia comercial estão locadas majoritariamente as áreas de apoio e salas de aula; e, por fim, no edifício da antiga fábrica estão dispostas principalmente as áreas de convivência e integração e a entrada principal da faculdade, na lateral dos galpões no espaço do recuo do edifício.

Figura 122: Matadero de Madrid, ‘Nave 16’. | Fonte: Plataforma Arquitectura Figura 123: Vista interna das galerias do Design Center Buenos Aires | Fonte: re-thinkingthefuture.com Figura 124: Corte Longitudinal do Design Center Buenos Aires | Fonte: FloresBarreiro Arquitectos Asociados 166

Figura 125: Perspectiva da antiga fábrica Lingotto. Turim, Itália. Nota-se a pista de testes sendo utilizada pelos veículos clássicos. | Fonte: Turim Italy Guide Figura 126: Vista interna da intervenção de Renzo Piano no projeto de destinação a multifuncional com a caixa de elevadores translúcida. | Fonte: RPBW.com Figura 127: Vista da cobertura do átrio com realce para a ‘esfera’ de Renzo Piano, e a antiga pista de testes adaptada a uma pista de atletismo. | Fonte: RPBW.com Figura 128: Intervenção em um dos átrios do conjunto da fábrica Lingotto | Fonte: Pinterest 167

Nos galpões da antiga fábrica, são propostas alterações na cobertura a partir da implantação de um material translucido, garantindo uma maior quantidade de luz difusa nas áreas de integração a partir da iluminação zenital. Comparando ao contexto da antiga Mesbla Veículos, se apresentam como solução a opção de um novo anexo voltado a áreas especiais, áreas de apoio e salas de aula, assim como a proposta de uma nova materialidade translucida na cobertura das naves.

Outros projetos fora do contexto de intervenções em patrimônio industrial foram estudados a fim de auxiliar no di-

mensionamento e elaboração de um programa mais aprofundado para os cursos propostos na ‘Faculdade Várzea do Cambuci’, como: as relações espaciais do projeto do Centro de Inovação UC, de Alejandro Aravena e Anacleto Angelini, no Chile; os projetos das faculdades de Engenharia e ‘Humanidades, Artes e Ciências Sociais’, assim como o laboratório ‘Senseable City’ dirigido pelo arquiteto Carlo Ratti, pertencentes ao MIT (Massachusetts Institute of Technology); o projeto da ITA Ciências Fundamentais, pelo escritório Metro Arquitetos, em São José dos Campos; e por fim o projeto não construído de Carlos Milan para a faculdade de Letras no ‘Corredor de Humanas’ da Cidade Universitária.

Figura 129: Vista aérea de um trecho do conjunto industrial da Alpargatas, no Brás | Fonte: Revista Exame Figura 130: Adaptações do interior da fábrica à faculdade da Anhembi Morumbi Mooca. Nota-se o uso da iluminação zenital | Fotografia de Deise Araujo Figura 131: Vista do claustro para a caixa de elevadores translúcida, no Centro de Inovação UC de Alejandro Araveno e Anacleto Angelini, Chile. | Fonte: Archidaily

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Figura 132: Planta do primeiro pavimento do ITA Ciências Sociais, em São José dos Campos | Fonte: Dezeen Figura 133: Sistema estrutural metálico e lajes em steeldeck no projeto do ITA Ciências Sociais. | Fonte: Dezeen

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Figura 134: Projeto da Faculdade de Letras para o Corredor de Humanas, do arquiteto Carlos Millan. Planta do TĂŠrreo Inferior | Fonte: Corredor das humanas. GFAU/FAUUSP

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Figura 135: Projeto da Faculdade de Letras para o Corredor de Humanas, do arquiteto Carlos Millan. Planta do TĂŠrreo Superior | Fonte: Corredor das humanas. GFAU/FAUUSP

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Plano de Massas

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Programa de Usos

Apesar do programa ser voltado principalmente às faculdades, outros tipos de usos são propostos e inseridos como complementos e articuladores do programa principal, no intuito de promover um caráter multifuncional ao conjunto edificado, e compreendendo as qualidades de cada edifica-

Diagrama 09: Novos blocos Diagrama 10: Isometria do projeto com filtro translúcido.

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ção da composição de Arnaldo Gladosch. Além da faculdade, há uma área destinada ao uso comercial e outra ao uso institucional.

Para o bloco 7 propõe-se, majoritariamente, áreas de apoio como refeitório e salas de aula convencionais, ligados por uma passarela aos blocos interligados pela rampa helicoidal

onde são propostas salas especiais, auditórios, biblioteca, laboratório de informática, foyer, e dependências administrativas.

Para o bloco 1 são propostas diferentes finalidades por nave.

Para a primeira nave, voltada para a Av. do Estado, é proposto um espaço de integração e recepção, com um jardim interno,

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0%

100%

um café, um diretório acadêmico, laboratórios de psicologia, e banheiros locados entre as naves. Para a nave intermediaria é proposta uma lanchonete sobre o mezanino e um espaço vazio de circulação disposto como um salão linear que articula todo o conjunto. Na terceira nave serão implantados parte dos laboratórios de engenharia da inovação, um auditório independente e uma área reservada ao grêmio estudantil. Pretende-se que a quarta nave, voltada para a Rua Luís Gama, seja um espaço de recepção do fluxo de pessoas provenientes do metrô, assim como uma área expositiva.

nos mezaninos e nos pavimentos intermediários da torre. No último pavimento da torre, compreendendo uma relação significativa com a paisagem, propõe-se um mirante com uma lanchonete de acesso público.

programa 2

área ocupada

No bloco 6, onde é proposta uma nova edificação no mesmo perímetro da ampliação demolida, propõe-se um uso mais comercial levando em conta as possíveis relações com os universitários e o corpo docente das faculdades. No térreo, uma área comercial e administrativa de frente para a rua, e no seu interior um foyer e um auditório. Nos pavimentos adjacentes propõe-se salas de aluguel e incubadoras no trecho original do projeto, e espaços de economia criativa no novo edifício, interligadas ao anexo da faculdade por meio de uma passarela no quarto pavimento.

0%

100%

Tabela 1-1

No bloco 2, assim como nos mezaninos da primeira e quarta naves, prevê-se usos de caráter semi-público, sendo uma área voltada a cursos institucionais desvinculados da grade curricular oficial das faculdades, como oficinas e ‘fab labs’ dispostos comercial

área livre

área total

subsolo x 2 terreo

área construída

0

condominial 248

17802

segundo pav.

área ocupada terceiro pav.

Tabela 1

1505

residencial

primeiro pav.

programa 1

estacionamento

2748

0

salas de professores

laboratórios

oficinas

salas de aula

1520

1064

940

6106

2105

0

6178

0

0

0

0

0

780

0

0

453

284

0

0

1332

0

0

2696

80

0

0

0

2096

80

0

0

272

657

80

3630 512

0

0

760

área verde 0

3743

0

estacionamento 760

1159

2610

0

0

6950

quarto pav.

8216

995

6162

178

área ocupada quinto pav.

2770

0

180

141

0

0

0

668

657

80

0

0

0

80

0

0

0

programa 2

41200

restaurante (café)

6178

comercial

2967

biblioteca

4561

cobertura

100

0

0

2772

0

480

convivência

serviços

banheiros

circulação

área total

área livre

48195 48195-4561=43634 *total menos área livre = área construída

5062

9676

1463

1754

5018

0

0

0

0

0

6178

526

7910

1191

510

700

17965

669

93

0

191

936

5025

1356

300

68

309

1069

5878

1428

980

68

309

836

5897

1083

300

68

280

977

0

93

68

155

500

0

284

116

0

35

edificação mantida

edificação proposta

CA - 1.9

TO - 0.7

4890 2362

515 área calçada 3545

área ocupada

22742

6015

12984

3743

2470 * sem calçadas

comercial

área livre

estacionamento

biblioteca

restaurante (café)

salas de professores

laboratórios

oficinas

salas de aula

convivência

serviços

banheiros

circulação

programa 1

área total

área ocupada

subsolo x 2 0%

100%

terreo

primeiro pav. segundo pav. terceiro pav. programa 2

quarto pav. quinto pav.

área ocupada

0%

cobertura

100%

área ocupada 0%

10%

20%

30%

40%

50%

60%

70%

80%

90%

100%

Tabela 1-1 comercial área total

subsolo x 2 terreo

área livre

estacionamento

biblioteca

restaurante (café)

salas de professores

laboratórios

oficinas

salas de aula

convivência

serviços

banheiros

circulação

área total

área livre 48195 48195-4561=43634 *total menos área livre = área construída

2748

4561

6178

1520

1064

940

6106

2105

5062

9676

1463

1754

5018

0

0

6178

0

0

0

0

0

0

0

0

0

0

6178

526

7910

1505

3630

0

760

780

0

0

453

1191

510

700

17965

primeiro pav.

248

512

0

760

284

0

0

1332

669

93

0

191

936

5025

segundo pav.

0

0

0

0

0

0

2696

80

1356

300

68

309

1069

5878

terceiro pav.

0

100

0

0

0

0

2096

80

1428

980

68

309

836

5897

quarto pav.

995

178

0

0

0

272

657

80

1083

300

68

280

977

4890

quinto pav.

0

141

0

0

0

668

657

80

cobertura

0

0

0

0

80

0

0

0

área ocupada

1

Gráficos 03comercial e 04: Proporção do programa por pavimento e taxas de ocupação do projeto. área livre estacionamento biblioteca restaurante (café) salas de professores área total subsolo 176x 2 terreo

0

93

68

155

500

0

284

116

0

35

edificação mantida

edificação proposta

CA - 1.9

TO - 0.7

2362 515 área calçada 3545 22742

6015

12984

3743

2470 * sem calçadas

laboratórios

oficinas

salas de aula

convivência

serviços

banheiros

circulação

Memorial do Projeto

Inicialmente, propõe-se restabelecer as relações perceptíveis do conjunto edificado com a paisagem e seu entorno.

A primeira intervenção proposta no conjunto é o resgate da relação entre o conjunto e o Rio Tamanduateí, a partir da remoção da extensa cobertura revestida de pele de vidro. Seguindo alguns princípios de Viollet-le-Duc, propõe-se a recomposição e restauro da fachada original acompanhando o ritmo estrutural das naves, e recriando a ‘expansão da cidade para dentro conjunto’ concebida por Arnaldo Gladosch, e evidentemente removendo as grades que cercam todo limite do lote na fachada voltada a Av. do Estado para o retorno do ‘calçadão’ público ao invés da atual estreita calçada em uma via de alto fluxo.

As fotografias antigas que denunciam os detalhes do projeto original, assim como relatos de poucos autores que estudaram a obra Arnaldo Gladosch, foram em grande parte a principal base para a proposta de recomposição da fachada. O desenho da recomposição foi elaborado estudando também a paginação original do ‘diaper’ em assentamento francês de tijolos utilizado por Gladosch, com medidas retiradas ‘in loco’ onde ainda remanescente (fachada voltada para a Rua Luís Gama), e a partir de um estudo simultâneo das plantas estudadas e as fotografias de época, foi delimitado o ritmo e volume das paredes originais.

Trama

esc.: 1 : 50 assentamento francês

Considerando 1cm de Rejunte (Horizontal) e 2cm de Rejunte (Vertical),

26 x 11 x 6

ESTUDO DO ASSENTAMENTO ESC.: 1:75

diaper

esc.: 1 : 50 tijolos queimados salientes da trama ritmo: intervalo de 1 fileira losangos de 7 x 7 tijolos queimados angulação: 47º aprox. 3cm em balanço

Além da proposta de recomposição e restauro da fachada voltada para a Av. do Estado, são propostos também o restauro das aberturas originais e a remoção dos nichos preenchidos em alvenaria de tijolos destoantes empreendida por reformas posteriores, para recriar a relação com a marquise e criar uma relação de legibilidade dos tempos no conjunto, e nas ruas Alexandre Levi e Luís Gama, propõe-se a manutenção das fachadas e tratamento das atuais patologias como excesso de fuligem, proveniente das fogueiras feitas pelos moradores de rua da região em estações frias.

Ainda na parte externa, todos os caixilhos originais em mediano estado de conservação serão retornados à pintura original na tonalidade verde-musgo, assim como a grelha metálica

ESTUDO DO DIAPER

isometria explodida

ESC.: 1:75

ESC.: N/D

179

do bloco voltado entre a Av. do Estado e a Rua Alexandre Levi. Os trechos demolidos da marquise serão reconstruídos com a mesma dimensão do beiral original em lajes em balanço apoiadas na estrutura das naves, e sua aparência será retornada ao acabamento original de jateamento de argamassa, contrastando com o ‘diaper’ da alvenaria de tijolos. No interior de todo o conjunto, serão retirados todos os acréscimos realizados após a venda do imóvel na década de 1990, para uma melhor leitura da espacialidade e evidenciando a estrutura.

No intervalo de espaço entre o conjunto edificado e o bloco anexo, é proposta uma paginação de piso em placas de megadreno e concreto permeável, criando um padrão geométrico que faz alusão ao ‘diaper’ de tijolos confeccionado por Gladosch, presente nas fachadas das naves e na torre, a partir do mesmo ritmo do desenho. O aspecto linear da paginação também tem o intuito de demarcar uma rua de fruição pública no terreno do conjunto. Do lado em que o piso toca o conjunto preexistente, a paginação envolve gramados nas linhas intermediárias, e do lado onde se loca o anexo e a nova ampliação do bloco da Luís Gama, as linhas intermediárias passam a ser também em concreto, permeando também no interior de todo o térreo das novas edificações, porém a partir de outra materialidade aparentando o padrão geométrico de maneira mais sutil comparado ao trecho externo.

Perspectiva 06: Vista da rua interna interligando o conjunto preexistente e o anexo proposto.

Perspectiva 07: Vista para a fachada norte na Av. do Estado recomposta.

180

181

Bloco 1

No interior do conjunto também se opta pelo restauro, porém apenas parcial em determinados pontos onde há coerência com o projeto, no intuito de aproveitar a forma e a estrutura para novas funções estabelecidas no programa. São propostas as reaberturas de todas as janelas e tijolos de vidro distribuídos entre os lanternins das naves, assim como a remoção das paredes construídas entre os pilares, retornando à disposição, iluminação zenital e permeabilidade visual da estrutura original do conjunto.

Usando como referência os projetos estudados, propõe-se a implantação de um material translucido no telhado de duas águas da primeira nave voltada para a Av. do Estado,

Perspectiva 08: Vista interna do mezanino para a primeira nave.

182

com o intuito de trazer uma quantia considerável de luz natural e fortalecer um aspecto gradativo da ‘expansão da cidade para dentro do conjunto’, empregada por Gladosch, resultando então em uma ‘semelhança à arquitetura renascentista’ a partir do momento em que a primeira nave assume um papel e forma que podem ser comparados a uma ‘loggia’ .

No térreo são propostas ocupações de ambientes que envolvem, porém não tocam a estrutura das naves, locados principalmente entre os pilares de cada nave quase tocando a laje mais baixa dos lanternins e alinhados ao limite do console de sustentação das arcadas, seguindo também os conceitos de ‘planta livre’ para garantir a fruição e a permeabilidade destes

ambientes em ambas as naves. A disposição destas ocupações não é uniforme para garantir uma relação homogênea entre os cheios e vazios do interior das naves e permitindo uma fruição dispersa além dos fluxos lineares. As ocupações dos banheiros dispostos linearmente são locadas no limite entre a primeira e segunda nave e o bloco da rua Alexandre Levi, e no limite da segunda e terceira nave com a quarta nave, garantindo uma distância equilibrada entre todo o conjunto.

A ocupação dos espaços e salas especiais como o auditório, diretório acadêmico, banheiros, café, entre outros dispostos ao longo do pavimento térreo das naves segue os princípios de Cesare Brandi, colocadas como estruturas independentes

183

com o intuito de que possam ser removidas ou realocadas posteriormente, e visualmente distinguíveis da materialidade e composição do projeto original.

Na segunda nave onde se propõe um espaço livre, um grande salão linear, há uma contraposição entre formas geométricas feita pela ocupação de volume ortogonal do diretório acadêmico que avança parcialmente sobre o salão e volumes

circulares, como o auditório, servindo de elemento de ‘quebra da racionalidade’ da disposição das ocupações internas da nave.

Nos mezaninos da primeira e quarta naves propõe-se que as lajes toquem unicamente as estruturas voltadas para as ruas que circundam o conjunto, recuando os mezaninos da estrutura interna, criando uma nova relação com o campo de visão para a estrutura de cobertura das naves. O mezanino da primeira

Perspectiva 09: Vista interna do mezanino para a terceira nave, mostrando laboratórios de engenharia da inovação e o auditório.

184

nave tem uma estrutura independente de apoio sobre pilares esbeltos de concreto preexistentes, onde se implanta o café sob o limite da laje solta da estrutura das naves internas. Porém, para criar esta mesma relação no mezanino da quarta nave que se interliga ao mezanino do bloco voltado para a Rua Luís Gama, é proposta uma estrutura metálica para evitar um balanço desproporcional da estrutura.

Para a circulação vertical entre o térreo e os mezaninos, são propostas também duas escadarias de estrutura independente e visivelmente suspensas do mezanino, assim como três elevadores de pistão hidráulico em caixas independentes de estrutura metálica dispostos nos limites de cada mezanino para garantir a acessibilidade.

185

Perspectiva 10: Vista interna da segunda nave para o espaço do salão linear e a biblioteca.

Perspectiva 11: Vista interna da segunda nave para o espaço do salão linear, os blocos do banheiro, auditório, e laboratório de psicologia.

186

Perspectiva 12: Vista interna da quarta nave.

187

Bloco 2

pelas escadarias. Para tanto, é criado novo um lance de escadas que acompanham a escadaria helicoidal preexistente no centro da torre, e um elevador em forma cilíndrica incrustrado nas paredes de sustentação da escada, garantindo acessibilidade até o último pavimento da torre.

Como já mencionado, para o pavimento térreo da torre se opta pela remoção das paredes construídas nas reformas, resgatando o hall original e sua generosa e convidativa abertura de caráter expressionista que marcam a esquina da Rua Luís Gama com a Avenida do Estado, reafirmando também os aspectos de leveza da torre pousando sobre a marquise. O acesso à torre se dá exclusivamente pelos mezaninos que agora são acessados

Perspectiva 13: Mirante da torre.

Perspectiva 14: Hall de entrada da torre.

188

Dado a estreita área interna dos pavimentos da torre, é nesse espaço que se propõe também parte das oficinas e ‘fab labs’ de menor escala, setorizados por pavimento. Por fim, no último pavimento, são removidas as paredes internas para garantir um espaço de mirante na metade voltada ao norte, onde há a relação direta com a paisagem da extensão do Rio Tamanduateí. Propõe-se que a torre reestabeleça uma relação significativa com a paisagem que o mirante fornece, sendo durante o dia a generosa torre que marca as horas, e a noite, com a sua iluminação, traria aspectos semelhantes aos de um farol, criando uma nova relação com a paisagem e contexto urbano do Cambuci.

189

Bloco 3 teto. Já na entrada pela Rua Alexandre Levi propõe-se um espaço de hall de recepção para um grande fluxo de alunos, permitindo uma relação visual com a rampa helicoidal e as naves ao fundo.

No mezanino, propõe-se divisões internas alinhadas ao limite da laje ao teto, destinadas a outra área administrativa e reserva técnica, tendo acesso também ao mezanino da segunda nave, onde é proposto uma lanchonete.

No edifício locado na esquina entre a Av. do Estado e a Rua Alexandre Levi propõe-se, no térreo alinhado com a entrada pela Av. do Estado, uma área administrativa cujos fechamentos não tocam a estrutura, estabelecidos em uma altura abaixo do

Perspectiva 15: Corte perspectivado da rampa helicoidal (bloco 4).

190

No segundo e quarto pavimentos do edifício, as divisões internas recuam das paredes e da estrutura, criando acesso às salas de palestra, até que no terceiro pavimento destina-se todo o andar a um foyer a meio nível dos auditórios locados no quarto pavimento do outro bloco ligado pela rampa helicoidal. A caixa de circulação do edifício também leva a área de cobertura da rampa, que se destina a mais uma área de convivência a partir do uso de solário ou ‘fumódromo’ na área aberta, com acesso exclusivo aos alunos e corpo docente das faculdades.

Bloco 4

O projeto pretende que o bloco da rampa helicoidal seja um dos principais pontos de circulação e interligação da faculdade, conectada também à passarela do segundo pavimento que liga novamente o bloco anexo aos edifícios. A rampa preexistente, que originalmente levava os veículos do térreo aos pavimentos adjacentes, tem uma inclinação próxima a 11,5%; porém, dada a necessidade de adaptação para acessibilidade, é proposto no átrio da rampa helicoidal um elevador de estrutura independente que se abre em duas direções para os edifícios interligados pela rampa, conectado a todos os patamares dos edifícios por passarelas a cada meio nível, sendo toda nova estrutura em metal e com um acabamento de fácil distinção em relação a estrutura preexistente.

Perspectiva 16: Fachada restaurada do bloco 3.

191

Bloco 5

O térreo do quinto bloco abriga uma biblioteca que demarca a implantação do edifício em relação às naves a partir da delimitação em paredes de vidro-duplo, alinhadas com as lajes adjacentes, pousando no térreo como uma caixa de vidro onde são dispostas as estantes de livros e mesas de leitura que circundam os pilares sem tocá-los.

Na fachada sul do edifício é onde se propõe a permanência das caixas de circulação vertical e de áreas de apoio do edifício, como banheiros de pequeno porte e corredores de circulação, deixando a face conectada à rampa em espaços vazios

Perspectiva 17: Vista da rua interna do conjunto sentido rua Alexandre Levi.

192

do primeiro ao último pavimento, visando a descarga dos fluxos de alunos e do corpo docente. No primeiro pavimento, propõe-se uma sala de leitura delimitada também por paredes de vidro-duplo, porém que agora recuam das paredes e da estrutura, assim como nos pavimentos adjacentes para o laboratório de informática e para os auditórios. No segundo pavimento, onde encontra-se o laboratório de informática, há uma passarela de ligação ao bloco anexo da faculdade onde se concentram as salas de aula e salas de professores, articulando toda área acadêmica.

No último pavimento se implantam auditórios a meio-nível acima do foyer no bloco da Rua Alexandre Levi, dada a ausência dos pilares que morrem na terceira laje e um maior pé direito por conta do telhado, propiciando melhores potenciais acústicos e de relação visual nos auditórios.

Bloco 6

Dado o estado precário da estrutura interna e externa, é proposta a demolição da ampliação do bloco, assim como dos galpões posteriores do projeto original conforme analisado por fotografias aéreas dos anos de 1940 até 1958, além de não receberem o mesmo tratamento de acabamentos do remanescente e destoantes do conjunto.

Neste bloco em especial, propõe-se a construção de um novo edifício concebido em sistema estrutural metálico e lajes de steeldeck. A opção de empregar o uso de lajes de steeldeck assim como vigas encasteladas é adotada devido à grande

versatilidade da estrutura e dos vazios entre a laje e o forro. O volume da nova ampliação acompanha o limite do lote em sua face leste no pavimento térreo, criando dois alinhamentos com o bloco anexo e possibilitando mais um auditório semienterrado.

Nos pavimentos adjacentes, o recorte da ampliação volta a ser o mesmo que o original exceto pela presença do chanfro alinhado ao bloco anexo, que se mantém até o terceiro pavimento. No quarto pavimento, a cota de nível torna-se equivalente ao quarto pavimento do bloco anexo, onde se propõe a implantação de mais uma passarela de ligação entre o bloco da ampliação e o bloco do anexo.

Comparado à ampliação demolida, cria-se um pavimento a mais a partir da diminuição de altura do pé direito do quarto pavimento, mantendo a mesma relação de altura entre a cota da cobertura do quinto pavimento e a cumeeira do telhado do edifício original do bloco da Rua Luís Gama. Outro detalhe é que, a partir do quarto pavimento, o perímetro externo da ampliação torna-se equivalente ao perímetro da ampliação preexistente demolida. Na fachada sul do edifício original propõe-se novas aberturas para janelas empena cega assim como a criação de uma nova fachada a partir do segundo pavimento onde acaba o embasamento proposto nos ensaios de intervenção da quadra, garantindo iluminação natural e ventilação cruzada para todas as repartições internas dos pavimentos adjacentes. Cria-se

Perspectiva 18: Nova relação de átrio proposta no bloco 6.

193

também uma fachada leste para o edifício original que espelha o ritmo, forma e ornamentação da fachada oeste em uma outra materialidade distinguível e uma caixilharia contemporânea e mais depurada que mantenha a legibilidade da intervenção.

A fim de resolver as questões de circulação e adaptação do bloco como um todo, de acordo com as diferentes recomendações de normas técnicas e do código de obras, além do desejo de recriar a presença de um átrio como na disposição original, propõe-se passarelas duplas alinhadas entre os limites do edifício original e a ampliação no segundo e terceiro pavimentos, e uma caixa de circulação vertical recuada do limite do terreno onde propõe-se uma escadaria externa e quatro caixas de elevadores panorâmicos, usando o átrio do projeto de Alejandro Ara-

vena no Centro de Inovação UC como referência, para garantir uma relação visual entre o prédio majoritariamente comercial.

Com o intuito de esclarecer uma relação de legibilidade e distinção entre os tempos do conjunto além da nova materialidade adotada, opta-se por revestimentos de pele de vidro e paredes de tijolos vazados em uma tonalidade distinta dos tijolos usados no conjunto edificado.

No pavimento térreo do edifício original, um espaço de foyer será destinado para o auditório criado no anexo, separado da relação direta com a Rua Luís Gama por uma parede que subdivide o pavimento, criando os acessos pelas laterais e também

Perspectiva 19: Vista da cobertura do bloco 1 para as novas edificações do conjunto, destacadas em aço cor tabacco contra o verde-musgo dos caixilhos preexistentes.

194

delimitando duas lojas voltadas às necessidades das faculdades, uma de maior dimensão e pé direito duplo e outra de menor dimensão delimitada pelo alinhamento ao mezanino, voltadas para a rua. No mezanino do edifício existente, se propõe o fechamento do piso à laje por vidro, garantindo uma relação visual entre o térreo e as oficinas e ‘fab labs’ locados no mezanino, acessado exclusivamente pelas escadarias dispostas no bloco das naves assim como os elevadores de pistão hidráulico. Como mencionado, se prevê neste bloco um uso voltado ao caráter

comercial levando em conta os potenciais da tipologia preexistente e também as possíveis relações socioeconômicas com os universitários e o corpo docente das faculdades. Portanto, nos pavimentos adjacentes se propõe espaços de economia criativa e ‘coworking acadêmico’ (voltado especialmente a ao empreendedorismo acadêmico) no novo edifício de ampliação, e salas de aluguel assim como incubadoras no edifício original.

195

Bloco 7 (bloco anexo)

além de ganhar um pavimento adicional para a locação de mais salas de aula.

A malha estrutural do bloco anexo propõe um alinhamento ao ritmo estrutural dos blocos existentes a fim de manter a relação da racionalidade usada por Gladosch, e também para que em determinado momento haja uma passarela de ligação entre o bloco anexo e os blocos interligados pela rampa helicoidal. No pavimento térreo, o edifício ocupa a área sudoeste do lote até o limite do terreno para a implantação de áreas de apoio especiais como o refeitório e uma loja de livraria, assim como para a implantação de duas escadarias externas independentes da estrutura do edifício.

Neste bloco optou-se pelo mesmo sistema construtivo proposto para o bloco 6, e neste bloco do anexo em especial cria-se uma outra relação de níveis, diminuindo cerca de um metro por pavimento comparado ao conjunto original, para que se mantenha o mesmo gabarito de altura na relação à cota mais alta dos blocos voltados para a Rua Alexandre Levi e permitindo as interligações por passarelas no segundo e quarto pavimentos,

196

A ocupação da livraria logo em frente à Rua Alexandre Levi se dá por conta do desejo de manter também a relação com transeuntes que não tenham vínculos com as faculdades, e forma um chanfro no pavimento térreo que espelha o chanfro da fachada leste do edifício, que contando com as hipóteses de intervenção na quadra formariam o já mencionado emoldura-

mento. Logo em frente à livraria, no limite do lote, se propõe um acesso de veículos e bicicletas aos subsolos, onde encontra-se mais uma área de depósito e reserva técnica, o bicicletário e vagas para deficientes destinadas ao público das faculdades e vagas convencionais destinadas exclusivamente ao uso do corpo docente.

Ainda no pavimento térreo, propõe-se que todas as ocupações se mantenham alinhadas ou recuadas dos pilares, a fim de manter parte do eixo de circulação coberta pela projeção do pavimento adjacente que se estende até o bloco 6, e em determinado momento entre os limites do bloco 6 e o bloco de anexo é criado um pequeno pátio destinado à áreas administrativas e reserva técnica, onde encontram-se as saídas de emergência do auditório, os vestiários, a enfermaria e duas vagas de ambulância.

No primeiro pavimento, destina-se todo o piso à salas individuais de professores, diretoria, coordenação e copa, enquanto no segundo pavimento, onde há uma ligação por passarela com os blocos interligados pela rampa helicoidal, a metade leste é ocupada por salas de aula convencionais e laboratórios e a metade oeste é ocupada novamente por mais salas individuais

Perspectiva 20: Relação entre o bloco 3 e o bloco anexo, fachada da rua Alexandre Levi.

de professores. Por fim, nos pavimentos superiores são ocupados inteiramente pelas salas de aula e laboratórios, sendo que no quarto pavimento há a já mencionada interligação por passarela com o bloco 6. Os elevadores são dispostos no módulo central do edifício, enquanto as escadarias externas são locadas, uma logo atrás do módulo central onde encontram-se os elevadores, e outra no limite oeste do edifício.

A fim de criar o devido tratamento nas fachadas leste, oeste e principalmente norte para propiciar conforto térmico ao edifício anexo, somado a necessidade das relações de materialidade com o conjunto preexistente, propõe-se o mesmo sistema de fachada que o do bloco 6. Considerando a área de sombra de insolação permanente por conta do conjunto edificado preexistente, opta-se por uma parede de tijolos vazados de tonalidade mais clara e inteiriça entre o quarto e quinto pavimentos, apoiada entre as vigas de borda em toda fachada norte. Já no primeiro ao terceiro pavimentos, considerando uma menor incidência da luz solar por conta da sombra permanente do conjunto preexistente, as paredes de tijolo vazado são distribuídas de maneira mais arbitrária, criando uma composição visual de cheios e vazios e uma passagem gradual entre os últimos pavimentos preenchidos pelas paredes de tijolo vazados e o primeiro pavimento predominante preenchido por peles de vidro.

197

Perspectiva 21: Vista da passarela do bloco anexo para a paginação de piso proposta.

198

199

Perspectiva 22: Vista da requalificação das fachadas originais do conjunto e os edifícios anexos ao fundo.

200

201

Epílogo

Figura de abertura do Capítulo: Pintura “Symphonie Vitale”, de Henry Valensi, 1952.

234

“Um dos fenómenos mais marcantes da vida moderna é o associativismo. Qual é o seu móbil, donde vem o ímpeto urgente para tal? (...) aqueles que se unem com uma determinada finalidade crêem assim que estão a ser úteis não só a sí próprios, mas também à colectividade, na medida em que desempenham uma tarefa determinada como que numa espécie de divisão do trabalho no seio da colectividade” (RIEGL, Alois. O Culto moderno dos Monumentos. p. 126)

Epílogo

Este trabalho nos leva a diversas conclusões, não somente no que diz respeito ao projeto e aos desejos de uma requalificação dos espaços urbanos, nem somente no que diz respeito a explorar os potenciais do nosso patrimônio construído, afirmando-o como parte de nossa identidade, ao invés de o ‘anular’ no intuito de criar uma ‘falsidade ideológica’. A partir da análise histórica e dos diagnósticos compreendemos o quão drástico podem ser os ‘efeitos colaterais’ de projetos justificados a partir de uma duvidosa retórica, como no caso dos projetos viários da década de 1970, e a atuação desenfreada dos promotores imobiliários no espaço urbano. A única vantagem em haver ‘erros’ do gênero em nosso atual contexto urbano, é o exemplo do que se torna inviável de ser proposto novamente, a partir do momento que temos conhecimento sobre os erros do passado, procuramos nos aperfeiçoar para não os cometer novamente.

A busca pelo aperfeiçoamento é intrínseca ao ser humano, portanto é natural que busquemos nos aprimorar ao longo do tempo, sendo também este o motivo das grandes contribuições históricas de diferentes descobertas e inovações dos habitantes de nosso planeta. Nunca devemos deixar de questionar o que nos circunda, o que nos é imposto, o que é estabelecido. Por outro lado, devemos tomar cuidado com as retóricas que demonstrarem ‘opressão intelectual’. Como coloca Claude Lévi-Strauss, “O leque das culturas humanas é tão vasto, tão variado (e de fácil manipulação) que, sem dificuldades, encontramos argumentos que sustentam toda e qualquer hipótese”.

Independente do atual cenário caótico repleto de conflitos ao redor do mundo e suas tendências negativas, é um dever humano nunca perder a esperança de um mundo melhor, por

mais utópico que venha a parecer. Nós, arquitetos, e antes de arquitetos, seres humanos, devemos nos unir e lutar pelas causas que acreditamos em prol de um mundo melhor, pelos nossos ideais, independentemente de estarmos em maioria ou minoria, mesmo que isto requeira ‘nadar contra a corrente’.

A própria passagem do incógnito arquiteto Arnaldo Gladosch ilustra bem este fato, apesar do rechaço por nadar contra uma corrente majoritária, mostrou-se um arquiteto além do seu tempo, com propostas que hoje admiraríamos ou associaríamos até mesmo com conceitos da arquitetura contemporânea. A passagem de Gladosch também nos deixa outra lição, que comparo a alusão latina “victrix causa diis placuit, sed victa Catoni” (a causa vitoriosa agradou aos deuses, e a vencida a Catão) usada pelo poeta romano Lucano sobre a fidelidade de Catão, o Jovem, após perder para César. Esta alusão significa a lealdade daqueles que não abandonam a sua causa, embora possa ser uma causa perdida.

Devemos sempre procurar compreender aquilo que nos originou, ter em mente a ciência de nossa história, conhecer os meandros do tempo que nos levaram à nossa identidade, não somente como indivíduos, mas como uma ‘egrégora viva’ de pensamentos, posicionamentos, credos e culturas na sua mais rica diversidade. No que diz respeito à cidade e ao patrimônio material, devemos zelar pela salvaguarda para as próximas gerações de nossa memória construída, dos nossos valores culturais, históricos e afetivos que refletem justamente a nossa rica diversidade, mesmo que as gerações anteriores não o terem feito por nós. A salvaguarda da memória coletiva é também uma forma de respeito aos que já se foram, aos que vivem e aos que virão. Por fim, encerro este trabalho com uma última citação:

“Patrimônio é tudo o que de século em século se conserva como se fosse uma única chama o esplendor nenhum e sem fim do nosso coração imperecível e prometido à morte” (LOURENÇO, Eduardo. 2015)1 1. LOURENÇO, Eduardo. Revista Património, Lisboa, v. 0, n. 3, p.82-94, dez. 2015

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Figura de abertura do CapĂ­tulo: Parte de minha estante. Acervo do autor.

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