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Cultura | Corpo são em mente sã | PhD António Delgado

PhD António Delgado Docente Universitário Investigador no CIEBA- U.Lisboa

Cultura

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"Corpo são em mente sã"

Mens sana in corpore sano ou Orandum est ut sit mens sana in corpore sano .

Não é correto atribuir esta frase a Platão ou a outros pensadores gregos, na verdade ela é do poeta Romano Decimus Junius Juvenalis, simplesmente conhecido por Juvenal, a quem devemos a sua autoria. E hoje, a frase serve-me de mote para expor a relação da Medicina com as Belas Artes e como esta afirmação assenta em bases de uma espiritualidade pretendida que foi primeiramente anunciada na prática e no Ocidente pela cultura Grega, apesar de nos dias que correm, estar tão afastada daquele nobre princípio. A sua alusão é pertinente dado terem decorrido, neste Verão algumas competições desportivas de enorme relevo internacional como foram o Campeonato Europeu de Futebol entre seleções e os Jogos Olímpicos no Japão. E, em ambos os eventos existirem sérios sinais de como a saúde "mental dos atletas" os afecta determinantemente. Revelando ser uma questão particularmente sensível a todas as modalidades e um campo bastante obscuro que a «Indústria desportiva» omite indiferente a esta complicada vulnerabilidade. Afinal a citação latina "corpo são em mente sã" que há séculos faz a alegria das Academias, do desporto e ginásios, não é verdadeira. Até porque ter uma mente brilhante não é sinónimo de possuir um corpo são nem o contrário é correto. (recorde-se por exemplo o cientista britânico Stephen Hawking ou o imperador Cláudio) À luz dos Jogos Olímpicos de Tóquio, alguns atletas fizeram manifestações públicas assinalando a sua vulnerabilidade física numa perspectiva muito concreta: o da Saúde Mental. Admitindo a necessidade de ajuda psicológica como fez a atleta Simone Biles. A sua entrevista teve um grande impacto na imprensa mundial sendo unânime a conclusão de que poderá ajudar muitas vidas.. A ginasta desistiu mesmo de participar numa prova referindo que "estar bem consigo mesmo é mais importante do que ganhar medalhas". De facto, as multidões que enchem os estádios e muitos dos telespectadores que seguem as competições olímpicas e desportivas pela televisão esquecem ou talvez não imaginem que para além das enormes pressões e cargas emocionais associados ao acto de competir, também existem por detrás destes atletas histórias pessoais e muitas delas dramáticas: com casos de rejeições, passados familiares degradantes, de abuso, adição e até crime. E ainda outros fatores que ofendem a dignidade humana como a exclusão social ou racial ou a de refugiados políticos e emigrantes. Muitas vezes estes desportistas são antes de mais sobreviventes e só depois campeões. Muitos deles ao não conseguirem a vitoria do país que representam sofrem vilipêndios humilhantes como os sofridos pelos jogadores negros da selecção inglesa que falharam penáltis o que teve como consequência a eliminação de Inglaterra. Por isso e para muitos deles a pressão emocional e psicológica é imensa ao ponto da própria Simone Biles interrogar-se na entrevista supracitada que "fora do ginásio, quem sou eu? Ainda estou a descobrir-me?” Uma questão que denota a falta de vivência: da vivência de um mundo real, que não é proporcionada a uma criança superdotada na área desportiva e que é deste modo absorvida pela engrenagem desta "indústria” de alta competição que depois sobre ela exerce toda a sua tecnologia e doutrinação que a esteriliza do mundo real e transforma o seu corpo e mente numa espécie de ciborgue desportivo, mediante a implantação de tecnologias apropriadas das quais fazem parte a alimentação, suplementos, manutenção do corpo através de máquinas e apropriados aditivos alimentares, que os privam de vidas

normais, tal como os animais de aviários são privados, para nutrir a indústria alimentar de que somos dependentes. Poucos de nós, consumidores passivos e massivos do "Desporto Industrial" e simples mortais, adoradores destas "máquinas humanas", teremos consciência dos demónios que os atletas têm de vencer dentro de si e outros igualmente associados à competição por ordem prescritiva de todos os géneros ora ditados pela medicina desportiva e negócio em que o desporto se transformou: contratos de patrocinadores, publicidade das marcas; dos suplementos alimentares juntando-se ao desfile as perseguições políticas e falta de apoios e condições na preparação e treino. À "indústria desportiva" só lhe interessa um corpo máquina duradouro e sempre pronto a responder à competição e a vencer. Não lhe interessa o indivíduo, a pessoa do atleta, as suas inquietações , as suas dúvidas, as suas emoções, sobretudo agora que entramos na rápida obsolescência dos bens de consumo, onde o corpo pelo desporto parece ganhar estatuto de objeto a um ritmo semelhante àquele com que hoje trocamos de computador, carro ou telemóvel…até o corpo voltar a um ponto de partida e o atleta ser vítima dessa indústria remetendo-o à sua "querida mediocridade", num usar e deitar fora, não com o estatuto de Deuses do Olimpo mas como simples mortais. Talvez por dar-se conta de como foi enganado por esta indústria, o campeão olímpico Michael Fred Phelps depois de ganhar 23 medalhas de ouro e deixar a alta competição tornou-se um ativista da "Saúde Mental" ao admitir lutar há décadas "contra a ansiedade, a depressão e pensamentos suicidas". Muitos poderiam ser os exemplos a apresentar sobre desportistas que entraram num beco sem saída. Angústias existenciais que desvelam que o nosso conhecimento sobre estes atletas é mais idealizado do que real e fabulado num suposto mito do Olimpo em que vivem. De facto o campeonato europeu de Futebol e os Jogos Olímpicos no Japão ensinaram-nos a ver a precária "Saúde Mental" de alguns atletas e quando o jogador dinamarquês caiu inanimado em pleno estádio (outros chegam a morrer....) apercebemo-nos do que representa em termos sociais e culturais e sobretudo éticos toda a farsa em que a indústria desportiva se transformou com a nossa cumplicidade. Talvez tivéssemos percebido afinal que o mantra " mente sã em corpo são" é um mito sem correspondência com a realidade e que requer uma nova ordem ética na sociedade. No entanto, espreitemos, em linhas gerais, algumas ideias feitas pela cultura em relação ao nosso corpo. Para a sociedade Ocidental, a ideia de corpo, refere-se constantemente a um padrão onde confluem aspectos tanto de carácter físico e estético como culturais e espirituais. O conceito de corpo não é um facto objetivo e imutável, mas antes uma realidade produzida tanto pelo tempo como pela história pessoal do sujeito e pela envolvência física e cultural na qual se desenvolve a sua existência. O corpo evidencia a insistência de todos os momentos da vida (sofrimento, hedonismo,trabalho, saúde…) e a forte impressão simbólica que pode chegar a ter, não apenas como objeto natural, mas campo de transformações e invenção (máscaras, maquilhagens, magia, esculturas, tatuagens, cirurgias plásticas…) como campo de representação das diferentes culturas no mundo e também como campo das diferentes e as mais diversas pulsações e/ou como sujeito da sexualidade. Cria-se assim o corpo, como um claro produto sócio-cultural do qual se desprendem diversas visões e imagens que o sujeito terá, dependendo igualmente da sua própria situação na escala social e da ideologia que professe. Em tudo isto também sobressai de forma evidente o desejo constante de todas as sociedades no controlo do corpo, ora exaltando-o (Fig 1) ora anatomizando-o (fig 2) Deste modo o corpo humano converteu-se no sujeito central que impregna toda a vida quotidiana e histórica no Ocidente. No entanto tudo o que é Grandioso e Belo, nesta cultura, tem os seus fundamentos na Cultura Grega Clássica. E o corpo como ideal de Beleza e o recurso ao exercício físico para atingi-lo não foge a esta regra. Na antiga Grécia a exercitação do corpo constituía o meio para a formação do indivíduo e do seu Espírito. Platão referia a ginástica para o "aperfeiçoamento do pensamento elevado e justo". E as ideias de Sócrates, como as obras de Platão, Aristóteles e outros filósofos gregos, atestam o valor da Educação Física entre os gregos, para adquirir factores de eficiência Educacional, Filosófica, Terapêutica, Estética e Moral tendo em vista a formação integral do cidadão. Toda a Grécia era por assim dizer um campo de práticas desportivas e estas muito influenciadas pela mitologia. As admiráveis estátuas, pintura e decoração dos vasos de cerâmica revelamnos uma enorme e variada gama de atividades desportivas, acentuadamente de carácter competitivo que tinha nos Jogos Olímpicos a síntese mais elevada e com carácter religioso. Para o Ocidente o seu ideal de Beleza Corporal, nasceu nos locais desportivos da Grécia. Onde tanto as práticas dos exercícios como as manifestações artísticas eram considerada irmãs, por uma simples e determinante razão: todo o sentido da unidade do espírito e do corpo, além de ser a mais familiar de todas as características gregas, manifesta-se no seu dom de conceber ideias abstratas de uma

FIG. 5 - Dorifero de Policleto. Acredita-se que esta estátua seja a ilustração das regras sobre harmonia e proporções do corpo humano estabelecidas. Policleto no seu tratado teórico intitulado Canone. A obra original — de bronze — está perdida, foram encontradas apenas cópias em mármore realizadas durante o período helenista e na Roma. A cópia de melhor conservação está exposta no Museu Arqueológico Nacional de Nápoles.

Fig. 9 - A ideia de matemática associada à proporção corporal está representada nestas duas esculturas cujos autores já mencionámos. Mostra que, apesar do canone se caracterizar por regras estritas para a Arte na sua definição da beleza, a verdade é que já na antiguidade suscitava falta de consensualidade.

forma sensível e tangível de forma bem humana. Esta lógica é conduzida sob forma visível e na sua aparência os deuses são confundidos normalmente como semi-familiares dos seres humanos - uma criada, um pastor ou um primo distante; as florestas , os rios e até os seus ecos são representados tanto na escultura como na pintura com presenças corpóreas, sólidas e protagonistas vivos e, muitas vezes até com maior proeminência (fig.3). Nesse sentido as esculturas gregas mais que formas humanas :"são todas elas representações de existências espirituais, de deuses imortais, diretamente destinadas aos mortais, transitório órgão de vista: e, não obstante, são concebidas e organizadas em sólidos mármores". Esta ideia foi expressa por William Blake. Uma estátua, era segundo este ponto de vista um complexo repositório de ideias que absorvia: ali estava o corpo humano mas também a crença nos deuses e o amor pela proporção racional. Por isso o sentido de unidade da imaginação grega alcançou a união destes diferentes elementos num único símbolo: O Corpo Humano, onde todas estas ideias existiam. Para despojar o corpo humano de qualquer artifício que não seja o próprio corpo em si e na sua própria nudez, até S. Francisco de Assis se apresentou ao Papa nu (qual Adão a tapar o seu corpo por vergonha). Era deste modo que a Beleza na Grécia conquistava o seu valor perdurável, conciliando diversos estados contrários: era a materialização do objeto mais sensual e de maior interesse representativo situando este para além do «TEMPO» e do «DESEJO», dotando-o da noção mais puramente racional de que a humanidade é capaz de formular, a Matemática, para fazer com ela um encanto para os sentidos, através da Norma e do Cânon em que a Escultura e por simpatia a Arte em todo o seu ideal de beleza é mais o completo exemplo da transmutação da matéria em forma. (FIG.4, FIG.5, FIG.6, FIG.7). Para os gregos os vagos receios do desconhecido , adoçavam-se mostrando que os deuses são como os homens que podem ser adorados pela sua beleza Criadora e Ética através dos seus heróis, em vez de o serem pelos seus poderes mortíferos. Por isso não é por acaso que na actual vivência, que a imagem dos atletas mais mediáticos, é vista, junto das crianças como modelos de virtudes. Indo esta ideia ao encontro dos antigos princípios gregos que associavam A Educação Física com os princípios mais elevados na educação integral do indivíduo.

Fig. 6 - Apoxyomenos, escultura de Lisipo (Séc. III A. C.). Como a anterior escultura, o original perdeu-se a apenas conhecemos réplicas romanas. O tema é dos convencionais da escultura votiva grega antiga; representa um atleta, no conhecido ato de tirar suor e poeira de seu corpo com o pequeno instrumento curvo que os romanos Chamavam de strigil Fig.7 - O Discóbolo , lançador de disco em grego. É uma estátua do escultor grego Miron. (Século IV A.C.) Representa um atleta, momentos antes de lançar o disco. Talvez seja a estátua de um desportista em acção mais famosa do mundo. O original também se perdeu e é conhecida pelas réplicas romanas produzidas na roma Antiga Mas a beleza a que os gregos se referiam era a uma beleza interior feita de modelos morais associados à justiça e ao bem comum, na qual as implicações espirituais estão sempre associadas ao físico e nesse circuito vivem indissociáveis como um sistema fechado. Este ponto leva-nos a outro que transforma a beleza numa viagem sinónima da «História do Desejo» como memoriza o primeiro nu integral da história da humanidade: a “Vénus de Cnido" (FIG 8) de Praxiteles. Segundo conta Filóstrato nas suas crónicas, esta célebre escultura foi inspirada numa prostituta de nome Phryné que conquistou o coração de um homem, que o deixou totalmente fora de si e a quis desposar, mas esta "nem uma palavra lhe concedeu" acabando o apaixonado a gritar com despeito, o que deitaria sobre ela a mais estremecedora maldição feita aos seres belos "desejo-te que envelheças". Praxiteles tinha o dom de retratar a beleza nas suas criações e com ela conseguia o objetivo dos grandes artistas: comover e criar paixões. Mas não deixa de ser estranho que o mecanismo que logra que um objeto belo nos comova também conduza à perda da razão? Não é uma pergunta fácil de responder tendo em conta que, ao longo da história se ensaiou uma ideia aberta e tremendamente relativa sobre a Beleza. Para Albert Einstein a "beleza reside no coração de quem a vê". Uma ideia que, muito antes David Hume terá constatado por estas palavras algo semelhante " A beleza das coisas existe no espírito de quem as contempla". Talvez por estas razões a Beleza sirva para definir a obra de Arte mas também quem a contempla. Por isso a «História da Beleza» não é somente uma «História dos Objetos Belos» é, antes de mais, a « História do Nosso Olhar» sobre as coisas. Um olhar que no Classicismo Grego vinculava a Beleza à Proporção, à Simetria e à Matemática (FIG. 9) mas na unidade do Espírito com o Corpo de forma indissociável, tão contrária à ideia dos nossos dias n

Fig.8 - Vénus de Knidos de Praxiteles. Escultura clássica realizada no Século IV AC. É uma das primeiras representações de um nu femenino em tamanho natural na história grega. Exibida como ideia alternativa à nudez heroica masculina.

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