[AMOSTRA] Encontro às cegas com a Quim

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Verão de 2006

O QUE EU vou fazer sem você, A?

Adrienne usava sua velha, e fiel companheira de férias, blusa do Nirvana As mangas curtas dobradas até os ombros, óculos escuros e shorts jeans surrados. Fumando o último Marlboro vermelho que tinha um cheiro horrível do maço, ouvindo Come as you are no walkman amarelo e preto. Com um coque no alto da cabeça, perdida num daqueles seus momentos “pensando em nada”.

Peguei um Trident do pacote dentro de um dos bolsos da calça e pus na boca. Repeti a pergunta, mascando o chiclete. Não respondeu. Dei um tapinha em seu ombro. Ela se assustou, gritando “Santo Deus!”, arrancando o headphone

O que foi?! Qual é o problema?! perguntou ainda aos berros, sentando-se na grama.

Estávamos à beira do Sêneca, debaixo da antiga macieira de tronco grosso, com suas longas folhas muito verdes, onde costumávamos nos deitar sob as sombras quando crianças. O cheiro da grama e da terra molhada me lembravam dos treinos de futebol após a escola. O capacho encostado à soleira da porta de entrada da casa da vovó e a madeira do chão tiveram aquele mesmo odor durante muitos anos.

Quando chegávamos da escola, limpávamos as chuteiras de qualquer jeito, sem tirar as crostas de terra e grama grudadas à sola, e nos jogávamos no sofá, com o uniforme sujo, fedido. Vovó queria dar uma bronca, mas algo em nossa expressão a fazia levar a mão ao peito e apenas nos chamar para almoçar: aquela macarronada com molho picante e almôndegas, das sextas-feiras...

Depois de algumas horas encharcando o banheiro, fazendo espuma na banheira da suíte de hóspedes, caíamos no sono, abandonando o desenho na TV. Meus tios vinham buscar Adrienne no fim da tarde e meus pais apareciam lá pela noite. No domingo, a reunião para o almoço acontecia sempre ao meio-dia em ponto, após o culto.

Às vezes, almoçávamos com as famílias de vizinhos e outro fieis: um grande churrasco, depois da pregação do Pastor Gerard, nos fundos da propriedade da nossa Igreja.

Era nosso último verão juntas antes de sua mudança para Jacksonville. A família decidiu fazer um piquenique de despedida. Eu ficaria em Nova York para cursar o último ano e talvez fosse estudar na França após a formatura. Não seria fácil ver minha prima e melhor amiga partir, apesar de querermos coisas diferentes para nossas vidas.

Eu não vou morrer, F respondeu. Sempre delicada. Pode me visitar quando quiser. E eu pretendo juntar minhas moedas para te ver em Paris. Vou trabalhar meio período no café de um amigo e cada gorjeta será para o porquinho, que, no momento, está meio falido com a mudança. O salário mesmo é para as orgias da Universidade, claro!

Riu, quando eu revirei os olhos.

Sabia que você ia fazer isso, sua chata... Brincou.

Mas eu estava muito atenta ao detalhe de não a ter mais por perto no próximo ano para qualquer humor.

O ensino médio não será a mesma coisa sem você... eu disse.

Eu sei. Mas tente não destruir o pouco que conseguiu construir nos últimos anos. Você é a rainha do suicídio social.

Podia vê-la revirando os olhos por trás das lentes escuras. Dei um risinho.

Não ria! É a verdade! Você sabe!

OK. Talvez um pouco, sim.

Hein?

OK, muito! Mas eu não tenho culpa de não ter nascido bonita como você.

Frances, não começa com essa palhaçada outra vez. Não existe isso de “ser feia”. Beleza é subjetivo. Mas confesso que ajuda muito se você não foder com a sua aparência... Como você costumava fazer até eu te apresentar à loção adstringente e à máscara de cravos.

Ri.

Tá vendo? continuei Quem vai me dar um banho de loja e de realidade?

Pegue o telefone e me ligue quando precisar, Rainha do Drama! ... Já inventaram a internet também, sabia? ... E se lembre dos meus conselhos, quando eu não puder atender, que você ficará bem. Em breve, você também alçará voos mais altos... Universitários, baby! Festas de fraternidade... Orgias

Deu-me uma piscadela, baixando os óculos. Meu estômago revirou só em lembrar minha primeira vez desastrosa. Mordi o lábio.

Já sei no que está pensando... ela disse Nem todos tem o pau pequeno, F. Alguns tem mas sabem usar. Os grandes, às vezes, assustam. Mas não ajuda muito se o dono também só ficar se gabando de ser pauzudo... E você não vai sentir dor para sempre... Enfim, é só uma questão de prática e de se acostumar. E relaxar.

Forcei um sorriso.

Uma corrida até a churrasqueira? perguntei, mudando o assunto.

A última a chegar, engole uma salsicha inteira! gritou, rindo, disparando na minha frente Assim você vai treinando para sua primeira garganta profunda, vadia!

Verão de 2017

A MÚSICA INUNDOU meus ouvidos e reverberou em meu peito quando empurrei a porta pesada de madeira do Lady Jane, repleta de rótulos coloridos colados no vidro, no centro da enérgica Jacksonville.

Um lugar mal iluminado por letreiros em neon, azuis e vermelhos, e pequenas lâmpadas amareladas embutidas no teto caindo aos pedaços. Paredes inutilmente (a julgar pelas infiltrações gigantescas quase colocando tudo abaixo) pintadas de qualquer jeito, repetidas vezes, com uma grossa camada de tinta azul-escuro. Cheirava a tabaco, suor e álcool impregnados. As ripas do chão dançando sob a sola dos meus coturnos.

Quantos ratos moravam ali embaixo?

No meio do salão abarrotado, um balcão de madeira grossa onde derramavam cerveja sobre o tampo, espremendo-se entre os que se sentavam nos bancos altos, e batiam as canecas vazias; pedindo mais uma. Telas planas penduradas, exibindo luta mexicana, competiam com a música.

Continuei até os fundos, chegando a um corredor onde as mesas batiam na metade do meu braço e não tinham assentos. Os banheiros davam as boas-vindas com lama e papel higiênico por vezes, usado pelo chão.

Estava me perguntando, desde que entrara, o que tinha na cabeça quando dei mais passos para dentro. O público daquele bar era seleto, e eu, obviamente, não fazia parte dele.

Ela fez sinal para mim enquanto tomava uma Heineken no gargalo. Vestia um conjunto social; saia e blazer azul-marinho se desenhavam ao longo de suas curvas. Blusa vermelha, de botão. Descalça amassando sujeira de meia-calça preta. As ondas de seus cabelos rebeldes e cheios, cortados na altura dos ombros, grudando no suor de seu rosto acetinado, enfeitado por uma maquiagem bem forte.

O corredor inteiro gritou quando um dos lutadores foi ao chão, acompanhando a contagem de cinco segundos. Os marmanjos fedendo a cerveja e cigarro barato lhe deram notas e mais notas de dólares, mesmo protestando, enquanto ela se gabava por ser a vencedora unânime da aposta

Mas que porra de roupa é essa?! perguntou, aos gritos, quando os demais se afastaram.

Mas que porra de lugar é esse? Rebati.

Sempre corro para cá quando quero fugir da realidade. Impede que eu mate alguém antes do fim de cada semana e ainda ganho alguns dólares Chacoalhou as notas no ar.

Não era você a rainha da pacificação?

Queria voltar no tempo e dar umas boas porradas em mim mesma por tentar pregar essa tal de paz.

Rimos e ela me tomou em seus braços, me envolvendo num abraço demorado. O que restava seu perfume se misturava com o suor, a cerveja em seu hálito... mas era quase totalmente vencido pelo fedor vindo de cada canto do bar.

Não acha que pegou um pouco pesado...? perguntei, apontando o lugar com os olhos.

Esse lugar é podre! Uma merda! Não devem limpar há séculos. A vigilância deve emitir ordem de embargo todos os dias, mas continuam de pé. Fazer o quê? Melhor pra mim! É tudo o que eu preciso! Nada daquela porra certinha, regada a álcool-gel e disfarçada com termos que quase quebram a língua e a maioria nem sabe o que significam.

Eu só podia rir. Era a tragédia declarada de alguém com o estresse acumulado e que, no fundo, tinha um pouco de razão em ver que o caos, na verdade, podia nos ser um verdadeiro Stand-up.

Mas me diga... Tomou outro gole da cerveja. O que você estudou na França, mon amour? Ou será que andou com gente errada o bastante pra estragar todo o trabalho de Coco Chanel... e o meu?

É bom ver você também, A... Ri.

Ei, Jay! Gritou para o cara atrás do balcão e eu me perguntei se ele conseguiria ouvi-la, mas, para minha surpresa, o barman olhou em nossa direção Tequila!

Não vou carregar você até a sua casa.

Frances, o que você faz da vida? Porque você estraga prazeres, não bebe, não fuma, não trepa...

Revirei os olhos, tentando me lembrar de que ela já estava alta o bastante para discutir. E, principalmente, naquelas condições, ela não se lembraria de que o tempo passou e eu não era mais a mesma pessoa.

Eu trabalho. Tenho responsabilidades.

Parece mais velha que a vovó.

Desviei minha atenção para os televisores pendurados.

Onde está Haley?

Nem me fale nessa vaca!

A garota é sua irmã, olha como fala!

Que se foda! Por que eu não sou filha única como você?

Porque sua mãe não abortou antes de você nascer e você não era a última esperança dos seus pais de um filho legítimo.

Que...

Nem pense em terminar essa frase!

Bufou.

Até anteontem estava tudo bem falei Achei que a veria quando chegasse.

Achou errado... Ela sumiu. Não atende o celular, não retorna minhas ligações. Nem sei se pegou meus mais de mil recados na caixa postal.

Você não acha melhor chamar a polícia?

Oi? Incomodar os outros por causa das palhaçadas da minha irmã adolescente?

Nem pensar! Ela é assim: some, aparece. Some de novo. Volta pior. E vamos seguindo o fluxo.

O que você diz aos seus pais quando eles ligam?

A verdade; que ela não está em casa. A maluca fala com eles quando quer. Liga, diz que ama. A megera sou eu. Ainda não entendeu isso? Papai e mamãe não querem que eu seja má com a princezinha

Dei um risinho.

Não se esqueça de que sou a vilã. A que se perdeu cedo, fumava e andava com más companhias

Mal sabiam eles que você era a chefe da quadrilha.

Riu, bebendo outro gole.

E não seja dramática, A... Não combina com você.

Tem razão, F... Essa função é sua, Rainha do Drama.

Pegou um cigarro no bolso da jaqueta de couro de um dos caras por ali.

Ah! Deu um gritinho, me fazendo pular, e me abraçou Bem-vinda à Jacksonville, priminha querida! Só mesmo esse seu trabalho para te trazer até aqui! Fez boa viagem? Acendeu o cigarro com um isqueiro perdido no bolso de alguém por ali, deu um trago e soltou a fumaça no ar.

Sim, ela ia do Céu ao Inferno em três segundos. Não sei se eram problemas da idade ou se ela sempre fora instável assim e eu estava preocupada demais com a minha instabilidade social para reparar.

... Ou talvez fossem as doses de tequila já atingindo outro nível.

Sim... Ainda tentava me situar na mudança repentina de humor. Preciso de um banho demorado e uma boa noite de sono, mas o voo foi tranquilo.

O barman trouxe mais três doses de tequila.

Do jeito que você gosta ele disse. Claro que não adivinhara o pedido. Minha prima se revelou frequentadora assídua desse chiqueiro assim que pronunciou “fugir da realidade” e as constantes brigas com Haley. Jay era quase um amigo de infância.

Obrigada, amor Adrienne respondeu.

O tal Jay se demorou em meus coturnos. Subiu os olhos esverdeados por minha calça e se ocupou em admirar a renda preta debaixo da fina camada de tecido da minha blusa.

Essa é minha prima, Frances Donovan apresentou Adrienne Ela veio da França só para me ver. Não é um amor?

Prazer em conhecê-la, Srta Donovan Jay disse, acenando com a cabeça.

Seu rosto quadrado debaixo da barba era emoldurado por grossos cachos castanhos. Longas sobrancelhas e cílios também grossos e muito escuros. Corpo esguio num uniforme preto e branco com o nome do bar bordado na camiseta em azul. Fiquei observando, enquanto ele se fundia com as sombras da meia-luz neon que realçava seu queixo e nariz angulosos, e a boca avermelhada.

Olhar não arranca pedaço... Adrienne disse, trazendo-me de volta de meus devaneios ... Nada que boca e dentes não possam resolver Deu um sorriso torto cheio de sugestões. Vá falar com ele!

Ergui uma sobrancelha com a cara fechada, fazendo-a revirar os olhos.

Sério, Frances... Desisto de você! reclamou.

Ele é bonito falei.

Bonito é o Davi, de Michelangelo. Jacob é um deus!

Jacob... Não faz muito o meu tipo.

Você tem um tipo?

Tenho gostos como todo mundo.

Não: você escolhe demais com esse seu dedo podre, há uma diferença.

Você está mais chata que o normal!

Seus ombros caíram. O rosto, de repente, ficou triste. Deixando-me preocupada.

Você tem razão Admitiu Desculpe... Mas eu precisava de alguém com quem pudesse desabafar. Na verdade, desabar... Às vezes, eu me sinto uma inútil e não posso dizer pra ninguém, além do reflexo no espelho, o quanto estou exausta de ter sempre que ser tratada como se não pertencesse a lugar nenhum!

Tentei dar-lhe um sorriso amistoso.

É impressionante ver você admitindo suas fraquezas, seus anseios eu disse Mas você não é inútil... Graças a você, eu tive uma boa infância e adolescência. Apesar dos pesares...

Dei um risinho sem ânimo algum.

Adrienne era defensora pública. Desde pequena, sempre gostou de ajudar as pessoas. Era uma das coisas mais louváveis a seu respeito. Segundo nossa família, uma das poucas. Mas ela se esforçava. Na verdade, tinha dificuldades em seguir regras e aceitar as responsabilidades impostas pelos nossos pais, avós, tios. Ela só não queria perder o direito de ser inconsequente. Conquistado por quem está começando.

E quando Haley veio, as coisas tomaram proporções bíblicas, porque devia ser exemplo para a irmã mais nova. As cobranças, a pressão... acabaram deixando o relacionamento delas bastante complicado. Para dizer o mínimo. Mas Adrienne não era mãe e precisava lidar com os próprios problemas, viver a própria vida. Porém, em alguns momentos, acho que se esqueceram disso.

Que bom que você está aqui... ela disse.

É bom estar aqui...

Não pensa em voltar a morar do lado de cá? ... Que pergunta idiota! Claro que não! Você se libertou! E eu a proíbo de se aprisionar outra vez!

Olha, A... Não vou te enganar... Eu sinto falta de correr pra casa e encontrar meus pais quando o calo aperta e a dor fica no limite. Mas... não sei se... voltar... seria a melhor opção.

É, tem razão.

E meus pais... Bom, você sabe... Eu os amo, mas... Nem precisa terminar. Não é à toa que nossos pais são irmãos.

Rimos.

Bem... ela disse, recolhendo os sapatos de um canto Vamos pra casa.

Eu te acompanho até lá. Aluguei um carro e vou me sentir melhor sabendo que você, de fato, está em casa.

OK... Carona aceita, capitã! Tem um quarto de hóspedes esperando por você.

Estou hospedada num hotel perto do centro. Preciso trabalhar... Mas vou te visitar assim que puder.

Acho bom mesmo!

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