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Barbara Winton

Uma Vida A História de Nicholas Winton

Tradução Maíra Meyer

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Título do original: One Life – The True Story of Sir Nicholas Winton. Copyright © 2014, 2024 Barbara Winton. Publicado pela primeira vez na Grã-Bretanha em 2014 como If It’s Not Impossible pela Troubadour Publishing Limited. Publicado pela primeira vez na Grã-Bretanha em 2024 como One Life por Robinson. Copyright da edição brasileira © 2024 Editora Pensamento-Cultrix Ltda. 1a edição 2024. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou usada de qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópias, gravações ou sistema de armazenamento em banco de dados, sem permissão por escrito, exceto nos casos de trechos curtos citados em resenhas críticas ou artigos de revistas. A Editora Cultrix não se responsabiliza por eventuais mudanças ocorridas nos endereços convencionais ou eletrônicos citados neste livro. Obs.: Este livro não pode ser exportado para Portugal. Editor: Adilson Silva Ramachandra Gerente editorial: Roseli de S. Ferraz Preparação de originais: Adriane Gozzo Gerente de produção editorial: Indiara Faria Kayo Editoração eletrônica: Join Bureau Revisão: Vivian Miwa Matsushita Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Winton, Barbara Uma vida: a história de Nicholas Winton / Barbara Winton; tradução Maíra Meyer. – 1. ed. – São Paulo: Editora Cultrix, 2024. Título original: One life: the true story of Sir Nicholas Winton ISBN 978-65-5736-290-7 1. Holocausto judeu (1939-1945) – Checoslováquia 2. Judeus – Grã-Bretanha – Biografia 3. Kindertransports (Operações de resgate) – Grã-Bretanha 4. Winton, Nicholas, 1909-2015 I. Título. 24-189021

CDD-940.5318092 Índices para catálogo sistemático: 1. Holocausto judeu: Nicholas Winton: Biografia 940.5318092 Cibele Maria Dias – Bibliotecária – CRB-8/9427

Direitos de tradução para o Brasil adquiridos com exclusividade pela EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA., que se reserva a propriedade literária desta tradução. Rua Dr. Mário Vicente, 368 – 04270-000 – São Paulo, SP – Fone: (11) 2066-9000 http://www.editoracultrix.com.br E-mail: atendimento@editoracultrix.com.br Foi feito o depósito legal.

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Ao meu pai – é claro – e à minha mãe, que cuidaram de nós com amor e devoção. Por fim, a todos os que se doam sem reservas para ajudar os necessitados, sem pensar em recompensa ou reconhecimento. Barbara Winton (1953-2022)

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Observação Frases e trechos escritos em itálico foram extraídos, na íntegra, dos diários, das anotações e das cartas de Nicholas Winton.

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Sumário

Nota de Abertura de Sir Nicholas Winton....................................

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Prefácio do doutor Stephen D. Smith...........................................

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Introdução....................................................................................

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Capítulo 1: That’s Life!................................................................

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Capítulo 2: O caderno de anotações do Kindertransport.............

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Capítulo 3: Um legado formativo................................................

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Capítulo 4: Tempo de escola.......................................................

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Capítulo 5: Da juventude à idade adulta..................................... 103 Capítulo 6: Trabalhando na cidade............................................. 127 Capítulo 7: Recusando-se a combater......................................... 149 Capítulo 8: Alistamento.............................................................. 159 7

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Capítulo 9: Consequências sombrias.......................................... 179 Capítulo 10: Romance em Paris.................................................. 205 Capítulo 11: Uma nova família................................................... 223 Capítulo 12: O trabalho perde o encanto.................................... 253 Capítulo 13: “Meu trabalho verdadeiro”...................................... 263 Capítulo 14: O reconhecimento traz novas aventuras................. 289 Capítulo 15: Quem foi Nicholas Winton?................................... 305

Agradecimentos............................................................................ 315

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Nota de Abertura

“A

o ler este livro, descobri coisas que nunca soube a respeito de minha própria família, assim como redescobri episódios havia muito esquecidos. Eu mesmo tinha perguntas

sobre certos incidentes do meu passado e encontrei as respostas aqui. É estranho perceber que agora Barbara sabe mais da minha vida que eu. Uma filha escrevendo minha biografia pode indicar que a obra não é imparcial, mas você precisaria lê-la para descobrir!”

Nicholas Winton Outubro de 2013, Maidenhead

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Prefácio

por doutor Stephen D. Smith, Diretor-executivo da USC Shoah Foundation, Cátedra da UNESCO em Educação para Prevenção ao Genocídio

E

xistem pessoas que se destacam na história. Sir Nicholas Winton é uma delas. Talvez o lugar, a época ou as circunstâncias despertem o melhor nas pessoas, mas o certo é que é preciso caráter,

liderança e resolução para tomar decisões e agir com base nelas. Foi há quase vinte anos que conheci Nicholas. À época, eu estava apenas no início de minha própria jornada no aprendizado sobre o Holocausto. Fui tocado por seu jeito dócil, seu senso de pragmatismo, sua habilidade de se distanciar e observar o panorama geral. Desconfio de que ele sempre foi assim. Foi só recentemente que voltei a me sentar com ele, como parte de uma entrevista para a USC Shoah Foundation. Perguntei qual era sua lição de vida. Padrões de ética e comprometimento, isso é tudo que temos de aprender para tornar o mundo um lugar melhor.

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Estou muito contente por Barbara Winton ter assumido a tarefa monumental de documentar a vida de Nicky, sobretudo porque ele mesmo é modesto demais e indiferente às próprias conquistas para enxergar a relevância de seus atos. E ele sabe muito bem que documentar a história “porque sim” de nada serve. É um homem de ação, e ainda muito presente no momento. Mas este livro é necessário e importante por causa do exemplo que Nicholas define para que outros o sigam. Esta obra é um lembrete estimulante do bem, não somente presente em Nicky, mas em todos nós. A história de seu nobre trabalho é uma verdadeira prova dos feitos aparentemente comuns que cada um de nós pode executar, com curvas lentas rumo ao heroísmo. O desejo de Nicky por sua biografia é um exemplo; ela não detalharia seus feitos por si sós, mas, ao contrário, inspiraria outros a buscar atitudes semelhantes, um lembrete de que todos somos capazes de provocar grandes mudanças, se quisermos. Barbara Winton nos lembra, pela maneira com a qual intrincadamente desdobra a vida dele, de que não houve uma única manhã em que Nicky tenha acordado e decidido mudar para sempre seis mil vidas. Em vez disso, ele se comprometeu a ajudar um sobrevivente de cada vez e, em última instância, fez sua parte em defender crianças tchecoslovacas de atrocidades em massa. Na USC Shoah Foundation – The Institute for Visual History and Education, temos 52 mil gravações audiovisuais de histórias de vida de sobreviventes e salvadores. Utilizamos esses testemunhos em salas de aula e museus no mundo todo, na esperança de educar a próxima geração e evitar genocídios. Como diretor-executivo, é uma honra podermos trabalhar com pessoas iguais a Nicky. Muitos testemunhos do arquivo comprovam suas rápidas ações, algumas das quais aparecem em Survivors of the Holocaust (Sobreviventes do Holocausto, em tradução livre), documentário ganhador do Emmy produzido pelo Instituto. Preservamos suas histórias após o fato, assim como o caderno de anotações de Nicky o fez por tanta gente. Na realidade, esse caderno, que levou à 12

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descoberta dos “filhos” de Nicky, é o responsável por catapultar esta biografia. Em si, ele é a prova da importância de manter a memória viva. Nicky não gosta de ser considerado herói. Mas em suas ações, e por meio de milhares de pessoas hoje vivas que descendem das crianças salvas por ele, Nicky é um herói da mais alta categoria. O valor não provém apenas do combate no calor da batalha, mas de padrões éticos elevados em períodos nos quais o ódio e a violência ameaçam a vida de inocentes. A história nestas páginas não é das que inspiram observação, mas das que exigem ação. Um homem que projetou um sistema de transporte internacional para crianças, mudou um sem-número de vidas e produziu um efeito cascata que será sentido daqui a vários anos. Isso nos dá a esperança necessária para continuar lutando pelo bem. Na verdade, é um lembrete de que todos nós podemos – independentemente de nosso passado ou presente – fazer uma diferença impactante. Graças a esta história maravilhosa, sinto que conheço Nicky ainda melhor. Graças às suas orientações, darei continuidade ao meu trabalho de evitar conflitos armados violentos por meio de sua eterna observação de que sempre é possível resolver conflitos com “padrões éticos e comprometimento”. Stephen D. Smith, fevereiro de 2014

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Introdução

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o mundo de hoje, há cerca de seis mil pessoas que devem a vida a Nicholas Winton. Elas são descendentes de um grupo de crianças refugiadas que ele resgatou da ameaça nazista em

1939. Algumas delas sabem de sua existência e de seu papel na história; muitas outras, não. Foi um evento curto na vida dele – nove meses –, mas crucial àqueles cuja vida ele salvou, quando se envolveu em uma corrida contra o tempo para resgatar crianças em perigo do ataque de invasores nazistas na Tchecoslováquia. Para ele, essa intervenção acabou em um instante, e outras aventuras a suplantaram. Apenas muito mais tarde esse episódio ressurgiu na vida dele e, desde então, tem lhe trazido visitantes de todo o mundo, ansiosos por conhecer sua história. Esse curto episódio passou a defini-lo pelo olhar de muitos, embora não pelo dele. O único motivo pelo qual esta história atraiu atenção pública cinquenta anos depois deveu-se à perspicácia de um voluntário na empreitada, o senhor W. M. Loewinsohn. No fim da operação de resgate, quando a guerra estourou e não foi possível organizar outros trens, ele compilou um caderno de anotações com boa parte do material relacionado ao seu trabalho e o apresentou ao meu pai como recordação. 15

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Esse caderno foi o catalisador para projetar Nicholas Winton ao domínio público desde 1988, quando o objeto foi trazido, pela primeira vez, aos holofotes da mídia. Desde então, inúmeros artigos jornalísticos foram escritos sobre essa história relatando como Nicholas cancelou as férias em uma estação de esqui, no inverno de 1938, para atender à ligação de um amigo convocando-o a pegar um voo até Praga e ver o que estava acontecendo lá após a anexação nazista dos Sudetos tchecos, em outubro daquele mesmo ano, que levou ao influxo de refugiados à Tchecoslováquia central. Ao presenciar o martírio dos refugiados, Nicholas se pôs a descobrir um meio de evacuar crianças em perigo para o Reino Unido e, ao longo dos nove meses seguintes, conseguiu resgatar 669 crianças do que, para a maior parte dos familiares remanescentes, era o destino de confinamento e assassinato em campos de concentração. Os artigos lhe deram a alcunha de “O Schindler Britânico”, chamando-o de herói e questionando por que tivera a visão e o afã ético de entabular um resgate como aquele, quando outras pessoas nada faziam. Perguntaram a ele por que mantivera a história em segredo por cinquenta anos, dando a entender que fora a modéstia que o impedira de mencionar suas ações, até mesmo à própria esposa e aos familiares. Por causa disso, ele foi agraciado com medalhas e honrarias cerca de sessenta a setenta anos após o acontecimento. Nicholas é retratado como um altruísta corajoso que agira quando outros nada fizeram, colocando-se em risco para salvar, sozinho, uma geração de crianças judias tchecas. Essa história não é verdade – bem, é, mas não cem por cento. Desde 1988, forjou-se um mito que se transformou em verdade para muita gente, além de episódio decisivo da vida dele. Pessoalmente, meu pai não concordaria com muitas dessas descrições, nem sua família e seus amigos. Aquilo com o qual provavelmente concordariam é que as ações pelas quais ele se tornou conhecido e homenageado foram suas características, replicadas, embora reconhecidamente 16

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de maneira não tão drástica, em outros momentos da vida dele, além de seu caráter e suas opiniões, os quais o ajudaram a se tornar o homem certo no lugar certo, causando impacto máximo, quando fora necessário. Minha tentativa de catalogar toda a vida de Nicholas se deu por vários motivos. Primeiro, ao examinar a juventude dele, para poder compreender sua motivação para agir em 1939, assim como sua capacidade de conseguir, como resultado, tirar 669 crianças da Tchecoslováquia sitiada e entregá-las, em segurança, ao Reino Unido. Segundo, para desvencilhar a pessoa de carne e osso do mito do “herói” unidimensional, além de apontar onde a verdade diverge do mito na história do resgate. Desse modo, avaliando o caráter de Nicholas ao longo de sua vida, espero demonstrar, a quem acha que atos grandiosos exigem personalidade magnânima ou “especial” para levá-los a cabo, que é realmente possível qualquer pessoa demasiadamente afetada por uma injustiça ou necessidade fazer a diferença. O desejo de meu pai para sua biografia, ao concordar que eu a escreveria, era o de que ela não incentivasse a adoração heroica ou o afã por revisitar continuamente a história, mas, antes, que a obra pudesse inspirar as pessoas a reconhecerem que elas também podem atuar no mundo com ética e fazer diferença positiva na vida dos outros em qualquer área que as chame ao coração, sejam crises internacionais, sejam crises mais próximas de seu lar, na própria comunidade. Se ler a história de Nicholas sobre o resgate de crianças fizer as pessoas pensarem “Que herói! Eu nunca conseguiria fazer nada do tipo. É difícil demais, e, de qualquer modo, heróis iguais a ele só eram necessários no passado, quando estavam em guerra. Agora, vida que segue”, ele não está interessado. Contudo, se a leitura inspirar as pessoas a pensarem “Bem, hoje as coisas não estão certas no mundo. Posso fazer a diferença do meu jeito, e vou fazê-la”, então ele será um homem feliz. Inicio esta biografia no momento em que a história do resgate feito por meu pai se tornou pública, em 1988. Meus pais, Nicholas (a quem 17

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todos conheciam como Nicky), 78 anos, e Grete, 68, tinham um casamento muito feliz e moravam em uma casa ensolarada, sem divisórias, construída por eles nos anos 1950. Eram aposentados, mas ambos tinham muitos interesses e atividades e sempre estavam na ativa. Meu irmão, Nicholas (conhecido como Nick), 36 anos, morava em Londres e geria uma agitada gráfica. Eu, Barbara, 34 anos, morava com meu futuro marido, Stephen, em Herefordshire, onde ele acabara de reconstruir uma casa de fazenda toda de madeira e se acostumava à vida rural. Meus pais estavam de visita em fevereiro de 1988, tendo sabido, recentemente, com muita alegria, que enfim seriam avós, e aproveitaram para ajudar a organizar a casa. Durante essa visita, alguém da BBC telefonou ao meu pai. Sabe-se lá como o acharam. O que aconteceu em seguida transformou a vida do meu pai de uma história pessoal comum em uma extraordinária e pública.

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Capítulo 1

That’s Life! 1988

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ada foi mais o mesmo para meu pai após 27 de fevereiro de 1988. Sua busca por um lar para um antigo caderno de anotações que documentava o transporte de mais de 600 crianças

da Tchecoslováquia para a Grã-Bretanha em 1939 o levou aos estúdios do popular That’s Life!, programa transmitido pela BBC aos domingos à noite. O programa destacaria a história naquela noite, e os produtores haviam pedido a Nicky que participasse dele para verificar a precisão do roteiro e assistir à rubrica na plateia do estúdio. Meus pais tinham recebido tão pouca orientação sobre o que viria, que, pensando que seria meio maçante, Grete decidiu ficar em casa. Sempre havia a possibili­­ dade de assistir ao programa pela TV e vê-lo com a mesma nitidez com a qual a plateia via. Eles não tinham a menor ideia do que os aguardava. Talvez você se lembre do That’s Life!, programa semanal ao vivo, apresentado por Esther Rantzen, que abordava assuntos populares com interlúdios bem-humorados, o que atraía, regularmente, imensa audiência, de mais de dezoito milhões de pessoas. Rantzen tivera acesso ao caderno de anotações por meio da doutora Elisabeth Maxwell, historiadora que pesquisava a história do próprio marido, um judeu-tcheco, e preparava para o próximo verão uma conferência sobre o Holocausto. 19

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Ela, por sua vez, tivera acesso ao caderno por intermédio de meu pai, que passara algum tempo tentando encontrar alguém que pudesse achar interessantes os detalhes históricos. A doutora Maxwell ficou fascinada com os documentos originais e as cartas compiladas no caderno, e, em particular, com a lista na contracapa com o nome de todas as crianças resgatadas, ao lado do nome e dos endereços de quem concordara em adotá-las na Grã-Bretanha, em 1939. O marido dela era Robert Maxwell, então proprietário do Mirror Group Newspapers, e, portanto, um extenso artigo sobre o resgate das crianças, intitulado “The Lost Children” (As Crianças Perdidas, em tradução livre), tomou três páginas do Sunday Mirror no mesmo dia em que o That’s Life! apresentou a história. O artigo descrevia como essas crianças ameaçadas tinham sido salvas por Nicholas Winton, que organizara trens para trazê-las à Grã-Bretanha e famílias adotivas para cuidar delas. Perguntava-se onde todas essas crianças, agora adultas, estavam atualmente. O que aconteceu aquela noite no estúdio de TV foi um capricho do produtor – uma emboscada de um inocente insuspeito. Quando o programa começou, meu pai foi colocado na primeira fila da plateia. Esther Rantzen produziu o caderno de anotações e explicou seu conteúdo, contando a história da evacuação de crianças em perigo, a maioria delas judia, da Tchecoslováquia, antes de a guerra estourar, incluindo o fato de que quase todos os familiares delas que ficaram para trás foram assassinados pelos nazistas, e que as crianças nunca chegaram a saber como foram salvas. Ela passava as páginas do caderno, apontando várias cartas e detalhes, até finalmente chegar à lista de todas as crianças resgatadas, os nomes e, colados na contracapa, os endereços para onde tinham sido enviadas. Ao escolher um nome da lista, Vera Diamant, a apresentadora se dirigiu a uma mulher na plateia, apresentou-a como a Vera da lista e lhe disse que ela estava sentada ao lado do homem que salvara sua vida. Foi um momento maravilhoso, do qual Vera (hoje Vera Gissing) se lembrou, mais tarde, com muita frequência, afirmando como fora 20

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gratificante, enfim, conhecer seu salvador. Para meu pai, fora igualmente maravilhoso, mas também um choque emocional inesperado, para o qual ele estava de todo despreparado. Em geral um homem emocionalmente contido, ele não conseguiu conter as lágrimas quando Vera o abraçou e disse “Obrigada, obrigada” em frente à plateia e às câmeras. O programa o mostra numa tentativa discreta de enxugar as lágrimas por trás das grossas lentes dos óculos e forçar o rosto a permanecer calmo. Com a segunda “criança” apresentada naquela noite, Milena Grenfell-Baines, sentada do outro lado, ele conseguiu se conter mais, embora ainda com expressão encantada pelo choque emocional – o próprio e o delas. Os responsáveis pelo programa, é claro, ficaram maravilhados por terem produzido um momento televisivo tão emocionante e intenso, que quase foi por água abaixo antes de o espetáculo começar. Na plateia,

Vera Gissing no encontro com Nicky, no That’s Life!, em fevereiro de 1988. 21

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Nicky vira um conhecido, Rudi Wessely, e pedira a Vera que trocasse de lugar, para Rudi ocupá-lo. Vera, colocada ali e proibida de mudar de lugar pelos produtores, recusou, e, portanto, o primeiro encontro entre eles não foi lá tão animado. Mais tarde, Esther Rantzen admitiu que o momento em que ela apresentou Vera a Nicky foi a única vez na TV em que irrompera em lágrimas e tivera de parar para se recuperar. A opinião dela era: “Se você obtém emoções positivas espontâneas na TV, elas atingem o coração e o lar dos espectadores, como daquela vez”. E, se Nicky e Grete tivessem sido avisados, não teria acontecido com tanta naturalidade. “Às vezes, como produtor, você não faz perguntas à família.” Levou um bom tempo para meus pais perdoarem Esther pela cilada emotiva, que se tornou motivo de piada entre eles, ao longo dos anos, sempre que a encontravam. À época, eles eram novatos na mídia, mas nos anos seguintes ficaram mais habituados aos artifícios utilizados pelos meios de comunicação para obter ângulo ou resposta bons para as câmeras. Assim, quando Nicky foi convidado a voltar ao programa seguinte do That’s Life!, no dia 6 de março, Grete o acompanhou para lhe dar apoio ao que quer que aguardasse por ele. Em casa, ela acompanhara a cilada com espanto, ciente do estresse causado por um encontro inesperado e pessoal, tudo ao vivo e em cores. Embora dessa vez eles tivessem certa noção do que poderia acontecer, ainda ficaram maravilhados quando, após Esther lembrar os espectadores da história e pedir às pessoas da plateia resgatadas por Nicholas Winton que se levantassem, meus pais viram umas cinco fileiras de pessoas ficando em pé. Foi um momento intenso para todos os envolvidos, o qual, desde então, foi mostrado muitas vezes quando se apresentava a história do resgate das crianças tchecas. E como essa experiência televisiva breve, mas intensa, mudou a vida de Nicky? Bem, foi quando a história das crianças resgatadas se 22

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tornou pública; quando essas “crianças”, agora adultas, na casa dos 50 e 60 anos, começaram a descobrir como sua fuga da Tchecoslováquia fora organizada, e que aquela pessoa ainda viva era uma das responsáveis. Não só isso: Nicky tinha documentos, cartas e fotos, todos milagrosamente intactos, desde aquela época. Isso tudo aconteceu graças à visão do assistente voluntário em 1939, um certo senhor W. M. Loewinsohn, que, no fim da operação, quando a guerra estourou e não foi mais possível organizar outros trens, coletou boa parte dos dados e das correspondências e os deu de presente a Nicky, em um grande caderno de anotações, como lembrança de tudo o que haviam realizado.

As “crianças” resgatadas, de pé, no That’s Life! Nicky e Grete estão sentados na primeira fileira. 23

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