Uma história da velhice no Brasil

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Uma história da velhice no Brasil

Mary Del Priore

Uma história da velhice no Brasil

Copyright © 2025 Mary Del Priore

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direção editorial Arnaud Vin

editor responsável Eduardo Soares

preparação de texto Sonia Junqueira

revisão

Eduardo Soares

pesquisa iconográfica Ludymilla Borges Marcella Santos

diagramação Guilherme Fagundes Waldênia Alvarenga

capa

Diogo Droschi

(Retrato da Baronesa de Limeira. Óleo sobre tela de Ernest Paff, 1900; Quarta capa: Retrato de Afonso Pena. Óleo sobre tela de Rodolfo Amoedo, 1908/ Museu da República/ Wikimedia Commons)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

Priore, Mary Del

Uma história da velhice no Brasil / Mary Del Priore. -- 1. ed. -- São Paulo : Vestígio, 2025.

ISBN 978-65-6002-091-7

1. Brasil - História 2. Demografia 3. Envelhecimento 4. IdososAspectos sociais 5. Mudanças sociais 6. Políticas públicas - Brasil I. Título.

25-254848

CDD-362.60981

Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Envelhecimento : Bem-estar social 362.60981

Eliane de Freitas Leite - Bibliotecária - CRB 8/8415

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...talvez seja apenas o corpo que envelhece, encarcerando para sempre a juventude dentro desse espectro impaciente a que chamamos “alma” Carlos Fuentes

Viver é se desfazer no tempo. Rosa Montero

Introdução

13 PARTE I

Velhos até os tempos da Independência

15 Terra à vista, e velhos também...

20 Retrato dos primeiros patriarcas

28 A velha bruxa e a índia de seios caídos

30 Velhice & Feiura

34 Quando o relógio da vida acelerava

38 Doenças e remédios possíveis

43 Velhice = impotência e menopausa

49 Na jovem Colônia, os velhos

55 Casamento ajudava a viver mais e melhor?

58 Independência na velhice

62 Elas, viúvas

72 Velhos escravos e escravos velhos

87 PARTE II

Tempos novos para os velhos

95 A velhice, um país

98 Velhos, papel e tinta

106 O papel da memória e os patriarcas

113 O cotidiano do velho no Império

119 Dores de velhos

126 Matronas: alegria com rugas

140 Itinerário da solidão: as solteironas

149 Outros velhos: ex-escravos e mestiços pobres

159 Nova gente, novos velhos

174 Velhice e pobreza

185 PARTE III

Velhos numa República Velha

187 Outros novos tempos

192 Velhos na República Velha

199 Velhice, adiante, marche!

206 Brincando com as idades da vida

215 Velhice, um país

231 Quando o ticket perdia a validade

238 A viagem silenciosa

245 Geriatria: primeiros passos

192 Velhos na República Velha

199 Velhice, adiante, marche!

206 Brincando com as idades da vida

215 Velhice, um país

231 Quando o ticket perdia a validade

249 PARTE IV

A troca do velho pelo idoso

257 Falando em “etarismo”...

263 Velhice no feminino

265 Vidas e fins possíveis...

269 Para passar o tempo ou vendo o tempo passar

277 Last, but not least [Por último, mas não menos importante]

283 Bibliografia

309 Agradecimentos

Introdução

Tudocomeçou com uma dor no joelho e a mãe centenária. Aí, o tema passou a me interessar, pois, afinal, sempre deixamos uma parte de nós mesmos na história que fazemos. Mas o contexto também foi favorável. O “velho” se tornou assunto novo por aqui. Sim, porque o Brasil é um país jovem de cabeças brancas. “ Velho é lindo”, como querem especialistas, revistas e a mídia? Na verdade, novo também não é lindo. Tudo pode ser bom ou ruim. Só que, na velhice, quando temos os limites bem definidos e começamos a falhar, nos damos conta do lugar de desamparo em que sempre estivemos. Com dor no joelho ou outros males, envelhecer pode ser difícil ou chato. Mas é a única maneira de continuar vivo.

A velhice, porém, é um tema que provoca arrepios. Palavra carregada de inquietação e angústia, ela também representa uma realidade difícil de capturar. Quando é que se fica velho? Aos 60, 70 ou 80 anos? Nada mais flutuante do que os contornos da velhice, vista como um complexo conjunto fisiológico-psicológico e social. Temos a idade de nossas artérias, de nosso coração, de nosso comportamento? Ou é no olhar dos outros que enxergamos nossa idade? Enfim, a única certeza é que desde que nascemos começamos a envelhecer. Mas o fazemos em velocidades diferentes. O modo de vida, o ambiente, a situação social acelera ou retarda nossa evolução, e entramos na velhice em idades muito diversas. Digo tudo isso porque o Brasil está envelhecendo. Enquanto escrevo, o censo do IBGE informa que a população brasileira está mais envelhecida e feminina do que jamais esteve. Em 2022, a pesquisa mostra que o

número de brasileiros com mais de 65 anos cresceu 57,4% desde 2010. Eles são 10,9% do total de habitantes no país – dos 203,1 milhões de brasileiros, 22,2 milhões estão nessa faixa etária. Também de acordo com o IBGE, a mudança no perfil da população brasileira é resultado do aumento da longevidade e da queda no número de filhos por mulher.

Outra boa razão para começarmos a nos aproximar do tema é a mudança na relação com nossos velhos. Antes à margem, hoje eles são a espécie mais comum de cidadãos. Cada vez mais o idoso e a idosa em boa forma estão presentes na publicidade: oferecem máquinas de lavar, passeios turísticos, seguros de vida, remédios para ereção, entre outros. A medicina se debruça sobre os problemas específicos dessa clientela, os economistas se inquietam frente ao aumento de aposentadorias, e os demógrafos se desolam com uma pirâmide invertida de idades – mais velhos, menos jovens – que aponta, a médio prazo, para um Brasil cheio de rugas. O Estado também vai tomando consciência da amplitude da situação e, com a lentidão habitual, começa a pensar nela.

Assim também os historiadores. Como tudo o que é construído por nossas culturas, a velhice tem história. Conforme os grupos sociais, a velhice chegava de maneira diferente. Ela podia ser cronológica e biológica. Havia diferenças entre os homens e as mulheres. Menopausa e impotência eram marcos para ambos os sexos. Não existia a tal da “meia-idade”. Dos primeiros sinais à fragilidade total, percorria-se um longo percurso. E o modo como a velhice era percebida, representada, se transformava, era aceita ou recusada, dependia de subjetividades, tradições e costumes de cada cultura.

No passado, não se combatia a velhice. Vivia-se a velhice “ como Deus quisesse ou mandasse”. Ela chegava mansamente. Velhos não assustavam os jovens. Eles os inspiravam, se instalando em suas vidas e trabalhando junto suas existências. Tinham uma presença real, por vezes triste ou reconfortante, mas capaz de impregnar outras gerações, de guiar seus passos com seus saberes e memórias. Eles sabiam “ir acabando”. Não se negava a velhice, nem ela era definida exclusivamente em termos de perdas. O problema maior era quando o desgaste orgânico se ligava às questões econômicas. Como hoje, a velhice ficava pior quando se tornava um fardo para a família. Assunto que, certamente, não aparece nos anúncios de velhinhos felizes que vendem viagens para Cancún!

A velhice tem História e histórias. Quem as contou primeiro foi a filósofa e escritora Simone de Beauvoir, num livro clássico: A velhice. E ela o escreveu não só porque envelhecia, mas porque quis quebrar a conspiração do silêncio sobre o tema. Segundo Beauvoir, os velhos não possuíam uma categoria própria, sendo incluídos na categoria dos adultos. As questões colocadas por Beauvoir sobre como eram vistos os velhos continuam a interpelar nossos dias, sobretudo quando o etarismo tomou conta das telas, das academias e da mídia falada e escrita. Com tantos especialistas debruçados sobre o tema, parecia haver poucos silêncios a quebrar.

Estou, porém, tentando romper um deles e me perguntando: como contar uma história da velhice? Se hoje os velhos estão em toda parte, driblando as artérias e o reumatismo, exibindo dentes e músculos de titânio, exercitando-se e sugerindo que são feras na cama, no passado eram quase invisíveis. Comecei buscando o que pudesse existir nos arquivos. No início, era como boiar num mar calmo onde nada acontecia. A palavra “velho” ou “velha”, assim como “velhice”, é quase invisível nos documentos até bem recentemente. É como se idosos não existissem e, talvez, nem fossem vistos. Fui ouvir os primeiros cronistas, entre eles os padres jesuítas. Deles, passei aos tagarelas viajantes que rodaram o Brasil do início ao fim do século XIX. Para o Império, me vali de memórias, correspondências, jornais, literatura, pinturas e fotografias que não fazem o retrato de toda a sociedade, só da elite. A partir do século XX, não faltam informações, pois velhos começaram a sair de casa, cruzar as ruas, fazer compras, visitar parentes, encher os hospitais e morrer mais tarde. Os documentos foram se multiplicando junto com eles. E insisti em usar as palavras “velho” e “velha”, hoje consideradas obscenas. Afinal, é isso que todos nos tornamos com o passar dos anos, em qualquer tempo da História. Uma história da velhice é assunto complexo, pouco estudado, rico de metamorfoses e varia de um tempo para outro. Sobretudo a partir dos anos 1970, quando a velhice começa a ser estudada, suas definições são inesgotáveis. Que não se busque aqui aspectos demográficos ou considerações teórico-conceptuais sobre o tema, pois eles não me interessaram. E como bem explicou o historiador Carlos de Almeida Prado Bacellar, especialista em demografia histórica, não há quase

estudos sobre as populações de outrora. São poucas e centralizadas as pesquisas para São Paulo, Paraná, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Qualquer proposta de tipologia seria barrada pela pouca representatividade dos estudos e pela concentração na segunda metade do século XVIII e primeira metade do XIX.

Por isso foquei na velhice do ponto de vista do usuário: como velhos se viam? Como contaram suas vidas? Quis ouvi-los através das paredes finas que separam o mundo de hoje do mundo de ontem. Quis fazê-los protagonistas das próprias histórias. Quis compreender a velhice como fato natural e social, historicamente construído através de imagens, representações e das vozes que emanam de memórias e autobiografias. Quis fazer, do velho de ontem, um narrador para o velho de hoje.

Apesar da falta de documentos, ficou claro que, no passado, a velhice não era um privilégio. Era uma fatalidade. Não era possível se projetar no futuro. Para muitos, a velhice foi vinculada à pobreza, à inatividade, à quietude. E velhos foram alvo de incontáveis doenças que varreram o Brasil. Os centros urbanos foram difusores de males: solidão, fim de correntes de solidariedade, endemias – como a covid-19. Mas foi graças ao aumento de médicos e à presença de hospitais que mais pessoas começaram a morrer mais velhas. Já nas áreas rurais, os documentos comprovam não apenas a presença de longevos, mas de velhos ativos nos seus diferentes grupos sociais. Eles surpreendem. Deixam longe o velhinho do anúncio de Viagra! Especialmente as mulheres. Como hoje, elas já duravam mais do que eles.

A gente aprende muito quando se debruça sobre um assunto inédito. O que aprendi sobre a velhice no passado, além de suas transformações ao longo da história, é que ela não traria consequências se apenas nos ensinasse como desaparecemos. Ou como “nos desfazemos”. Mas ela nos ensina, sobretudo, a viver hoje, ainda que num mundo bem mais complexo. Aos que hoje dizem aos velhos “você foi”, ele responde com obstinação: “ eu sou”. Aos que dizem “ no seu tempo ” , eles retrucam: “meu tempo é hoje.”

Parte I

Velhos até os tempos da Independência

Envelhecer não é para os fracos. Betty Davis

Terra à vista, e velhos também...

Primeiras décadas do século XVI. O que era a Terra de Santa Cruz? No imaginário ocidental, uma terra de assombros, misto de paraíso e inferno. Por trás da franja de árvores, habitavam os moradores de um lugar desconhecido. Eles viram os europeus desembarcarem a galope, ganhar terreno e, em poucas décadas, se espalhar pelo cenário. Em março de 1549, Tomé de Sousa chegava à Bahia. Trazia com ele cerca de 1.000 pessoas – entre homens de armas, degredados, colonos pobres e fidalgos do Governo. Uma população chucra e rude. Ela rapidamente iria se tornar “gente derramada” entre os índios, na imagem de um padre jesuíta, Leonardo Nunes. “Derramada” propositalmente, pois era gente hábil em resolver problemas de adaptação e subsistência por meio de trocas, hábito experimentado no Mediterrâneo e no Norte da África. Aqueles que já haviam andado por aquelas plagas e já não eram crianças traziam a experiência para cá.

Pouco se sabe desses aventureiros que cruzaram o Atlântico e vinham viver em ambiente remoto, arranjando seus arremedos de povoação. Sabe-se, porém, que sua expectativa de vida era de 21 anos. Mas quem não morresse por acidente, violência ou envenenamento poderia viver quase tanto quanto os homens de hoje. Os que sobreviviam saberiam contar dias, meses, anos? Abrigados em choças nas quais tentavam se manter vivos, viviam do escambo com nativos. Das feitorias, onde se traficava pau-brasil, às capitanias, onde se passou a plantar cana, os que aqui se instalavam, se não eram velhos, rapidamente envelheceriam. Abandonariam a juventude e a maturidade.

Sabiam que nenhuma potência celeste os protegeria. Veriam dias e noites se sucederem, moídos pela implacável máquina do tempo. A instabilidade e a precariedade do cotidiano se encarregariam de torcêlos, de triturá-los e de quebrá-los. O mundo era cruel, e a morte batia à porta, não deixando tempo para quase ninguém chegar a ter cabelos brancos. Quem partia nas entradas e bandeiras sabia de antemão que podia não voltar: “Eu Belchior Carneiro estando de caminho para fora e temendo-me da morte...”. Doenças, flechas e os perigos da natureza levaram homens como Belchior, chefe da bandeira de Antônio Raposo, em 1608, a fazer testamento antes mesmo de sair de casa.

Mas houve quem resistisse, ainda que vivendo em sociedade muito diversa da europeia. Confrontados à fome, aos ataques do “gentio” e à indiferença das forças da natureza, sobreviveram. A imensidão do território lhes exigiu diferentes modos de convívio. Dos portos litorâneos aos sertões e seus vazios, se desenrolou o cotidiano de homens e mulheres que assistiram às transformações de seu tempo. Envelheciam à medida que a jovem Colônia desabrochava. Retratos dessas primeiras velhices? Raros.

Velhos podem não ter deixado rastros, mas sabiam bem o que era a velhice. No século XVI, a ideia da decrepitude do corpo provocada pela idade parecia dominante entre os portugueses. Se na Idade Média menosprezava-se o “farrapo humano” no qual a idade transformava o corpo, no Renascimento, enquanto se exaltava a beleza do jovem, piorava a opinião sobre o corpo antes gracioso, agora alquebrado. A feiura do velho parecia ainda mais odiosa.

Junto com a Igreja católica, além de gente, Portugal enviou para cá suas teses sobre as idades da vida. À época, autores que marcavam o pensamento cristão reafirmavam a solidariedade entre os elementos do universo e a vida individual. Todo evento ou fenômeno terrestre tinha uma significação espiritual. Logo, sendo um mal, a velhice era castigo divino, maldição que pesava sobre os homens em função de seus pecados. Como o sofrimento e a morte, ela era uma herança dolorosa deixada por Adão. Só no paraíso não se envelhecia ou morria. Era bom lembrar que o homem estava de passagem. A duração da vida na Terra não tinha nenhuma importância, e querer atingir a velhice era uma prova de extravagância. Para teólogos como Santo Agostinho, não era a idade que contava, mas a virtude. Ela é que prolongava a existência.

A velhice seria o resultado de uma vida sem manchas. O segredo? O temor a Deus. Tudo bem que havia velhos viciosos com boa saúde. Mas isso, segundo São Jerônimo, era porque o Diabo os sustentava. Mas... quem eram os velhos? Quanto tempo era preciso viver para atingir tal condição? Sabemos que a idade não foi sempre um critério uniforme. As primeiras tentativas de definir as idades da vida remontam à Grécia Clássica. É no Corpus Hippocraticum que encontramos as primeiras referências, aparecendo aí uma idade definida como velhice: 50 anos. Esta se atingia com o decorrer do tempo, ou seja, com a “lentidão da idade”. Mas para ser boa não podia “ter deficiências”, explicava Aristóteles. Já na Idade Média, os textos tentavam ser mais “precisos”, e, de acordo com diferentes autores, a velhice começava “entre os quarenta e cinco e os sessenta anos”.

O médico e historiador Antônio Lourenço Marques lembra bem que, no caso das idades avançadas, teve influência o peso das imagens que em cada época dominaram a visão da velhice. Havia diferenças em como considerar alguém que esperava a morte ou alguém que ainda tinha atributos positivos e era seguro de si mesmo. Debruçado sobre a obra de Amato Lusitano, médico judeu e português, Marques encontrou personagens de velhos vigorosos, longe de uma imagem frágil, com existências ainda interessantes. Os dados que Amato registrou em suas Centúrias medicinais, publicadas em 1551, revelam corpos e espíritos nos limites da robustez, da jovialidade e da alegria. Vidas, segundo Marques, merecidamente vividas, mesmo quando a idade já era avançada. O oposto do que via padre Heitor Pinto, um grande moralista, que dizia ser a velhice “castigadora dos erros da mocidade”. Amato Lusitano considerava que a velhice chegava aos 60 anos. Mas ela não significava decrepitude ou degradação física. Ao examinar um doente com 62 anos, enquanto outro doutor atribuía sua fraqueza “à decomposição e dissipação da idade senil”, responsável pela “ malignidade da doença”, Amato discordou: o doente, apesar da idade, apresentava “óptimo aspecto e robustez”. O mal nada tinha a ver com a velhice. Os velhos examinados por Amato eram “fortes, robustos”, “ativos”, de “bom aspecto”, “dotados de boa constituição física e disposição” e “preocupados com os negócios”. Estes são qualificativos que se encontram várias vezes nos casos clínicos de septuagenários com

“ótima saúde”. Foi o exemplo do velho Abenaser, de 65 anos, “de bom aspecto”, ou do reverendo Frei Jerónimo de Monte Policiano, com 72 anos de idade, “dotado de bom temperamento”, a quem foi “restituída a saúde” depois de um ano doentinho. Um patrício de 80 anos, “muito respeitado”, foi tratado por Amato, “e em breve disse que se sentia muito bem”. Mesmo um frade “gasto de velhice”, ao ser presenteado com “vinho em abundância”, sentiu “logo melhoras e passados poucos dias, ficou bom de todo”.

Os velhos descritos por Amato Lusitano raramente apresentam a imagem de uma velhice desoladora, explica Marques. Qualquer velho rijo reagia bem à doença e não trazia necessariamente o selo fatídico da degradação, como insistem os documentos literários. Ao contrário, provérbios populares confirmavam o valor de sua experiência: “Se queres bom conselho, pede-o ao homem”. Velhos como os retratados no Painel da Relíquia, no Paço de São Vicente, pintura de Nuno Gonçalvez, no século XV: quantos anos teriam?

Enquanto Amato curava velhos de um lado do Atlântico, do outro, a América era terra jovem. Não se sabia onde começava ou acabava. Mas o que se imaginava sobre ela era antigo. Intuía-se que poderia ser parte do Paraíso na Terra. A ideia vicejava desde a Idade Média. Lendas das mais diversas alimentavam a ideia de que o Éden se localizava a Oriente. No Cáucaso. Como não foi encontrado, passou para o Ocidente. Colombo, por exemplo, partiu em busca dele. Em 1503, Américo Vespúcio, na carta dirigida a Francesco de Medici que ficou conhecida como Mundus novus, declarou que, se existisse, o paraíso terrestre não estaria longe das terras que viu. A ideia também está presente na carta de Pero Vaz de Caminha, com a descrição de sua chegada ao Brasil. Sim, o Paraíso era aqui. E, como Caminha, cronistas quinhentistas se revezaram contando dos ares puríssimos e perfumados, das terras fertilíssimas, das matas sempre verdes, do clima nem quente nem frio. Era o Éden, sem dúvida. Décadas mais tarde, em 1730, o poeta e historiador Sebastião da Rocha Pita, que morreria aos 78 anos, continuava a repetir:

Em nenhuma outra região se mostra o céu mais sereno, nem madruga mais bela a aurora; o sol em nenhum outro hemisfério tem raios tão dourados, nem os reflexos noturnos tão brilhantes;

as estrelas são mais benignas e se mostram sempre alegres; os horizontes, ou nasça o sol, ou se sepulte, estão sempre claros [...] é enfim o Brasil Terreal Paraíso descoberto, onde têm nascimento e curso os maiores rios; domina salutífero clima; influem benignos astros e respiram auras suavíssimas, que o fazem fértil e povoado de inumeráveis habitadores.

Sensibilidade poética à parte, viajantes acreditavam finalmente ter chegado ao Éden. A moldura dessa cosmovisão residia em textos que circulavam em toda a península ibérica, demonstrando que até a famosa Fonte da Juventude, que nascia aos pés da Árvore da Vida, também se encontrava nas Américas. Inicialmente localizada na ilha de Bimini, próxima da Flórida, depois passou a ser o Rio Jordão, onde Cristo foi batizado, ou encravado numa ponta da Ilha de Santa Helena, no Atlântico Sul. Pena não ter sido encontrado, pois bastava um mergulho em suas águas para curar a impotência. Quem sabe não estaria mais ao sul? No Peru, com certeza. Não era a fonte da juventude, mas uma espécie de INSS que ali funcionava. Textos revelavam que, a partir da conquista do chefe Manco Capac, no século XII, uma nova organização foi estabelecida, oferecendo aos idosos toda a segurança. Recenseados a cada cinco anos, eles eram agrupados por idade: dos 50 aos 70, dos 70 aos 80 e mais, demonstrando que a longevidade era normal. Havia a classe dos que “andavam com facilidade”, dos “desdentados” e dos que só queriam comer e dormir. Registros da igreja católica, em certos vilarejos, comprovam que existia uma forte proporção de centenários que fumavam, bebiam e tinham uma surpreendente atividade sexual. Numa sociedade sem escrita, os idosos tinham o papel de arquivos vivos. Eram conselheiros de soberanos, e cada tribo enviava ao chefe inca um conselho informal, a fim de guiá-lo em suas decisões. As mulheres idosas tinham o papel de médicas, enfermeiras e parteiras. Eram também sacerdotisas no Templo do Sol, em Cuzco. Os idosos do povo eram assistidos pela comunidade. Os lavradores trabalhavam suas terras gratuitamente e lhes levavam alimentos. Recebiam também grãos dos armazéns do chefe inca. Um tributo especial, na forma de corveia, ou seja, de trabalho obrigatório, consistia em fabricar roupas e sapatos para os idosos. Que, aliás, estavam livres de pagar impostos a

partir dos 50 anos. Uma sociedade assim foi apresentada como utópica aos europeus, tendo um efeito importante na imaginação de homens e mulheres entre os séculos XVI e XVIII. Nela, cada um tinha um papel que era exercido em benefício da comunidade. Não é à toa que os europeus acreditavam que a flor da juventude, aquela mesma que Deus teria plantado no Paraíso, se esconderia nas montanhas andinas. Exatamente entre o Peru e o Equador.

Retrato dos primeiros patriarcas

Pois foi a esse continente, no qual se acreditava viver quase eternamente, que em 1549 chegou a Salvador, na Bahia, Manuel da Nóbrega e um grupo de jesuítas. Missão? Catequizar os indígenas. Quatro anos depois, Nóbrega, Manoel de Paiva e José de Anchieta rumaram para o sul, e na vila de São Vicente ergueram um colégio. Mais tarde, no planalto, um núcleo de colonização. Nascia São Paulo de Piratininga. Falar de aldeias indígenas ao longo do século XVI pode significar várias coisas: agrupamentos já existentes antes da colonização; agrupamentos com a presença de padres jesuítas; aldeias próximas às “ casas construídas à maneira dos cristãos” ou a ranchos de piratas onde se fazia o escambo de pau-brasil. A maior parte dos primeiros imigrantes vivia junto ao mar, para se comunicar com o Reino e por medo dos selvagens. E foi aos poucos que os então considerados “inimigos pintados e emplumados” se tornaram amigos. Multiplicavam-se os “mamelucos”. Colonização, mestiçagem e catequização marcaram os primeiros tempos do sonhado paraíso.

E os contatos entre jesuítas e indígenas foram a fonte de informações sobre os velhos e velhas que habitavam o idealizado jardim. Embora vivessem em harmonia com a maioria dos animais, como queria a tradição cristã, e andassem nus como Adão e Eva, no mais eram iguais aos recém-chegados. Escrevendo em 1556 para a Companhia de Jesus, Anchieta contou poucas e boas histórias sobre “alguns velhos” carijós que foram batizados e receberam o sacramento do casamento. Carismáticos e respeitados, eram eles que exortavam os indígenas a fazerem suas roças ou a participar de guerras. Os mais velhos tinham também outra tarefa. Na verdade, uma estratégia que deu certo no Espírito Santo, em 1595:

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