A morte é meu ofício

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Robert Merle

A MORTE É MEU OFÍCIO

tradução Arnaldo
Bloch

Copyright do texto principal © 1999 Éditions Gallimard Copyright do Prefácio © 1972

Título original: La mort est mon métier

Todos os direitos reservados pela Editora Vestígio. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos, seja via cópia xerográfica, sem a autorização prévia da Editora.

Cet ouvrage, publié dans le cadre du Programme d’Aide à la Publication année 2022 Carlos Drummond de Andrade de l’Ambassade de France au Brésil, bénéficie du soutien du Ministère de l’Europe et des Affaires étrangères.

Este livro, publicado no âmbito do Programa de Apoio à Publicação ano 2022 Carlos Drummond de Andrade da Embaixada da França no Brasil, contou com o apoio do Ministério francês da Europa e das Relações Exteriores.

direção editorial Arnaud Vin

editor responsável Eduardo Soares

assistente editorial Alex Gruba preparação de texto Sonia Junqueira

revisão Eduardo Soares diagramação Guilherme Fagundes capa Diogo Droschi (sobre imagem de Donald Jean / Arcangel Images)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

Merle, Robert, 1908-2004

A morte é meu ofício / Robert Merle ; tradução Arnaldo Bloch. -- 1. ed. -- São Paulo, SP : Vestígio, 2022.

Título original: : La mort est mon métier ISBN 978-65-86551-75-4

1. Ficção francesa 2. Nazismo 3. Campos de concentração e extermínio 4. Rudolf Höss I. Título.

22-107778

CDD-843

Índices para catálogo sistemático:

1. Ficção : Literatura francesa 843

Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380

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A quem eu posso dedicar este livro a não ser às vítimas daqueles para quem a morte é um ofício?

Prefácio do autor 9 1913 13 1916 53 1918 89 1922 127 1929 ................................................................... 161 1934 189 1945 295

Posfácio do tradutor: O ofício de traduzir a morte 311

Prefácio do autor

Imediatamente após 1945, começaram a aparecer, na França, testemunhos perturbadores sobre os campos da morte localizados do outro lado do Reno. Esse florescimento, contudo, foi breve. O rearmamento da Alemanha marcou o declínio, na Europa, da literatura concentracionária. As recordações da casa dos mortos incomodavam a política do Ocidente: assim, eram esquecidas.

Enquanto redigia A morte é meu ofício, de 1950 a 1952, eu estava perfeitamente consciente do que fazia: escrevia um livro contracorrente. Melhor dizendo: meu livro não ficara ainda pronto e já estava fora de moda.

Não me espantou, portanto, a recepção da crítica. Foi exatamente o que eu esperava. Os tabus mais eficazes são aqueles que não confessam seu nome.

Dessa acolhida posso falar hoje sem amargura, já que, de 1952 a 1972, não faltaram leitores de A morte é meu ofício. Apenas sua idade variou: os que o leem atualmente nasceram depois de 1945. Para eles, A morte é meu ofício é “um livro de História”. E, em grande parte, dou razão a eles.

Rudolf Lang existiu. Ele se chamava, na realidade, Rudolf Hoess e era comandante do campo de Auschwitz. O essencial de sua vida chegou até mim por intermédio do psicólogo americano Gustave Gilbert, que o interrogou em sua cela durante o processo de Nuremberg. O curto resumo desses encontros – que Gilbert concordou em me repassar – é, em seu conjunto, infinitamente mais revelador que a confissão escrita

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posteriormente pelo próprio Hoess em sua prisão polonesa. Existe uma diferença entre organizar lembranças sobre uma folha de papel e ser interrogado por um psicólogo...

A primeira parte de meu relato é uma recriação ampliada e imaginária da vida de Rudolf Hoess a partir do resumo de Gilbert. A segunda parte – na qual, a meu ver, realizei realmente a obra de um historiador – delineia, com base em documentos do Processo de Nuremberg, o lento e hesitante desenvolvimento da usina de morte de Auschwitz.

Com o mínimo de reflexão, enxergamos o quanto é inconcebível que homens do século XX, vivendo num país civilizado da Europa, tenham sido capazes de empenhar tanta metodologia, engenhosidade e dons criadores na construção de um imenso complexo industrial com o objetivo de assassinar em massa seus semelhantes.

Evidentemente, antes de iniciar minhas pesquisas para A morte é meu ofício, eu já sabia que, de 1941 a 1945, cinco milhões de judeus haviam sido executados pela ação de gases asfixiantes em Auschwitz. Mas uma coisa é sabê-lo de forma abstrata e outra é ter à mão, em textos oficiais, a organização material do horripilante genocídio. Ainda que para cada fato parcial eu pudesse produzir um documento, era difícil acreditar na verdade global que emergia do conjunto.

Existem várias maneiras de dar as costas à verdade. Podemos nos refugiar no racismo e dizer: “Os homens que fizeram isso são alemães”. Pode-se também apelar para a metafísica e berrar, com horror, como um padre que conheci: “É o demônio! É o mal”...

De minha parte, prefiro pensar que tudo se torna possível numa sociedade cujos atos não são mais controlados pela opinião popular. A partir desse ponto, a matança pode perfeitamente parecer, a tal sociedade, a solução mais rápida para seus problemas.

O que é assustador e nos dá uma opinião pesarosa da espécie humana é que, para arquitetar sua estrutura, uma sociedade desse tipo encontre invariavelmente os executores zelosos de seus crimes.

É um desses homens que eu quis descrever em A morte é meu ofício. Não nos enganemos: Rudolf Lang não era um sádico. O sadismo floresceu nos campos da morte, sim, mas nos escalões subalternos. No topo da hierarquia, era preciso um equipamento psíquico bem diferente.

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Existiram, sob o nazismo, centenas, milhares, de Rudolf Lang –“morais” no interior da imoralidade, conscienciosos sem consciência. Pequenos quadros cuja seriedade e cujos “méritos” levavam às mais altas atribuições. Tudo o que Rudolf fez não foi por maldade, mas em nome do imperativo categórico, por fidelidade ao chefe, por submissão à ordem, por respeito pelo Estado. Em suma, era um homem do dever: e é nisso, exatamente, que reside sua monstruosidade.

27 de abril de 1972

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Virei a esquina da Kaiser-Allee; uma rajada de vento e chuva glacial castigou minhas pernas nuas e lembrei com aflição que era sábado. Percorri os últimos metros correndo, enfiei-me no saguão do prédio, subi os cinco andares saltando os degraus de quatro em quatro e dei duas batidas leves.

Reconheci, com alívio, o passo arrastado da gorda Maria. A porta se abriu, Maria afastou do rosto sua mecha cinzenta, e seus bondosos olhos azuis encontraram os meus. Inclinou-se e sussurrou, furtivamente: – Você está atrasado.

Foi como se Pai surgisse diante de mim, magro, sombrio, e dissesse, com sua voz entrecortada: “A pontualidade — é uma virtude alemã — mein Herr!”.

Respondi num só fôlego: – Onde ele está?

Maria fechou a porta com cuidado. – No escritório. Fazendo as contas da loja. E acrescentou:

– Trouxe os seus chinelos. Assim, você não precisa passar no quarto. Para chegar ao meu quarto era obrigatório passar pelo escritório de Pai. Apoiei um joelho no chão e comecei a desamarrar meus sapatos. Maria continuou de pé, robusta, imóvel. Ergui a cabeça. – E minha pasta?

– Eu mesma levo. De toda forma, ainda tenho que encerar o seu quarto.

Tirei meu blusão e o pendurei junto ao sobretudo preto de Pai.

13 1913

– Obrigado, Maria.

Ela abanou a cabeça, fazendo sua mecha cinzenta cair sobre os olhos, e me afagou com um tapinha no ombro.

Cheguei à cozinha, abri com cuidado a porta e a fechei atrás de mim. Mamãe estava de pé diante da pia, lavando a louça.

– Bom dia, Mamãe.

Ela girou o corpo. Seus olhos pálidos caíram sobre os meus. Depois, deslizaram para o relógio no bufê. Receosa, advertiu:

– Você está atrasado.

– Havia muitos alunos na confissão. E, depois, o padre Thaler me reteve.

Ela me deu as costas e voltou a lavar a louça. Sem me olhar, continuou:

– A bacia e os panos estão sobre a mesa. Suas irmãs já estão trabalhando. Melhor se apressar.

Passei pela sala de jantar. A porta estava aberta. Vi Gerda e Bertha de pé, diante da janela, sobre duas cadeiras. Elas me deram as costas. Em seguida, passei pelo salão e entrei no quarto de Mamãe. Maria ajeitava a escadinha de frente para a janela. Tinha ido buscá-la para mim na despensa. Olhei-a e pensei: “Obrigado, Maria” – mas não abri a boca. Não tínhamos o direto de falar durante a limpeza das vidraças. Depois de um momento, transferi a escadinha para o quarto de Pai, voltei para pegar a bacia e os panos, subi na escadinha e recomecei a esfregar. Um trem apitou, a estrada de ferro à minha frente encheu-se de fumaça e ruído, e, de repente, eu estava praticamente pendurado na janela, tentando espiar. Com terror, eu disse, baixinho: “Deus, faça com que eu não tenha olhado a rua”. Depois, acrescentei: “Deus, faça com que eu não cometa nenhum erro limpando os vidros”.

Então, orei, entoei um cântico à meia-voz e me senti um pouco melhor.

Quando as janelas de Pai estavam limpas, fui até o salão. Gerda e Bertha apareceram no fundo do corredor. Elas caminhavam, uma atrás da outra, carregando suas bacias. Estavam indo limpar as janelas do seu próprio quarto. Apoiei a escadinha na parede para abrir espaço, elas passaram por mim, dei-lhes as costas. Eu era o mais velho, mas elas eram mais altas que eu.

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Pus a escadinha diante da janela do salão, voltei ao quarto de Pai para buscar a bacia e os panos e os deixei num canto. Meu coração começou a bater forte, fechei a porta e comecei a olhar os retratos. Os três irmãos, o tio, Pai e o avô de Pai estavam lá: todos eles oficiais, todos com seus melhores uniformes. Demorei-me na foto do meu avô. Era coronel. Diziam que me parecia muito com ele. Abri a janela, subi na escadinha; o vento e a chuva entraram e eu era uma sentinela em seu posto avançado, de pé, aguardando, sob a tempestade, a aproximação do inimigo. A cena mudou, agora eu me via no pátio de uma caserna, havia sido punido por um oficial, o oficial tinha os olhos brilhantes e o rosto magro de Pai, eu me punha em sentido e dizia, respeitosamente: “Jawohl, Herr Hauptmann!”.* Um formigamento percorreu minha espinha, a flanela ia e vinha no vidro com um rigor mecânico, e eu sentia pesarem deliciosamente sobre meus ombros e minhas costas os olhares inflexíveis dos oficiais da família.

Quando terminei, fui guardar a escadinha na despensa, voltei para buscar a bacia e os panos e me dirigi à cozinha.

De costas, Mamãe disse: – Ponha suas coisas no chão e venha lavar as mãos.

Aproximei-me da pia, Mamãe abriu espaço, mergulhei as mãos na água, estava quente, Pai proibia que nos lavássemos com água quente. – Mas a água está quente! – sussurrei.

Mamãe suspirou, pegou a bacia, esvaziou-a na pia sem uma palavra e abriu a torneira. Peguei o sabão, ela se afastou, virou as costas parcialmente, a mão direita apoiada na borda da pia, os olhos fixos no bufê. A mão tremia um pouco.

Quando terminei ela me entregou o pente e disse, sem me olhar: – Penteie-se.

Fui até o pequeno espelho do bufê, ouvi mamãe pôr de volta na pia a bacia de roupa suja, olhei o espelho e me perguntei se era ou não parecido com meu avô. Importava-me saber, pois, caso fosse, poderia ter a esperança de me tornar, como ele, coronel.

Atrás de mim, mamãe anunciou: – Seu pai está esperando.

* “Sim, meu capitão!”

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Pousei o pente no bufê e comecei a tremer.

– Não ponha o pente no bufê – ela disse. Mamãe caminhou dois passos, pegou o pente, enxugou-o no avental. Olhei-a em desespero, sua vista fixou-se em mim por um momento, mas novamente ela deu as costas e ocupou seu lugar diante da pia.

Saí e caminhei lentamente até o escritório de Pai. No corredor, cruzei de novo com minhas irmãs. Elas me lançaram olhares dissimulados. Entendi que adivinhavam aonde eu ia.

Postei-me diante do escritório, fiz um violento esforço para cessar o tremor e bati à porta. A voz de Pai gritou: “Entre!”. Abri a porta, fechei-a atrás de mim e fiquei em posição de sentido. Imediatamente, um frio glacial atravessou minhas roupas e penetrou nos ossos. Pai estava sentado no escritório, mirando a grande janela aberta. Deu as costas e não se moveu. Continuei em sentido. A chuva entrava em lufadas, trazendo correntes bruscas de vento, e notei que havia uma pequena poça diante da janela.

Pai disse, com sua voz entrecortada:

– Venha — sentar-se.

Avancei e sentei-me à sua esquerda, numa cadeirinha baixa. Pai girou sua poltrona e olhou para mim. As órbitas de seus olhos estavam ainda mais fundas que o habitual, e seu rosto, tão magro que seria possível enumerar os músculos, um por um. A pequena lâmpada do escritório estava acesa. Felizmente, eu estava situado na sombra.

– Está com frio?

– Não, Pai.

– Você não — treme, — eu espero?

– Não, Pai.

Percebi então que ele próprio tinha grande dificuldade em evitar o tremor: suas faces e suas mãos estavam azuis.

– Você terminou — de limpar — os vidros?

– Sim, Pai.

– Você — falou?

– Não, Pai.

Ele inclinou a cabeça com o ar ausente, e, como não disse nada, acrescentei:

– Eu... cantei uma cantiga.

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Pai ergueu a cabeça e me advertiu:

– Limite-se — a responder — minhas perguntas.

– Sim, Pai.

Ele retomou o interrogatório, só que distraidamente, como se fosse uma rotina:

– Suas irmãs — falaram? – Não, Pai.

– Você — derramou água? – Não, Pai.

– Você — olhou a rua?

Hesitei um quarto de segundo. – Não, Pai.

Ele me encarou.

– Preste bem atenção. Você — olhou a rua? – Não, Pai.

Fechou os olhos. Devia estar realmente distraído: do contrário, não teria me liberado tão rápido.

Fez-se um silêncio. Ele moveu seu grande e rígido corpo sobre a poltrona. Uma onda de chuva penetrou no cômodo e senti meu joelho esquerdo encharcado. O frio me apunhalava, mas não era o que me fazia sofrer: era, sim, o medo de Pai notar que eu tremia, de novo.

– Rudolf, — tenho um assunto — para falar. – Sim, Pai.

Uma tosse dilacerante sacudiu seu corpo todo. Depois, ele olhou a janela, e tive a impressão de que ia se levantar para fechar os batentes. Mas mudou de ideia e prosseguiu: – Rudolf, — temos que falar — do seu futuro. – Sim, Pai.

Permaneceu um longo tempo em silêncio, olhando a janela. Suas mãos estavam azuis de frio, mas ele não se permitia o menor movimento. – Primeiro — nós vamos fazer — uma oração.

Levantou-se, e eu também. Caminhou até o Cristo postado na parede, atrás da cadeirinha, e ajoelhou-se no piso. Também me pus de joelhos, não a seu lado, mas atrás dele. Fez o sinal da cruz e começou um pai-nosso lento, com distinção, sem perder uma sílaba. Quando rezava, sua voz era fluente.

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Mantive os olhos fixos na grande forma pétrea ajoelhada à minha frente e, como de hábito, pareceu-me que era a ele, muito mais que a Deus, que minha oração se dirigia.

Pai disse “Amém” com força e ergueu-se. Fiz o mesmo. Instalou-se na escrivaninha.

– Sente-se.

Ocupei minha cadeirinha. As têmporas latejavam.

Pai olhou de lado, furtivamente, e tive a incomum sensação de que lhe faltava coragem para falar. Como ele hesitava, a chuva, bruscamente, cessou. Seu rosto iluminou-se, e compreendi o que estava para acontecer. Pai ergueu-se e fechou a janela: Deus, ele mesmo, suspendera a punição.

Sentou-se de novo. A coragem voltara.

– Rudolf – ele disse –, você está com treze anos — a idade — do entendimento. Graças a Deus — você é inteligente — e graças a mim... ou melhor – retomou –, graças à luz que Deus — teve a bondade — de me conceder — para sua educação, — você é — na escola — um bom aluno. Pois eu lhe ensinei, — Rudolf, — eu lhe ensinei — a fazer seus deveres, — assim como você limpa as vidraças: a fundo!

Calou-se por uma fração de segundo e recomeçou com a voz mais forte, quase um grito: – A fundo!

Compreendi que era minha vez de falar e disse, baixinho: “Sim, Pai”. Com a janela fechada, o escritório parecia muito mais gelado.

– Então eu vou — dizer a você — o que decidi — sobre — seu futuro.

Ponderou:

– Mas quero — que você saiba, — que você compreenda, — as razões — da minha decisão.

Parou, apertou as mãos uma contra a outra e seus lábios começaram a tremer.

– Rudolf, — uma vez, no passado, — eu cometi um erro. Olhei-o com espanto.

– E para que você compreenda — minha decisão — é preciso que hoje mesmo — eu conte a você — o meu erro. Um erro, — Rudolf, — um pecado — tão grande, — tão assustador, — que eu não posso,

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— eu não devo — esperar — que Deus me perdoe, — pelo menos, não nesta vida...

Fechou os olhos. Um tremor convulsivo agitou seus lábios, e o desespero em seu rosto era tamanho que um nó se formou em minha garganta. Por alguns segundos, parei de tremer.

Com esforço, Pai desatou as mãos e pousou-as sobre os joelhos.

– Você deve imaginar — o quanto — é penoso para mim — me rebaixar, — me humilhar, — assim — diante de você. Mas meus sofrimentos — não importam. Eu não sou nada.

Fechou os olhos e repetiu.

– Eu não sou nada.

Essa era sua frase favorita, e como sempre, ao ouvi-la, senti um horrível incômodo, como se fosse minha a culpa por meu pai, aquela criatura quase divina, “não ser nada”.

Abriu os olhos e fixou o vazio.

– Rudolf, — um tempo, — mais exatamente — algumas semanas, — antes do seu nascimento — eu tive — que viajar — a negócios... Articulou, com desgosto:

– ... à França, a Paris.

Fez uma pausa, fechou os olhos, e todo traço de vida deixou sua face.

– Paris, Rudolf, é a capital de todos os vícios!

Endireitou-se abruptamente na cadeira e me fulminou com os olhos cobertos de ódio.

– Você entende?

Eu não entendia, mas seu olhar era horrendo, e, com um fio de voz, respondi “Sim, Pai”.

Ele recomeçou, em voz baixa.

– Deus, em sua ira — visitou — meu corpo e minha alma. Fixou o vazio.

– Fiquei doente – disse, com um desgosto atroz –, tratei-me e curei a doença, — mas minha alma não se curou.

De repente, estava gritando:

– Ela não devia se curar!

Fez um longo silêncio até se dar conta, novamente, da minha presença.

– Está tremendo? – perguntou, maquinalmente.

– Não, Pai.

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