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MyCloma dá nova vida às roupas usadas

NÃO ALIMENTAR

A temática da sustentabilidade das marcas é, cada vez mais, discutida a nível global e também os portugueses estão a optar por alternativas amigas do ambiente. Em particular, na indústria têxtil, surgem, cada vez mais, iniciativas que pretendem combater a “fast fashion”. Seja tornando-se preponentes de uma “moda lenta”, com foco, acima de tudo, na qualidade e durabilidade das peças de roupa, ou através da venda de artigos em segunda mão, promovendo um consumo consciente e sustentável. É, precisamente, no contexto desta segunda tendência que surge a MyCloma, uma plataforma online de recolha, compra e venda de roupa em segunda mão. Lançada por um grupo de cinco jovens empreendedores portugueses, esta iniciativa visa reduzir a pegada ecológica do sector têxtil, um dos mais poluentes do mundo.

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TEXTO Bárbara Sousa FOTOS Shutterstock

Em Portugal, deitam-se para o lixo 200 mil toneladas de roupa, todos os anos. Os dados são da Agência Portuguesa do Ambiente (APA), que indica que, durante 2017, foram recolhidas, mais precisamente, 200.756 toneladas de têxteis nos resíduos urbanos. Este é um valor ligeiramente superior ao registado no ano anterior (196.865) e representa cerca de 4% do total de resíduos produzidos em Portugal (mais perto de 4,75 milhões). Entre 2011 e 2017, foram deitados ao lixo 1,2 milhões de toneladas de têxteis, sendo esta uma tendência generalizada e um problema que não é exclusivo do país. No Reino Unido, apenas em 2016, foram enviadas para aterros 350 mil toneladas de roupa e nos Estados Unidos são geradas mais de 15 milhões de toneladas de resíduos têxteis por ano, sendo que apenas 2,6 milhões são reciclados. Grande parte do problema está no facto de que cada pessoa compra, em média, mais 60% das peças do que comprava no ano 2000 e só as mantém metade do tempo, diz a Greenpeace. Um cenário especialmente preocupante, visto que a indústria têxtil é uma das mais poluentes do mundo, seguindo apenas a indústria petrolífera. Segundo o World Wide Fund (WWF), para a produção de uma simples t-shirt, podem ser necessários até 2.700 litros de água, tendo em conta todas as fases do processo produtivo. Já numas calças de ganga, o consumo de água pode chegar aos 10 mil litros. “Acreditamos que os portugueses têm tido uma crescente consciencialização do impacto ambiental de várias indústrias, especialmente a têxtil, que é a segunda indústria mais poluidora. Em cinco anos, conseguiremos constatar uma grande mudança nos hábitos de consumo e na forma como se olha para o desperdício. A definição da Agenda 2030, constituída por 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), foi um grande impulso para começar a mudar mentalidades, em prol de povos e de um planeta mais verde. É neste contexto que surge a MyCloma, cuja missão é contribuir para um planeta mais sustentável através da reutilização da nossa roupa”, explica Ana Catarina Monteiro, fundadora da nova plataforma online que tem como principal objetivo promover a economia circular através do prolongamento da vida útil da roupa. A criação da plataforma foi motivada, principalmente, pela experiência da fundadora na venda da sua roupa nas redes sociais tradicionais. Ana Catarina Monteiro rapidamente percebeu que, dada a procura crescente, fazia falta um marketplace com um serviço integrado, com uma boa apresentação, que desmistificasse a roupa em segunda mão, para centralizar tanto os compradores, como também os vendedores.

Entre 2011 e 2017, em Portugal, foram deitados ao lixo 1,2 milhões de toneladas de têxteis, sendo esta uma tendência generalizada

Mercado de revenda

Segundo o relatório “2020 Resale Report” da thredUP, o mercado de segunda mão deverá atingir 64 mil milhões de dólares, nos próximos cinco anos, e espera-se que a revenda ultrapasse o segmento tradicional de “thrift” e de doação, até 2024. Existem mais compradores de segunda mão do que nunca. 70% das mulheres têm ou estão recetivas a compras de segunda mão e 62 milhões compraram produtos de segunda mão, em 2019, em comparação com os 56 milhões em 2018. Em particular, 82% das pessoas já compraram ou estão recetivas a comprar itens em segunda mão quando o orçamento fica mais apertado. Também a Geração Z está a impulsionar o crescimento das compras de segunda mão. Os jovens compradores estão a adotar a moda de segunda mão mais rápido do que qualquer outra faixa etária. De facto, de acordo com o mesmo relatório da thredUP, 80% diz que não há estigma em comprar roupas usadas e, para a Geração Z, é mais provável (90%) comprar em segunda mão quando existem dificuldades financeiras. A sustentabilidade vai passar de ser um “ponto positivo” na escolha da marca para se tornar uma prioridade, sendo que 43% dos consumidores planeiam mudar os seus gastos para marcas sustentáveis. A pandemia de Covid-19 teve um efeito na compra online de roupa em segunda mão oposto à retração geral do retalho. Com os consumidores a procurar “pechinchas”, o uso do canal online para comprar itens em segunda mão deverá crescer 69%, entre 2019 e 2021, enquanto o sector de retalho, em geral, deverá encolher 15%, refere o relatório. Por exemplo, a pandemia não adiou todos os projetos da H&M, que conseguiu avançar com a abertura de uma loja física de revenda para o projeto Sellpy. Este novo espaço vai abrir na Alemanha, devido ao desejo inerente dos compradores de consumir moda sustentável. O grupo sueco apostou na Sellpy, pela primeira vez, em 2015, por intermédio da CO:LAB, e atualmente detém 70% das ações do projeto. A Sellpy é a segunda maior loja online de produtos em segunda mão da Suécia e, por esse motivo, o grupo pretende apelar e incentivar progressivamente este tipo de consumo. De facto, o mundo da moda está, cada vez mais, a focar-se em conseguir um consumo sustentável e uma mudança de uma economia têxtil tra- dicional para uma economia circular. Isto irá exigir novos modelos de negócio nas áreas de reparação e revenda que, no futuro, vão ter um papel tão importante quanto os investimentos em pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias e materiais reciclados, assegura a H&M. “Verificamos que a consciencialização e procura dos nossos clientes por moda sustentável estão em crescimento constante e, agora, provavelmente, mais do que nunca. É por isso que estamos particularmente satisfeitos por poder providenciar uma nova forma sustentável de comprar e vender moda, numa colaboração com a Sellpy”, destaca Thorsten Mindermann, country manager da H&M na Alemanha.

O mercado de segunda mão deverá atingir 64 mil milhões de dólares, nos próximos cinco anos

Portugal

Em Portugal, a fundadora da MyCloma acredita que existe uma lacuna no sector têxtil no que diz respeito à prática de recolha, compra e venda de roupa em segun da mão. “Portugal ainda não oferecia uma boa solução de roupa em segunda mão, comparativamente com a Alemanha ou Inglaterra, por exemplo. As lojas físicas acabam por ter pouca oferta, pela limitação de espaço, e as peças já estão muito escolhidas, uma vez que são maioritariamente doadas. A venda online, em plataformas não especializadas, acaba por ser muito descentralizada e de trabalho acrescido, desde a foto, à publicação, ao ‘engagement’ e ao envio”. Ainda assim, Ana Catarina Monteiro garante que é expectável que o mercado de roupa em segunda mão tenha um crescimento exponencial nos próximos anos, sustentado em três vetores fundamentais: a conjuntura económica, a crescente consciencialização por parte das novas gerações do impacto ambiental da indústria e, no caso da MyCloma, em particular, a comodidade que o e-commerce proporciona aos consumidores finais. Aliado a tudo isto, nota-se uma mudança de paradigma em termos do comportamento do consumidor. “Existe ainda uma conotação negativa relativamente a peças em segunda mão, de algo velho e sujo, que precisará de arranjo”, mas, apesar deste preconceito, a responsável confirma que o consumidor português tem aderido à iniciativa. “A mudança do paradigma da roupa em segunda mão é um processo do qual queremos fazer parte. É nosso dever continuar a mostrar os riscos desta indústria e como a segunda mão é uma ótima solução que nos permite não só minimizar esse impacto, como também prolongar o ciclo de vida útil das nossas roupas. Acreditamos que, a médio prazo, conseguiremos construir uma perceção clara de qualidade da roupa que vendemos ao nosso cliente, o que será também um fator desbloqueador da compra”, explica Ana Catarina Monteiro. “No fundo, queremos ajudar as pessoas a tomar decisões mais conscientes e sustentáveis e mostrar o impacto ambiental e social da ‘fast-fashion’. O nosso objetivo não é que as pessoas deixem de comprar nas grandes marcas, porque isso seria utópico, mas, sim, aproveitar a roupa que deixa de ser usada e dar-lhe uma segunda vida, evitando, assim, que uma terceira pessoa compre também uma peça nova. Nos últimos anos, verificou-se uma alteração no padrão de produção das grandes marcas, passámos de duas coleções por ano a 50 a 100 mini coleções, o que induz um forte estímulo para um consumismo exacerbado e, consequentemente, um elevado desperdício. O gasto de água para produzir uma t-shirt, por exemplo, é equivalente ao que um ser humano gasta em dois anos e meio de consumo doméstico. Os números são assustadores e grande parte dos consumidores ainda os desconhece. Por conseguinte, se conseguirmos aumentar o tempo médio de vida útil de uma peça de roupa, há desde logo uma externalidade positiva no meio ambiente, especialmente, numa altura em que está claro que a água é um recurso natural cada vez mais escasso”. A MyCloma vai continuar a contrariar os desafios da revenda de roupa em Portugal, a montante do processo, focando-se na recolha, oferecendo um bom serviço a quem envia roupa, e a jusante, no cliente final, onde é fundamental manter elevados padrões de qualidade da seleção de roupa que coloca à venda. Atualmente, qualquer pessoa, em Portugal Continental, pode solicitar um pedido de recolha do vestuário ou acessórios que pretende vender, sem sair de casa. No caso dos produtos enviados não preencherem os requisitos de qualidade estipulados, o cliente tem a opção de pedir a sua devolução ou optar que a MyCloma entregue diretamente numa organização sem fins lucrativos parceira e já foram doadas mais de três mil peças a duas associações na zona do Porto. Já quanto aos compradores, a plataforma está preparada para entregar em todo o país e, brevemente, em alguns países da Europa. “Queremos ser a maior plataforma de venda de roupa em segunda mão em Portugal e, a médio prazo, uma marca de referência do sector na Europa. Para isso, estamos agora numa fase de contactos com investidores e empresas com vista a escalar o negócio rapidamente e diversificar os nossos canais de venda. Há grandes empresas multinacionais que já perceberam o potencial deste mercado e estão, juntamente connosco, a criar um conjunto de sinergias para que o futuro seja já amanhã”, conclui.

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