Ucrânia | As Lições da História e Outros Estudos Sobre o Oriente Cristão de Luís Filipe F. R. Thomaz

Prefácio Conhecer, ainda que sumariamente, os povos do centro e leste da Europa é condição para compreendermos como as chefias da Federação Russa encontraram condições políticas, culturais e reli‑ giosas para justificar internamente uma intervenção na Ucrânia que ameaça arrastar a Europa e a NATO para um vórtice de violência de implicações mundiais. Em boa hora, portanto, Luís Filipe Thomaz nos propõe, nesta recolha de artigos, a sua leitura da história étnica, cultural e religiosa da Ucrânia e do mundo eslavo em geral.

O passado não explica de forma linear o presente. Mas permite pelo menos uma leitura mais densa do que move os seus prota‑ gonistas. «[N]ão se trata», como recorda o autor, «de heterode‑ terminar os povos, proclamando, como se falássemos do alto, o que devem e o que não devem fazer, mas simplesmente explicar o seu comportamento, tal como de fora o podemos observar, em particular por que razões se desejam autodeterminar.»

São várias as miopias pessoais de que me apercebi, com a ajuda destes textos, a começar pelo modo como a minha visão do mundo é cultural e geograficamente condicionada. É verdade que assistimos em direto à guerra na Ucrânia. Mas se estremeço de

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comoção, é por uma comum humanidade: os bairros bombardea‑ dos, as estradas atulhadas de destroços dos combates, as aldeias devastadas, mesmo os rostos sofridos, são de outras gentes. Como imaginam elas o mundo? Como lembram o passado e sonham o futuro? Que saudades despertam nos refugiados os nomes de terras que mal sabemos pronunciar? Os grandes rios, vistos de relance nas reportagens, que separam hoje as forças beligerantes — noutros tempos, rotas de comércio e de cultura? E as planícies, no seu ondular branco em fevereiro, mais tarde castanho, depois verde e por fim dourado — extensões a perder de vista recortadas por florestas, linhas de árvores, ou o azul intenso do horizonte?

Nos recessos mais antigos da memória, vejo o globo terrestre feito sobretudo de oceanos, demarcados por finas faixas litorais e polvilhados de ilhas quanto baste. Deve ser porque de casa dos meus pais se viam as encostas da Madragoa e de Santa Catarina descendo a pique, e ao fundo o espelho imponente do Tejo, com um ir e vir constante de cacilheiros, e de navios de grande porte que anunciavam o mar alto. Conhecia bem esse trajeto, o cheiro e o vento do oceano, as costas europeias do Atlântico, percorridas em visitas, de dois em dois anos, à família nas ilhas britânicas.

Eram­‑me mais familiares as praias e arribas do centro e norte de Portugal do que as paisagens do interior do país. Reforçavam essa impressão do mundo os mapas da primária. O Brasil, as costas de África, Timor ou Macau pareciam­‑me ao dobrar da esquina, e o convidativo azul marítimo nos mapas sugeriam uma linha de con‑ tinuidade. Já Kiev e Moscovo, se lhes conhecia o nome, distavam anos­‑luz de Lisboa. Os vastos territórios e os mares interiores que ligam a Europa ao mundo indo­‑asiático eram uma «terra ignota».

De lá, noutras eras, terão vindo Godos e Hunos — Alanos, Vân‑ dalos, Suevos e Visigodos, segundo a listagem decorada —, que delapidaram o Império Romano do Ocidente. Só mais tarde, pela mão de Júlio Verne e a viagem épica de Miguel Strogoff à lon‑ gínqua Irkutsk, passei a ver na nação russa o bastião contra um

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mundo diferente e obscuro, assinalado pelas hordas tártaras a leste. Luís Filipe Thomaz levanta a ponta do véu sobre esta ilusão.

A Europa é, afinal, um apêndice a ocidente de um sem­‑número de povos, culturas e religiões que se cruzam, coligam e combatem ao longo da milenar Rota da Seda.

Uma segunda miopia é ter na igreja latina o ponto de referên‑ cia para todo cristianismo. Nem mesmo o trinómio protestante, católico e ortodoxo retrata fielmente a realidade. As igrejas do oriente são múltiplas, como recorda Luís Filipe Thomaz, e não as devemos caracterizar por pontuais isolamentos políticos, litúr‑ gicos ou doutrinais. A realidade é bem diferente. Na verdade: «o cristianismo inspirou, ao longo dos séculos, diferentes formas de espiritualidade, diferentes sistemas de teologia, diferentes tipos de instituições». Há entendimentos da Igreja e da sua organização interna que se desenvolveram, legitimamente, de forma autónoma da igreja latina, algumas delas com raízes históricas tão antigas como as de Roma. Não há só uma, mas várias «civilizações cris‑ tãs». Não há uma, «mas várias tradições orientais, nalguns aspec‑ tos concordes, noutros tanto ou mais distantes entre si, quanto qualquer delas o é da tradição ocidental».

Uma terceira miopia que estes artigos me permitiram identifi‑ car foi a impressão de que o estado natural do mundo, o índice do progresso, é a paz entre os povos. Os últimos setenta anos no velho continente reforçaram essa ilusão. Mas foram a exce‑ ção e não a regra. A implosão da Jugoslávia de Tito, nos anos 90, e os confrontos fratricidas que se lhe seguiram, deveriam ter servido de alerta. Mas noto que, mentalmente, os classifiquei de conflitos locais: resquícios de animosidades étnicas e religiosas de outros tempos — como os distúrbios na Irlanda do Norte, ou no País Basco. A ideia de uma fraternidade continental, sonhada no pós­‑guerra por católicos como Adenauer, Schuman e de Gas‑ peri, animou a Europa enquanto ela se reerguia dos destroços de um conflito mundial, e esteve na raiz da União Europeia. Mas

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a solidariedade económica e política que esta tem representado para o velho continente deve outro tanto à sombra protetora dos Estados Unidos da América, à détente nuclear, à existência e ao colapso da União Soviética, e a um período de globalização comercial e informática sem precedentes. Será que o consulado de Trump, a pandemia e a guerra na Ucrânia puseram a nu os pés de barro dessa pax europeia? A análise que Luís Filipe Thomaz faz do caso pontual da Macedónia desafia a nossa ignorância.

Nela entrevemos como, do Atlântico aos Urais, e seguramente além disso, as nações são praias da história onde, de tempos a tempos, se reavivam as marcas da preia­‑mar de povos, reinos ou impérios hoje ignorados por quem, como eu, olha o mundo pelo Google, ou pelos mapas simplificados das escolas.

Em Luís Filipe Thomaz temos um guia de exceção. Alguém, como ele próprio nos conta, que desde os tempos da licenciatura quis conhecer em primeira mão os povos e igrejas de que nos fala. Com ele, revisitamos o passado da «Ucrânia», entrevemos a riquíssima diversidade eclesiológica e espiritual do «Oriente e Oci‑ dente» cristão, e percebemos, na vexata quaestio da «Macedónia», como nos Balcãs ainda hoje se reflete o entrecruzar constante de impérios e culturas.

Lisboa, 15 de agosto de 2022 Peter Stilwell*

* O prefaciador escreveu de acordo com a Nova Ortografia.