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Sertão, ser tanto Uma submersão

Fotos: Divulgação Acordar com as araras, dormir com os lobos: submergir na Pousada Trijunção, uma viagem para dentro num oásis de relaxamento no SERTÃO, encontro entre Bahia, Goiás e Minas Gerais

SER TANTO

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Por Theodora Zaccara

Enviada Especial

Trijunção – O vento fresco é do que mais lembro. Gélido, vivo, feroz. Desperta quem vivia em estado de sonambulismo metropolitano, sedado por luzes de tela, anestesiado pelo trânsito e pela pressa. Faltam postes e faltam prédios, berros e buzinas. Estamos sobre um solo mágico. Sobre vida. Sobre Cerrado.

O mar de árvores tortas e flora cor-de-areia acaba de receber a Chuva do Caju – primeiro banho d’água após a longa seca. Para chegar aqui, viajamos por pouco menos de 1h, entre nuvens e quase nenhuma turbulência. A pequena (mas sumamente confiável) aeronave Caravan tem espaço para oito passageiros. O trajeto até nosso destino final, localizado a 380km da capital federal, leva 3h de carro.

Piso sobre o solo cor-de-telha e esqueço o cansaço, a fadiga, o meu – muitas vezes sigiloso – medo de avião. Estou em Minas Gerais, em terra goiana, no sul da Bahia. Estou no pedaço de chão onde esses três estados se encontram. “Isso aqui é o coração da natureza“, entrega João Soares, gerente do espaço que com calor nos recepciona. Subimos a bordo dos SUVs estilo safari e, em cerca de meia hora, chegamos à pousada.

A pousada

Menos popular que o primo "açaí", o juçaí tem gosto e riqueza semelhantes. Sobre a mesa de madeira sem verniz, o refresco aguardava nossa chegada. “Esperamos que essa imersão no Cerrado seja uma experiência transformadora, confortável e única”, dizia o bilhete na minha mesa de cabeceira, paralela à cama king size trajada de lençóis Trousseau.

Cada uma das sete suítes carrega um caráter original. Em todas, contudo, uma similaridade. Estamos a poucos quilômetros do Parque Nacional Grande Sertão Veredas, reserva natural que dá forma às palavras de Guimarães Rosa, encontradas em numerosos cantos do meu luxuoso pernoite. “Sertão: é dentro da gente”, escreveu. Um gole do drink, um arrepio no braço. “Te entendo, Guimarães”.

A Pousada Trijunção foi inaugurada em 2018 com intenção de abrir os olhos da camada turística. O Cerrado é um evento, o mundo merece vê-lo — a hospedagem, de quebra, é o colírio. Tem clima intimista, alma rústica e postura nobre, é o encontro perfeito entre o natural e o pomposo. Seu design calmante cai nos gostos não só dos hóspedes, mas também de seus residentes honorários: pequenos preás, macacos, e a loba Nhorinhá.

Esta, a adorada "pernuda" — como é chamada entre o staff — é a única fêmea da espécie de lobo-guará que por aqui circula. Um bicho raro, que pode ser observado nos passeios de avistamento, ou, com sorte, rodeando sem pretensões a recepção. O que na selva de concreto encontramos na nota de R$ 200, passeia à noite pelas portas de nossos aposentos, sem cerimônia, validando o intrínseco e ilimitado contato com a natureza.

Aqui, ela se pinta em bege, tons de dourado e de caramelo. Cantos rosados de araras vermelhas, que pousam em dupla sobre enormes buritis. Frutas doces como a lobeira, que provamos direto da raiz.

O Cerrado se gaba de mais de 300 mil espécies de animais, 150 das quais correm risco de extinção: uma métrica que o turismo ambiental aqui instalado pretende reverter. Em prosa com os guias, eles contam fábulas de encontros com onças-pardas, dos hábitos dos lobos, do canto das corujas.

Os passeios

Uma fresta de dourado iluminava o canto da parede. Vesti tênis, boné, roupa esportiva. Garrafa de água em mãos e binóculos no pescoço. A "passarinhada", passeio destinado à observação e estudo das aves, acontece a pé e sem rota. No silêncio da manhã, seguimos o chamado de araras e curicacas. Calma, serena, zen.

Foto: Alex Kundera

De supetão, um aulido: fomos interrompidos pelo grito da loba. Até então, Nhorinhá não passava de uma ideia. O avistamento do lobo-guará se deu na noite anterior, poucas horas após pousarmos, e não foi bem-sucedido. Existem cerca de 17 mil indivíduos da espécie no mundo, 90% dos quais estão no Brasil. A grande área que contorna a pousada conta com 13, e nas proximidades do espaço, habitam dois. Saímos sobre quatro rodas na expectativa de encontrá-la, mas não tivemos sorte. Retornamos com a promessa de uma nova tentativa e, no dia seguinte, o inimaginável aconteceu.

Os sabores

Nhorinhá apareceu entre as folhagens secas e os ninhos de João-bobo, bonita demais para ser real, viva demais para ser pintura. Desfilava como se o mundo fosse dela. E, naquele momento, acreditei ser.

Poucos hóspedes esbarram com a sorte de avistar o lobo a pé. Os pássaros haveriam de esperar e, mantendo sempre a distância de segurança recomendada, começamos a seguir seus passos longos, inebriados pelo carácter sobrenatural daquele encontro. Foi o mais perto que já cheguei de um animal selvagem. Sem jaulas, sem grades. Eu, ele, e esse vão de terra parado no tempo.

O amanhecer

A fumaça cobria as águas como um lençol. No termómetro, algo em torno de 10, 11 graus. No relógio, cinco e pouquinho da manhã. Banhada em tons de rosa, laranja e roxo, a Lagoa das Araras abraçava um amanhecer tão fauvista que nem Henri Matisse teria tintas para pintar,

Era a terceira e última vez que voltávamos ao corpo d’água, que em pouco se assemelhava ao refúgio quente e azulado que conhecemos poucos dias atrás. O oasis embrulhado por folhagens verdes se tornou um íntimo amigo durante os dias em Trijunção, e três passeios o tem como destino: o "giro" de caiaque, regado a cerveja gelada e camadas de filtro solar, o avistamento do jacaré-anão, acompanhado de uma madrugada tão estrelada que a olho nu se via a constelação da Ursa Maior, e, o mais emocionante de todos, o café da manhã de despedida, montado no deck de frente para a alvorada.

Durante as horas glaciais do dia, há sempre um chocolate quente em mãos, além de felpudas mantas e bolsas de água fervente nos assentos dos carros. A todo momento, a equipe de guias carrega cestas de piquenique fartas com sucos naturais, água, cerveja, sanduíches e outros lanches. Não há tempo para sentir fome, frio ou incômodo: cuidam de nosso interior para que foquemos tão somente no mundo exterior. Para que gravado na memória fique esse amanhecer tão saturado, tão puro, tão perfeito. Sentar à mesa era mais que um ritual: era o sopro do apito de uma diária missão. “O objetivo é zerar o cardápio”, era o acordo geral. Difícil, pois cada prato despertava o instinto do "repeteco". Seguindo modelo all inclusive, a Pousada Trijunção compreende café da manhã, almoço e jantar em sua diária, além de bebidas não alcoólicas e cerveja.

Foto: Gabi Temer

Foto: Nós dois no mundo

Desenvolvido para fundir culinárias goiana, baiana e mineira, o cardápio abrange tudo: a moqueca de camarão foi uma das favoritas, assim como o arroz de carne seca e o ovacionado suflê de queijo com calda de goiabada. A mandioca frita e os chips de batata doce foram eleitos "snacks favoritos para saborear na piscina", e eram violentamente mergulhados no aioli e no creme de pequi — que a querida Maria sempre trazia em dobro. O waffle de pão de queijo reinou absoluto no desjejum, ao lado do pão com gotas de chocolate e de um croissant tão crocante que parisiense algum colocaria defeito.

A salada da estação pode parecer desinteressante, mas encabeça todo o sucesso da gastronomia local: o frescor e qualidade dos ingredientes são a alma que preenche a porcelana. A poucos metros de onde almoçamos, a horta local cresce com os frutos que alimentam e nutrem — mas todo cuidado é pouco! Afinal, Nhorinhá também é fã de uma "boquinha" vespertina.

A gente

Partir foi necessário, mas doído. Foram cinco dias de uma conexão pura, ininterrupta, de riso autêntico de gente genuína. Difícil não criar laços com os guias, recepcionistas, camareiras, garçonetes. Despedir com caloroso abraço e agradecer por cada minuto, por cada planta que nos mostraram, cada pássaro que apontaram, cada história que nos contaram. No sertão, encontra-se mais que natureza: encontra-se seu estado mais natural de ser, tão humano.

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