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CARANDÁ Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS Corumbá, MS, maio 2011, n. 3, p. 195

livro que consiste em narrar suas memórias sexuais, diz que estas são ―putarias bem menos imundas‖ que aquelas que comandam os jogos de poder que regem as relações sociais. É nesse sentido que se configura o ―escritor duplo‖ de Hilda Hilst, a que se refere Azevedo Filho (2002, p.76), pois, do mesmo modo que a autora, Crasso era culto: ―Eu que na mocidade havia lido Spinoza, Kierkegaard, e amado Keats, Yeats, Dante, alguns tão raros, mas deixem pra lá, enfim que bela droga o que eu vinha fazendo da minha vida‖. (Ibidem, p. 31), logo, ao questionar e criticar sua própria escrita, ele assume a incumbência de ironizar esse nicho mercadológico, inventariando as fórmulas que compõem o código da pornografia comercial: Enfio minha cabeça-abóbora candente entre as venosas virilhas de Clódia. Esquecido de mim, amargado, só tu, cona de Clódia, me olha o olho. Enquanto te chupo me vêm resíduos do Partido, não aquele, o Partido de mim estilhaçado. Lúcido antes, agora derrotado mas ainda vivo, derrotado mas ejaculando, o caralho nas tuas mãos, a cabeça abóbora nas tuas coxas, o grosso leitoso entupindo os poros das tuas lamas. Arquejo. Vejo Deus e toda a trupe, potestades, arcanjos. Estou cego de santidade. De velhacaria. (Ibidem, p. 46) Os dois últimos períodos do fragmento acima são emblemáticos ao que diz Bataille: ―o erotismo sagrado confunde-se com a busca, exatamente com o amor de Deus‖, e é a característica dessa busca que se pretende ir além do mundo imediato que aponta para uma abordagem religiosa do erotismo. Em CETG as relações entre sexo e animalidade são também constantemente invocadas, mas com imagens diferentes das percebidas no CRLL: Ó conas e caralhos, cuidai-vos! Clódia anda pelas ruas, pelas avenidas, olhando sempre debaixo de nossas cinturas! Cuidai-vos, adolescentes, machos, fêmeas, lolitas-velhas! Colocai vossas mãos sobre as genitálias! A leoa faminta caminha vagarosa, dourada, a úmida língua nas beiçolas claras! Os dentes, agulhas de marfim, plantados nas gengivas luzentes! ... Quer lamber-vos a cona, quer adestrar caralhos, quer o néctar augusto de vaginas e falos! (Ibidem, pp36-37) Hans Haeckel é o escritor-personagem que representa a face genial de Hilda Hilst e que nutria um projeto literário-existencial, se recusando a aderir às regras da pornografia comercial, conforme atesta sua fala: ―Não posso. Literatura para mim é paixão. Verdade. Conhecimento‖. (Ibidem, p. 41). Semelhantemente ao pai de Lori, cujo nome estrategicamente não é citado, não aceita prostituir-se para o mercado: ―Eu sou um escritor, meu Deus! UM ESCRITOR! UM ESCRI TOR!!!, vou fazer um pacto ( o que será, hein tio?) com o demônio, vou vender a alma pro cornudo do imundo!‖ (Hilst, 2005, p.84). A convicção de Hans o levou ao suicídio. Também o pai de Lori, por suas convicções e por ter encontrado e lido o caderno rosa escrito pela filha de apenas oito anos, teve um fim trágico, juntamente com a mãe da menina, foi para o hospício. É importante notar, aqui, o sentido de denúncia social que se confere à obra hilstiana, pois nos obriga a refletir sobre a corrupção da infância e a banalização do sexo pelo capital. Crasso, ao se libertar definitivamente da influência de Hans, torna-se famoso e rico. Ironicamente, mais uma vez vence a força do capital. Crasso conscientemente incorpora as normas editoriais mercadológicas, assim como Lori, que por ser inocente e isenta dos pejos moralistas, consegue também atender a tais normas. Ambos o fazem por dinheiro, ele para


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