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EDITORIAL Esta edição da Carandá tem alguns destaques para os quais chamamos a atenção: 1. O Dossiê sobre o microconto. O microconto é tema ainda rarefeito na academia e nos periódicos de estudos acadêmicos, mas que lateja, repercute e se multiplica como criação nas mídias sociais e em milhares de páginas na internet. Confira a partir da página 241. 2. As ilustrações no Dossiê. Essas ilustrações retratam contistas e estudiosos, colocando-os no cenário de suas obras. O autor é Alex Sandro Melo Diniz, jovem artista de Minas Gerais a que, com orgulho, lançamos. 3. A seção Resenha. Abre a edição texto que trata da Aula Magna do Mestrado em Letras da UFMS proferida, em Três Lagoas, em março deste ano. As lições do professor Roberto Acízelo de Souza, publicadas em edição especial da Guavira Letras, devem ensejar reflexão a professores universitários, a alunos da pósgraduação e a graduandos que se dedicam à pesquisa. 4. Dezenove instituições. Nesta edição, contamos vinte e nove nomes, de dezenove diferentes instituições, sendo uma do exterior. São vinte e cinco textos, cujos autores são dos seguintes estados: AL, BA, GO, MG, MS, PA, PB, RJ e RS, além de um ligado à Universidade da Geórgia, nos EUA. No entanto, há, ainda, números mais expressivos a comemorar. Com esta edição, a quarta em dois anos e meio, são 132 autores publicados, de dezenas de instituições diferentes, a quase totalidade deles ligados a programas de pós-graduação, cobrindo todas as regiões do país e com contribuição de pesquisadores do exterior, em afluxo que nos obrigou — prazerozamente, digase — a redimensionar a nossa estrutura, ampliando a equipe científica e o quadro de consultores ad hoc. Mas, se há motivo para comemorar, a comemoração maior é a leitura dos textos que se seguem. Pois, como disse o prof. Acízelo, na aula que mencionamos acima, Por muito tempo a pesquisa em literatura foi exercida como uma atividade subsidiária ou diletante. Hoje corresponde a uma profissão, e essa virada, como quase todas as mudanças sociais, apresenta os inevitáveis prós e contras. Não acho que devemos ter saudades dos bons tempos do amadorismo, “que os anos não trazem mais”, porém tampouco convém embarcar sem resistência no atual produtivismo que nos assola. Portanto, buscando no estudo o que nos é prazer, desejamos a todos boa leitura. Angela Varela Brasil Pessoa Rauer Ribeiro Rodrigues Editores


COMISSÃO EDITORIAL: Angela Varela Brasil Pessoa (Coordenadora; Letras-CPAN-UFMS) Rauer Ribeiro Rodrigues (Vice-Coordenador; Letras-CPAN-UFMS) Rita Maria Baltar Van de Laan (Letras-CPAN-UFMS) Teresa Cristina Varela Brasil de Almeida (Letras-CPAN-UFMS)

COMISSÃO CIENTÍFICA: Rauer Ribeiro Rodrigues (Coordenador; Letras-CPAN-UFMS) Fabiana Portela de Lima (Vice-Coordenadora; Letras-CPAN-UFMS) Angela Varela Brasil Pessoa (Secretariado; Letras, CPAN-UFMS) Auredil Fonseca dos Santos (Letras, CPAN-UFMS) Dimair de Souza França (Pedagogia, CPAN-UFMS-UFMS) Edgar Aparecido da Costa (Geografia/Mestrado em Estudos Fronteiriços, CPANUFMS) Eduardo Gerson de Saboya Filho (História, CPAN-UFMS) Elaine Aparecida Cancian de Almeida (História, CPAN-UFMS) Elizabete Bilange (Letras, CPAN-UFMS) Fortunato Pastore (História, CPTL-UFMS) Joanna Durand Zwarg (Letras, CPAN-UFMS) Kelcilene Grácia-Rodrigues (Letras/Mestrado em Letras, CPTL-UFMS) Luciene Lemos de Campos (Mestre em Estudos Fronteiriços, SED, Três Lagoas, MS) Luciene Paula M. Pereira (Letras, CPAN-UFMS) Marcelo Dias de Moura (Matemática, CPAN-UFMS) Márcia Regina do Nascimento Sambugari (Pedagogia, CPAN-UFMS) Marco Aurélio Machado de Oliveira (Mestrado em Estudos Fronteiriços-CPAN-UFMS) Marcos Rogério Heck Dorneles (Letras, CPAN-UFMS) Maria Adélia Menegazzo (Letras/Mestrado em Estudos de Linguagens, CCHS-UFMS) Maria Auxiliadora Negreiros de Figueiredo Nery (Pedagogia, CPAN-UFMS) Mônica de Carvalho Magalhães Kassar (Mestrado em Educação Social-CPAN-UFMS) Regina Baruki (Letras, CPAN-UFMS) Rita Baltar Van der Laan (Letras, CPAN-UFMS) Sandra Hahn (Letras, CCHS-UFMS) Suzana Vinícia Mancilla Barreda (Letras, CPAN-UFMS) Teresa Cristina Varela Brasil de Almeida (Letras, CPAN-UFMS) Vanessa Bivar (História, CPAN-UFMS) Waldson Luciano Corrêa Diniz (História, CPAN-UFMS)

PERIODICIDADE: Semestral ― ISSN: 2176-6835 Mês de Circulação: maio e novembro Editoração: Rauer Ribeiro Rodrigues Capa — foto e arte: Rauer Ilustrações: Alex Melo Diniz (Alex Sandro) Endereço:

CARANDÁ – Revista do Curso de Letras Câmpus do Pantanal / UFMS Profs. Angela e Rauer – editores Av. Rio Branco, 1270 – sala 217, Bloco H 79304-902 – Corumbá – MS (67) 3234-6830 revistacaranda@gmail.com A responsabilidade de cada artigo, no que se refere ao teor, à formatação e à revisão do texto, é do autor.


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SUMÁRIO

RESENHA Um percurso essencial: pré-requisitos e obstáculos na formação do pesquisador em literatura Cícera Rosa Segredo Yamamoto Fabian Castilho Cossio

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ARTIGOS A ucronia enquanto narrativa histórica

19 Rogério Bianchi de Araújo

Ut Pictura Poesis, de Horácio: por uma arqueologia da comparação entre as artes Neurivaldo Campos Pedroso Junior Literatura escrita indígena: do mito à história ou da história ao mito? Érika Bergamasco Guesse Assimilação e influência na literatura latino-americana: a “devoração” da cultura européia Geovanna Marcela da Silva Guimarães

35

53

71

Beckett leitor de Proust: da crítica à criação Gleydson André da Silva Ferreira

78

A Dama do Lotação: um caso de amor, infidelidade e morte Andréa Beraldo Borde

97

O narrador viajante de Garrett

109 Alex Alves Fogal


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Texto Literário e Contexto Social: análise do Poema “José” de Carlos Drummond de Andrade Dirce Pereira Lelis

125

Walt Whitman, Emily Dickinson e a Guerra Civil Americana Natalia Helena Wiechmann

135

O Realismo na Peça Le Demi-Monde (1855), de Alexandre Dumas Filho Silvia Pereira Santos

154

Realismo e realidade: algumas proposições de Eça de Queirós Giuliano Lellis Ito Santos

165

Lima Barreto: crítico da vacuidade da elite intelectual europeia e do despreparo das elites brasileiras Ione Eler E Herler Rosemary Sousa Cáfaro Rauer Ribeiro Rodrigues Mudança e institucionalização: o lugar do narrador no espanto dissimulado e burocratizado em João do Rio e Dalton Trevisan Sandro Roberto Maio

175

183

O Quarto Fechado e a Mente Desnuda: desvendando a Narrativa Cristiane Barbosa de Lira

196

A variação linguística nos manuais didáticos de português Jeferson Carlos Cordeiro de Brito

209

A dínâmica lexical da linguagem jornalístico-política em textos escritos em língua portuguesa contemporânea na primeira década do Século XXI Pedro Antonio Gomes De Melo

221

LITER’ARTES Poesia 237

Trilogia das Verdades: Doxa Minas As Horas Rogério Lobo Sáber


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DOSSIÊ:

O MICROCONTO Luciene Lemos de Campos (Org.) Contistas, Microcontistas e Críticos — Retratos

242 Alex Melo Diniz

Apresentação — Dossiê: o microconto

243 Luciene Lemos de Campos

Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século Marcelino Freire — Retrato Alex Melo Diniz

247

Apontamentos sobre o microconto

248 Rauer Ribeiro Rodrigues

“Epitáfio” Rauer Ribeiro Rodrigues — Retrato

252 Alex Melo Diniz

Uma introdução historiográfica ao estudo do microconto brasileiro Fabrina Martinez de Souza Rauer Ribeiro Rodrigues A crítica corre atrás do seu objeto Helopisa Buarque de Hollanda – Retrato Alex Melo Diniz

253

254

O artista e o meio Antonio Candido — Retrato

263 Alex Melo Diniz

Intensidade, Brevidade e Coalescência: das vertentes do conto, o microconto Waleska Rodrigues de Matos Oliveira Martins

274


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276 Alex Melo Diniz

Biobibliografia (após o conto “As formigas”) Luiz Vilela — Retrato Alex Melo Diniz

279

“Aula de canto” Katherine Mansfield — Retrato

287 Alex Melo Diniz

“Angústia” Anton Thékhov — Retrato

295 Alex Melo Diniz

Entre frinchas, a poética do microconto brasileiro Luciene Lemos de Campos

299

O soturno Edgar Allan Poe — Retrato

301 Alex Melo Diniz

Silente, desesperada e agônica Virginia Woolf — Retrato

304 Alex Melo Diniz

“Amor” Manoel de Barros — Retrato

307 Alex Melo Diniz

Marçal Aquino Retrato

314 Alex Melo Diniz

Teses do Conto Ricardo Piglia — Retrato

322 Alex Melo Diniz

Microcontos (seleção com 33 narrativas)

323 Rauer [Rauer Ribeiro Rodrigues]

Ivana Arruda Leite Retrato

327 Alex Melo Diniz

SERVIÇO Carandá — Chamada e Normas Para Colaborações

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Resenha


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UM PERCURSO ESSENCIAL PRÉ-REQUISITOS E OBSTÁCULOS NA FORMAÇÃO DO PESQUISADOR EM LITERATURA 1

Cícera Rosa Segredo Yamamoto 2 Fabian Castilho Cossio 3

SOUZA, Roberto Acízelo de. A Formação do Pesquisador em Literatura: Proposição de um Itinerário. Guavira Letras (volume especial), Mestrado em Letras, 2011. 36 p. (Aula Magna do Mestrado, proferida, em Três Lagoas, em 24 de março de 2011).

Esta resenha tem por objetivo apresentar um roteiro com elementos básicos, porém essenciais, na formação do pesquisador em Literatura. Tomamos por fundamento a plaquete A formação do pesquisador em Literatura: proposição de um itinerário, que contém a Aula Magna de 2011 do Mestrado em Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, proferida pelo professor Roberto Acízelo de Souza no dia 24 de março no Campus de Três Lagoas. Retomamos, ainda, a discussão que se seguiu à conferência, destacando pontos fundamentais aprofundados neste momento. O professor Roberto Acízelo de Souza (UERJ/CNPQ) é Licenciado em Inglês pela Universidade Santa Úrsula, em 1970, Licenciado em Português e suas Literaturas

1

O texto que aqui se apresenta não teria a abrangência que eventualmente possa ter sem as discussões na disciplina Seminários de Dissertação, do primeiro semestre de 2010, no Mestrado em Letras da UFMS, Câmpus de Três Lagoas, ministrada pelo professor Rauer Ribeiro Rodrigues. Em especial, com as intervenções do prof. Rauer e a contribuição de todos os colegas, em particular de Michele Ester de Campos Furlan (aluna especial), Sandro Luís Ferreira Rotiroti, Maria do Socorro Pereira Soares Gonzaga (aluna ouvinte), Cátia Mendes Pereira (aluna especial), Daniela Galli dos Santos, Jorge Augusto Balestero, Michela Mitiko Kato Meneses de Souza, Raquel Celita Penhalves dos Reis e Rosana da Silva Araújo.

2

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras (Área de Concentração: Estudos Literários) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), do Câmpus de Três Lagoas; yamacissa@hotmail.com.

3

Aluno ouvinte do Mestrado em Letras da UFMS, Campus de Três Lagoas, na disciplina Seminários de Dissertação, ministrada pelo prof. Rauer no primeiro semestre de 2010; fabiancc7@hotmail.com.


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pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 1971, e Bacharelado em Ciências Jurídicas e Sociais, em 1972. Fez Mestrado e doutorado em Letras - Teoria da Literatura, concluindo-os em 1974 e 1980, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Fez estudos de pós-doutorado, na área de literatura brasileira, na Universidade de São Paulo, no período de 1994 a 1995. Foi professor de teoria da literatura, de 1977 a 2002, na Universidade Federal Fluminense, e atualmente é professor titular de Literatura Brasileira na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Dedica-se aos estudos de Literatura Brasileira e Teoria da Literatura, com diversas obras publicadas. Em A formação do pesquisador em Literatura: proposição de um itinerário, o professor Roberto Acízelo de Souza relaciona critérios da formação básica do aluno universitário de letras que pretende se dedicar à pesquisa. Esses critérios vão desde as condições e disciplinas oferecidas pelas faculdades até a proficiência em habilidades específicas como o ato da leitura e a escrita, as Línguas estrangeiras e o conhecimento epistemológico necessário para se tornar um especialista universitário no campo dos estudos literários. O Prof. Acízelo inicia sua exposição com clareza e propriedade, delineando uma proposta de elementos e ferramentas básicas para a vida do graduando e do pósgraduando como aluno apto a produzir trabalhos científicos nos padrões metodológicos e conceituais da produção de artigos, dissertações e teses, em especial no estudo da literatura: a crítica literária, a historiografia das literaturas nacionais e a análise de textos ficcionais ou de textos de poesia. Adotando uma perspectiva de análise histórico-comparativa sobre a formação de doutores que remonta à década de 1970, o Prof. Acízelo conta que, naquela época, a produção científica nas universidades encontrava sérias dificuldades para a confecção de textos científicos padronizados, até mesmo para entender o que era um fichamento, fato que, em tom solidário, descreve como experiência própria. Embora o notável teor democrático da conferência, pelo discurso acessível e permeável, o aspecto da restauração da dignidade da disciplina também se faz presente (algo que desagradaria àqueles de áreas diferentes?), visto que há uma flexibilidade de áreas de graduados que concorrem à especialização dentro dos estudos literários, com muitos graduados de outras áreas procurando os estudos literários para seus estudos de


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pós-graduação. Isto poderia causar, segundo o professor Acízelo, um declínio da qualidade da área. A pertinente sugestão de Acízelo é a de contarmos na pós com mais alunos graduados em Letras, sem descartar o caráter multidisciplinar do programa de pós-graduação. Outro item destacado foi o processo para desenvolver um senso profundo da linguagem geral e particularmente da língua portuguesa. Ao mesmo tempo sugere a proficiência em outras línguas, como — entre outras — o Inglês, o Espanhol, o Italiano, o Latim e até mesmo o Alemão. As línguas estrangeiras são importantes pela sua aplicabilidade na decodificação de referências e alusões estrangeiras, sem necessidade de traduções, área que ainda deixa a desejar editorialmente no Brasil. O domínio de línguas clássicas e estrangeiras é entendido como uma instrumentalização para o especialista em literatura, proporcionando, a esse profissional, ferramentas básicas de trabalho na decodificação de referências e alusões de várias ordens. O conhecimento amplo da língua vernácula — e de outras, mesmo que não fluente — proporciona uma maior perspicácia no entendimento dos aspectos do fenômeno linguístico, principalmente do texto, garantindo ao pesquisador um acesso menos restrito a bibliografias técnicas e obras literárias. De uma forma geral, a importância da gramática para o professor Acízelo está em sua capacidade de desenvolver um profundo conhecimento da linguagem e da língua, em particular, nos seus mais diversos níveis estruturais: fonológico, semântico, morfológico e sintático. Embasado nas teorias de Medawar (1979) e Bunge (1980), Acízelo frisou a necessidade de dedicação integral do pesquisador que pretende se dedicar ao universo das letras. Em dez tópicos, delimitados por especificidade de áreas, a palestra teve por meta construir em palavras uma trajetória científica e realista sobre a aquisição do knowledge [conhecimento] literário do pesquisador, apontando a importância de cada campo de conhecimento na “boa formação” do especialista. O requisito mandatório, grifado com conhecimento de causa pelo Prof. Acízelo, foi o da necessidade de escrever. “Este é um elemento central e não uma singularidade do especialista”, aponta o professor Acízelo. Para tal efeito, a leitura atenta de pelo menos dois manuais de estilo de grandes jornais é necessário, o que,


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alerta o professor, “não será tão divertido”, mas de valor único para o aprimoramento da sistemática da técnica de escrever. O professor reitera a importância do ato de escrever fazendo menção a um texto de Graciliano Ramos: Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a àgua com a mão. Batem o pano na laje ou pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer. (Ramos,

Graciliano. Entrevista em 1948. In: Vidas secas. 102. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007, contracapa). Tratou em seguida do requisito da apropriação de Metodologia Científica como ponto crucial do roteiro, já que capacitará o aluno para o automatismo na elaboração dos aspectos mecânicos do processo da escritura científica, isto é, subdivisões, sistemas de referências, disposição de citações, etc. Segundo o professor, o domínio da Metodologia Científica possibilita uma concentração maior no plano criativo, da elaboração conceitual na produção de projetos e melhores condições para definir com clareza a fundamentação metodológica e teórica. Segundo Acízelo, a disciplina Metodologia Científica se constituiu em um grande beneficio na década de 1970, quando fazia parte dos currículos, proporcionando aos alunos uma dimensão técnica da escrita, do como fazer. Porém, com o passar dos anos foi aos poucos se extinguindo, o que faz falta na formação do estudioso em literatura, cabendo a ele montar um estudo paralelo dessa técnica, pois, assim como a escrita, o cuidado com a metodologia é componente essencial ao trabalho intelectual, proporcionando ao estudioso uma melhor reflexão teórica, delimitação do tema e utilização das fontes no desenvolvimento de trabalhos acadêmicos. Para o professor Acízelo, a fundamentação metodológica assegura melhorias no desempenho dos aspectos operacionais e práticos dos pesquisadores, os conduzindo à tríade disciplinar da área de Letras: filologia, lingüística e teoria literária.


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Acízelo acredita que o estudo metodológico direciona o pesquisador para o campo da Filosofia, a qual não pode ser fragmentada e deve ser estudada por conta própria, com o auxílio de um bom dicionário de termos filosóficos. A História, a Psicanálise ou a Antropologia, segundo Acízelo, renderá ao pesquisador pelo menos três benefícios: 1) Dispor de elemento de comparação útil para compreender melhor a arquitetura conceitual das disciplinas de sua alçada mais direta; 2) Ver o macro-objeto de sua eleição — a linguagem — sob novas luzes; 3) Dominar condições para testar a transposição dos conceitos dela para a investigação de problemas da sua área. De acordo com professor Acízelo, podemos entrar na Literatura pela história literária ou pela teoria da Literatura. A primeira maneira serve-se da forma narrativa, o concreto e particular; a segunda utiliza a exposição conceitual, com tendências para o abstrato e universal. No entanto, a configuração atual do conhecimento acadêmico sugere, imperativamente, a dedicação profunda à teoria da Literatura e a capacitação constante do pesquisador, seguindo o caminho sugerido nesta resenha. Esse caminho que um bom pesquisador do campo dos estudos literários deve seguir, idealizado pelo Roberto Acízelo, tem como amparo teórico sua própria experiência da longa jornada que adquiriu durante sua profissão dentro da área literária. O método é prático e simples, pois o autor estabelece para cada capítulo um tema relacionado ao requisito que ele propõe a ser seguido pelo especialista do campo de literatura. Faz os questionamentos de forma isolada com tópicos curtos e objetivos. Ao narrar em primeira pessoa, o faz tranquilamente, como se estivesse conversando pessoalmente com o leitor De forma conclusiva, faz um discurso contundente quanto à formação do pesquisador frente aos estudos literários, defendendo a importância da boa formação do graduando em letras e a fiel dedicação e responsabilidade do estudioso que atuar na área. Salienta ainda que, para o objetivo do acadêmico em formação seja alcançado com êxito, um currículo enxuto, bem delimitado e profundo nos campos estudados é a solução mais coerente no cenário acadêmico dos estudos literários da atualidade.


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É importante ressaltar que, seja qual tema seja a que se dedique um estudo, é imprescindível o conhecimento de línguas, da teoria dessa matéria, das disciplinas a serem estudadas e o conhecimento, mesmo que básico, das teorias das várias disciplinas que compõem os núcleos do Curso de Letras. Tudo isso faz as pessoas melhores conhecedoras de si mesmas e também do mundo a sua volta. Aliás, o conhecimento básico dessas matérias aumenta o campo de análise do ser humano e o faz, não somente mais crítico em relação aos assuntos, mas também torna o entendimento de determinadas questões mais fácil. Questões essas que podem ser cruciais para o desenvolvimento do projeto de pesquisa. A nosso ver, o professor Acízelo, de maneira habilidosa, se esgueira dos métodos tradicionais, das morbidades acadêmicas, e se põe numa linha de compreensão visionária e honesta para expor e traçar sua proposição de itinerário aos acadêmicos, pesquisadores e futuros especialistas dos Estudos Literários. O caminho parece árduo e íngreme, mas se trata de um planejamento a ser seguido durante os anos de formação, da graduação ao final do doutorado. Após algumas considerações que o professor Acízelo denominou de “observações avulsas”, houve o momento do debate, em que as dúvidas e os questionamentos puderam ser feitos em relação aos apontamentos apresentados. De forma sucinta, discutiu-se o seguinte: 1) O possível fim da disciplina; 2) O perfil dos alunos que cursam letras, especialmente os dos cursos noturnos; 3) A contribuição das pesquisas para a valorização da literatura; 4) A presença da filologia no programa de estudos proposto; 5) Das adaptações de obras literárias para o cinema, a tevê e o teatro; 6) A influência da mídia na literatura; 7) A utilização literária na prática pedagógica em sala de aula. Sobre o primeiro item, em uma pergunta, o professor Rauer destacou seu desconforto com a afirmação de Terry Eagleton (2003) de que “a teoria da literatura tende a auto anular-se”. Acízelo salientou como a modernidade imersa na globalização capitalista propicia uma composição de conhecimento “híbrido” nos meios acadêmicos. E destacou o papel do crítico literário em delimitar sua área, desde que esteja consciente


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de que a fragmentação e o surgimento de novas tendências e disciplinas serão eminentes e inevitáveis, mas que tal fato não anula as bases da crítica literária contemporânea: ao contrário, a ela se somam. Pergunta bastante pertinente foi levantada pela plateia: como atingir o aluno que não pode seguir este itinerário por trabalhar ou por outros motivos? Esta questão confronta com a realidade do aluno inserido no contexto da sala de aula do Brasil de nossos dias, no qual a maioria dos alunos dispõe de pouco tempo para dedicar-se aos estudos, uma vez que carregam longas jornadas de trabalho diário. Acízelo argumentou sobre a importância do planejamento curricular dos cursos de graduação, a fim de pensá-los de maneira flexível, para atender aos alunos e suas respectivas necessidades, considerando desnecessário sobrecarregar os alunos com várias disciplinas, deixando-os sem tempo, por exemplo para leitura de textos. Com um estilo claro, coerente e conciso, Acízelo aponta caminhos para uma solução integrada dos problemas enfrentados no campo de letras. Embora pareça um sonho idealizado pelo autor, uma utopia muito difícil de ser alcançada, pois não se trata apenas de uma reforma de currículo, devendo fazer parte do pacote social e político do país. Mas, em qualquer circustância, o pesquisador precisa amadurecer, preencher suas lacunas de formação acadêmica e avançar com as pesquisas. Desse modo, os passos e exigências formulados parecem fundamentais para a formação e o trabalho do pesquisador de nossa área de estudos. Não se trata apenas de uma simples proposta, com passos que devem ser seguidos, mas um discurso que apresenta fundamentos necessários para nos tornarmos realmente um especialista em literatura. São ferramentas importantes que contribuem para nosso desenvolvimento intelectual, ou seja, é um percurso essencial que todos os formandos do campo de literatura precisam percorrer. E, enquanto a base da graduação de letras não estiver bem estruturada e que novas reformas não sejam feitas dentro de um sistema educacional que o torne mais eficiente, só nos resta correr atrás do prejuízo e agradecer ao professor Roberto Acízelo de Souza pelos ótimos apontamentos, muito bem elaborados, resultantes de sua rica experiência e bagagem profissional.


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A palestra foi de grande valia para as pessoas que desejam se formar pesquisadores, que gostam de estudar e querem contribuir para o melhor conhecimento de fatos, pessoas, assuntos e avanços tecnológicos. Um programa de estudos nos moldes apresentado pelo professor Acízelo revela-se extremamente necessário àqueles que desejam se tornar um profissional de alto nível. Enfim, a publicação da palestra proporciona oportunidade para discutir alternativas e oferecer sugestões para estudantes universitários e pesquisadores, a fim de que possam, planejar, desenvolver E realizar as próprias pesquisas, na graduação e pósgraduação, de forma plena, confiante, rica e satisfatória. É, portanto, de grande utilidade, principalmente àqueles que desenvolvem trabalhos acadêmicos no campo literário. Ressaltamos ainda que as exigências formuladas (apresentadas abaixo, como apêndice, em Quadro Sinóptico) servem bem para um público que vai desde estudantes iniciantes até pesquisadores em processo de formação de alto nível, pois o professor Acízelo enfoca não só a pós-graduação universitária, mas toda uma realidade complexa e difusa no cenário acadêmico do Brasil contemporâneo.

REFERÊNCIAS:

BUNGE, Mário. Epistemologia; curso de atualização. São Paulo: T.A Queiroz, 1987 [1980]. EAGLETON, Terry. Introdução à Teoria da Literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2003. MEDAWAR, P.B. Conselho a um jovem cientista. Brasília: EdUnB, 1982 [1979]. RAMOS, Graciliano. Entrevista em 1948. In: Vidas secas. 102. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007, contracapa. SOUZA, Roberto Acízelo de. Iniciação aos estudos literários. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 191 p. SOUZA, Roberto Acízelo de. A Formação do Pesquisador em Literatura: Proposição de um Itinerário. Guavira Letras (volume especial), Mestrado em Letras, 2011. 36 p. (Aula Magna do Mestrado, proferida, em Três Lagoas, em 24 de março de 2011). Acesso à revista Guavira Letras pelo site do Mestrado: http://www.posgraduacaoletras.com.br/UFMS/.


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APÊNDICE:

QUADRO SINÓPTICO DAS EXIGÊNCIAS MÍNIMAS PARA O PESQUISADOR EM ESTUDOS LITERÁRIOS (Formulado a partir de Roberto Acízelo de Souza, 2011) Passo 1º

Exigência Ser graduado em Letras.

Consolidar certas competências.

Dominar a língua inglesa e mais uma.

4º 5º

Conhecer um pouco da língua latina. Dominar a escrita.

6º 7º

Estudar as bases conceituais e teóricas de uma ciência social. Estudar Filosofia.

Ter domínio da metodologia científica.

8º 9º

Dedicar-se profundamente à teoria da literatura. Ter tempo para estudo.

10º

Colaborar nas atividades administrativas.

11º

Evitar modismos.

12º

Selecionar congressos e similares

13º

Dedicar-se a diversos temas de outras especialidades.

14º

Estar atento à mídia

Observações: Para aqueles que são de outra área, é necessário estudo complementar concomitante à pósgraduação. Ter domínio da linguagem em geral, em particular da própria língua (filologia, gramática, retórica, etc.). Não só porque a legislação nacional prescreve o conhecimento de no mínimo duas línguas estrangeiras para se cursar o doutorado, mas para dinamizar a leitura e ampliar as relações culturais. É também importante dominar algo do grego. Ter leitura de bons manuais de redação e manuais de estilo. Não existe bom pensamento sem boa expressão linguística desse pensamento. Por exemplo: História, Sociologia, psicanálise ou antropologia. Ser capaz de compreender fundamentos epistemológicos, evitando equívocos conceituais e sincretismos contraproducentes. Escrever naturalmente, internalizando os procedimentos, para deixar que aflorem o pensamento e a criatividade cognitivos. Sem fundamentação teórica, qualquer análise se torna impressionismo insubsistente. A pesquisa não pode ser uma tarefa a mais, deve ser o cerne da existência do pós-graduando. Servir à sua instituição, ao seu grupo de pesquisa, ao trabalho coletivo. Evitar aderir de forma automática e acriticamente às novidades como publicações, correntes teóricas, temas e problemas emergentes. Escolher eventos que sejam de fatos importantes. Evite participar de muitos eventos, congressos, bancas de defesas; priorizar o que acrescenta na formação. Isso permite ter uma ideia nítida do foco no qual se torna especialista, mas compreendendo as demais disciplinas da grande área das Letras. Manter uma análise crítica das mudanças, do contexto social, cultural e político. E, principalmente, tomar conhecimento e valorar as novidades, os novos poetas, ficcionistas e críticos.


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Artigos


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A UCRONIA ENQUANTO NARRATIVA HISTÓRICA Rogério Bianchi de Araújo1 Resumo: Este artigo tem por objetivo pensar a ucronia, também entendida como história contrafactual ou história virtual, como uma forma de pensar a história. Não é objetivo deste artigo fazer uma discussão sobre metodologia de pesquisa ou sobre a epistemologia historiográfica, mas demonstrar que o campo do imaginário pode também ser um elemento de reflexão e análise. Pretendo ainda demonstrar que a subjetividade, sobretudo no campo das ciências do espírito, é um elemento que deve ser levado em conta ao fazermos uma interpretação do mundo ao qual estamos inseridos. Por isso, novos paradigmas no campo científico, - embora sofram muitas resistências-, aos poucos são incorporados no nosso modo de fazer ciência. Neste sentido, a ucronia pode ser classificada como uma narrativa histórica que tem seu valor, não só no campo da ficção, mas na construção de conhecimento histórico. Palavras-Chave: ucronia, história, narrativa, interpretação e contrafactual. THE UCHRONIA AS NARRATIVE HISTORY Abstract: This article is aimed at reflecting the uchronia, also understood as counterfactual history or virtual history, as a way of thinking about history. The aim is not to make a discussion paper on research methodology or on the epistemology of historiography, but demonstrate that the field of imagery can also be an element of reflection and analysis. I intend to further demonstrate that the subjectivity, especially in the sciences of the spirit, is an element that must be taken into account in making an interpretation of the world to which we belong. Therefore, new paradigms in science, - although they suffer much resistance-, are gradually incorporated into our way of doing science. In this sense the uchronia to be classified as a historical narrative that has its value, not only in the field of fiction, but the construction of historical knowledge. Keywords: Uchronia, history, narrative, interpretation and counterfactual.

Introdução

Etimologicamente, a ucronia está composta do grego ou (não) e cronos (tempo), ou seja, “tempo que não existe”. Um período é considerado ucrônico quando é hipotético, isto é, não está claramente definido no tempo e na cronologia tradicional. Pode ou não ser fictício, depende do contexto e das categorias temporais que estamos trabalhando.

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Rogério Bianchi de Araújo, Doutor em Antropologia pela Pontifícia Universidade de São Paulo – PUCSP e Mestre em Filosofia Social pela Pontifícia Universidade de Campinas – PUCCAMP, é professor do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás – Campus Catalão (UFG/CAC); rogerbianchi@uol.com.br.


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A expressão ucronia foi empregada pela primeira vez na obra do filósofo francês Charles Renouvier, que a utilizou no título de seu romance Uchronie (L'Utopie dans l'histoire) de 1876. Renouvier considera a ucronia numa perspectiva histórico-filosófica relativa a um passado que pode ser suposto, mas não totalmente inventado, marcado por fatos que podem ter acontecido ou não. Entendia a ucronia como a “utopia do tempo”. Sua base de inspiração era imaginar o desenvolvimento da civilização ocidental caso o cristianismo não houvesse triunfado a partir do aparato militar do império romano do século II. Esboçou em Uchronie um mundo no qual, em 165 d.C., o imperador-filósofo Marco Aurélio adotou como sucessor o filósofo Avídio Cássio, em vez de seu desastroso filho Cômodo. A decadência de Roma e a Idade Média foram evitadas, as artes e as ciências avançaram muito mais rapidamente e o cristianismo jamais se tornou a religião hegemônica. As suposições da ucronia implicam no campo da imaginação. É composta de variações da História que se baseiam em condicionantes. Por exemplo, o que aconteceria se um determinado fato histórico tivesse percorrido outro caminho? Remete a uma espécie de Efeito Borboleta, princípio que afirma que um pequeno evento pode ter conseqüências imprevisíveis, pois o resultado final é determinado por ações interligadas de forma quase aleatória. Entretanto, a ucronia tem como característica desordenar sem desorganizar. A ucronia permite transformar os vencidos em vencedores. Não se trata de um alento ou uma alienação de pensamento, mas um condicionante imaginário para vislumbrarmos outras realidades que não somente aquelas da chamada “história real”. Remete a um mundo alternativo e a uma outra história. Nesse sentido, a ucronia carrega em si um grande potencial de questionamento do status quo, das hierarquias, das estruturas e das formas de organização social. Considerando a ucronia como fenômenos não situados nem no tempo nem no espaço, mesmo assim os escritores não deixam de transparecer parte da realidade em que estão inseridos. A ucronia, ou historias alternativas, vale-se de mudanças dos fatos históricos para apresentar um presente diferente do atual. História alternativa é uma alternativa à história “oficial” que serve para contradizer, questionar e indagar os fatos que estão postos. Isso rompe com a perspectiva linear da história e cria uma cadeia imaginativa condicionada pela partícula “se”. E se as coisas tivessem ocorrido de outra forma? As possibilidades são infinitas e, ao invés de serem acusados de alienados ou manipuladores ao deturpar fatos históricos, os ucronistas poderiam ser interpretados como


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visionários, críticos ou idealistas, dado que a história passa a ser imaginada sob outro viés que não a tradicional ótica dos vencedores. Na busca por uma linha temporal alternativa, o passado histórico é alterado em pontos significativos criando uma espécie de universo paralelo. Em seu livro A Oeste do Éden, Harry Harrison afirma que a grande catástrofe cósmica que exterminou os dinossauros há 65 milhões de anos nunca chegou a acontecer, com isso os grandes répteis continuaram a evoluir e o cérebro a crescer. O polegar tornou-se oponível, até culminarem nas Yilanè, a raça sauróide mais inteligente da Terra. A partir daí forma-se uma civilização baseada em sofisticadas técnicas de engenharia genética com grande estabilidade social e integração ecológica, uma sociedade extremamente equilibrada e com grande controle do meio ambiente. Cidades “orgânicas” surgem por boa parte do mundo, mas diante das pressões climáticas e de uma era glacial intensa, há uma gradativa diminuição dos recursos energéticos e alimentares. Os Yilanè são obrigados a explorar o oceano Atlântico e colonizar o Novo Mundo, mas se deparam com mamíferos eretos e que possuem o dom da palavra. Não demora muito para que o ódio se espalhe entre as duas culturas. Os répteis têm tudo: conhecimento, tecnologia e ciência, e povoam todo o mundo, à exceção das Américas. Os seres humanos parecem condenados: são pequenos grupos dispersos e ignorantes, e a maior parte nem sabe da tragédia que lhes está reservada quando os répteis decidem extinguir o gênero humano. Nesse romance, a crítica ao antropocentrismo é evidente. Segundo Veyne (2008), a história é uma construção; as informações a serem historicizadas são recortadas por aquele responsável pelo relato. Assim, o historiador se torna o construtor de uma trama. Propõe que se veja a história como um romance que narra acontecimentos cujo centro é o homem, não sendo, portanto, uma ciência explicativa, metodologicamente neutra. Veyne afirmou que a história não passa de um “conto verdadeiro”. Se história e narrativa têm muito em comum, os recursos dos quais um historiador dispõe não diferem muito de um novelista. Portanto, ela não tem nada de neutro, é parcial e subjetiva. Assim como o romance, a história não faz reviver o que conta, isto é, o que está contado não foi o vivido pelos atores envolvidos, eliminando dessa maneira o que considera superficial e irrelevante ao fato histórico em si.


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Para Veyne, existem acontecimentos históricos, mas não existem explicações históricas. Nesse sentido, a história existe apenas em relação às questões que nós lhe formulamos. O historiador reterá o que considera antropologicamente interessante. Assim como Geertz (2008) diz que as culturas devem ser interpretadas como textos, algo semelhante ocorre ao historiador, quando ressalta os aspectos que considera mais interessantes para serem relatados. A história é uma interpretação dos acontecimentos de acordo com o posicionamento do historiador. Assim como o narrador de um romance, o historiador opera pelo princípio da seleção, escolhendo determinados aspectos e refutando outros. Para qualquer explicação então, o historiador flerta com as Ciências Sociais e com a Filosofia. Veyne afirma que pensando as variáveis, pode-se recriar a diversidade das modificações históricas e fazer emergir o não-pensado e, consequentemente, trazer à tona o que era vagamente concebido ou não bem elaborado ou pressentido. É por isso que a criação da história alternativa ou o pensamento ucrônico trazem traços de distinção histórica que podem ser um profundo objeto de reflexão crítica sobre as variáveis históricas que podem ter se dispersado numa análise mais ambiciosa. Paul Ricouer, filósofo francês, também identifica o vinculo indireto entre a historiografia e a competência narrativa. Aponta traços que ficcionalizam a história e historicizam a ficção, onde seríamos leitores de história e de romances simultaneamente. Para Ricouer (1968), o historiador ao escrever uma obra, lança mão de recursos ficcionais próprio dos romancistas ao fazer uso da imaginação e construir tipos ideais. Segundo Raymond Aron (1938), “todo historiador para explicar o que foi, pergunta-se o que poderia ter sido”. O historiador pertence ao devir que descreve. Toda a atividade espiritual se insere numa tradição na qual e pela qual o indivíduo se define. Aron, afirma que não existe uma realidade histórica, já feita antes da ciência, que conviesse simplesmente reproduzir com fidelidade. A realidade histórica, por ser humana, é equívoca e inesgotável. É importante ressaltar que, para Ricouer, o pertencimento à estrutura narrativa não diminuiria o estatuto científico da história e que é possível distinguí-la da ficção. A história não se limita a uma tessitura de intrigas, lógico-conceitual e abstrata, sem referência ao tempo, posição defendida por Paul Veyne. No entanto, não é objetivo desse artigo implicar numa discussão sobre a historiografia, mas o de demonstrar como a ucronia, enquanto construto ficcional, pensada no sentido de uma antropologia do imaginário, pode ser relevante para incitar a crítica, o questionamento da realidade e a velha reflexão sobre a natureza humana.


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1. História e Pós-modernidade

Muitos analistas referem-se a esse modo de pensar a história como fruto da pósmodernidade, já que parece que tudo que foge às tradições iluministas é prontamente caracterizado como pós-moderno, se configurando como um clichê acadêmico. Não me proponho a pensar tais caracterizações, com o risco de desvirtuar o encaminhamento dessa discussão. Por outro lado, podemos afirmar que essa forma ucrônica de pensar e que anda de braços dados com a ficção científica, promove um regresso à própria história e problematiza a noção de conhecimento histórico, as certezas humanistas e as referências temporais. Nesse sentido, essa perspectiva história nos traz o paradoxo e a contradição como fonte analítica dos fatos históricos. Não se trata em hipótese alguma de se evitar o questionamento ou de criar uma nova totalidade interpretativa unificadora em substituição ao que já está dado, mas sim explorar outros pontos de vista e outros sujeitos que estavam até então como personagens meramente figurantes da história oficial ou em outros contextos. Segundo Lyotard (1989), as metanarrativas perdem sua força de persuasão na contemporaneidade. As ideologias iluministas e marxistas na sociedade pós-industrial já não têm o mesmo vigor empírico de outros tempos. As verdades totalizadoras que levam a um saber globalizante com uma solução única não conseguem fazer frente a uma época em que se mesclam fragmentos de várias histórias contraditórias e antagônicas sobre um determinado assunto. A pluralidade de possibilidades dá fim à história pensada nos moldes anteriores. Metanarrativas tais como o iluminismo e o marxismo, na visão de Lyotard, não trouxe a emancipação humana, pelo contrário, ficamos atrelados a outros totalitarismos e controles que minaram qualquer possibilidade de liberdade e igualdade. Para a pesquisadora canadense Linda Hutcheon, a principal característica do pósmodernismo é a metaficção historiográfica. Segundo a autora, não se trata de negar a história, invalidando-a:

O que a escrita pós-moderna da história e da literatura nos ensinou é que a ficção e a história são discursos, que ambas constituem sistemas de significação pelos quais damos sentido ao passado. (“aplicações da imaginação modeladora e organizadora”). Em outras palavras, o sentido e a forma não estão nos acontecimentos, mas nos sistemas que transformam esses “acontecimentos” passados em “fatos” históricos presentes. Isso não é um


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“desonesto refúgio para escapar a verdade”, mas um reconhecimento da função de produção de sentido dos construtos humanos. (Hutcheon, 1991, p. 122). Toda metaficção historiográfica tem por característica ser auto-reflexiva e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, ela se apropria de acontecimentos e personagens históricos. Essa auto-reflexividade dá-se de diversas maneiras e com variados artifícios narrativos. Para Hutcheon, trata-se de um gênero que está profundamente ligado à estética pós-moderna que não tem a ambição de construir um novo paradigma, já que nesse caso seria uma contradição a nossa própria época pós-moderna, onde “não há fatos, só interpretações”, parafraseando Nietzsche. Para Linda Hutcheon, a metaficção historiográfica mantém o engajamento com a história política, social e ética, partilhando e discutindo fontes históricas. No entanto, parte do princípio de que a realidade social é inaccessível como tal e que qualquer discussão dela é necessariamente exclusiva e parcial. O filósofo italiano Gianni Vattimo caracteriza um mundo pós-moderno visto como o fim da história, no sentido de uma história unitária que contemple a noção de progresso da humanidade, a dissolução dos pontos de vista únicos e excludentes e a possibilidade de emancipação humana, num mundo menos totalitário. O pós-modernismo inclui ainda a negação da existência de significados estáveis, da correspondência entre a linguagem e o mundo, e de realidades, verdades ou fatos que devam ser fixados como objetos de investigação. Segundo Vattimo (1997), para que o mundo pós-moderno pudesse se configurar foi de fundamental importância o avanço do desenvolvimento dos meios de comunicação onde as pessoas têm acesso a uma pluralidade de visões e, consequentemente, um maior questionamento comparativo entre as diversas realidades que estão à mostra. Não há, portanto, mais uma única história, mas várias histórias que podem ser relatadas de acordo com o ponto de vista de quem as narra, e essa narrativa no mundo pós-moderno é sempre passível de questionamento e interpretação. Vattimo chama de ontologia do declínio o fato de não existir mais nenhuma certeza absoluta, nem nada meta-histórico que explicará a história através da razão ou um sujeito racional que pode ser apontado como o protagonista de qualquer ação. Isso faz parte de um pensamento que não leva em conta qualquer fundamento e origem, não podendo, pois, haver


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qualquer ontologia que não passe pelos discursos numa espécie de círculo hermenêutico como condição essencial para a possibilidade de qualquer reflexão. O pós-moderno de Vattimo não dá mais atenção ao avanço do progresso, pois a história vista como um processo progressivo e unitário fica dissolvida. A modernidade é marcada como a época da história e a herança judaica cristã é quem oferece a dimensão ontológica à história. A idéia de história na pós-modernidade traz a noção de progresso e de superação. Traz a experiência do fim da história. Não existe mais o movimento progressivo linear do Ser. Estamos diante da queda dos paradigmas absolutos e fixos. Ocorre o que chamamos de desvelamento do Ser, a abertura do Ser para suas infinitas possibilidades e sem estruturas fixas, possibilitando o aparecimento de entes particulares. L’ esistenza infatti è progetto, apertura al futuro, ricordo, attesa, speranza, paura, angoscia ... Tutto ciò non può esssere colto in termini di oggetività e calcolabilità. Dunque bisogna pensare un altro concetto di essere, più ampio di quello che vale nella nostra mentalità “oggettivisitca”, dominata nella modernità dal modelo del sapere positivo delle scienze. (Vattimo, 1997, p. 30)

De acordo com as proposições vattimianas é perfeitamente factível a aproximação entre história e ficção, embora seja comumente associado falsidade à ficção científica, por isso não seria passível de um entendimento fidedigno da história. Ricoeur (2007) como filósofo da história, oferece a alternativa de concebê-la essencialmente como uma narrativa, mas sem rejeitar aspectos objetivos da produção do conhecimento histórico. A imaginação produtora, na visão de Ricouer, constrói as narrativas que recobrem o tempo, e a leitura, é o ato pelo qual o trabalho da imaginação revela toda a sua força. Procuramos a unidade de sentido da história e, quanto mais procuramos, encontramos apenas pedaços dispersos onde só há diversidade, variação, contradição, mutabilidade. A verdade na história surge como um princípio de possibilidade que se perde sem cessar e que se recupera na medida em que se transforma a própria significação da história. Portanto, pensar historicamente não exclui a imagética e as ressignificações e reconstruções ao longo do processo, isso não significa cair no mero relativismo sem fundamentos, mas no exercício constante da análise crítica em respeito às diversidades, pluralidade e na simbiose de objetividade e subjetividade humanas.


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2. História contrafactual

A história contrafactual (do latim: contra facta = contra os fatos), é o resultado de um exercício mental científico. A pergunta «O que teria acontecido se...?» é comum na história contrafactual, sendo o ponto de partida para especulações históricas como (entre outros). É muito comum dizer não só na historiografia em particular, mas também no nosso cotidiano que o “se” não existe. Isso ficaria restrito então a uma literatura meramente especulativa. A intenção não é problematizar a epistemologia historiográfica e julgar se é ou não um método válido na ciência histórica. O concreto é que os contrafactuais geram polêmica, sobretudo no meio acadêmico. Entretanto, servem perfeitamente para derrubar muitas ideias consideradas inquestionáveis acerca dos fatos históricos. A história contrafactual, denominada por muitos de história virtual, tem como conseqüência dois aspectos: é polêmica e é inovadora. É uma ferramenta no campo da imagética que permite compreender melhor e interpretar com maiores possibilidades o que efetivamente ocorreu na história. Por isso, é um exercício mental científico, pois permite mudar os enfoques e alternar os pontos de vista acerca de um objeto de estudo. E se a revolução Americana não tivesse acontecido? E se a Inglaterra tivesse se mantido fora da Primeira Guerra Mundial?... Questões como estas têm sido intensamente exploradas na ficção cientifica literária e cinematográfica. Menos frequente é verem-se analisadas numa perspectiva mais fundamentada, rigorosa e cientifica. Em “História Virtual” de Niall Fergusson é isso que se passa. Segundo Niall Fergusson (2006), historiador britânico e um dos maiores defensores da história contrafactual enquanto método, a história virtual é um dos antídotos mais poderosos frente aos determinismos. A chamada história virtual não representa o reino do arbítrio, mas uma cuidadosa construção das várias alternativas da história humana e das inúmeras contingências do processo histórico. Do seu ponto de vista, as “alternativas históricas” devem ser “plausíveis – substituindo assim o enigma do “acaso” pelo cálculo das probabilidades. Dessa forma, os cenários contrafactuais são simulações baseadas em cálculos sobre a probabilidade de resultados plausíveis num mundo caótico. Fergusson, portanto, escreve como se fosse um historiador do futuro, sugerindo desenvolvimentos diversos daqueles que efetivamente ocorreram e que, de acordo com o curso sugerido, poderiam ter provocado


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outras conseqüências. O historiador teria a liberdade de divagar e idealizar um novo desfecho para o fato, como resultados das circunstâncias e ações anteriormente criadas. A história contrafactual não é uma invenção de Fergusson, já em 29 a.C., o historiador romano Tito Lívio, ao descrever os primórdios da expansão romana em sua História de Roma, não resistiu e por um momento deixou de lado o apego aos fatos para divagar: o que teria acontecido se, trezentos anos antes, Alexandre, o Grande, tivesse se voltado para o Ocidente e atacado a República Romana, ainda restrita às terras do Lácio? Esse teria sido o primeiro ensaio da história contrafactual ou virtual.

Hoje, os melhores profissionais da História não tentam mais encaixar a força os eventos numa narrativa mestra ou em suas “leis”. Não estava escrito que as coisas iriam acontecer como aconteceram. Cada fato histórico é de uma complexidade única, pois as condições em que se deram – forças sociais, mentalidades, tecnologias, conjunturas ambientais e demográficas, personalidade dos líderes – são irreproduzíveis. Daí o fascínio atual pela chamada micro-história, isto é, a reconstituição de pequenos fatos – eventos esportivos, vidas pessoais, hábitos cotidianos, crimes, modas – que oferecem janelas para se compreender uma época. Admitir a complexidade não significa o abandono da teoria. Ao contrário, significa a completa abertura à teoria de outras ciências – demografia, epidemiologia, sociologia, antropologia, ciências ambientais, geografia, psicologia, matemáticas, entre outras – para arejar o conhecimento histórico. (Bustamante, 2010).

Não saberia dizer se essa postura descrita acima pelo colunista representa de fato a prática dos melhores historiadores, mas a verdade é que os historiadores profissionais foram durante muito tempo hostil a tais procedimentos. Hoje, é possível afirmar que invocar a história contrafactual deixou, contudo, de ser um procedimento tabu, já que todas as análises históricas são construções transitórias e são constantemente submetidas à revisões. A história contrafactual provoca uma problematização complexa da articulação dos fatores objetivos e subjetivos e, sobretudo, traz a dimensão da subjetividade, outrora renegada a pepéis secundários na historiografia oficial. Esse campo de análise implica numa reconstrução que o presente faz do passado, pois as fontes históricas não falam sozinhas. É muito comum fazermos exercícios contrafactuais no nosso cotidiano. “E se tivesse aceitado aquele emprego”? “E se tivesse me casado com Maria, aos 20 anos”? Explicitamos o contrafactual para validarmos o argumento de nossas decisões, tanto para legitimá-las quanto para refutá-las.


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No entanto, em termos de construções historiográficas, muitos historiadores e filósofos recusam valores científicos a tais cenários hipotéticos, pois eles nada nos revelariam sobre a realidade, mas apenas sobre preconceitos e preferências ideológicas de seus autores. A reconstrução das hipóteses por meio da história contrafactual não seria, portanto, uma falta de compromentimento com os preceitos cientítifcos, nem simplesmente uma fantasia de ficção histórica, mas uma outra via para interpretar o que ocorreu por outras óticas não convencionais.

3. História alternativa: o exemplo da Segunda Guerra Mundial

É importante frisar que a ficção científica não é apenas um gênero literário descompromissado com o real, que teria por objetivo único e exclusivo gerar entretenimento e prazeres lúdicos sem maiores ambições. A função da ucronia é analisar condicionalmente fatos históricos que já são por demais conhecidos de toda a humanidade. A novidade é imaginar uma história alternativa àquela que já fora estudada a exaustão. Embora em algumas situações alguns personagens ilustres da história contemporânea neguem fatos históricos como, por exemplo, o líder iraniano Mahmoud Ahmadinejad que disse que o Holocausto não passa de um “mito” e que o acontecimento foi forjado pelos judeus, e também o bispo inglês radicado na Argentina Richard Williamson, que negou o Holocausto e a existência de câmaras de gás e campos de concentração e que foi obrigado a deixar o país depois de suas declarações. No entanto, isso não pode ser considerado uma ucronia, mas um delírio ou uma tentativa de apagar traços obscuros da história. O impacto causado pela Segunda Guerra Mundial, o morticínio e a carnificina promovida pelos nazistas, sem dúvida, são marcos impagáveis de um período trágico da história da humanidade. Há algumas ucronias que foram criadas a partir desses impactos, especulando e imaginando como ficaria o mundo se o resultado da Segunda Guerra Mundial fosse outro. Podemos exemplificar isso ao fazer uma reflexão a partir da obra O Homem do Castelo Alto, de Phillip K. Dick (2009). Dick apresenta a realidade como um simulacro que extrapola a linha divisória entre as noções de passado, presente e futuro. Trata-se de um mundo alternativo em que a Alemanha nazista e o Japão fascista venceram a Segunda Guerra


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Mundial e partilharam o mundo em zonas de influência. O romance tem como ambientação os Estados Unidos - no ano de 1962, 15 anos depois que os Aliados capitularam na Segunda Guerra Mundial. A costa oeste dos Estados Unidos agora, pertence ao império nipônico, e a costa leste ao Reich nazista, numa analogia à época da Guerra Fria, concentra-se ao Centro (chamado de Rocky Mountain States) uma área independente. Além de apresentar o mundo nesta realidade alternativa, Dick também explora preconceitos e orgulhos dos estadunidenses, visões de um mundo mais avançado cientificamente, porém ainda desequilibrado em termos de poder. Dessa forma, a história alternativa, nos traz por meio da construção de novos imaginários, uma crítica ferrenha da realidade e da política. No romance de Dick, o Mediterrâneo foi drenado, a população do continente africano foi eliminada e os Estados Unidos da América divididos entre nazis e japoneses. Nesse ambiente, os nazistas fizeram uma corrida espacial que os levaram até Marte e Vênus, uma realidade assustadora, onde os negros e os judeus foram quase todos exterminados – o Holocausto foi quase completo, os poucos judeus se escondem com novas identidades e a África fora exterminada, os que sobreviveram se tornaram escravos. Além disso, Franklin D. Roosevelt é assassinado, Hitler sobrevive num asilo, corroído pela sífilis e fornos para a aniquilação de judeus são construídos em Nova York. Enquanto isso, como alento, o oráculo do I Ching, o livro chinês das transmutações, é obsessivamente consultado pelos personagens. Os efeitos da Segunda Guerra sob essa nova possível perspectiva traz uma ambientação de um futuro distópico para a maior parte da humanidade. Na zona neutra que divide as duas superpotências vive o homem do castelo alto, autor de um bestseller de culto, uma obra de ficção que oferece uma teoria alternativa da história mundial em que o Eixo perdeu a guerra. Ou seja, há um romance utópico escrito numa realidade paralela, dentro de um romance distópico assombroso. O método de Dick é realmente instigante, faz com que sua obra de ficção científica seja um grande objeto de estudo e reflexão para cientistas sociais, psicólogos, historiadores. Há outro romance dentro do romance. Um obscuro escritor de ficção científica lança uma história, banida nas áreas de influência nazista, sobre uma realidade alternativa, em que os Aliados teriam vencido a Guerra. Afinal, somos levados a imaginar um mundo que teve outro direcionamento histórico no passado, ao mesmo tempo em que imaginamos um mundo que poderia ser sido construído com outros valores muito mais propícios e relevantes no sentido mesmo de uma construção utópica de realidade, projetando para um futuro que poderia ter


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sido e que impacta numa reflexão crítica do presente, do que está posto na contemporaneidade. Um exemplo clássico de ucronia no cinema vem de um filme recente de Quentin Tarantino, Bastardos Inglórios (Inglorius Basterds, EUA, 2009). Definitivamente, Tarantino não tem por premissa seguir uma lógica linear em seus filmes. Tem por hábito misturar linguagens, épocas e estilos de fazer cinema (drama, comédia e ação) que são por muitas vezes destoantes. Suas influencias são várias, de distintas épocas, e isso influencia sua obra cinematográfica. Segundo o diretor, o longa é uma mistura de filme de guerra com western spaghetti italiano. Trata-se de um filme intenso com um modo diferente (fragmentária e hibrida) de contar uma história que estamos acostumados a assistir. A história começa na França ocupada pelos nazistas, onde Shosanna Dreyfus (Mélanie Laurent) testemunha a execução de sua família pelas mãos do coronel nazista Hans Landa (Christoph Waltz). A jovem consegue escapar e foge para Paris, onde cria uma nova identidade como dona de cinema. Simultaneamente, na Europa, o tenente Aldo Raine (Brad Pitt) persegue ao lado de seu grupo de soldados judeus os nazistas. Conhecido por seus inimigos como Os Bastardos, o esquadrão de Raine se junta à atriz alemã e agente infiltrada Bridget Von Hammersmark (Diane Kruger) em uma missão para derrubar os líderes do Terceiro Reich. E os destinos convergem para o cinema onde Shosanna está planejando a sua própria vingança. O filme conta a história de dois planos para assassinar os líderes políticos da Alemanha nazista. Em três dias Joseph Goebbels fará uma pré-estréia de gala do novo filme dele em Paris. Todo o alto comando alemão estará lá: “Todos os ovos podres dentro de uma mesma cesta.” O objetivo é detonar a cesta. Hitler irá à pré-estréia. É nesse ponto do filme que a ambição de Shosanna Dreyfus e dos Bastardos convergem para um mesmo local. O filme de guerra de Tarantino é uma releitura do italiano “Assalto ao Trem Blindado” (Quel Maledetto Treno Blindato, Itália, 1977) de Enzo Catellari, que conta a história de um grupo de soldados americanos de origem judaica enviados a uma missão suicida. Na versão do cineasta americano, Brad Pitt faz o papel do tenente Aldo Raine, que organiza um grupo de soldados judeus para lutar contra os nazistas. O grupo tem como missão assassinar soldados de Hitler da forma mais cruel possível. É uma fantasia sobre um pelotão de elite do exército americano formado apenas por judeus, oito soldados e um tenente, cuja missão é penetrar nas linhas inimigas e matar nazistas de forma bárbara e selvagem, para espalhar o medo entre os oficiais e os soldados alemães.


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“Se ouviram falar de nós já sabem que não fazemos prisioneiros. Nosso negócio é matar nazistas e somos bem-sucedidos.”, diz Raine. Num pronunciamento para sua tropa, Raine inflama: Membros do Partido Nacional Socialista conquistaram a Europa com mortes, intimidação, tortura e terror. E é exatamente isso o que faremos com eles. Seremos cruéis com os alemães. E através dessa crueldade eles saberão quem somos. Verão a evidência de nossa crueldade nos corpos estripados, desmembrados e desfigurados dos próprios irmãos. Os alemães não conseguirão nem imaginar a crueldade que seus irmãos sofreram em nossas mãos, sob as solas de nossas botas e nos fios de nossas navalhas. Os alemães vão ficar cansados de nós. Os alemães falarão de nós. Os alemães terão medo de nós. Os nazistas não têm compaixão e eles têm que ser destruídos. Todo homem sob meu comando me deve 100 escalpos nazistas! E quero os meus escalpos! Parece bom? Todos concordam e respondem em uníssono: “Sim, senhor!” Vê-se que aqui a história alternativa de Tarantino difere do romance de Phillip Dick. Agora, ao invés de se transformarem em escravos, os judeus se vingam de seus algozes e fazem justiça com as próprias mãos. Tarantino reescreve a história, Hitler é fuzilado e os judeus têm sua revanche física e brutal. Tarantino recorre comumente à violência com o objetivo não só de chocar numa perspectiva estética, mas de criticar de maneira satírica e grotesca as incongruências da história real. A reescrita da história no filme de Tarantino resgata sentimentos antagônicos e reflexões sobre a condição humana de maneira poderosa. Consegue revigorar um tema extremamente explorado, a ponto de deixar de ser problematizado pelas gerações mais novas.

Considerações Finais

A humanidade não é um destino: a humanidade é uma reinvenção contínua. Segundo I. Prigogine1, nossa visão do futuro vem sofrendo uma modificação radical rumo ao múltiplo, 1

Illya Prigogine, físico-químico russo (25/1/1917-), nascido em Moscou e naturalizado belga em 1949. Prêmio Nobel de Química em 1977 por suas contribuições à termodinâmica e, em especial, pela Teoria das Estruturas Dissipativas.


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ao temporal e ao complexo. Afirma que na nossa era as coisas estão mudando a uma velocidade jamais vista. Prigogine mostra que a ciência clássica enfatizou a estabilidade e o equilíbrio, mas agora o que vemos são instabilidades, flutuações e tendências evolucionárias. Por isso, defende as novas ciências da complexidade que têm por tendência negar o determinismo onde o futuro não é dado. Nesse sentido, certezas devem ser substituídas por possibilidades, por isso a divisão entre as ciências exatas que falariam de certezas e as ciências “inexatas” que tratariam das possibilidades, vai deixando de existir. Saímos de um passado de certezas conflitantes para uma época de polêmica, de novas aberturas. Nas ciências, prevalecia uma visão determinista das leis da natureza. Hoje, privilegiamos as bifurcações, flutuações, as instabilidades, complexidade e criatividade, ou seja, passamos por uma mudança de paradigma. Segundo Prigogine, hoje estamos longe do mundo newtoniano, regular, das trajetórias lineares. Essa mudança ocorre porque a sociedade humana também está mudando, devido aos intercâmbios culturais e econômicos promovidos pela globalização. A partir do momento em que estivermos sob o imperativo do paradigma cartesiano e sob o determinismo das leis causais da ciência, há uma separação significativa da objetividade e da subjetividade no nosso campo de análise. Descartes quis atingir uma certeza fundada sobre as matemáticas, uma certeza que todos os seres humanos poderiam partilhar. Mais tarde, as leis newtonianas serviriam de modelo para encontrar essas certezas. Prigogine nos diz que estamos saindo da visão geométrica clássica para uma descrição da natureza na qual o elemento narrativo é essencial. Ocorre a mudança do ponto de vista determinístico para uma visão que reconhece o papel central das probabilidades e irreversibilidade. Pensar o incerto é, também, ter consciência da condição humana com seu duplo aspecto de liberdade e angústia. Assim como a arte, a música, a literatura, a ciência faz parte da procura do transcendental. No entanto, as fronteiras entre o “real” e o “imaginário” são muito tênues. Ainda estamos construindo novas formas do pensar interdisciplinar e que faça dialogar o irracional e o racional, a ordem e a desordem, o sapiens e o demens, não no sentido de dualidades incompatíveis, mas de contextos conflituosos, contraditórios, porém complementares e intercambiáveis.


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É nesse sentido que a ucronia é um elemento importante para fazer pensar e refletir não só exclusivamente no âmbito historiográfico, mas no sentido de pensar a condição humana por meio de obras literárias e/ou cinematográficas que nos remete a uma articulação e religação de vários saberes que até então foram desprestigiados pela ideologia cientificista. O foco de crítica não é contra o método historiográfico em si, proposta a partir da ucronia, história alternativa e história contrafactual ou virtual, mas sim contra as deturpações da história que são pensadas e repassadas como a história oficial. Como por exemplo, em dois casos recentes de distribuição de material didático nas escolas brasileiras. No primeiro, a história oficial contada aos alunos dos 12 colégios militares do país omite a tortura praticada na ditadura, entende que o golpe de 1964 foi uma revolução democrática contra a atuação de grupos subversivos que perturbavam a ordem pública e que vitimaram numerosas pessoas com sua estratégia de assaltos a banco, seqüestros e ataques a quartéis e postos policiais. Além disso, a censura à imprensa e as cassações políticas era condição necessária ao progresso do país. “Embora o governo pregasse o retorno à normalidade democrática, a intransigência do partido oposicionista motivou a necessidade de algumas cassações políticas”, diz trecho sobre o governo Ernesto Geisel (1974-79). Para o historiador Carlos Fico1 da Universidade Federal do Rio de Janeiro, esse exemplo sé considerado graves porque narra a história como uma “história factual” carente de análise, focada apenas na ação dos governos. Permanece assim aberta a questão do estatuto epistemológico da história e o grau de objetividade de seus juízos. Por outro lado, em 2007, setores da mídia conservadora protestaram contra os excessos esquerdistas de um livro didático, Nova História Crítica para 8ª. série, distribuído gratuitamente pelo MEC a 750 mil alunos da rede pública. O livro faz a crítica explícita ao capitalismo e tenta resolver os problemas sociais sob a ótica da revolução marxista. Enaltece a figura de Mao-Tsé Tung como um grande estadista e comandante militar, além de entender que a Revolução Cultural Chinesa fora uma experiência socialista muito original. Também coloca Cuba quase como uma ilha paradisíaca de prosperidade e riqueza coletiva, e critica a derrocada da URSS, não esclarecendo de fato os motivos que levaram a esse processo histórico.

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Carlos Fico é professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor dos livros "Como eles agiam: os subterrâneos da ditadura militar" (2001) e "O Grande Irmão: da operação brother sam aos anos de chumbo, o governo dos EUA e a ditadura militar brasileira” (2008).


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Nesses dois exemplos, a história já vem interpretada, como um pacote ou um kit de esquerda ou de direita, pronto para o aluno utilizar. Não abre espaços para uma reflexão crítica ou para que o estudante possa se sentir como um sujeito ativo da história dotado de poder de pensamento reflexivo, analítico e dialético e que possa desenvolver seu próprio discernimento. A história oficial sempre poderá ser revista de acordo com novas interpretações. É nesse sentido que o pensamento ucrônico, tanto na literatura, quanto no cinema ou na ficção podem ser considerados métodos apreciáveis de análise crítica e contundente sobre os fatos históricos disponibilizados à humanidade, não como verdades absolutas, mas como objetos de estudo passíveis de desconstrução e reconstrução.

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UT PICTURA POESIS, DE HORÁCIO: POR UMA ARQUEOLOGIA DA COMPARAÇÃO ENTRE AS ARTES Neurivaldo Campos Pedroso Junior1 RESUMO: O presente artigo pretende revisitar o desenvolvimento da expressão Ut pictura poesis, proposta por Horácio, ao longo dos diferentes movimentos artísticos. Sob essa perspectiva, pretendemos demonstrar que as palavras horacianas passaram a designar uma série de estudos comparativos entre as artes, em que se incluem a comparação entre Literatura e Pintura, Literatura e Música, entre outras. Será discutida, também, a importância que o binômio Mimesis/Semiosis assume no interior da comparação entre Literatura e Pintura. Procuraremos revisitar a tradição horaciana proporcionando a interlocução com as atuais discussões na área de Letras, Estética e Semiótica. Palavras-chave: Horácio; Comparação entre as artes; Mimesis/Semiosis; Estética; Semiótica HORÁCIO’S UT PICTURA POESIS: FOR AN ARCHEOLOGY OF THE COMPARISON BETWEEN ARTS ABSTRACT: The present article intends to revisit the development of the expression Ut picture poesis, suggested by Horácio, within the different artistic movements. Under this perspective, we intend to demonstrate that Horácio’s words passed to designate a series of comparative studies between the arts, which includes the comparison between Literature and Painting; Literature and Music, among others. It will be discussed, also, the importance of the binomial Mimesis/Semiosis assumes in the interior of the comparison between Literature and Painting. We will search to revisit Horácio’s tradition proportioning the interlocution with the current discussions in the Letters field, Aesthetic and Semiotic. Keywords: Horácio; Comparison between arts; Mimesis/Semiosis; Aesthetic; Semiotic.

A poesia é como pintura (ut pictura poesis) Horácio

Desde que fora enunciada, a expressão horaciana, ut pictura poesis (A poesia é como pintura), tem sido empregada como um preceito estético, um topos, a partir do qual, propõe-se a comparação entre a Poesia e as Artes Plásticas. Com Horácio, instaura-se, de forma mais sistemática, a prática de comparação entre as diferentes artes, pois os críticos amparando-se nas palavras de Horácio procurarão discutir a relação entre as artes irmãs, quer seja para aproximá-las quer seja para distanciá-las. Nesse sentido, pensamos, que a própria questão do paragone das artes, tão comum à época de Alberti e Da Vinci, não poderá ser considerada 1

Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) em Co-tutela com a Universitat de Barcelona. Professor da FAP. E-mail: npedrosojunior@yahoo.com.br


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fora de um contexto reflexivo aberto pelo ut pictura poesis horaciano. Registramos, ainda, que apesar de o termo paragone ser empregado, muitas vezes, com o propósito de designar a comparação entre a Literatura e as Artes plásticas, em sua acepção original, o termo referia-se à comparação entre a pintura e a escultura. Com isso, o paragone pode ser pensado na esteira da tradição ut pictura poesis, na medida em que, o lugar ocupado pela pintura em relação à poesia é análogo ao lugar ocupado pela escultura em relação à pintura. Aliás, entendemos que, ao nos colocarmos diante do ut pictura poesis, estaremos, não apenas diante de um topos, mais ou menos definido da História da Arte ou da Estética, tampouco estaríamos diante de uma simples questão temática, segundo a qual analisar-se-ia a forma por meio da qual determinadas obras literárias ou pictóricas iam buscar fonte de inspiração e motivos em outras artes. Acreditamos, todavia, que, para além dessas questões, o ut pictura poesis aponta para uma discussão e re-definição dos sistemas artísticos de um modo geral, na medida em que, ao centrar-se na representação do real – tanto pela Literatura quanto pela Pintura - potencializa as discussões acerca da Mímesis, questão esta nodal para os estudos literários e, inclusive, para a estética. Assim, dessas discussões abertas pelo ut pictura poesis não podem desvencilhar-se nem os artistas muito menos os estudiosos. Se, em um primeiro momento as palavras de Horácio foram empregadas para comparar a Pintura à Literatura, ao longo dos séculos e dos diferentes movimentos artísticos, o adágio horaciano passou a designar toda uma série de estudos comparativos entre as diferentes artes, não apenas circunscritos às analogias entre Pintura e Literatura, mas, agora, entre Literatura e Música, Pintura e Música, Literatura e Cinema, entre outros. Nesse sentido, devemos observar que os estudos das relações entre Literatura e Música receberam uma rubrica específica: ut musica poesis ou em alguns casos ut musica pictura. A primeira expressão é utilizada para comparar a Literatura à Música, enquanto que a segunda expressão é frequentemente usada com o propósito de se associar a Música à Pintura. Essas mudanças das palavras de Horácio foram sugeridas por Jon de Green. Segundo Solange Ribeiro de Oliveira, o autor, ao cunhar aquelas duas expressões, pretendia, com a primeira, indicar “a supremacia das aproximações entre a música e a poesia” próprias do período romântico, enquanto que a segunda expressão, usada na fase moderna, “privilegia as relações entre a música e as artes plásticas, num momento em que estas, como sempre aconteceu com a música, tendem a favorecer a abstração” (Oliveira, 2002, p.25). Horácio inicia, então, uma tradição de comparações entre Literatura e Pintura, apresentada sob a rubrica ut pictura poesis (Poesia é como pintura). Recentemente, a tradição


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ut pictura poesis ganhou com a Semiótica e a Literatura Comparada novas ferramentas e formas de abordagem. Lembramos ainda que a expressão cunhada por Horácio “renasce nos nossos dias, como disciplina acadêmica. Denominada, precisamente, A Literatura e as Outras Artes, é ministrada em universidades como a de Indiana, nos EUA” (Oliveira, 1993, p. 40), aparecendo, inclusive, como tópicos específicos em Congressos Internacionais como os da MLA (Modern Language Association of América), IACL (International Association of Comparative Literature) e ainda nos recentes congressos da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada). Veremos, em seguida, os rumos que as palavras horacianas tomaram durante o curso dos diferentes movimentos artísticos. Tentaremos, ainda, mostrar que a tradição ut pictura poesis tem contribuído com os estudos de Literatura, ao proporcionar paralelos entre a Literatura e as demais artes, enfatizando os pontos em que as diferentes artes convergem e em que elas divergem, considerando questões outras, como as fontes, o estilo, os temas e o efeito das obras de arte sobre o espectador e o leitor. Todavia, devemos registrar que, inicialmente, as palavras de Horácio foram empregadas com um outro propósito, pois, quando o poeta, na Arte Poética, comparou a Poesia à Pintura, tal atitude fora adotada no sentido de aconselhar três jovens poetas da família dos Pisões com relação à escrita de um poema. Assim, Horácio ressalta que: Poesia é como pintura: uma te cativa mais, se te deténs mais perto; outra, se te pões mais longe; esta prefere a penumbra; aquela quererá ser contemplada em plena luz, porque não teme o olhar penetrante do crítico; essa agradou uma vez; essa outra, dez vezes repetida, agradará sempre (Horácio, 1997, p. 65).

Essa passagem fora retomada inúmeras vezes ao longo da história com o propósito de se salientar uma maior dificuldade de recepção de um texto do que de um quadro, assim como, de um maior valor que assumiria aquele com relação a este. Os críticos partiam da ideia, segundo a qual, em relação a um quadro, bastaria contemplá-lo, já as letras, dispostas na página em branco, exigiriam não apenas contemplação, mas, principalmente revolveriam o espírito e a mente, pois seria necessário entender o que significam (como se a um quadro também não fosse necessário correr atrás de seu significado). Assim, o tom das reflexões baseava-se na distinção entre os signos naturais, utilizados pela pintura, e os signos arbitrários, utilizados pela Poesia. Com isso, instaura-se a supremacia desta sobre a Pintura, pois, enquanto que a imagem encarnada pela pintura,


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 38 (...) sólo representa una efígie humana, el poema puede representar también lo inimaginable, o sea, un pensamiento, mientras que un cuadro sólo lo logra mediante un símbolo; el poema está realizado con un material que no resiste mucho y que deja más liberdad que un cuadro; también excita e ilusiona al receptor, más facilmente, mediante efectos acústicos, y no como un cuadro, que sólo se dirige al sentido de la vista exigiendo una intensa impresión visual (Markiewicz, 2000, p.53).

Ou, ainda como bem observa Jacques Aumont En efecto, cuando el autor latino enunciaba esta ley, proponía sobre todo al poeta que buscara conseguir con sus versos efectos tan asombrosos como los que obtenía la pintura: dicho de otro modo, proponía el ideal de una poesía hecha de imágenes fulgurantes, inesperadas, lo suficientemente fuertes como para provocar verdaderas “visiones” o, en términos más sobrios, establecía para el poeta la tarea de crear verdaderos cuadros, de producir lo que la retórica denomina hipotiposis y que consiste en poner con vivacidad e inmediatez en el espíritu del oyente aquello de lo que se habla (Aumont, 1998, p.106).

Com efeito, pensando em termos da tradição do ut pictura poesis, podemos observar que, En su version más general, el significado de esta fórmula se reduciría a la tesis de que la poesia, al igual que las outras artes, produce, mediante un lenguaje natural, representaciones visuales. En la maioria de los casos se tenía en cuenta la pintura y las artes plásticas en general; tales representaciones visuales, propias de la poesía, se caracterizabam como imaginarias, visuales o plurisensoriales, a diferencia de las representaciones sólo visuales provocadas por las artes plásticas (Markiewicz, 2000, p. 52).

Neste ponto, ressaltamos que há algumas divergências com relação ao pensamento horaciano, na medida em que, de um lado, há aqueles que acreditam que, ao cunhar a expressão ut pictura poesis, Horácio estava tomando a pintura como modelo de inspiração para a poesia, ou, a supremacia daquela sobre esta, na medida em que caberia ao poeta basearse na tarefa empreendida pelo pintor, ou seja, ao comparar a poesia à pintura, (...) a frase cria um privilégio em favor das artes da imagem, com as quais são relacionadas as artes da linguagem. Ao retomarem a frase de Horácio, os teóricos do Renascimento inverteram o sentido da comparação: a poesia tornou-se o termo comparativo e a pintura o termo comparado. Ut pictura poesis erit tornou-se, para eles, tu poesis pictura, a pintura é como a poesia, o quadro é como um poema. E esse foi o sentido, ou melhor, essa inversão de sentido, que a tradição conservou (Lichtenstein, 2005, p. 10-11).

Assim, podemos pensar, de um lado, que Horácio “parece contestar a supremacia instalada da poesia em detrimento dos méritos imputados à pintura” (Lescourret, 2002, p.176). Nesse sentido, registramos que, tanto a pintura quanto a música eram vistas, até então, sob a égide de um raciocínio proveniente da Antiguidade Grega, a partir do qual, ambas


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apenas ganhavam relevo e importância no âmbito da Tragédia, ou seja, no âmbito da representação cênica das paixões humanas. Todavia, a partir da comparação horaciana, ambas as artes ganham uma autonomia que permitirá, então, a comparação e, diante disso, “a aproximação entre poesia e pintura visa individualizar cada arte e propõe-se a estabelecer a superioridade de uma sobre a outra” (Lescourret,2002, p.176-177). Horácio, em seguida, ainda na mesma Epistola aos Pisões chama a atenção para o fato de que apesar de poetas e pintores possuírem certa liberdade, com relação aos seus respectivos ofícios, eles deveriam também preocupar-se com aspectos quer da pintura quer da poesia que, se não fossem observados, poderiam pôr a “obra” toda a perder, logo, a questão da unidade entre as partes deveria ser observada tanto pelo poeta como pelo pintor. Horácio, em sua Ars Poética, centra-se em alguns pontos básicos da poética clássica, tais como: os atributos do poeta; o imperativo do modelo apropriado; os ideais estéticos e pragmáticos; a necessidade de unidade, harmonia e proporção dentro da obra. Além disso, havia, no poeta latino, uma preocupação mais pontual relativa à poesia dramática, traduzidas pelas questões da versificação, número de atores, uso do coro e música. Horácio, para demonstrar o que pode acontecer com um quadro ou com um poema que não observasse a unidade na obra, sugere a seguinte situação: Suponhamos que um pintor entendesse de ligar a uma cabeça humana um pescoço de cavalo, ajuntar membros de toda procedência e cobri-los de penas variegadas, de sorte que a figura, de uma mulher formosa em cima, acabasse num hediondo peixe preto; entrados para ver o quadro, meus amigos, vocês conteriam o riso? Creiam-me, Pisões, bem parecido com um quadro assim seria um livro onde se fantasiassem formas sem consistência, quais sonhos de enfermo, de maneira que o pé e a cabeça não se combinassem num ser uno (Horácio, 1997, p.55).

Ora, vemos que as observações de Horácio sobre a unidade em Pintura e em Literatura podem ser aplicadas às obras de arte que tinham como modelo a representação fiel da Natureza, as artes clássicas, por exemplo. Entretanto, nós não podemos aplicá-las com tanta propriedade aos diferentes movimentos da arte moderna, sobretudo, à pintura abstrata ou não-figurativa, pois, há uma certa crise e discussão acerca das estruturas da arte. Todavia, notamos que a não aceitação do quadro proposto pelo poeta latino devido à falta da “unidade”, leva-nos a atestar, sobretudo tendo os olhos voltados para movimentos como o Surrealismo, o Cubismo e o Dadaísmo, que cada obra de arte apresenta uma lógica interna, que comanda a sua composição. Neste ponto, retomar a reflexão de Roger Fry proposta em “Um ensaio de estética”, quando registra que


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Um dos principais aspectos da ordem numa obra de arte é a unidade; algum tipo de unidade é indispensável para a nossa contemplação tranquila da obra de arte como um todo, pois se não houver unidade não poderemos contemplá-la em sua inteireza, pois acabamos passando ao largo dela na busca de outros elementos para completar a unidade (Fry, 2002, p.65).

Mais adiante, o crítico de arte britânico continua sua reflexão sobre a questão da representação nas artes plásticas e acentua, inclusive, a íntima relação existente entre a representação e a necessidade de unidade de uma obra de arte. Todavia, a unidade proclamada por Fry muito se difere daquela exigida por Horácio, pois, para Fry Parece igualmente provável que nossa apreciação da unidade do desenho pictórico seja de dois tipos. Estamos tão habituados a considerar apenas a unidade que resulta do equilíbrio de várias atrações apresentadas simultaneamente ao olhar num quadro emoldurado que nos esquecemos da possibilidade de outras formas pictóricas. (...) Na literatura e na música, evidentemente, estamos habituados com essa unidade sucessiva, que tem seu papel nas artes figurativas. Ela depende de as formas nos serem apresentadas em tal seqüencia que cada elemento sucessivo manifeste uma relação harmoniosa e fundamental com os precedentes. Minha sugestão é a de que nosso sentimento de unidade pictórica, ao contemplarmos desenhos, é em grande parte dessa natureza; quando o desenho é bom, sentimos que cada modulação da linha percebida por nosso olhar confere ordem e variedade a nossas sensações. Um desenho assim pode ser quase inteiramente desprovido daquele equilíbrio geométrico que estamos acostumados a esperar nos quadros, e ao mesmo tempo eles posssuem um extraordinário grau de unidade (Fry, 2002, p.66).

Consequentemente, deve-se considerar a ordem dos componentes dispostos ao longo das obras, sejam elas literárias ou pictóricas. Com isso, observa-se que a “presunción de que las representaciones del artista corresponden a unidades que se pueden localizar en el mundo en lugar de a disposiciones imposibles de elementos reales es una defensa de Horacio de la consigna de realismo.” (Steiner, 2000, p.35). Logo, o artista debe ser sensivel à relação existente entre o “tema” e a realidade existente. A exigência de Horácio, de que o artista – tanto o poeta quanto o pintor – tenha como ponto de partida a realidade, aponta para uma problemática que dominou, por longo tempo, as discussões antigas e modernas acerca da correspondência das artes – a Mímesis, considerando que, para o poeta latino, tanto a Poesia quanto a Pintura têm como tema a realidade existente e são, de certa forma, limitadas em sua adequação mimética a essa realidade. Vemos, então, que passa a existir uma estreita e íntima conexão entre a correspondência das artes e a questão da verossimilhança. Horácio contribui com as discussões abertas por Aristóteles com relação à representação, pois, entendemos que o emprego, por parte do poeta latino, do termo “representar” seria um homônimo ao “imitar” aristotélico, nesse ponto, podemos fazer uma


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ressalva com relação à etimologia da palavra mimesis e o emprego dos termos imitar e representar, pois, de acordo com Maria Ozomar Ramos Squeff, (...) da análise etimológica de mimesis, em seus vínculos com as idéias de engano e ilusão, destaco o significado original de ‘representação’, ‘imitação’ e, em especial – a partir de sua raiz indo-européia – o sentido de ‘mudança’, ‘transformação’ que o termo conota. A tradução latina, imitatio, e suas sucessivas derivações em outras línguas, sofreu acentuado desgaste através da história e passou a significar, principalmente, reprodução, cópia de algo. O termo ‘representação’ tem se revelado como menos comprometido, de modo a poder traduzir, com os devidos complementos restritivos (posto que há outras formas de representação), o sentido original do termo grego. Acentua-se na formação mimética a característica de ser representação de algo, isto é, um modo de trazer algo à presença do sujeito, por outro meio que não pelo próprio objeto visado, o que implicado transformação. Trata-se de uma segunda presença que, de algum modo, replica a presença primitiva do objeto ou de algum de seus aspectos (Squeff, 2003, p.106-107).

DA MIMESIS À SEMIOSES

Como pretendemos mostrar anteriormente, o adágio horaciano do ut pictura poesis abre-se para a possibilidade de uma reflexão centrada na questão da mimesis. Diante dessa observação, pretendemos, agora, propor uma discussão que procure observar a passagem da mimesis a semioses. Essa reflexão impõe-se, neste artigo, com uma dupla força, pois, se de um lado, toda arte, e, mais precisamente, a Literatura e as Artes Plásticas sempre tiveram que enfrentar o problema da representação, seja para segui-la seja para afastar-se dela. Poderíamos, iniciar, então, voltando-nos à Mimesis, na medida em que esta, (...) foi questionada pela teoria literária que insistiu na autonomia da literatura em relação à realidade, ao referente, ao mundo, e defendeu a tese do primado da forma sobre o fundo, da expressão sobre o conteúdo, do significante sobre o significado, da significação sobre a representação, ou ainda, da sèmiosis sobre a mimèsis (Compagnon, 1999, p.97).

Nesse contexto, tanto a Poesia quanto a Pintura tomam como ponto de partida a realidade – o real – assim, ao raciocínio horaciano sobre a representatividade poética ou pictórica podemos associar a reflexão aberta por Jan Mukarovisky, quando afirma que a “capacidad de expresar los fenómenos de la realidad externa mediante signos conectados en una contextura continua” (Mukarovisky apud Steiner, 2000, p.35) une a Literatura e a Pintura sob qualquer situação de desenvolvimento. Para reforçar esse caráter mimético tanto de uma como de outra arte, Mukarovisky salientará que a Música, a Escultura e a Arquitetura não


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apresentam aquela “contextura continua” da qual são dotadas a Literatura e a Pintura, pois, em ambos os casos, “aunque la expressión de una realidad externa en la literatura o la pintura sea sólo virtual, es sin embargo esencial para ellas” (Steiner, 2000, p. 35). Pensamos que, apesar de a Literatura e a Pintura tomarem como ponto de partida o Real, a representação tanto no plano da página quanto no plano da tela não prova a existência do objeto. Assim, a referência à existência ou não do objeto representado tornou-se questão nodal não apenas para os estudos literários, mas, principalmente, tornou-se objeto de interesse da estética e semiótica modernas e, também, dos estudos comparativos entre as artes. Neste ponto, podemos estender nossa reflexão no sentido de esclarecer acerca da utilização da palavra objeto, uma vez que não se pode confundir objeto com coisa, sobretudo porque a noção de objeto é muito mais complexa e não pode, de forma alguma, ser confundida com o que quer que possamos entender por coisa. Diante disso, optamos por recorrer à semiótica de Peirce para forjarmos uma reflexão acerca do objeto, pois, em vários momentos de nosso trabalho, sobretudo quando tocamos na questão da representação, aquele termo será bastante frequente. Duas passagens de Peirce são elucidativas: A palavra Signo será usada para denotar um Objeto perceptível, apenas imaginável ou mesmo insuscetível de ser imaginado em um determinado sentido  a palavra “cabo” que é um signo, não é imaginável, pois não é essa palavra mesma que pode ser inscrita no papel ou pronunciada, mas apenas um dos aspectos que pode revestir; trata-se da mesmíssima palavra quando escrita e quando pronunciada, mas é uma palavra quando significa “posto de hierarquia militar”, outra quando significa “ponta de terra que entra pelo mar” e terceira quando se refere a “parte por onde se segura objeto ou instrumento”. [...] Um Signo pode ter mais de um Objeto. Assim a sentença “Caim matou Abel”, que é um Signo, refere-se pelo menos tanto a Abel quanto a Caim, ainda que não a encaremos como deveríamos encará-la, isto é, como tendo “um assassínio” na qualidade de terceiro Objeto. O conjunto de objetos pode ser visto Omo compondo um Objeto complexo. No que se segue (e muitas vezes depois), os signos serão considerados como tendo apenas um Objeto, no intuito de reduzir as dificuldades de estudo. Os Objetos  pois um Signo pode ter qualquer número deles  podem ser uma coisa singular existente e conhecida ou coisa que se acredita tenha anteriormente existido ou coisa que se espera venha a existir ou uma coleção dessas coisas ou uma qualidade ou uma relação ou fato conhecido cujo Objeto singular pode ser uma coleção ou conjunto de partes ou pode revestir algum outro modo de ser, tal como algum ato permitido, cujo ser não impede que sua negação seja igualmente verdadeira ou algo de natureza geral, desejado, exigido ou invariavelmente encontrado sob certas circunstâncias comuns (Peirce apud Santaella, 1995, p.48).

Podemos pensar, por exemplo, que tanto Simônides quanto Horácio, ao compararem a Poesia à Pintura, apontam para o fato de que ambas tomam como ponto de partida o real e, então, o que as diferenciaria seria a forma como ambas representam esse mesmo real. Com


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isso, podemos ressaltar que a arte poderá ser realista, surreal, abstrata, documental, etc, mas ela nunca estará desvinculada da realidade empírica. Assim, vemos que . “as coisas da arte começam geralmente ao contrário das coisas da vida. A vida começa por um nascimento, uma obra pode começar sob o império da destruição” (Didi-Huberman, 2001, p.9). Vemos, então, que a arte e, mais precisamente a Literatura e a Pintura, não se contentam simplesmente em estar presente no mundo real, a arte, então, (...) significa também uma maneira de representar o mundo, de figurar um universo simbólico ligado à nossa sensibilidade, à nossa intuição, ao nosso imaginário, aos nossos fantasmas. É este seu lado abstrato. Em suma, a arte ancora-se na realidade sem ser plenamente real, desfraldando um mundo ilusório no qual, freqüentemente – mas não sempre – julgamos que seria melhor viver do que viver na vida cotidiana (Jimenez, 1999, p.10).

Assim, é diante de uma dupla falta que nasce a literatura, pois, como bem demonstrou Leyla Perrone-Moisés, em um primeiro momento há uma falta sentida no mundo em que vivemos, que não é satisfatório. Esta falta sentida no real tentará ser suprida pela linguagem, ai reside a outra falta pela qual nasce a Literatura, na medida em que esta é um sistema que também opera em falso. Neste ponto, não podemos deixar de mencionar um texto de Jacques Lacan intitulado “Televisão”, no qual o psicanalista francês irá atentar para o fato de a linguagem ser um sistema que opera em falso, pois, para Lacan, “Digo sempre a verdade: não toda, porque dizê-la toda não se consegue. Dizê-la toda é impossível, materialmente faltam as palavras. É justamente por esse impossível que a verdade provém do real. (...) Falhado, portanto, mas por isso mesmo bem-sucedido em relação a um erro, ou melhor dizendo, a um error” ( Lacan, 1993, p.11) A passagem lacaniana irá ao encontro do raciocínio de Leyla Perrone-Moisés acerca da criação do texto literário e, mais precisamente, sobre o nascimento da Literatura. Dessa forma, vemos que o psicanalista francês tanto quanto a crítica brasileira apontam para o fato de a língua ser um sistema que opera em falso. As palavras de Jimenez, citadas anteriormente, apontam para uma característica muito importante não apenas relativa à arte, mas, ao próprio homem, a tendência própria deste em imitar, inclusive, seus pares. Logo, entendemos que “el hombre es un animal de imitación, un animal mimético: tenemos una tendencia espontánea a reproducir algo que nuestros sentidos nos dan a percibir, y esta tendencia, este instinto o pulsión es tan fuerte que no tiene significación de objeto, como lo subraya la observación a las cosas displanceteras o feas, cuya imagen puede considerarse bella (Aumont, 1998, p.196).


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Como já afirmamos anteriormente, podemos entender, até certo ponto, que a Epístola aos Pisões, de Horácio, participa de uma discussão acerca da Mímesis aberta, sobretudo pela Poética, de Aristóteles, na medida em que este entende que o homem, quase que por necessidade, apresenta uma tendência à imitação. A arte seria, segundo a visão aristotélica, uma atualização dessa pulsão mimética apresentada pelo homem na imitação das ações humanas. Com isso, vemos que (...) la mímesis de Aristóteles es distinta que la del espejo platônico: si hay algo que el animal humano no puede prescindir de imitar es él mismo o, más exactamente, su comportamiento en sociedad. La imitación, y más allá, la actividad que se conoce como “arte”, es por tanto un juego que obedece a reglas, tan necessário como otros para la cohesión de la ciudad porque proporciona la ocasion de encuentros entre ciudadanos, y porque, al reproducir las aciones humanas, permite describirlas de otra manera, enfocarlas en todos sus aspectos (comprendidos los virtuales y los imposibles), y por tanto pensarlos de manera completa (Aumont, 1998, p.96).

Longe de pretendermos, no âmbito desse texto, fazer um estudo detalhado da obra aristotélica, o que queremos mostrar que a sua teoria acerca da Mímesis encontrará em Horácio um importante continuador e, com isso, poderemos trazê-la para a reflexão sobre a correspondência entre as artes. Assim, a aproximação entre a Literatura e a Pintura baseada nos preceitos de imitação fora defendida, entre outros, por Kant, quando observa que Se puede justificar de hecho de unir el arte de la imagen y de la forma al gesto del lenguaje (por analogia) alegando que el espíritu del artista, gracias a estas figuras, da una expresión física de lo que ha pensado y de la manera en que lo ha pensado y en que hace hablar a la cosa misma, en cierto modo miméticamente: es un juego muy habitual de nuestra imaginación que supone un alma en las cosas inanimadas, adecuada a su forma y que a través de ésta se expresa (Kant apud Aumont, 1998, p.196).

As palavras de Kant contribuem para a discussão que propomos aqui, na medida em que corroboram a relação entre poesia e pintura como base em uma prática mimética, que tomaria como ponto de partida o real – este pode ser apreendido, de um lado, a partir de paradigmas religioso ou científico e, por outro lado, pode ser apreendido também em sua aparência sensível ou transfigurada imageticamente. Observamos, então, que mimetizar o real sempre foi uma das tarefas da arte. Todavia, não queremos, aqui, compactuar com a teoria que procurava definir o termo “arte” centrada, exclusivamente, na imitação, ou, como denomina George Dickie “la théorie de l’imitation”, pois, de acordo com o autor, esta “concentra-se em uma propriedade relacional manifesta entre as obras de arte, a saber, a relação existente entre arte e o assunto tratado” (Dickie, 1992, p.10), mais adiante, Dickie ressaltará que o


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desenvolvimento da arte não figurativa tem mostrado a imitação não ocorre hoje em dia em concomitância à arte, e ainda menos uma propriedade essencial” (Dickie, 1992, p.10). Seguindo o raciocínio aberto pelas palavras de Dickie, podemos pensar, então, que, tanto no plano da estética como no plano dos estudos comparativos entre as artes, instaura-se uma problemática relativa à representação. De um lado, podemos registrar que a noção/ideia de mimesis foi, ao longo dos séculos, reduzida à simples noção de cópia ou representação/figuração mais ou menos fiel do mundo empírico. Todavia, essa noção de mimesis começou a ser combatida pelos artistas, a partir do momento em que a arte começa a se afastar do ideal realista ou da arte figurativa de um modo geral. Assim, (...) quando a obra de arte começa a libertar-se da tarefa de registrar, de representar, a realidade exterior a ela mesma e volta-se para seus próprios elementos constitutivos, buscando realizar-se como objeto autônomo e auto-reflexivo, a negação do caráter mimético como essencial à arte domina progressivamente o pensamento filosófico (Squeff, 2003, p.100).

Nesse contexto, podemos recorrer a Giulio C. Argan quando registra que o fato que separa “nitidamente, com um autêntico salto qualitativo, a arte do nosso século de toda a arte do passado, pelo menos na área da cultura ocidental, é a passagem do carácter figurativo ao não figurativo, ou como é corrente dizer-se, à abstracção” (Argan, 1995, p.105). Pensamos que a pintura abstrata coloca em discussão, de maneira singular, menos a questão da figurativização, mas sim, seu próprio médium pictórico, ou seja, o objetivo da arte abstrata é tornar “(...) visível não a relação entre o objeto pictórico e as coisas do mundo, mas as possibilidades de codificação de seu próprio código, a sua realidade plástica” (Oliveira, 2004, p.117). Com isso, assistimos, por parte dos pintores, à uma reflexão mais sistemática de seu oficio, de seu trabalho, reflexão esta que será transposta para a superfície da tela, ou melhor, a reflexão sobre a pintura será, agora, tema para os pintores. Diante disso, veremos que “os pintores se lançam numa busca não mais de recobrir a tela através das ilusões óticas para, por exemplo, conseguir na sua inerente bidimensionalidade, a tridimensionalidade do mundo natural, mas de descobri-la na sua planitude, plano sob plano, plano no plano” (Oliveira, 2004, p.117). Com isso, se anteriormente pensava-se na pintura como espelho a representar o real, essa ideia não é mais sustentada, principalmente se pensarmos na arte moderna e na pintura denominada abstrata, na medida em que estarão dispostas na tela as reflexões sobre questões técnicas, tais como, a estruturação geométrica e a estruturação cromática, responsáveis por


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fazer leitor/espectador a ver em perspectiva e em profundidade. Acontecerá, então, de a pintura sensibilizar (...) o olho a perceber na dimensão de sua materialidade  seus suportes, suas pinceladas, as granulações das tintas, a inserção de outros componentes na composição dessas, o gesto de inscrição ou não do pintor, enfim, nos constituintes de sua corporeidade física  o que até então não era visível. Diante dessa pintura, o olho é forçado a encontrar por si mesmo, pelo sensível, um tratamento processual do visível através do qual ele elabora a sua significação, que, de uma vez por todas, é fruto de sua re-construção (Oliveira, 2004, p.117).

As Artes Plásticas livram-se dessa dependência com relação à representação do objeto, mas podem ser lidas também como um prenúncio daquilo à que viria se tornar, nos nossos dias, a arte abstrata, pois, os artistas deram-se conta dessa dependência, passando a se questionar acerca do figurativo e do não-figurativo, e constataram que “a presença ou ausência de uma imagem reconhecível não tem mais nada a ver com o valor na pintura ou na escultura do que a presença de um libretto tem a ver com o valor da música” (Greenberg, 1989, p.144). Essa afirmação lembra-nos um comentário de Wassily Kandinsky, que, certo dia, ao chegar em casa, viu na parede (...) um quadro de extraordinária beleza, brilhando com uma luz interior. Fiquei paralisado, depois me aproximei desse quadro-mistério onde só via formas e cores e cujo teor me era incompreensível. Encontrei rapidamente a chave do mistério: era um quadro meu, que tinha sido dependurado ao contrário. (...) Soube, então, expressamente que os “objetos” eram prejudiciais a minha pintura (Kandinky apud Compagnon, 1996, p. 66).

As artes em geral libertaram-se, de certa forma, da dependência da representação do objeto, tanto na pintura quanto na literatura. Pode-se dizer, inclusive, que tudo se passa como se o abandono, compactuado pelas diferentes artes, da representação do objeto, tivesse liberado em cada uma delas um potencial de originalidade artística que não teria ocorrido sem essa liberação coletiva, posto que, ao desvencilhar-se da representação fiel do real, a arte desloca seu foco de atenção menos para os fins e muito mais para seus próprios meios. Com isso, “avec Kandinsky et Mondrian, la peinture cessait d’être “au service” d’une mimèsis et passait d’une fonction “representative” à une fonction “presentative”, mais elle ne faisat de la sorte que s’émanciper, et donc s’accomplier glorieusement en se recentrant, comme le proclamera à peu prés Clement Greenberg, sur son “essence” – ce qui suppose que l’essence d’un art consiste dans ses moyens plutôt que dans sa fin” (Genette, 2002, p.243).


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Nesse sentido, pode-se evocar a epígrafe de Água viva, de Clarice Lispector, que sintetiza o sentimento da necessidade de libertar-se da dependência do objeto. A epígrafe é de Michel Seuphor: Tinha que existir uma pintura totalmente livre da dependência da figura — o objeto — que, como a música, não ilustra coisa alguma, não conta uma história e não lança um mito. Tal pintura contenta-se em evocar os reinos incomunicáveis do espírito, onde o sonho se torna pensamento, onde o traço se torna existência (Seuphor apud Lispector, 1980. Epígrafe).

A epígrafe de Água viva pode ser tomada aqui como um comentário sobre todas as manifestações da arte moderna e mais precisamente das artes não figurativas, que tendiam para o abstracionismo, pois, estas são marcadas por essa liberdade frente à representação do objeto. Por outro lado, a Literatura também se desvencilha da necessidade (ou imposição) de representação fiel do real, para voltar-se a si mesma. Com isso, distanciando-se da tradição de fundo realista, o que vemos, hoje, é que a própria linguagem é colocada em cena, o que resulta em textos que, longe de procurarem “representar o real” voltam-se para a discussão acerca da linguagem. Em outras palavras, “é exatamente a linguagem, tornando-se, por sua vez, a protagonista dessa festa um pouco misteriosa, que se substitui ao real, como se fosse necessário, ainda assim, um real. E, na verdade, salvo se reduzirmos toda a linguagem a onomatopéias, em que sentido ela pode copiar? Tudo o que a linguagem pode imitar é a linguagem: isso parece evidente” (Compagnon, 1999, p.97). Ou seja, hoje (...) é fácil perceber uma nova evocação da realidade nas tendências expressivas da literatura e das artes, que procuram criar efeitos de realidade na transgressão nos limites representativos do realismo histórico. Tanto na literatura quanto nas artes visuais, assistimos a uma preocupação de se colocar a referencialidade na ordem do dia, abrindo caminho para um novo tipo de realismo que, em vez de seguir o cânone mimético do realismo histórico, nos moldes do cientificismo positivista, procura realizar o aspecto performático da linguagem literária, destacando o efeito afetivo da questão representativa (Compagnon, 1999, p. 97).

A passagem acima corrobora, uma vez mais, a ideia de Genette segundo a qual os meios, para a arte moderna e contemporânea, são tão importantes quanto os fins. Acreditamos, então, que essa mudança no paradigma artístico, no sentido de centrar-se nos meios de cada arte, caminha em direção ao abandono da mimesis e ao encontro da semioses. Em outras palavras, se as diferentes artes voltam-se agora à reflexão sobre si mesmas, promovendo discussões técnicas e metodológicas, com isso haverá trocas e intercâmbios entre


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artes distintas, vemos, contudo, que essa correspondência interartística manifesta-se, não apenas no plano teórico, mas, principalmente, de forma prática. A reflexão, ao longo da pesquisa interartística, que vise a analisar os caminhos percorridos pela Literatura e pela Pintura de uma tradição mimética a um produtivo processo de semiose, ou seja, um processo ou uma rede de significação, no qual se entrecruzam diferentes linguagens, sujeitos, meios e materiais, deve considerar, então, as batalhas que ambas as artes travaram em nome dessa nova situação. Se a literatura, de um lado, precisou desvencilhar-se da forma narrativa do romance tradicional, no qual o enredo desempenhava papel central, a pintura, por outro lado, travou uma acirrada batalha no sentido de libertar-se dos ditames da ilusão da terceira dimensão, por meio da perspectiva. Assim, Tendo como procedimento próprio a analogia, alguns ingredientes, tais como a simultaneidade dos elementos e a concomitância da apresentação visual, fizeram-lhe cristalizar os estatutos de uma arte espacial. Mas quanto mais a pintura foi se distanciando da fotografia e se impondo como linguagem, mais foi se definindo como uma forma de manifestação capaz de trazer na sua esfera de sentidos a temporalidade. Isso não significa que a arte plástica clássica já não contivesse em suas relações planares as marcas do tempo. Porém, é com a arte moderna, descompromissada com a normatização mimética, que os filamentos do tempo vãose plasmar de modo mais intenso, mais eficaz, pela própria evolução de linguagem (Gonçalves, 2004, p. 31-32).

A passagem acima pode ser tomada como uma emblemática da Arte Moderna, no sentido em que aponta, de um lado, para a libertação mimética sofrida pela pintura, análoga àquela empreendida pela literatura, por outro lado, a afirmação de Aguinaldo Gonçalves traz para o plano da discussão a antiga oposição entre Literatura e Pintura baseada, principalmente, na ideia de que esta seria uma arte do Espaço, enquanto aquela estaria relacionada ao tempo. Tal noção norteou, durante muito tempo, as pesquisa interartística, tendo sido, inclusive, empregada para melhor se atestar a divisão entre as artes. Todavia, ao recorrer, não apenas às Artes Modernas, mas, também, aos próprios escritos dos artistas, vemos que essa divisão não se sustenta mais, na medida em que a Literatura pode ser, também, uma arte do espaço e, por outro lado, a Pintura pode relacionar-se ao Tempo. Para melhor exemplificarmos esse estado de obliteração de limites no qual se encontra inserida a Arte Moderna, podemos recorrer a Paul Klee que, com lucidez teórica posiciona-se diante das teses defendidas por Lessing em Laokoon ou sobre os limites da poesia e da pintura, principalmente quando este escritor germânico radicaliza as determinações entre tempo e espaço na poesia e na pintura, respectivamente –, assim se pronuncia Klee:


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 49 Todo acontecimento descansa no movimento. No Laokoon, Lessing confere suma importância à diferença entre arte do tempo e arte do espaço. Porém, observando melhor, isso não é mais que uma sábia ilusão. O espaço também é uma ilusão temporal. A fator tempo intervém tão logo um ponto entre em movimento e se converta em linha. O mesmo ocorre quando uma linha engendra, ao deslocar-se, uma superfície. O mesmo se dá a respeito do movimento que leva das superfícies aos espaços. Por acaso . . . um quadro nasce de modo súbito? ... O espectador percorre de uma só vez toda a obra? (Muitas vezes sim, ah!)... No universo o movimento se dá a tudo, previamente. A “paz na terra” é uma acidental detenção do movimento da matéria . . . Também no espectador, a principal atividade é temporal. O olho se constrói, pois, de modo que a cavidade ocular se sustente de trechos sucessivos. Para ajustar-se a um novo fragmento, deve abandonar o fragmento anterior. A obra plástica apresenta o profano inconveniente de não se saber por onde começar, porém o aficcionado possui a vantagem de poder variar de modo abundante a ordem de leitura e tomar consciência, assim, da multiplicidade de suas significações (Klee apud Gonçalves, 2004, p.32).

Assim, a nossa atitude de recorrer à reflexão teórica de Paul Klee para discutir a divisão entre artes temporais e as artes espaciais harmoniza-se, de certa maneira, com a análise que Michel Foucault faz deste pintor, pois, como bem assinala o filosofo francês, Klee é um dos mais férteis representantes do princípio da conjunção entre a representação plástica (que implica semelhança) e representação linguística (que implica diferença) dos tempos modernos. Pensamos, então, que Paul Klee, assim como Virginia Woolf, revitaliza uma dialética em que se inter-relacionam ato criador, obra e decodificação, de maneira a ampliar o universo artístico dentro de um grau de compreensão não dos limites, mas da especificidade de cada arte, atestando, dessa forma, a mobilidade entre as fronteiras interartísticas. Logo, Conduzidas por essa idéia de mobilidade, as posições do pintor, escritas tantos anos atrás, já subvertiam, sabiamente, argumentações de alguns críticos da atualidade que ainda se mantêm numa postura antiquada ao tratarem tais questões. O seu pensamento nos atinge como portas que se abrem, como espaços que podem ser compostos na direção do novo. São aberturas que não podem ser confundidas com facilidades; pelo contrário, abrem-se portas para o desamparo, quer do pintor quer do poeta ou do músico, para a difícil e até mesmo dolorosa viagem da criação (Gonçalves, 2004, p.33).

Podemos, inclusive, complementar as palavras de Aguinaldo José Gonçalves e pontuar que, hoje, a viagem pela criação implica uma viagem pelos processos de significação também, a arte moderna volta-se agora a um incessante trabalho de semioses, onde os signos se intercambiam, se modificam, se permitem ver em metamorfose. Esse é, então, o percurso que tínhamos em mente quando intitulamos essa parte de nosso trabalho “Da Mimesis à Semioses”. Encontramo-nos, então, diante de um movimento, complexo, que (...) diz respeito à apropriação, pela literatura, dos procedimentos inerentes a outros sistemas de significação e atua, dessa forma, no âmago das transformações ocorridas


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 50 na história das formas literárias. Não se trata de mera adaptação do poético ou do ficcional para outras linguagens. Trata-se, agora, da própria alteração da linguagem poética ou ficcional a partir do contato com sistemas sígnicos aparentemente distantes. Em lugar da tradução de uma integridade significante para outra, o que se tem é a própria literatura deixando-se banhar pelo universo não-verbal e, com isso, fazendo a crítica de sua própria linguagem (Duarte, 1999, p.56).

Neste ponto, recorremos ao título de um dos ensaios de Virginia Woolf “O Leitor Comum”, para registrar que Virginia Woolf fora uma voraz leitora dos clássicos e dos modernos, leitora dos maiores e dos menores, soube imprimir a mesma argúcia crítica à leitura dos outros sistemas semióticos, como da pintura, da música, do teatro e do cinema. A escritora inglesa parece ter compreendido a profunda homologia que se estabelece entre os vários sistemas, fazendo que convergissem para o meio expressivo de que se valeu: a literatura. Nesse sentido, acreditamos que o contato com outros sistemas semióticos permitiu a Virginia Woolf ampliar e modificar os procedimentos expressivos que lhe são próprios, na produção de uma arte verbal, capaz de dialogar, o tempo todo, com as demais artes, no fluxo ininterrupto de sua narrativa. Aqui, recorremos, ao verbete Texte, escrito por Roland Barthes para a Encyclopédie Universalis, que de forma precisa traduz o trabalho com a linguagem empreendido por Virginia Woolf. De acordo com Barthes, “O texto é uma prática significante, privilegiado pela semiologia porque o trabalho por meio do qual ele é produzido promove o reencontro exemplar entre a língua e o sujeito, eis a função do texto, teatralizar qualquer tipo de trabalho. O que é uma prática significante?” (Barthes, 1999, p. 998) O que gostaríamos de ressaltar, tendo a atenção voltada para a reflexão barthesiana, é o fato de o texto ser entendido como uma prática significante, com isso, pensamos que, no processo de significação, outros signos, para além dos signos verbais, serão colocados em ação. O que vemos, então, é que no processo de produção textual – e a noção de texto com a qual operamos ao longo desse trabalho não está circunscrita apenas ao texto escrito – os diferentes sistemas semióticos irão trabalhar em conjunto. Vale aqui registrar a passagem na qual Julia Kristeva pretende discorrer acerca do papel a ser desempenhado pela Semiótica, pois, de acordo com a crítica e teórica francesa (...) num movimento decisivo de auto-análise, o discurso (científico) orienta-se, hoje, para as linguagens para extrair seus (delas/dele) modelos. Em outros termos, já que a prática social (isto é, a economia, os costumes, a arte etc.) é considerada um sistema significante estruturado como uma linguagem, toda prática pode ser cientificamente estudada enquanto modelo secundário em relação à língua natural, velada sobre essa língua e modelando-a. É nesse ponto exatamente que a semiótica se articula, ou melhor, atualmente se procura”(Kristeva, 2005, p. 31).


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Nesse sentido, entendemos que as artes, em geral, estarão em um nível semiótico, que é o nível de axiomatização (da formalização) dos sistemas significantes, como sugere Julia Kristeva. Assim, ao revisitarmos a tradição horaciana do ut pictura poesis, pretendemos demonstrar que muitas vezes, quando se procedia à comparação entre as artes, a balança pendia para o lado de um dos termos da comparação. Ora a Literatura era o termo essencial da comparação, ora a Pintura ocupava tal lugar. Simultaneamente à demonstração de como aconteciam aquelas comparações, nós intentamos reconstruí-las por meio de um olhar contemporâneo. Esse olhar promoveu a interlocução entre passado e presente, demonstrando que algumas das teorias utilizadas ao longo dos estudos analógicos entre Literatura e Pintura, permanecem atuais e servem, muitas vezes, como aporte aos contemporâneos estudos comparativos entre as artes, como é o caso, por exemplo, do binômio Mimesis/Semiosis. Há ainda teorias que comumente foram empregadas nas comparações entre as diferentes artes, mas que mostram-se hoje ultrapassadas. O nosso olhar crítico pretendeu mostrar que apesar de ultrapassadas, essas teorias marcaram, ou pelo menos, abriram o caminho para a crítica de arte exercida nos últimos tempos. REFERÊNCIAS Aumont, Jacques,1998. La estética hoy. Madrid: Cátedra. Argan, Giulio Carlo, 1995. Arte e crítica de arte. [Trad. Helena Gubertis]. Lisboa: Editorial Estampa. Barthes, Roland, 1996. "Verbete Texte", in Encyclopaedia universalis : universalia 1996. Paris: Encyclopaedia Universalis. Compagnon, Antoine, 1996. Os cinco paradoxos da modernidade. [Trad. Cleonice P.B. Mourão; Consuelo F. Santiago; Eunice D. Galéry]. Belo Horizonte: Ed. UFMG. ______. 1999. O demônio da teoria: Literatura e senso comum. Belo Horizonte: Ed. UFMG. Dickie, George, 1992. “Définir l’art”, in Genette, Gérard (Org.). Esthétique et poétique. Paris: Éditions du Seuil. Didi-Huberman, Georges, 2005. Gestes d’air et de Pierre: corps, parole, soufflé, image. Paris: Les Éditions de Minuit. Duarte, Eduardo de Assis, 1999. “Literatura e outros sistemas semióticos”, in Vasconcelos, Maurício Salles & Coelho, Haydée Ribeiro (Orgs.). 1000 rastros rápidos – cultura e milênio. Belo Horizonte: Autêntica. Fry, Roger. Visão e forma,2002. [Trad. Claudio Marcondes]. São Paulo: Cosac & Naify. Genette, Gérard, 2002. Figures V. Paris: Seuil. Gonçalves, José Aguinaldo, 2004. Museu movente: o signo da arte em Marcel Proust. São Paulo: Ed. UNESP.


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LITERATURA ESCRITA INDÍGENA: DO MITO À HISTÓRIA OU DA HISTÓRIA AO MITO? Érika Bergamasco Guesse1 Resumo: O presente trabalho tem por objetivo apresentar brevemente algumas considerações acerca das relações entre História e mito, através da oposição das concepções de mundo do homem arcaico – também chamado de “primitivo” –, e do homem “moderno” ou histórico. Pretendemos mostrar como essas relações ocorrem no contexto da cultura indígena e como se refletem em suas manifestações literárias contemporâneas. Para isso, apresentaremos como a literatura escrita indígena tem se configurado no Brasil; faremos um estudo da teoria do “eterno retorno” do autor Mircea Eliade e mostraremos como ela se relaciona aos textos indígenas. Palavras-chave: História; mito; literatura indígena. WRITTEN INDIGENOUS LITERATURE: FROM MYTH TO HISTORY OR FROM HISTORY TO MYTH? Abstract: This paper aims to briefly present some considerations about the relationship between history and myth, through the opposition of views on the world of archaic man - also called "primitive" - and "modern" man, or historical. We intend to show how these relationships occur in the context of indigenous culture and how it is reflected in its manifestations of contemporary literature. For this, we will present how the indigenous writen literature has been set in Brazil; we will study the theory of "eternal return" of the author Mircea Eliade and show how it relates to indigenous texts. Keywords: History; myth; indigenous literature.

INTRODUÇÃO:

Depois de muito refletir acerca das envolventes e complexas relações entre Literatura e História, decidi me aventurar a pensar como ocorrem as relações entre a História e o mito, principalmente no contexto da cultura indígena e de seu “movimento literário”, que tem se delineado de forma ainda acanhada, mas ao mesmo tempo firme, no cenário cultural e literário brasileiros.

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Aluna regular do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários (Doutorado) da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – Campus Araraquara/SP, sob orientação da Profª Drª Karin Volobuef; bolsista FAPESP. Email: kasinhaguesse@hotmail.com.


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Sendo assim, o presente trabalho está organizado de forma a desenvolver três tópicos. Tendo em vista que a literatura escrita indígena não é tema recorrente nos meios acadêmicos, principalmente na Região Sudeste do Brasil – da qual fazemos parte –, o primeiro tópico apresentará um panorama geral dessa escrita indígena, mostrando de que modo esse processo tem se configurado em nosso país. Essa contextualização faz-se necessária para que possamos entender, posteriormente, como a relação entre História/ mito se reflete nesses textos. O segundo tópico abordará diretamente as relações existentes entre a História e o mito, tendo como base teórica os estudos do autor Mircea Eliade, que opõe as concepções de mundo do homem primitivo/ mítico às do homem moderno/ histórico. Por fim, o último tópico tratará da forma como podemos vislumbrar essas concepções opostas e essas relações na cultura indígena, principalmente em suas manifestações literárias contemporâneas. Como essas reflexões, pesquisas e estudos estão, para mim, ainda numa fase inicial, o que apresentarei neste trabalho são, por enquanto, apenas impressões pessoais, baseadas em leituras e interpretação de teorias. Os estudos voltados à escrita/ literatura indígena e sua ligação com as teorias literárias “oficiais” e solidificadas ainda são veio acadêmico pouco explorado; por isso, aqueles que se dispõem a se dedicar a essa linha de pesquisa são, antes de tudo, experimentadores e desbravadores de um longo caminho a ser trilhado.

1. DA ESCRITA À LITERATURA: OS ÍNDIOS AUTORES

De acordo com Souza (2003), a constituição brasileira de 1988 reconheceu oficialmente a existência de línguas indígenas no Brasil e, como conseqüência disso, a partir da década de 90, escolas indígenas diferenciadas começaram a ser criadas em nosso país. Com a criação dessas escolas, algumas personagens, antes inexistentes, começaram a atuar no cenário educacional brasileiro. Professores indígenas passaram a ser formados e a lecionar nessas escolas para um público discente composto em sua grande maioria (quando não em sua totalidade) por indígenas. Dessa maneira, um material didático também diferenciado se fez necessário. Nesse contexto, além de aprenderem ou aprimorarem o domínio do língua portuguesa escrita, muitas tribos indígenas, anteriormente ágrafas, intensificaram o processo de construção de sistemas alfabéticos escritos de suas próprias línguas de origem.


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 55 Alguns estudiosos definem a escrita como parte do comportamento comunicativo humano de transmitir e trocar informações; ou seja, a escrita pode ser vista como uma forma de interação pela qual uma ação das mãos (com ou sem instrumento) deixa traços numa superfície qualquer; nesse sentido, a escrita pode ser concebida como uma forma não apenas alfabética para representar idéias, valores ou eventos. Entendido assim, a escrita sempre esteve presente nas culturas indígenas no Brasil na forma de grafismos feitos em cerâmica, tecidos, utensílios de madeira, cestaria e tatuagens. Por outro lado, a escrita propriamente alfabética, registrando no papel a fala e o som, foi introduzida no Brasil pela colonização européia, e desde o século XVI está presente de formas variadas nas comunidades indígenas; porém, foi apenas nas duas últimas décadas que surgiu o que pode ser chamado de fenômeno da escrita indígena no sentido do aparecimento de um conjunto de textos alfabéticos escritos por autores indígenas (Souza, s.d., on-line).

No Brasil, existem cerca de 1500 escolas indígenas diferenciadas e também algo em torno de 3200 professores índios, segundo Almeida e Queiroz (2004, p. 196). São esses professores que assumiram primordialmente a confecção de seus próprios materiais didáticos, fazendo com que suas histórias, cantos, mitos e poesias passassem do âmbito da oralidade para o âmbito da escrita. Naturalmente, vale ressaltar que, ao escreverem suas narrativas, os indígenas deixam de lado toda a complexidade do processo performativo de narrar oralmente, mas outras características da oralidade, como a repetição, a condensação dos enredos, as expressões que marcam o início e fim das histórias, a informalidade e coloquialidade da linguagem ainda são preservadas. Antes, toda contribuição cultural indígena era coletada, selecionada, modificada e registrada pelos brancos; certamente, essa intermediação fazia com que muito da originalidade das narrativas fosse perdida. A figura do índio era vista apenas como personagem das histórias dos brancos ou os brancos se posicionavam como “donos”/ autores das histórias dos índios. O que tem acontecido nas últimas décadas é que os próprios indígenas têm assumido a voz narrativa, tornando-se sujeitos, autores/ criadores de seu legado cultural escrito. Nesse processo de escrita indígena, vários são os envolvidos. Os narradores, na grande maioria dos casos, são os índios mais velhos – considerados mais sábios –, que narram as histórias de seus antepassados aos indígenas mais novos, que assumem, então, o papel de coletores (função essa ocupada anteriormente por brancos, principalmente antropólogos). O papel do escritor, diferentemente da tradição ocidental, não é de apenas um indivíduo, mas sim de um grupo – geralmente de professores – que, junto dos brancos ou não, discutem a


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escrita das histórias e compõem em conjunto os textos. Já os processos de editoração e publicação estão designados aos brancos e têm o apoio financeiro de instituições governamentais, já que os indígenas não possuem meios financeiros ou práticos/ instrumentais para assumirem completamente suas produções escritas. Por fim, os leitores são compostos em maior escala pelos indígenas, principalmente os alunos das escolas diferenciadas, mas também em menor escala pelos brancos. As produções indígenas são escritas tanto em suas línguas de origem quanto em língua portuguesa. Há livros que utilizam apenas a língua indígena; outros, apenas o português; outros ainda que apresentam as narrativas na língua indígena e traduzidas para o português, e, por fim, aqueles que apresentam duas versões (e não traduções) das histórias, uma na língua indígena e outra em língua portuguesa. O que podemos verificar nesse processo é que a língua do branco, utilizada anteriormente como instrumento de dominação e manipulação de saberes, passa agora para o domínio escrito do índio. O que antes era uma “arma” contra passa agora a ser uma “arma” favorável ao indígena, uma ferramenta que possibilita sua expressão imaginativa, comunicativa e também um instrumento político para a divulgação e valorização de sua cultura, seus costumes e, acima de tudo, de seus direitos.

A escrita é uma técnica. É preciso dominar esta técnica com perfeição para poder utilizá-la a favor da gente indígena. Técnica não é negação do que se é. Ao contrário, é afirmação de competência. É demonstração de capacidade de transformar a memória em identidade, pois ela reafirma o Ser na medida em que precisa adentrar o universo mítico para dar-se a conhecer o outro. [...] Há um fio tênue entre oralidade e escrita, disso não se duvida. Alguns querem transformar este fio numa ruptura. Prefiro pensar numa complementação. Não se pode achar que a memória não se atualiza. É preciso notar que ela – a memória – está buscando dominar novas tecnologias para se manter viva. A escrita é uma dessas técnicas... (Munduruku, 2008).

O que gostaria de salientar é que essa produção escrita indígena tem se configurado como um novo movimento literário. Mesmo que esse processo venha ocorrendo ainda de forma tímida e pouco visível, vários estudiosos acadêmicos têm se dedicado a analisar e compreender essa recente expressão literária, como as professoras Maria Inês de Almeida e Sônia Queiroz, ambas docentes e pesquisadoras da Universidade Federal de Minas Gerais. Veremos, a seguir, algumas de suas considerações sobre a escrita/ literatura indígena no Brasil.


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 57 Assistimos atualmente a uma espécie de eclosão do que nomeio a priori uma literatura indígena no Brasil, que, a meu ver, configura um movimento literário, na medida em que pode ser observado nos seus aspectos coerentes, como um grande texto que se dá a ler. Seus escritores representam uma população de cerca de 350.000 indivíduos, falantes de aproximadamente 180 línguas diferentes, além do português, e habitam desde a fronteira brasileira com a Venezuela até a fronteira com o Uruguai (Almeida e Queiroz, 2004, p. 195).

As autoras afirmam que as produções escritas indígenas brasileiras concentram-se na Região Norte, havendo, assim, um deslocamento do centro; devido a isso, os próprios índios denominam seus livros de “os livros da floresta”. Esse produto final – o livro – é resultado de um processo de editoração e aí estaria sua pertinência para os estudos literários, a partir do momento em que se assume um conceito mais pragmático de literatura. Para as autoras “os textos indígenas despolarizam, até quase a dissolução, os parâmetros canônicos, deixando a descoberto a teoria literária baseada na tradição escrita” (Almeida e Queiroz, 2004, p. 198). Nesses textos podem ser percebidos os marcadores da tradição oral de cada povo e também a potência do diálogo formal com a contemporaneidade artística.

A representação, o estilo, a escritura, esses mesmos conceitos que permearam toda a existência da literatura no Ocidente, ainda que intensamente questionados pelas teorias que regem os estudos literários na contemporaneidade, estão na base de uma investigação que pretende trazer para o campo da literatura uma produção que tem sido normalmente objeto de estudo das ciências sociais (Almeida e Queiroz, 2004, p. 203).

A grande novidade das comunidades indígenas reinseridas na cultura brasileira é que agora é possível colocar sua palavra em circulação independentemente de sua presença corporal. Até então, o que o vinha ocorrendo com a literatura indígena era apenas um processo de folclorização (Almeida e Queiroz, 2004, p. 205), com o intuito do ocultá-la. O uso dos mitos indígenas nas escolas regulares é um exemplo disso; suas entidades míticas são vistas como personagens folclóricas, desespiritualizadas. A partir do momento em que os próprios índios escrevem seus mitos como literatura, essas entidades se reespiritualizam. Segundo as autoras, essa nova prática escritural indígena se reveste de um caráter literário na medida em que vai sendo publicada, lida, transitando de um público a outro, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade. Dessa maneira, os índios estariam reivindicando, hoje, seu espaço na sociedade brasileira também sob o aspecto literário, já que, historicamente, toda a matéria literária indígena teria sido expropriada por outros discursos – como veremos mais


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adiante –, não permitindo que a prática de sua literatura se configurasse e solidificasse anteriormente (Almeida e Queiroz, 2004, p. 209). 2. DO MITO À HISTÓRIA: A TEORIA DO “ETERNO RETORNO”

Antes de pensarmos nas relações entre História e mito na literatura escrita indígena, apresentaremos algumas considerações do autor Mircea Eliade, contidas em sua célebre obra O Mito do Eterno Retorno, de 1969. Esses estudos servirão como base para as reflexões que desenvolveremos no próximo tópico. Já na introdução da obra, Eliade salienta que pretende investigar as concepções das sociedades primitivas que não aceitam o tempo histórico, sem regulamentação arquetípica, preferindo retomar o tempo mítico das origens. Segundo o autor (1984, p. 19), o homem arcaico só conhece e reconhece atos de comportamento que já foram feitos antes, num tempo primordial, por um outro que não era um homem comum – deuses, heróis ou antepassados. Assim, a vida do homem primitivo é uma constante repetição dos gestos fundadores, ou seja, a realidade sempre retoma uma ação primordial, constituindo-se como a imitação de um arquétipo celeste. Nesse sentido, o símbolo, o mito e o rito exprimem esse complexo sistema da realidade das coisas. Desta maneira, todo o mundo que nos rodeia, com a presença e as obras do homem, tem um modelo celeste, extraterrestre; o mundo – as cidades, os templos, as casas, as montanhas, os rios, os campos... – é, portanto, uma réplica, uma realidade duplicada, baseada num modelo arquetípico. Já os territórios desabitados, inexplorados, como as regiões desérticas, por exemplo, são marcados pelo caos. São necessárias a conquista e a posse, imitações do ato mítico da criação, para que esses lugares se tornem reais e sejam transformados de caos em cosmos (Eliade, 1984, p. 25). Outra concepção importante para o homem arcaico é o simbolismo do “Centro”. Segundo o autor, o “inferno, o centro da terra e a ‘porta’ do céu encontram-se portanto no mesmo eixo, e é esse eixo que serve de passagem de uma região cósmica para outra” (1984, p. 27). Neste contexto, o Céu e a Terra encontrar-se-iam no centro do Mundo, onde estaria a Montanha Sagrada. Por extensão, qualquer cidade, templo ou residência sagrada ocuparia o lugar da Montanha e estaria, por sua vez, no centro do Mundo, fazendo a ligação entre Céu, Terra e Inferno. Vale salientar que esse simbolismo sobreviveu nas concepções ocidentais até ao limiar dos tempos modernos; templos que representam a essência do Universo e são


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considerados o centro do Mundo são freqüentes na arquitetura sagrada da Europa cristã (Eliade, 1984, p. 32). Ao construir seus templos, moradias e cidades nos “centros do mundo”, o homem repete o ato cosmogônico, ou seja, a passagem do Caos ao Cosmos. Desta forma, o homem arcaico não só retoma o ritual realizado pela primeira vez por um deus, um antepassado ou um herói, como também o tempo sagrado do princípio em que esse ritual aconteceu. (Eliade, 1984, p. 35). Podemos perceber que, para os primitivos, não só o comportamento ou as construções do mundo tem um modelo extra-humano, o ritual também o tem. Assim, posteriormente, do ritual surge o mito – que o justifica – enquanto forma; no entanto, “seu conteúdo é arcaico e refere-se a sacramentos, isto é, a actos que pressupõem uma realidade absoluta, extra-humana (Eliade, 1984, p. 42)”. Deve ficar claro que, para as sociedades primitivas, todas as atividades com uma finalidade definida, qualquer ação com um significado determinado, participam do sagrado e constituem um ritual, já que possuem um modelo exemplar. Dentre essas atividades de significado mítico estão a dança, as guerras, a cerimônia da sagração de um rei, as construções, a caça, a pesca, a sexualidade, a agricultura. Todas essas ações foram reveladas por um deus ou herói no tempo da origem e são apenas repetidas até ao infinito pelos homens (Eliade, 1984, p. 47). Nas sociedades modernas, essas ações passaram por um longo processo de dessacralização e se transformaram em atividades profanas, ou seja, destituídas de valor arquetípico. Diz Eliade sobre a concepção ontológica primitiva:

[...] um objecto ou uma acção só se tornam reais na medida em que imitam ou repelem um arquétipo. Assim, a realidade só é atingida pela repetição ou pela participação; tudo o que não possui um modelo exemplar é “desprovido de sentido”, isto é, não possui realidade. Os homens teriam então tendência para se tornarem arquetípicos e paradigmáticos. Esta tendência pode parecer paradoxal, no sentido de que o homem das culturas tradicionais só se reconhece como real na medida em que deixa de ser ele próprio (para um observador moderno) e se contenta em imitar e repetir os gestos de um outro. Por outras palavras, ele só se reconhece como real, isto é, como “verdadeiramente ele próprio”, na medida em que deixa precisamente de o ser. (Eliade, 1984, p. 49).

A partir dessa concepção, vamos refletir o que acontece em relação ao tempo. Quando o homem arcaico repete um arquétipo, o tempo profano, cronológico, histórico é abolido e aquele que imita o ato exemplar é transportado ao tempo mítico em que esse gesto foi


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revelado pela primeira vez. Essa abolição do tempo profano ocorre nos momentos dos rituais ou das ações consideradas sagradas (alimentação, caça, pesca, guerra, dança,...). O tempo restante é desprovido do significado primordial. Por isso, podemos dizer, de acordo com afirmações de Eliade (1984, p. 51), que o homem primitivo não aceita bem a história e se esforça para aboli-la periodicamente. Neste momento de nossa reflexão, o que concluímos previamente é que uma visão mítica do mundo e uma visão histórica se relacionam apenas por oposição. No entanto, outras relações nos são apresentadas nos estudos de Eliade. Segundo ele (1984, p. 52), quando a tradição ainda faz parte da concepção de mundo dos homens, os grandes soberanos da História consideram-se imitadores dos heróis primordiais; assim ocorreria o processo de transfiguração da História em mito, através do qual personagens históricas se transfigurariam em personagens míticas. Neste caso estaríamos diante da “concepção de uma elite que interpreta a história através de um mito” (Eliade, 1984, p. 53). O que o autor defende é que uma personagem histórica só se mantém “viva” na memória popular e inspira a imaginação poética na medida em que se aproxima e se identifica com um modelo mítico; a personagem histórica se metamorfoseia em herói mítico. Sendo assim, a memória coletiva seria a-histórica:

[...] a recordação de um acontecimento histórico ou de um personagem autêntico não perdura por mais de dois ou três séculos na memória popular. Isso deve-se ao facto de a memória popular ter dificuldade em reter acontecimentos “individuais” e figuras “autênticas”. Ela recorre a outras estruturas: categorias em vez de acontecimentos, arquétipos em vez de personagens históricas. A personagem histórica é assimilada ao modelo mítico (herói, etc) e o acontecimento é integrado na categoria das ações míticas (luta contra um monstro, combate entre irmãos, etc.). Mesmo quando alguns poemas épicos conservam o que se pode chamar “verdade histórica”, essa “verdade” não diz quase nunca respeito a personagens e acontecimentos determinados, mas a instituições, costumes, paisagens. (Eliade, 1984, p. 58).

Vemos, então, que não apenas a personagem histórica se transfigura em personagem mítica, mas um acontecimento histórico também pode se transformar em um mito; o acontecimento é despojado de sua verdade histórica, pois o fato era, em si, insuficiente, e transforma-se em lenda. O mito torna-se mais verdadeiro ao conferir à história um sentido mais rico e mais profundo.


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Para a maioria das sociedades primitivas, a festa do Ano Novo corresponde à comemoração da nova colheita, que é proclamada comestível e inofensiva para toda a comunidade; equivale ao fim de um período de tempo e ao início de um novo período, com a renovação periódica da vida e do mundo. Essa renovação, por sua vez, implica um novo nascimento e a abolição do ano passado e do tempo decorrido (Eliade, 1984, p. 68-69). O Ano Novo é considerado uma repetição da cosmogonia de forma mais evidente para os povos com os quais começa a história propriamente dita (Babilônios, Egípcios, Hebreus e Iranianos), restaurando-se, ainda que momentaneamente, o tempo mítico e primordial, o tempo “puro” do instante da Criação.

Dir-se-ia que esses povos, conscientes de serem os primeiros a construir a “história”, registraram os seus próprios actos para uso dos seus sucessores (não, sem terem, no entanto, procedido a transfigurações inevitáveis nas categorias e nos arquétipos [...] Esses mesmos povos parecem, de resto, ter experimentado de um modo mais profundo a necessidade de se renovarem periodicamente, abolindo o tempo passado e reactualizando a cosmogonia. (Eliade, 1984, p. 89).

Para o homem arcaico, que vive no mundo ideal dos arquétipos, no qual o tempo nunca revela a irreversibilidade histórica dos acontecimentos, a renovação periódica da vida se dá pela expulsão dos males e pela confissão dos pecados. Essa necessidade de regeneração periódica prova que, para essas sociedades primitivas, a memória histórica, desprovida de um modelo arquetípico, é insuportável (Eliade, 1984, p. 90). Por isso, para obter a renovação do tempo, esses povos primitivos conheciam e praticavam outros métodos, como os ritos de construção, o início de um novo reinado, a consumação de um casamento, o nascimento de uma criança. As novas construções, por exemplo, reatualizavam também a cosmogonia. Todas as espécies de construção eram reproduções do ato primordial da criação do mundo. O homem volta ao momento do princípio para suprir sua necessidade de se regenerar; o tempo passado é anulado e a história é abolida através do retorno contínuo ao tempo mítico da origem. Os rituais de cura também envolvem a repetição da cosmogonia na medida em que requerem a recitação do mito cosmogônico. Como essência da concepção de mundo do homem arcaico está, portanto, a necessidade de se renovar periodicamente anulando o tempo (Eliade, 1984, p. 100). Podemos verificar uma recusa desse homem primitivo de se aceitar como “ser histórico”, de se


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enquadrar numa visão de mundo que tome como base o tempo concreto dos acontecimentos invulgares (sem modelo arquetípico). Esse homem anula o tempo, repetindo constantemente os atos míticos e voltando periodicamente ao tempo mítico desses atos e vivendo, assim, num presente contínuo. Essa concepção cíclica em relação ao tempo se aplica também para o desaparecimento e reaparecimento da humanidade. Acredita-se que as catástrofes nunca são definitivas e que o homem precisa da morte para sua regeneração; assim, nada ocorre por conta do acaso – profano –, tudo tem uma razão sagrada de ser.

Por isso, é mais provável que o desejo que o homem das sociedades tradicionais tem de recusar a “história” e de se confirmar a uma imitação constante dos arquétipos revele a sua sede do real e o seu pavor de se “perder” ao deixar-se invadir pela insignificância da existência profana. Pouco importa que as fórmulas e as imagens através das quais o “primitivo” exprime a realidade nos pareçam ingênuas ou até ridículas. É o sentido profundo do comportamento primitivo que é revelador: esse comportamento rege-se pela crença numa realidade absoluta que se opõe ao mundo profano das “irrealidades”; em última instância, aquele não é verdadeiramente um “mundo”, mas o “irreal” por excelência, o não-criado, o não-existente, o nada. (Eliade, 1984, p. 106).

Mesmo recusando a História, o homem arcaico não pode evitá-la, por isso tem que conviver com catástrofes cósmicas, derrotas em guerras, injustiças sociais, desgraças pessoais. Como encara e suporta então esses sofrimentos inevitáveis? Acreditando que cada sofrimento tem um sentido, fosse qual fosse a sua causa e natureza (Eliade, 1984, p. 110). Os povos primitivos acreditam que os sofrimentos sejam ação mágica de um inimigo, resultado da infração a um tabu, expressão da cólera de um deus ou então vontade do Ser Supremo. Sendo assim, os sofrimentos são compreensíveis e aceitáveis, porque não são absurdos ou obra do acaso e porque aquele que sofre sabe que o sofrimento não é definitivo; depois dele virão os “bons tempos”. Os hebreus acreditavam que qualquer calamidade histórica que os afetava era um castigo enviado por Deus (Iavé) para os reconduzir ao bom caminho e redobrar sua fé, ou seja, os acontecimentos passaram a ganhar um significado religioso. É neste momento que, pela primeira vez, os profetas valorizam a história, ultrapassando a visão tradicional do ciclo e da eterna repetição, descobrindo um tempo com sentido único. Certamente, essa nova concepção não foi aceita prontamente pelos judeus e as concepções antigas ainda se mantiveram por bastante tempo. No entanto, podemos dizer que os Hebreus foram os


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primeiros a verem a História como epifania de Deus e a compreender que os acontecimentos históricos têm um valor em si mesmos, na medida em que são determinados pela vontade divina (Eliade, 1984, p. 118). Enquanto para a concepção arcaica as revelações acontecem num tempo mítico, no instante extratemporal do princípio, momento no qual surgem os arquétipos, a revelação monoteísta ocorre no tempo da duração histórica. Assim, os acontecimentos históricos podem ser suportados porque expressam a vontade de Iavé e porque são necessários para a salvação do povo eleito. A História não é mais um ciclo que se repete infinitamente, mas sim uma seqüência de teofanias positivas ou negativas. Por outro lado,

As crenças messiânicas numa regeneração final do mundo revelam também uma atitude anti-histórica. Como não pode continuar a ignorar ou a abolir periodicamente a história, o Hebreu aceita-a na esperança de que ela acabará definitivamente num momento mais ou menos longínquo. A irreversibilidade dos acontecimentos históricos e do tempo é compensada pela limitação da história no tempo. (Eliade, 1984, p. 125).

Sendo assim, a concepção arcaica de regeneração periódica da Criação é substituída pela concepção moderna de uma única regeneração que acontecerá no futuro. De qualquer forma, tanto o mito da eterna repetição, quanto o mito do fim do mundo revela uma clara atitude anti-histórica e um posicionamento de defesa em relação à História. Para suportar, então, a história, o homem acredita que a humanidade possuía um destino histórico, do qual não podia escapar, já que tudo era necessário, inevitável e exigido pelo ritmo cósmico ou pela vontade de Deus. O que devemos ressaltar é que o homem moderno se quer histórico, já que o mundo moderno não foi ainda conquistado totalmente pelo “historicismo”. As duas concepções de mundo ainda caminham paralelas (Eliade, 1984, p. 154). Ainda que o cristianismo tivesse se oposto fortemente à concepção tradicional/ cíclica, ela acabou penetrando a filosofia cristã. As teorias dos ciclos e das influências astrais sobre o destino do homem e sobre os acontecimentos históricos foram parcialmente adotadas por alguns padres e escritores eclesiásticos. Por outro lado, há os que professam a teoria do progresso linear da história. Diz o autor (1984, p. 158) que, nos séculos XVII, XVIII e XIX é essa última vertente teórica que mais se afirma. Apenas a partir do século XX é que as reações contra a linearidade histórica e o interesse pela teoria dos ciclos renascem. Por exemplo, o mito do eterno retorno é retomado


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filosoficamente por Nietzsche. Poderíamos dizer até mesmo que a contemporaneidade revaloriza as teorias cíclicas, reformulando mitos arcaicos, para tentar encontrar um significado e uma justificação trans-histórica para os acontecimentos históricos (Eliade, 1984, p. 160). O autor revisita as soluções historicistas de Hegel e Marx. Para o primeiro, “o acontecimento histórico era a manifestação do Espírito Universal (Eliade, 1984, p. 161)”. Assim, retomamos a concepção dos profetas hebreus de que a história encerra um significado em si mesma porque reflete uma manifestação da vontade de um ser superior; o destino de um povo ainda continha um significado trans-histórico. Já para Marx, a história é a epifania das lutas de classes. Ele acredita que o mal que existe nos acontecimentos históricos é um mal necessário que desencadeará a salvação final e definitiva, acabando para sempre com o “terror da história”. “Portanto, a filosofia marxista da história conduz à Idade do Ouro das escatologias arcaicas (Eliade, 1984, p. 161)”. A teoria marxista, de alguma maneira, nos apresenta uma justificativa para suportarmos o “terror da história”, mas, fora dela, como fazê-lo? Se pensarmos que o acontecimento histórico encontra seu significado último em sua própria realização, esse “terror” se torna cada vez mais difícil de ser suportado. Como aceitar guerras, catástrofes, massacres, injustiças e desgraças sem nenhum significado trans-histórico? Apenas como um jogo econômico, social e político? No passado, o homem acreditava que tudo isso era castigo de Deus ou então que não tinha valor em si mesmo; era apenas a repetição dos atos arquetípicos. Foram essas crenças que o ajudaram a suportar e isso a posição historicista ainda não consegue dar ao homem moderno (Eliade, 1984, p. 164). Por essas razões, muitos dos que vivem na contemporaneidade, na qual a concepção histórica do mundo prevalece, ainda preferem retomar o mito da periodicidade cíclica e do eterno retorno, refletindo uma resistência à história e uma revolta contra o tempo histórico, tentando reintegrá-lo no tempo cósmico, infinito e cíclico.

3. DA HISTÓRIA AO MITO: CULTURA E LITERATURA INDÍGENAS

Depois de apresentarmos uma breve contextualização do processo da escrita/ literatura indígena que se configura no Brasil e das relações entre História e mito, baseadas na teoria do estudioso Mircea Eliade, que opõe as concepções de mundo do homem arcaico e do homem


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“moderno”, tentarei mostrar de que modo vejo essas duas reflexões se relacionarem. Para isso, devemos considerar que as comunidades indígenas brasileiras 1 pertencem ao grupo que Eliade denomina de “povos primitivos”, portanto suas concepções de mundo seriam pertinentes àquelas desenvolvidas no tópico anterior como sendo características desses povos arcaicos. E, nós, “os brancos civilizados”, somos pertencentes ao grupo dos “homens modernos ou históricos” e possuiríamos, assim, suas respectivas peculiaridades – também apresentadas no tópico anterior. Sendo assim, poderíamos dizer que o que ocorre no cenário brasileiro é que o homem arcaico está em contato com o homem moderno desde o descobrimento. No entanto, não podemos afirmar que essa relação tenha sido admiravelmente harmônica. Pelo contrário, o que aconteceu foi que o homem moderno, com sua concepção de mundo aparentemente histórica, não soube assimilar, aceitar ou mesmo respeitar a visão de mundo mítica do indígena/ primitivo. No início, os indígenas eram a grande maioria, mas mesmo assim sua concepção de mundo não prevaleceu, já que o homem branco/ moderno tinha a força da arma de fogo, da religião, do idioma. Desta forma, mesmo que o índio tenha contribuído substancialmente para a formação da cultura, da língua, enfim, para a formação da pátria brasileira, essa contribuição não foi devidamente valorizada justamente pelo fato dos indígenas serem considerados pelos brancos civilizados como gente inferior, cuja forma de pensar o mundo é atrasada e, de certo modo, inconcebível para a sociedade moderna. Os saberes tradicionais indígenas são normalmente tidos como primitivos2 e selvagens, identificados a um estado de sociedade oposta às sociedades modernas, sendo estas entendidas como as únicas detentoras dos meios de progresso, portanto superiores. Nessa lógica a sociedade indígena deveria ser superada. É precisamente dentro desse consenso depreciativo que os colonizadores e os colonizados contribuem para a manutenção da dominação colonial. (Almeida e Queiroz, 2004, p. 230).

Assim, o que prevaleceu foi a maneira de pensar – que se supõe histórica, linear e moderna – do homem branco, ficando os povos indígenas entregues à marginalização e exclusão. Aqui, gostaria de retomar a estudiosa Linda Hutcheon que, em seu renomado texto 1

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Acreditamos que essas considerações sejam pertinentes às comunidades indígenas em geral, no entanto, neste trabalho as que nos interessam como objeto de estudo são especificamente as comunidades indígenas brasileiras. Deve ficar claro que, aqui, as autoras fazem uso do vocábulo “primitivo” com intenção pejorativa, diferentemente do que faz Mircea Eliade ao classificar uma sociedade como “primitiva”.


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“Poética do Pós Modernismo” (1991), propõe o seguinte questionamento: De quem é a história que sobrevive? Neste caso, não há dúvida nenhuma de que aparentemente é a história dos brancos, até porque quem contou a história até agora foi o branco. Ele foi o dono da história; da sua história e da história do índio também. Assim, por muito tempo, o índio só foi enxergado e representado para a sociedade civilizada através do olhar do próprio branco. Isso se deu também nas expressões literárias. Na literatura considerada oficialmente brasileira, o índio nos foi apresentado sempre como personagem, caracterizado através do julgamento branco que ora o idealizava, ora o inferiorizava em relação ao português, ora utilizava-o como matriz heróica, ora transformavao em verdadeiro anti-herói. “Não há história sem discurso”, diz Almeida e Queiroz (2004, p. 203). O branco dominava o discurso e, conseqüentemente, a história; a história do vencedor é a versão que sempre foi contada. O resultado disso foi a dizimação de milhares de indígenas ao longo dos últimos cinco séculos e os que restaram deveriam se contentar com as migalhas de reservas territoriais, com as representações de algumas de suas lendas, escritas por brancos e lidas nas escolas como folclore e com um dia do ano para chamarem de seu. Nas aldeias, porém, resistência, luta, persistência para tentar manter uma concepção de mundo, um modo de vida, considerado menor. Durante todo esse tempo, apesar de sofrerem perdas irreparáveis e de assimilarem alguns hábitos e crenças brancas, a maioria dos indígenas brasileiros tenta resistir e fazer sobreviver sua própria forma de enxergar a vida, sua forma arcaica e primitiva; diferente, mas de modo algum inferior. Os direitos garantidos aos indígenas pela Constituição de 1988, que reconheceu suas línguas como oficiais, foram resultados dessa luta. O índio percebeu que a única maneira de preservar sua visão de mundo “primitiva”/ mítica era, paradoxalmente, inseri-la na visão de mundo moderna/ histórica. O índio só se faria respeitar e sobreviver sua visão cíclica (e, portanto, com um caráter a-histórico) da vida se aprendesse a dominar a discurso histórico do branco. Quando se percebeu diante da realidade das escolas diferenciadas, o professor indígena viu que a primeira maneira – e talvez a mais eficiente – de dominar o discurso e “fazer sua própria história” era ter o domínio da escrita para transformá-la de instrumento de dominação e destruição de seus costumes em instrumento de divulgação e transmissão de suas crenças, tradições, concepções. Na verdade, “A escrita sempre esteve presente no contato entre índios e brancos. Trata-se agora de um processo de recuperação, ou melhor, apropriação


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de seus meios” (Almeida e Queiroz, 2004, P. 211). Foi então que o processo de escrita/ literatura indígena no Brasil se iniciou e vem se desenvolvendo como apresentamos no primeiro tópico de nosso trabalho.

Ao mesmo tempo a recente prática da escrita e sua correlata necessária, a criação literária, por parte dos indígenas brasileiros, podem ser tomadas como a própria historicização da questão indígena. É reinvestigando seu passado que os povos escapam da ambigüidade traumática dos recalques e rejeições inconscientes. A memória histórica, nos locais onde a história foi e continua a ser um combate sem testemunhas, arma a coletividade de forças e decisões novas e lhe permite ultrapassar os desejos inconscientes da estruturação imposta, autorizando a refletir concretamente sobre a necessidade ou não de determinadas estruturas... (Almeida e Queiroz, 2004, p. 203).

O que fez com que, historicamente, a voz escritural indígena não fosse ouvida até pouco tempo foi o fato de sua matéria literária ser impedida de configurar uma literatura. Todo o material que poderia constituir uma literatura indígena, se fosse escrito por um índio, foi – indevidamente – apropriado pelo discurso do branco, catequista, lingüista, etnólogo, antropólogo, agente nas aldeias (Almeida e Queiroz, 2004, p. 208-209) e transformado em folclore, isto é, em literatura em suspensão (Almeida e Queiroz, 2004, p. 205).

O pensamento indígena, que aqui se confunde com formas de ser, de ver, de dizer, de ouvir, de fazer, é o novo mito que os índios colocam em circulação, a partir da situação de ter que escrever para garantir a continuidade de suas gerações. Ter uma língua documentada não é ter um corpo morto, mas uma história, um discurso, uma poética. A primeira palavra coletiva dessa poética acaba de ser pronunciada. A escrita da História, pela mão dos índios, embaralha-se com a escrita literária... (Almeida e Queiroz, 2004, P. 211).

Ou seja, um povo cuja concepção de mundo é primitiva, arcaica e, portanto, mítica, baseada na repetição de arquétipos, se vê em contato com outro povo cuja concepção de mundo se quer linear e histórica; esse contato implica disputa de espaços – físico, cultural, religioso, lingüístico, e agora também literário. Por um longo período, o branco vence a disputa; então, para não ver sucumbir sua forma de pensar, de conceber a vida, o índio percebe, segundo uma lógica paradoxal, que precisa fazer uso dos instrumentos do próprio branco. E um desses instrumentos é a escrita, que viabiliza o domínio do discurso. Ao escrever, o índio se assume como sujeito de sua História e de suas histórias/ narrativas; passa


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a ser apresentado à sociedade civilizada a partir de seu próprio olhar de índio e através da apropriação dos meios modernos, como o livro, por exemplo. O que podemos perceber é que as concepções opostas de mundo, desenvolvidas por Eliade e representadas aqui pelo indígena primitivo e pelo branco moderno, conviveram no contexto brasileiro de forma paralela e, muitas vezes, até conflituosa. Com o surgimento do processo de escrita/ literatura indígena, essas duas concepções passam a coexistir dentro de uma mesma cultura – a do índio. E o branco, por sua vez, também tem diante de si uma nova oportunidade de contemplar mais de perto uma forma predominantemente mítica de ver o mundo e assimilar dela elementos que possam conviver mais harmonicamente com sua própria forma de ver a vida. A partir dessa coexistência da importância tanto do mito quanto da História, os indígenas dividem suas narrativas em dois grandes grupos: as histórias de hoje e as histórias de antigamente. As histórias de hoje são narrativas históricas, que tratam de fatos e acontecimentos situados no presente atual, como por exemplo, a luta pela demarcação de territórios. Esses textos narram, geralmente, o contato do índio com o homem branco, por isso o predomínio do caráter histórico e linear das narrativas, bem como do modelo de autoria individual. Já as histórias de antigamente são narrativas originadas da oralidade performática e mítica, que tratam de fatos e acontecimentos situados no “tempo de antigamente”, também chamado de presente anterior ou tempo mítico, segundo Souza (s.d., on-line). Essas histórias revelam o caráter arcaico, segundo a teoria de Eliade, dos povos indígenas, expressando como os modelos arquetípicos são preservados como essência das comunidades. A autoria desses textos é, em sua grande maioria, coletiva, o que mostra que o conteúdo deles faz parte do legado de conhecimentos e concepção de mundo de toda a coletividade. No momento das histórias de antigamente, tudo ainda estava sendo criado, por isso os seres não têm uma forma definida, podendo se metamorfosear constantemente. No presente atual, por outro lado, cada ser já possui sua forma definida e os processos de transformações cessaram. Essas narrativas de origem mítica têm como objetivo a preservação das tradições indígenas e a revalorização do passado através do mito. Os índios esperam mostrar – e revalorizar –, através dos textos escritos, a “verdadeira” e ideal forma de viver, antes do contato e da influência do branco. Esse processo, de alguma maneira, constitui uma crítica da História e do progresso (Almeida e Queiroz, 2004, p. 228), assim como fazem as sociedades


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primitivas de Eliade, confirmando novamente que o indígena aceita e assimila o processo histórico como meio de sobrevivência de sua tradição mítica.

Para os índios, os mitos permeiam a vida cotidiana, não como criação alheia e alienadora, mas como base sobre a qual se desenvolvem as sabedorias, como se houvesse, desde tempos imemoriais, vozes mestras que, hoje, e em português, denominadas Tradição, ensinam ou contam como as coisas devem ser. (Almeida e Queiroz, 2004, P. 235).

CONSIDERAÇÕES FINAIS: É evidente que um processo de escrita que poderíamos chamar de “genuinamente” indígena se solidifica no Brasil e os professores índios são os principais agentes desse processo que tem como pano de fundo as aldeias e suas escolas diferenciadas. Não se discute também que a função mais imediata desse material escrito seja a composição de um material didático que sirva adequadamente a essas mesmas escolas. No entanto, não se pode negar que esse movimento se reveste de uma carga literária na medida em que esses textos são selecionados da tradição oral, reconfigurados, ficcionalizados, ilustrados, adquirem uma dimensão estética, são editados e, por fim, publicados em forma de livro, alcançando não só leitores índios, mas também brancos. Além de toda importância que esses textos literários escritos encerram em si mesmos, eles servem como instrumento de conexão entre concepções de mundo aparentemente opostas. É através do livro-literatura que o índio se apropria dos meios do homem moderno e histórico para defender e preservar sua visão de mundo predominantemente arcaica e mítica. O índio dominou a linguagem escrita para dominar o discurso do branco e, por conseqüência, tentar dominar a História, contando agora a versão dos vencidos, muitas vezes diferente da versão hegemônica e dominante dos vencedores. Ainda são poucos os que escutam essa voz tímida e rouca, no entanto ela é constante e insistente no objetivo de se fazer ouvir. Esses, que possuem sensibilidade e capacidade suficientes para ouvi-la, evidenciam que Eliade está correto quando afirma que há, nas sociedades contemporâneas, uma tendência a se redescobrir e revalorizar as teorias cíclicas, mesmo que muitos ainda não tenham percebido isso. História e mito. A História comprovada pelos fatos e o mito exaltado pelo sagrado. Duas maneiras diversas de olhar o mundo se encontram nos “livros da floresta” e comungam


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de um mesmo ideal: manter viva a essência mítica das comunidades indígenas, inserindo-a nas linhas literárias e históricas da sociedade do homem moderno.

As religiões monoteístas, principalmente o Cristianismo, quiseram desacreditar as antigas crenças incompatíveis com um Deus único e portanto inscrito na História, em oposição à fixação repetitiva do mito. Então, pouco a pouco as histórias verdadeiras serão consideradas como falsas, ou mentirosas. Agora, com a reapropriação dos seus mitos, pelo ato de escrevê-los, os encarregados (legítimos transmissores) dessa escrita restituem outra verdade a essas histórias. A verdade que se perpetua no jogo literário – compactuada entre narrador e leitor – fruto do pacto ficcional. Assim, o tempo mítico, ao ser fixado no papel, transforma-se em tempo histórico, e os escritores indígenas, de certo modo, fundam sua Literatura e sua Ciência, como conhecimentos sistematizados, pelo ato da escrita (Almeida e Queiroz, 2004, p. 252).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: ALMEIDA, Maria Inês de; QUEIROZ, Sônia. Na captura da voz: As edições da narrativa oral no Brasil. Belo Horizonte: A Autêntica; FALE/UFMG, 2004. ELIADE, Mircea. O Mito do Eterno Retorno. São Paulo: Edições 70, 1984. MUNDURUKU, Daniel. Literatura Indígena e o tênue fio entre escrita e oralidade, 2008. Disponível em: <http://www.overmundo.com.br/overblog/literatura-indigena>. Acesso em: 08 jul. 2010. SOUZA, Lynn Mario T. Menezes de. As visões da anaconda: a narrativa escrita indígena no Brasil, 2003. Revista Semear 7. Disponível em: <http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/semiar_7.html>. Acesso em: 18 jun. 2010. SOUZA, Lynn Mario T. Menezes de. Uma outra história, a escrita indígena no Brasil, s.d. Disponível em: <http://pib.socioambiental.org/pt/c/iniciativas-indigenas/autoria-indigena/uma-outra-historia,-aescrita-indigena-no-brasil>. Acesso em: 18 jun. 2010.


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ASSIMILAÇÃO E INFLUÊNCIA NA LITERATURA LATINOAMERICANA: A “DEVORAÇÃO” DA CULTURA EUROPÉIA Geovanna Marcela da Silva Guimarães1 Resumo: Quando se trata da questão da influência e assimilação na Literatura Latino-Americana sempre é levada em conta a suposta dívida que o escritor latino possui com a literatura europeia. Ao levarmos isso em consideração estamos dando um atestado de inferioridade artística aos escritores latinos. A literatura latina só poderá ser acusada de cópia da literatura europeia se não atentarmos para o real significado que a função da duplicação representa para as literaturas latinas. O presente artigo visa mostrar que a assimilação da influência europeia nas Américas não se deu de forma passiva, mas sim de uma forma violenta, desde o início no período colonial quando os colonizadores vieram para a catequização indígena, até os dias de hoje quando os conceitos de assimilação e influência assumem outras conotações. Pois quando tratamos de assimilação e influência na literatura latina temos, agora, a discussão da identidade nacional e da diferença. Palavras-chave: literatura latino-americana, assimilação, influência. Abstract: When we consider the question of influence and assimilation in Latin American Literature it’s always taken into account the supposed debt that the latin american writer has with the European literature. By taking this into consideration we are giving a certificate of artistic inferiority to the latin american writers. Latin literature can only be accused of being a copy of European literature if we are not aware of the real meaning that the function of duplication has for Latin literature. This article aims to show that the assimilation of European influence in the Americas did not occur passively, but rather in a violent way, since the beginning of the colonial period when the colonizers came to the natives catechism, until these days when the concepts of assimilation and influence take on new connotations. For when we deal with assimilation and influence in Latin literature we have now the discussion of national identity and difference. Key Words: Latin American Literature, assimilation, influence.

O primeiro capítulo do livro Uma Literatura nos Trópicos, de Silviano Santiago, intitulado “O entre lugar do discurso latino-americano”, nos permite traçar um pequeno panorama de como se deu a formação da identidade cultural latina no período colonial até chegar à sua emancipação em relação aos padrões europeus que vigoravam até então. A conquista dos povos indígenas do Novo Mundo aconteceu de forma violenta no que tange o caráter cultural e ideológico. Os europeus impuseram sua cultura aos índios, substituíram e destruíram a cultura indígena. Quando se trata da transmissão do ideário religioso europeu há certa controvérsia de como isso poderia se dar, pois para os índios ficava mais fácil se

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Graduanda do curso de Letras (Habilitação em Língua Portuguesa) da Universidade Federal do Pará. Bolsista PIBIC/CNPq pelo projeto “Tradução e Antropofagia em Haroldo de Campos”, orientado pela Profª. Drª. Izabela Leal. Email: geovanna_marcela@yahoo.com.br


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houvesse a representação dos símbolos cristãos que eles desconheciam, enquanto que para os europeus era mais pertinente a conversão milagrosa passiva dos credos religiosos cristãos. Pensando nisso, na melhor assimilação da religião cristã pelos indígenas, o padre jesuíta José de Anchieta volta a sua poesia para a função catequética, que se realizava através da conversão dos símbolos tupis para facilitar a aproximação do índio do imaginário europeu. Anchieta não faz apenas a conversão lingüística como também faz a conversão religiosa. Na aculturação lingüística os signos indígenas são usados para escrever a catequese através das homologias, o que significa traduzir a cultura do outro através de elementos da sua própria. E é a partir desse processo, e de muitos outros de assimilação, que a doutrina e língua europeia dominaram o pensamento selvagem. É como afirma Santiago: “Pouco a pouco as representações [...] propõem uma substituição definitiva e inexorável: de agora em diante na nova terra o código lingüístico e o código religioso se encontram intimamente ligados.” (SANTIAGO, 1978, p.16). Essa mesma ligação ocasionou de forma drástica a perda, para os indígenas, de sua língua e de seu sistema sagrado devido à troca que foi feita pelos europeus dos dois principais sistemas: lingüístico e religioso. A imposição dos valores europeus faz a América Latina se transformar, num certo sentido, numa cópia da metrópole colonizadora, que nesse caso é a Europa. Isto é ocasionado pois a América não possui os padrões culturais iguais aos dos países do Velho Mundo. É ressaltado por Santiago que o poder colonialista ampara-se na base do uno, ou seja, na noção de apenas uma única língua, um único rei e único Deus. Entretanto, com o colonialismo, é formada uma nova sociedade: a dos mestiços. É a partir da idéia de mestiçagem que não podemos associar à América Latina uma cultura metropolitana e homogênea, mas sim uma cultura universal e heterogênea. A mestiçagem das culturas europeia e latina fez com que a América Latina fosse vista como uma civilização assimiladora que não pode impedir a entrada das influências estrangeiras e, tampouco, pode fechar-se em si mesma. Para que os povos latino-americanos fossem nacionais eles deveriam ser, até certo ponto, universais. É por esse motivo que ocorre a abertura ao que vem de fora. Essa noção entra plenamente em contato com o que diz Leyla Perrone-Moisés: “sem abertura, nenhuma cultura, nenhuma literatura pode existir” (MOISÉS, 1990, p. 96). Com o processo de mestiçagem, os códigos lingüísticos e religiosos que nos foram impostos pelos colonizadores sofreram uma metamorfose e, em decorrência disso, perderam a


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sua suposta pureza e integridade. A destruição da unidade e pureza dos europeus, por ocasionar um desvio da norma que era a representação de um certo padrão imutável, foi o maior trunfo da América Latina para a sua inserção no mapa da civilização ocidental. Isso torna necessária a substituição do modelo das influências, que se prende ao passado e inferioriza os padrões culturais latinos por buscarem e contraírem dívidas com/em outras obras por um novo modelo que negligenciará esses pormenores, estabelecendo como ponto único o valor crítico da diferença. Haroldo de Campos, em seu ensaio “Da Razão Antropofágica: Diálogo e Diferença na Cultura Brasileira”, toma a diferença como sinônimo do nacional, isto é, como sendo aquilo que caracteriza justamente a heterogeneidade da cultura brasileira. É como ele diz: “A diferença podia agora pensar-se como fundadora” (CAMPOS, 1992, p. 247). Para compreendermos melhor a teoria haroldiana da diferença como o nacional, devemos sair do campo cultural e adentrar no campo literário, pois Haroldo de Campos valoriza a diferença como sendo o fator fundador da literatura latina em geral, e da brasileira, em particular, porque é através dela que temos o nacional, a explicação e a visão do caminho percorrido pela literatura através da historia. Isso poderá ser pensado e entendido, por exemplo, através da já tão falada Antropofagia cultural de Oswald de Andrade, que tem em Haroldo de Campos um de seus grandes entusiastas. Para Campos, a antropofagia não pode ser apenas compreendida no contexto brasileiro, pois a antropofagia é um processo universal e violento de assimilação daquilo que é exterior, pois é com ela que há a tomada de uma visão crítica sobre a história nacional da literatura latina e do lugar de diferença que esta deveria assumir perante a literatura européia. O “Manifesto Antropófago”, quando é lançado por Oswald de Andrade, defende a criação de uma poesia simples e local e, o mais importante, a criação de uma literatura que não fosse cópia de nenhuma outra. Oswald queria uma literatura que fosse criativa, criadora e, nas palavras de Audemaro Goulart e Oscar da Silva (1976), surpreendente. E é isso o que fazem alguns romances latino-americanos, tais como Macunaíma, quando nos mostram toda a heterogeneidade decorrente do encontro das várias linguagens pertencentes à história do início das Américas. Essas linguagens são as indígenas, negras, mamelucas e européias, que ao se encontrarem nas obras latinas tornam-se dinâmicas. É como diz Carlos Fuentes:


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 74 O romance latino-americano nos pede que expandamos estas linguagens, todas elas, libertando-as do costume, do esquecimento ou do silêncio, transformando-as em metáforas inconclusas, dinâmicas, que admitam todas as nossas formas verbais: impuras, barrocas, sincréticas, policulturais. (FUENTES, 2007, p 2)

Para tornar essas linguagens dinâmicas foi necessário da parte da literatura latina o mesmo que foi necessário da parte de sua cultura: a literatura latina também abriu as suas portas àquilo que vinha de fora. Dessa maneira ela se torna uma literatura assimiladora de quase tudo aquilo que é bom e pertinente para a sua constituição como uma literatura nacional. E é partindo desse processo de assimilação que temos o início do chamado processo Antropofágico cultural proposto por Oswald de Andrade em 1928. “A antropofagia é antes de tudo o desejo do Outro, a abertura e a receptividade ao alheio, desembocando na devoração e na absorção da alteridade” (MOISÉS, 1990, p.95) Tomemos de forma geral a Antropofagia cultural, que é um conceito que pode ser levado além das fronteiras do Brasil, o seu país de origem. A antropofagia oswaldiana assume não aquela imagem do bom selvagem que recebe tudo passivamente do colonizador, mas sim aquela do selvagem antropofágico, devorador e canibal que escolhe o devorado por suas virtudes, força e coragem. A escolha do mal selvagem é a explicação de que essa apropriação de outra cultura não se dá da forma passiva como ocorria antigamente, mais especificamente, nos romances indianistas brasileiros, principalmente nos romances de José de Alencar, onde as culturas européias e indígenas se encontram e o indígena assimila a cultura europeia de forma passiva, submetendo-se ao europeu colonizador de modo espontâneo e sublime. O mal selvagem, por sua vez, nos ensina que o encontro entre culturas se dá com a violência e destruição de ambas as partes envolvidas no processo. Alfredo Bosi, em seu Dialética da Colonização, no capítulo “Um mito sacrificial: O indianismo de Alencar”, diz que no período romântico do século XIX havia a necessidade de se ressuscitar o passado das origens nacionais, tanto no romantismo europeu quanto no romantismo americano. Especificamente no caso brasileiro, o escolhido para tão importante papel foi o indígena. Bosi observa que no início do XIX a América estava vivendo um momento de forte tensão entre as colônias e suas respectivas metrópoles, que resultou na oposição entre os dois lados que defendiam os seus próprios interesses: a colônia levantava a bandeira da sua independência, enquanto a metrópole resistia em aceitar a liberdade de sua colônia. De acordo com esse panorama histórico, Bosi esperava que o retrato do índio, nos


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primeiros romances, fosse o de um selvagem rebelde que se encontra com o europeu colonizador. Mas não é isso o que ocorre na ficção romanesca latino-americana. No caso brasileiro do período romântico indianista, o índio aparece como um indivíduo que se entrega incondicionalmente ao branco, não se importando em abandonar a sua família e tribo para tal sorte. Servir ao branco, para o índio, é como se fosse o cumprimento do seu destino, mesmo que isso em alguns casos lhe custasse a vida. Para exemplificar esses “bons selvagens”, Bosi nos dá a figura do índio Peri de O Guarani, cujo autor é José de Alencar, que é um verdadeiro e grande exemplo de “bom selvagem” das matas brasileiras. O amor de Peri por Cecília não é um amor igual ao de Loredano, o vilão da história, que é carnal, ou igual ao de Álvaro, que é o amor puro e tímido. O amor de Peri é um culto e adoração por Cecília. Observamos isto no seguinte trecho do capitulo Amor de O Guarani: Em Peri o sentimento era de culto, espécie de idolatria fanática, na qual não entrava um só pensamento de egoísmo, amava Cecília não para sentir um prazer ou ter uma satisfação, mas para dedicar-se inteiramente a ela, para cumprir o menor de seus desejos, para evitar que a moça tivesse um pensamento que não fosse imediatamente uma realidade. (ALENCAR, p 39, 1972)

Temos nesse trecho o exemplo da abnegação de si mesmo, do “bom selvagem” Peri em prol da moça branca Cecília. Peri faz tudo para satisfazer as vontades da jovem sem se importar se isso custará a sua vida ou não, como no episódio em que ele, mesmo correndo risco de vida, captura uma onça viva apenas porque Cecília desejava ver uma. É na recusa desse bom selvagem servil e fiel ao homem branco colonizador que a antropofagia cultural oswaldiana assume a figura do mau selvagem, devorador e canibal. A manifestação antropofágica subverte o discurso das influências na literatura latino-americana, de modo que não cabe mais discutir, sob essa ótica, a qualidade literária de um determinado autor ou obra por meio de um mecanismo de comparação com as obras européias. Silviano Santiago nos explica que esse tipo de discurso é preconceituoso e que inferioriza a produção dos escritores latinos americanos:

Tal discurso reduz a criação dos artistas latino-americanos à condição de obra parasita, uma obra que se nutre de uma outra, cuja vida é limitada e precária, aprisionada que se encontra pelo brilho e prestígio da fonte, chefe-de-escola. (SANTIAGO, 1978, p. 20)


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O que deve ser levado em conta na obra de um autor não é sua nacionalidade ou influência e sim, como diz Carlos Fuentes, a comunicabilidade da sua linguagem e a qualidade de sua imaginação. As verdadeiras e importantes qualidades em um autor são linguagem e imaginação. Ao falar sobre as duas como sendo essenciais na obra de um determinado autor, Carlos Fuentes intertextualiza-se mutuamente com Ezra Pound, quando este diz que sem a imaginação e a linguagem do escritor as nações perderiam a sua fala e idioma. Fuentes e Pound defendem a literatura como um precioso tesouro de uma nação e país. Portanto, a literatura latino-americana não pode e nem poderia fechar-se em si mesma, pois o processo de troca entre as culturas é essencial. As culturas, ou melhor, as sociedades não são homogêneas. Caso ocorresse o isolamento e o fechamento da América Latina àquilo que vinha de fora poderíamos imaginar que a literatura latina ficaria estagnada, sofreria um tipo de asfixia pela falta de contato com o outro, com o que vem de fora. Temos que levar em consideração que não podemos criar algo a partir do nada em termos literários e, além do mais, não podemos apagar o nosso passado de povos colonizados, mesmo que ele tenha sido cruel. Não devemos ter medo de assumir nossas influências, pois até as literaturas metropolitanas que “são vistas como ameaçadoras de uma identidade nacional (...)” (MOISÉS, 1990, p. 98) também sofreram influência de outras literaturas anteriores a ela. E até os grandes nomes da literatura foram inspirados por outros grandes nomes da literatura.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. São Paulo: Martins. 7° edição, 1972. ANDRADE, Oswald de. “Manifesto Antropófago”. Acessado em: 04/ 02/2011, 18:09. http://www.lumiarte.com/luardeoutono/oswald/manifantropof.html. BOSI, Alfredo. “Um mito sacrificial: O indianismo de Alencar”. In: Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p.176-193. CAMPOS, Haroldo de. “Da Razão antropofágica: Diálogo e diferença na cultura Brasileira” In: Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 231-255. FUENTES. Carlos. “O Romance Morreu?”. In: Geografia do Romance. Tradução: Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, p. 9-33. GOULART, Ademaro; SILVA, Oscar da. Estudo Orientado de Língua e Literatura. São Paulo: Ed. do Brasil. 3° edição. 1976. MOISÉS, Leyla Perrone. “Literatura Comparada, Intertexto e Antropofagia”. In Flores da Escrivaninha: Ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.91-99


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 77 POUND, Ezra. ABC da Literatura. Tradução: Augusto de Campos e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1990. SANTIAGO, Silviano. “O entre lugar do discurso latino americano”. In: Uma Literatura nos Trópicos: ensaios sobre dependência cultural. Perspectiva. São Paulo. 1978.


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BECKETT LEITOR DE PROUST: DA CRÍTICA À CRIAÇÃO Gleydson André da Silva Ferreira 1 RESUMO: Samuel Beckett fez uma carreira acadêmica breve, seu livro Proust, de 1931, marca o final deste período como professor e aponta para uma estética embrionária já em plena gestação. Deste modo, nesta crítica ao romance Em busca do tempo perdido, podemos notar que as considerações de Beckett extravasam as fronteiras de uma simples recepção para, em alguns momentos, assumir a forma de prenúncios de uma estética própria. Com base nesta intuição, este artigo procura discutir e discernir os pontos de contato e dispersão do crítico com o seu objeto, além de aproximar tais indícios de criação com o monólogo A última gravação, de 1958. Para tanto, alguns dispositivos da teoria literária são requisitados para a caracterização da corrosão temporal que age sobre as criaturas de ambas as obras, que tomam o passado como foco de seu desenvolvimento. Para a compreensão e legitimação do cotejo realizado, isto é, entre romance e drama, neste estudo serão desenvolvidos, sucintamente, alguns apontamentos sobre a crise do drama moderno, tal como a definiu Peter Szondi na Teoria do drama moderno. PALAVRAS-CHAVE: Samuel Beckett – Proust – crise do drama moderno BECKETT READER OF PROUST: FROM CRITICISM TO CREATION

ABSTRACT: Samuel Beckett had a short academic career; his book Proust, 1931, marks the final of this period as a teacher and points to an embryonic aesthetical in full pregnancy. So, in this criticism to novel In Search for lost time, we may notice that Beckett considerations overpass the frontiers of a simple reception for, in some moments, it assumes the form of prediction of a proper aesthetics. Based on this intuition, this paper attempts to discuss and discern matching points and scatteration of the critic with his object, besides approaching such indexes of creation along with monologue Krapp’s last tape of 1958. For that much, some devices of literary theory are requested for the characterization of the temporal corrosion which works over the characters of either works, that take past as focus of its development. For the understanding and legitimateness of the confrontation made, that is to say, between novel and drama, we will briefly developed in this study some notes regarding about crisis of modern drama, as defined by Peter Szondi in Theory of the modern drama. KEYWORDS: Samuel Beckett –Proust – crisis of modern drama

Samuel Beckett abandonou sua breve carreira universitária com a publicação de Proust, livro no qual faz uma leitura do autor francês com uma concepção estética 1

Graduado pela UFOP em licenciatura em Língua Portuguesa, atualmente Literários nesta mesma instituição, estudando a obra de Samuel Beckett. parciais da iniciação científica “Tempo em camadas: Krapp’s last tape e o com subsídios da Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas jaainda@yahoo.com.br

cursa o bacharelado em Estudos Este artigo integra os resultados dominante romanesco”, realizada Gerais (FAPEMIG). Contato:


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embrionária do que viria a ser a sua própria obra. Esta crítica literária sintomatiza, pois, a busca de Beckett por postulados estéticos próprios em um trabalho que transborda frente à simples tarefa de uma resenha acadêmica, em que a interpretação subjuga a criação. É a partir desta ressonância da obra do crítico no texto criticado que discutirei como Beckett, ao ler Proust, aponta para o estilhaçamento do sujeito romanesco que - ao ser despedaçado pelo tempo – se torna estranho para si mesmo nos diferentes momentos narrativos, dispersado em camadas irreconciliáveis. Tal concepção crítica será seminal para a configuração madura de Samuel Beckett, exemplificada aqui no drama A Última gravação. Com efeito, neste artigo pretende-se pontuar algumas distinções entre as formulações teóricas de Samuel Beckett e o romance que lhe serve de objeto, com o intuito de assinalar como algumas destas considerações se avizinham mais da obra do próprio crítico do que do autor criticado. Desta forma, serão retomados alguns conceitos consagrados da teoria literária para melhor caracterizar e, posteriormente, distinguir as diferentes ações corrosivas do tempo sobre as criaturas de Beckett e Proust. Faz-se necessário, por conseguinte, algumas reflexões acerca do caráter de dominante do romance frente às configurações do drama moderno, para que se entenda como a sobredeterminação estrutural romanesca afeta as formas da dramaturgia de Samuel Beckett. Logo no início do livro Proust, Beckett coloca o tempo como a clave que designa a multiplicidade e o perspectivismo na obra Em busca do tempo perdido, tempo do qual as criaturas são vítimas e ao qual se encontram subordinadas, pois, para Beckett, não há como fugir das horas e dos dias. Nem do amanhã nem de ontem. Não há como fugir de ontem porque ontem nos deformou, ou foi por nós deformado. O estado emocional é irrelevante. Sobreveio uma deformação. Ontem não é um marco de estrada ultrapassado, mas um diamante na estrada batida dos anos e irremediavelmente parte de nós, dentro de nós, pesado e perigoso. Não estamos mais cansados por causa de ontem, somos outros, não mais o que éramos antes da calamidade de ontem. (BECKETT, 2003, p.11.) O trecho acima exemplifica o problema temporal adentrado por Beckett ao teorizar sobre o romance, além de corporificar o próprio movimento corrosivo no qual o autor fundamenta sua crítica; logo, esta citação materializa, ao mesmo tempo, fenômeno e conceito romanesco. Experimentamos, então, por meio do emprego da primeira pessoa do plural, o rápido e inexorável processo de corrosão compreendido por Beckett. Deste modo, o passado adentra-nos como um marco de estrada não ultrapassado, como um diamante que passa


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irremediavelmente a fazer parte de nós, dentro de nós, pesado e perigoso. Apesar disto - mas vale ressaltar que logo em seguida -, já “não estamos mais cansados por causa de ontem, somos outros”, ou seja, o passado indestrutível da frase anterior, inultrapassável, não nos pesa mais hoje; haja vista que, de alguma forma, não somos os mesmos, pois neste breve período de tempo nos tornamos diferentes daqueles “que éramos antes da calamidade de ontem.” A corrosão contemplada, que se dá praticamente ao vivo nesta citação, exerce uma força de tamanha violência que beira o paradoxo, em que se contrapõe o passado indelével ao esquecimento fruto da ação do tempo, que transforma os sujeitos em um movimento rápido e implacável, deslocando o passado para as outras camadas da subjetividade. Erich Auerbach estabelece a concepção de personagens dispostas em camadas em seu célebre livro Mimesis, no capítulo “A cicatriz de Ulisses”, ao confrontar as narrativas homéricas às narrativas bíblicas. Para Auerbach, Homero configurou fenômenos em suas narrativas que sempre ocorrem em primeiro plano, dispostos em pleno presente espacial e temporal, sem a possibilidade de diferentes perspectivas - apenas em uma camada, portanto. Assim, é do estilo homérico: representar os fenômenos acabadamente, palpáveis e visíveis em todas as suas partes, claramente definidos em suas relações espaciais e temporais. O mesmo ocorre com os processos psicológicos: também deles nada deve ficar oculto ou inexpresso. Sem reservas, bem dispostos até nos momentos de paixão, as personagens de Homero dão a conhecer o seu interior no seu discurso; o que não dizem aos outros, falam para si, de modo que o leitor o saiba. (AUERBACH, 2007, p.4.) Por seu turno, o estilo bíblico aparece dotado de complexidade e profundidade, no qual “só é acabado formalmente aquilo que nas manifestações interessa à meta da ação; o restante fica na escuridão.” (AUERBACH, 2007, p.9). Desta maneira, as personagens bíblicas são desdobradas sobre camadas e planos que não estão necessariamente iluminados pelo momento narrativo, mas que estão em jogo no momento de suas ações. Auerbach considera, pois, que o mais importante é a multiplicidade de camadas dentro de cada homem; isto é dificilmente encontrável em Homero, quando muito na forma de dúvida consciente entre dois possíveis modos de agir; em tudo o mais, a multiplicidade da vida psíquica mostra-se nele só na sucessão, no revezamento das paixões; enquanto que os autores judeus conseguem exprimir as camadas simultaneamente sobrepostas da consciência e o conflito entre as mesmas. (AUERBACH, 2007, p.10)


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Para Erich Auerbach, por conseguinte, as narrativas bíblicas comportam personagens mais complexas, que conseguem exprimir a multiplicidade e o caráter contraditório dentro de cada homem, ao contrário do que acontece nas epopéias homéricas, em que o interior da personagem é esgotado em suas representações imediatas. Auerbach assinala que os autores judeus conseguiram construir criaturas tão completas que, em suas ações, as camadas de um mesmo sujeito operam simultaneamente, mesmo nos momentos de conflito, nos quais colidem superfície e subjetividades obscurecidas - tal como acontece com o narrador de Proust, que se divide em diferentes camadas temporais, obscurecidas no presente narrativo até que surja o sujeito de um tempo perdido por meio da rememoração, mas simultâneas sob a superficialidade de uma mesma voz narrativa. Contudo, nas considerações sobre Proust e em sua própria obra, Samuel Beckett concebe estas camadas da subjetividade de tal modo desatadas que de seu encontro não resulta um simples conflito de profundidades, mas o embate de alteridades de uma mesma criatura romanesca, destroçando assim a noção de unidade da personagem e tornado-a, então, incapaz de construir qualquer síntese sobre si mesma. Este entrechoque de camadas, característico da peça A última gravação, instaura o conflito entre o sujeito de superfície de Krapp e os seus outros sujeitos passados, que emergem nas gravações ouvidas durante o drama com o qual nos deteremos mais tarde. Podemos dizer então que, para Samuel Beckett, os sujeitos do romance se encontram entremeio ao passado arraigado e ao presente que o embota em sua automatização. A subjetividade é alterada no tempo romanesco e sua unidade dispersada, assimilando o passado de maneira irremediável para embargá-lo no esquecimento daquilo que é imediato; resultando deste movimento, sujeitos distintos de uma mesma subjetividade, mas que ainda conservam o passado irrevogável sob a superficialidade do presente. Esta automatização conta então com as bênçãos do esquecimento, que é ocasionado em Proust, como veremos a seguir, pelo hábito. Para Samuel Beckett, as realizações são importantes componentes do hábito, visto que dão razão ou ilusões de estabilidade às subjetividades carcomidas. As realizações são responsáveis por atrelar o sujeito em constante mudança às metas ou aspirações, por dar o direcionamento rumo ao qual segue a subjetividade disposta em diferentes camadas. Daí a importância do caráter defensivo de mecanismos como a automatização do hábito, que entregam ao sono a criatura que se decompõe através do tempo:


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As aspirações de ontem foram válidas para o eu de ontem, não para o de hoje. Ficamos desapontados com a nulidade do que nos apraz chamar de realização. Mas o que é realização? A identificação do sujeito com o objeto de seu desejo. O sujeito morreu – quem sabe muitas vezes – pelo caminho. Que o sujeito B fique desapontado com a banalidade de um objeto escolhido pelo sujeito A é tão ilógico quanto esperar que nossa fome se dissipe com o espetáculo da titia tomando sua sopa. (BECKETT, 2003, p.12-13) O sujeito, segundo Beckett, morre várias vezes antes que consiga chegar a qualquer realização, de maneira que esta morte não significa sua destruição ou aniquilação completa. A morte, tal como vista aqui, tem um efeito contrário ao do simples falecimento, uma vez que ela estilhaça e cria novas perspectivas de um mesmo sujeito, diferente de si mesmo nos diversos períodos de sua vida, possibilitando inclusive que Beckett faça sua divisão em sujeito “A” e sujeito “B”. Por conseguinte, este estilhaçamento da subjetividade se dá por um esfacelar de sua unidade em vários pedaços irreconciliáveis, cada um estranho ao outro, mas mesmo assim partes de um todo, no qual pesa o passado concomitantemente com a sua suspensão ocasionada pelo esquecimento. A realização, considerada como a identificação do sujeito com o objeto de seu desejo, pode ser vista desta forma como um ponto aglutinador para o qual converge uma subjetividade movediça e disposta em camadas. Este ponto, uma vez alcançado, não corresponde ao resultado almejado pela subjetividade originária que tomou o impulso rumo ao seu objeto de desejo, já que esta se encontra deslocada e sobreposta pela superfície cambiante do sujeito. O hábito figura em Proust como a anestesia que acompanha a corrosão dos sujeitos, o antídoto com o qual os sofrimentos do passado são automatizados e esquecidos. A respeito do hábito, afirma Beckett: O hábito é o acordo efetuado entre o indivíduo e seu meio, ou entre o indivíduo e suas próprias excentricidades orgânicas, a garantia de uma fosca inviolabilidade, o pára-raios de sua existência. O hábito é o lastro que acorrenta o cão a seu vômito. Respirar é um hábito. Ou melhor, a vida é uma sucessão de hábitos, posto que o indivíduo é uma sucessão de indivíduos (uma objetivação da vontade do indivíduo, diria Schopenhauer), o pacto deve ser continuamente renovado, a carta de salvo-conduto atualizada. [...] O hábito, então, é um termo genérico para os incontáveis compromissos travados entre os incontáveis sujeitos e seus incontáveis objetos correspondentes. Os períodos de transição que separam adaptações consecutivas (já que nenhum expediente macabro de transubstanciação poderá transformar as mortalhas em fraldas) representam as zonas de risco na vida do indivíduo, precárias, perigosas, dolorosas, misteriosas e férteis,


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quando por um instante o tédio de viver é substituído pelo sofrimento de ser. (BECKETT, 2003, p.17-18.) O hábito é, portanto, um ajustamento automático do sujeito em camadas às condições de sua existência, ao seu meio imediato, ou seja, o hábito confere a automatização da atualidade subjetiva às diferentes camadas passadas que lhe compõe. A sucessão de hábitos corresponde à sucessão de indivíduos e a seus respectivos objetos, cabendo assim às realizações conterem a profusão de impulsos das diferentes camadas do sujeito, destinandolhes um objeto e, desta maneira, automatizando-as. Entretanto, os períodos de “transição” da automatização, nos quais o hábito ainda não embotou a percepção da realidade, provocam os movimentos de desautomatização do sujeito. Beckett considera estes breves períodos como zonas precárias e férteis para a subjetividade, uma vez que esta se depara com os seus sofrimentos, ou no caso de Proust, com as rememorações involuntárias de um tempo perdido. É ainda por meio da desautomatização que a criatura pode vislumbrar sua própria automatização. Isto ocorre por meio de um movimento da subjetividade sobre si mesma, quando ela consegue tomar consciência da impassibilidade de que é tomada devido ao efeito do hábito. As noções de “automatização” e “desautomatização”

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foram cunhadas por Vítor

Chklovski, em seu texto “A arte como procedimento”, de 1917; contudo, Fredric Jameson assinala que a própria teoria da metáfora de Proust “é, muito especificamente, a da desfamiliarização, que ele descobriu quase ao mesmo tempo que os formalistas russos.” (JAMESON, 2005, p.52). As conceituações elaboradas por Chklovski tinham como alvo a teoria de Potebnia, que por sua vez afirmou que “a arte é pensar por imagens”. Potebnia acreditava, assim, que as imagens eram predicados constantes para sujeitos variáveis, e que a arte era uma representação simplificadora da complexidade daquilo que “explicava”, uma vez que desempenhava uma função de ilustração daquilo que seria “reconhecido” em suas representações. Chklovski mostra, logo de saída, como a diferenciação entre a linguagem quotidiana e linguagem poética joga por terra as considerações de Potebnia, pois o princípio de reconhecimento deste, que seria inerente às construções artísticas, se inscreve efetivamente nas manifestações linguísticas prosaicas, as quais se apóiam no princípio de economia de energia e automatização da percepção. 1

Embora na edição brasileira o termo empregado em oposição à “automatização” tenha sido traduzido como “singularização”, neste trabalho usarei a palavra “desautomatização” para precisar a oposição existente os conceitos.


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Por sua vez, a concepção de arte cunhada de Chklovski se funda no efeito de desautomatização da linguagem poética, uma vez que para o autor o objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento consiste em obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de experimentar o devir do objeto, o que é já “passado” não importa para a arte. (CHKLOVSKI, 1978, p.45.) Assim, a desautomatização consiste na quebra da automatização de nossos sentidos por procedimentos estéticos que buscam prolongar a percepção do objeto artístico. Na poesia, em que a linguagem está em função da arte, a quebra do simples reconhecimento se dá por uma linguagem elaborada, obscura e cheia de obstáculos. O exemplo de Chklovski para ilustrar a automatização do sujeito é dado por uma passagem do diário de Leon Tolstoi, na qual o autor de Guerra e paz relata seu esquecimento quanto a ter secado ou não seu divã, isto apenas depois de uma breve volta pelo quarto. Por meio deste pequeno acontecimento, Tolstoi é levado a pensar em tanto como os movimentos da vida são habituais e inconscientes, quanto como a vida complexa de muita gente se desenrola sem ser percebida, “como se esta vida não tivesse sido”, “assim a vida desaparecida, se transforma em nada. A automatização engole os objetos, os hábitos, os móveis, a mulher e o medo à guerra.” (CHKLOVSKI, 1978, p.44.) Para Beckett, a automatização provocada pelo hábito pode ser vista pela posição do turista, “cuja experiência estética consiste em uma série de identificações e para quem um guia de viagem é um fim e não um meio.” (BECKETT, 2003, p.22.) Na ficção proustiana, dentre os vários exemplos de automatização, podemos citar uma breve passagem na qual Swann, depois de acometido de uma grande indignação com a amante, Odette, não consegue manter sua ira. Temos então a automatização da personagem à situação que lhe torturava há pouco, a saber, a perfídia de Odette ao lhe pedir dinheiro para promover um passeio do qual ele, Swann, não poderá fazer parte, além de ter dirigido sorrisos ao seu rival, Forcheville; assim, Swann é tomado por uma imagem desprezível de sua amante, Mas essa aparência nunca durava muito; ao cabo de alguns dias aquele olhar brilhante e falso ia perdendo o fulgor e a duplicidade, aquela imagem de uma Odette execrada dizendo a Forcheville: “Como ele está furioso, hem!”, começava a empalidecer, a apagar-se. Então,


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progressivamente reaparecia e elevava-se docemente brilhando, a face de outra Odette, daquela que também dirigia um sorriso a Forcheville, mas um sorriso em que não havia senão ternura para Swann, quando ela dizia: “Não demore muito, pois esse senhor não gosta que eu tenha visitas quando deseja estar junto de mim. Ah!, se conhecesse essa criatura como eu a conheço!”, aquele mesmo sorriso que tinha para agradecer a Swann algum sinal da sua delicadeza que ela tanto prezava, algum conselho que lhe pedira numa das graves emergências em que só nele depositava confiança. (PROUST, 2006, p. 367.) Beckett exemplifica a quebra do hábito - tratada aqui como a desautomatização do sujeito -, em dois episódios do Em busca do tempo perdido, a demonstração do primeiro será o suficiente para nossos intentos. O narrador, acompanhado de sua avó, chega a uma estação de veraneio na Normandia e se hospeda em um hotel. Apesar de seu cansaço devido à viagem exaustiva, não consegue dormir, pois sua atenção está tomada pela desconhecida mobília, por “uma tempestade de sons e uma agonia de cores.” Isso porque “o hábito não teve tempo ainda de silenciar as explosões do relógio, reduzir a hostilidade das cortinas roxas e rebaixar a abóboda inacessível desse belvedere.” (BECKETT, 2003, p.24). O episódio do quarto no qual se dá a desautomatização do sujeito serve de ignição para o sofrimento do narrador, que se depara com o medo da morte daqueles que ama. Este terror passa a ser ainda maior quando ele pensa que este sofrimento da separação irreversível de seus entes queridos será esquecido e superado, que a privação deixará de ser privação quando a alquimia do Hábito tiver transformado o indivíduo capaz de sofrimento em um estranho para quem os motivos daquele sofrimento serão não mais que uma história sem maior importância, quando não apenas os objetos de sua feição tiverem desaparecidos, mas também aquela própria afeição (BECKETT, 2003, p.25.) No trecho acima, o narrador de Proust toma consciência de que não poderá escapar da automatização provocada pelo hábito, e passa a compreender que a automatização permitirá tanto o acalento da morte de seus entes queridos, quanto o esquecimento do sofrimento consequente de cada uma delas. Além disso, demonstra como esta subjetividade, ao se encontrar livre dos grilhões do hábito, consegue se desautomatizar e pensar sobre a ação da automatização sobre si mesma, em uma reflexão prospectiva que delineia a superação dos sofrimentos futuros, isto é, a perda não só dos objetos de sua feição, mas também da própria feição a estes objetos irrecuperáveis.


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A memória, em Proust, também se liga ao hábito, uma vez que “o homem de boa memória nunca se lembra de nada, porque nunca esquece de nada. Sua memória é uniforme, uma criatura de rotina, simultaneamente condição e função de seu hábito impecável, um instrumento de referência e não de descoberta.” (BECKETT, 2003, p.29). Desta forma, a memória voluntária é a reminiscência daquilo que parece constante e passível de controle por parte do sujeito, que lhe aplica o protocolo rotineiro nas rememorações conscientes. Esta forma de memória é construída pela sustentabilidade do hábito e pelo esforço de apreensão da realidade, com o intuito de capturar aquilo que parece útil ao sujeito. Por isso, a curiosidade, segundo Beckett, é um reflexo não condicionado, que em suas manifestações mais primitivas é uma reação a estímulos perigosos: “a curiosidade é a salvaguarda, não a morte do gato, esteja ele à beira do telhado ou à frente da lareira.” (BECKETT, 2003, p.30). Portanto, a curiosidade tem uma aplicabilidade utilitária e automatizante para o sujeito. Beckett coloca a curiosidade em cena para demonstrar como os registros da memória relacionam-se diretamente com o empenho de atenção do sujeito, pois “quanto mais comprometido nosso interesse, mais indeletável o registro de suas impressões.” (BECKETT, 2003, p.30). Em contrapartida, os momentos de distração não se submetem às leis da rememoração, nem às leis do hábito, mas ainda assim são armazenados naquele último e inacessível calabouço de nosso ser. É neste reduto inacessível que Beckett acredita estar armazenada a essência de nós mesmos, o melhor de nossos muitos eus e suas aglutinações, que os simplistas chamam de mundo; o melhor, porque acumulado sorrateira, dolorosa e pacientemente a dois dedos do nariz da vulgaridade, a fina essência de uma divindade reprimida cuja disfazione sussurrada afoga-se na vociferação saudável de um apetite que abarca tudo, a pérola que pode desmentir nossa carapaça de cola e cal. Pode – quando escapamos para o anexo espaçoso da alienação mental, durante o sono ou nas raras folgas de loucura diurna. Desta fonte profunda, Proust alçará seu mundo. Sua obra não é um acidente, mas seu salvamento é. As circunstâncias deste acidente serão reveladas no ápice desta pré-visão. Um clímax de segunda-mão é melhor do que nada. Mas não há por que esconder o nome do mergulhador. Proust o chama de “memória involuntária”. A memória que não é memória, mas simples consulta ao índice remissivo do Velho Testamento do indivíduo, ele chama de “memória voluntária”. Esta é a memória uniforme da inteligência; é de confiança para a reprodução, perante nossa inspetoria satisfeita, daquelas impressões do passado formadas por ação consciente da inteligência. (BECKETT, 2003, p.31)


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A memória involuntária, conforme observa Beckett, apreende o que há de melhor nos sujeitos de maneira inconsciente (em seus momentos de distração), e por ela são armazenadas os momentos essenciais da subjetividade, ou seja: para Beckett, a essência dos muitos eus e de suas aglutinações que constituem o sujeito é formada pela memória que abarca o que nos escapa do controle consciente e passivo do hábito – que, por sua vez, está provido do interesse da curiosidade. Por esta memória é que se assomam as memórias não controladas pela inteligência, e que por isso têm o efeito desautomatizador sobre a vigilância do hábito. “A memória involuntária é explosiva”. (BECKETT, 2003, p.33). E é este gatilho da memória involuntária - tão caro à Proust - que dispara em seu romance as rememorações que são despertadas por um simples bolinho mergulhado em uma xícara de chá, pelos diversos cheiros, pelos diferentes motivos musicais etc. Deste modo, a desautomatização causada pela memória involuntária rompe com o esmaecimento da automatização sofrida pela personagem romanesca, desembotando-lhe a percepção ofuscada e segura da memória voluntária num arroubo de lembranças indomadas. A memória voluntária apresenta um passado monocromático, desinteressado pelo misterioso elemento de desatenção. Por meio desta memória, há apenas um reconhecimento da extensão do hábito. Para Proust, segundo Beckett, não há grande diferença entre a memória de um sonho e a memória da realidade: “Quando o sujeito adormecido acorda, esta emissária do hábito corre a lhe assegurar sua “personalidade” não desapareceu com sua fadiga - [...] - A memória voluntária insiste na mais necessária, salutar e monótona forma de plágio – o plágio de si mesmo.” (BECKETT, 2003, p.32.) Postas algumas considerações críticas de Samuel Beckett acerca do romance de Marcel Proust, podemos cotejar de que forma elas reverberam em alguns momentos da dramaturgia do crítico, além de possibilitarem, em certa medida, demonstrar como o radicalismo estético de Samuel Beckett aparece germinado em pontos em que a sua crítica se afasta de seu objeto de estudo para ganhar, anos mais tarde, contornos em sua própria criação. Todavia, para que se compreenda o caráter épico da dramaturgia de Samuel Beckett, faz-se necessário, primeiramente, a retomada de algumas das principais conceituações acerca do romance, para adentrarmos, posteriormente, naquilo a que Peter Szondi definiu como a “crise do drama moderno”, que é, em sua essência, a emersão de elementos épicos nas formas do drama moderno. Por extravasar a delimitação, 1880 – 1950, a crise ainda não foi discutida por


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Szondi na obra Samuel Beckett, por isso o escopo do teórico será ampliado ao discutirmos a crise do drama moderno ainda em vigor na peça A última gravação, de 1958. Em A última gravação, a história de Krapp emerge por intermédio de registros feitos em outros tempos. Este protagonista – velho, esfarrapado, bêbado e debilitado fisicamente -, apresenta reações dúbias aos acontecimentos por ele gravados, ora rechaçando-os violentamente, ora tomando-os como certos. Assim, incapaz de narrar o curso de vida e de se posicionar definitivamente frente às rememorações daquele que fora outrora, Krapp é impotente tanto ao acerto de contas a que se propõe, em uma espécie de contabilidade de sua vida, quanto a uma ação no presente, que modifique o decurso do presente cênico. Portanto, Krapp, assim como o narrador de Proust, está no encalço do tempo perdido, em pleno abandono do presente para uma busca nas profundezas do passado. Com isso, a atualidade cênica encontra-se marcada pela esterilidade de acontecimentos, dando a sensação de paralisia, visto que de fato nada acontece, pois tudo já aconteceu no passado de Krapp. Esta anomalia cênica, de um drama que não se passa diante dos expectadores, mas que está encarcerado na subjetividade do protagonista ou em um tempo distante, decorre da assimilação do épico no drama moderno, isto é, das premissas estruturais romanescas na dramaturgia de Samuel Beckett. Nos Cursos de estética, Hegel apontou o romance como o legítimo representante da arte romântica. Para Hegel, a arte romântica pode ser caracterizada, de maneira sintética, pela configuração da subjetividade infinita e pela incorporação do elemento contingente em suas formas. A subjetividade infinita desenvolve-se fechada em si mesma, sem uma conexão essencial com o mundo que lhe circunda, ou seja, o que as subjetividades românticas executam, suas finalidades e ações partem somente de sua individualidade, “são estes ânimos substanciais que encerram em si mesmo uma totalidade, mas em sua densidade simples eles realizam cada movimento profundo apenas neles mesmos, sem desenvolvimento e explicação para fora.” (HEGEL, 2000, p.316). Enquanto totalidade, cada subjetividade encerra um mundo completo e fechado, desta forma as subjetividades do romantismo estão desatadas do mundo circundante. Por isso seus movimentos se desencadeiam sem a ignição exterior, de forma que nem mesmo há explicitação ou justificação destes movimentos na efetividade. Como exemplo, podemos retomar o que acontece com o narrador do romance de Proust no episódio do hotel: a sua angústia nasce apenas de seu estranhamento ao ambiente não familiar, uma vez que ele é tomado pelo desespero sem qualquer acontecimento efetivo na realidade. Além disso, sua subjetividade consegue desdobrar-se sobre si mesma e dar contornos à sua


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futura e inescapável conformidade com as tragédias vindouras, que de fato ainda não aconteceram; desta forma, a subjetividade infinita do narrador proustiano fornece a causa da ação romanesca, sustenta o movimento em si mesma, além de refletir a respeito de sua própria condição, aprofundando-se, deste modo, no infinito de seu ânimo, sem o esgotamento de seu interior nas representações romanescas. O exterior, na arte romântica, também alcança liberdade para mover-se por si mesmo, alheio à subjetividade. Neste mundo prosaico as ações podem se apresentar as mais triviais ao mesmo tempo em que podem desencadear um movimento profundo e autônomo na subjetividade. O mundo romanesco nasce como lugar estranho ao sujeito desde seu início em Dom Quixote, como espaço em que a vontade da personagem encontra apenas resistência e inadequação: “pois cada um encontra diante de si um mundo encantado, para ele completamente inapropriado, o qual ele deve combater, pois este mundo fecha-se para ele e em sua firmeza áspera não cede às paixões, mas impõe a vontade de um pai, de uma tia, das relações civis etc.” (HEGEL, 2000, p. 328). Samuel Beckett, representante característico do drama épico, configura o mundo contingente do romance em sua esterilidade absoluta e literal por meio da representação do deserto natural ou de espaços que retratam a devastação humana e seus despojos em suas peças centrais como Esperando por Godot, Fim de partida e Dias felizes. A capacidade de configurar a dissonância do mundo, e de incorporar às suas configurações todas as outras formas, torna o romance o gênero moderno por excelência. Com isso, suas formas emergem como o “dominante” frente às configurações do drama, que sofre o contágio das premissas estruturais romanescas em sua produção moderna, período da crise de suas formas. O conceito de “dominante”, segundo Roman Jakobson, pode ser visto como “sendo o centro de enfoque de um trabalho artístico: ele regulamenta, determina e transforma os seus outros componentes.” (JAKOBSON, 2002, p.513). Em uma dimensão maior, isto é, como determinante da arte de uma época, o dominante pode definir e modificar substancialmente a série de valores culturais dos trabalhos artísticos comparados aos trabalhos de outras épocas. A sobredeterminação do romance nas configurações do drama moderno toma relevo na Teoria do drama moderno, obra na qual a crise do drama pode ser lida como a inexorável emersão do elemento épico na dramaturgia moderna. Neste livro, Peter Szondi demonstra como o drama moderno assimila a cisão do sujeito com o seu mundo, incorporando características romanescas que se tornam problemáticas para a representação cênica. No


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monólogo A última gravação, a subjetividade infinita de Krapp, indubitavelmente romanesca, conversa em seu interior o que comumente deveria ser evidenciado na representação dramática para dar a conhecer ao expectador a narrativa de forma acabada. Contudo, o que de fato este drama desenvolve são escombros de uma narrativa, fornecidos por trechos breves de gravações pouco confiáveis, com reações ambíguas da personagem que não consegue manter uma posição sobre o seu passado, tornando a encenação precária e inconclusiva. Disso decorre a dissolução do drama como narrativa expositiva, pautada no diálogo e na troca intersubjetiva. Como no drama a corrosão das personagens não pode ser feita pelo passar dos anos no palco, o drama absorve a corrosão das personagens romanescas pela restituição do passado ao presente cênico. Assim, a atualidade cênica se torna apenas um pretexto para invocar o passado, ou seja, o tema não é nada do que se passou, mas o próprio passado: os “longos anos” tantas vezes mencionado e a “vida totalmente arruinada, perdida”. Mas isso tudo escapa ao presente dramático. Pois só pode ser presentificado, no sentido da atualização dramática, um fragmento do tempo, não o próprio tempo. No drama não pode haver senão um relato sobre o tempo, ao passo que sua representação direta é unicamente possível em uma forma de arte que o assume “na série de seus princípios constitutivos”. Essa forma é – como mostrou G. Lukács – o romance. (SZONDI, 2003, p.43.) Assim, o drama que a princípio configurava apenas o presente em suas formas, com intuito de dramatizar determinada narrativa, assimila o passado romanesco. Contudo, este passado, devido à essência do drama, não avança abarcando o passar do tempo, pois o passado dramático é possível somente enquanto relato “sobre” o tempo, uma vez que cabe unicamente ao romance focar diferentes épocas em suas configurações. Logo, o drama assimila o passado como narrativa acabada e encerrada, que se realiza não pela efetivação cênica, mas pelo seu resgate à cena através das subjetividades das personagens, que abandonam suas ações presentes para se entregarem às rememorações de acontecimentos que justifiquem sua situação na atualidade cênica. Neste ponto, com incorporação do passado no drama, podemos discutir o quanto a crítica de Samuel Beckett serve de prenúncio estético, em considerações que às vezes derrapam em contato com o seu objeto. Pois, se por um lado, em Proust as diferentes camadas de seu narrador conseguem atar de fato o presente ao passado, na construção de pontes


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memorialísticas, ou até mesmo criar antevisões do futuro, que dão acesso a qualquer tempo dentro do romance, por outro lado, as considerações de Samuel Beckett sobre uma corrosão violenta, na qual o sujeito a cada momento torna-se outro, estranho a si mesmo, encontram certa contestabilidade. Isso porque o sujeito narrativo proustiano consegue manter uma unidade subjetiva, mesmo que modificada. Quando uma memória se assoma em seu horizonte, ele a reconhece como uma extensão de seu ser. O contrário pode ser vislumbrado em A última gravação, pois o sujeito de anos atrás que é escutado na gravação, é um outro, de familiaridade discutível para a criatura do presente: A Fita Acabei agora mesmo de ouvir um ano antigo, passagens ao acaso. Não verifiquei no livro, mas a coisa deve remontar a uns dez ou doze anos atrás – pelo menos. Julgo que nessa altura vivia ainda com Bianca em Kedar Street, enfim, quando a Deus prazia. Escapei de boa, oh, se escapei! Era um caso perdido. (Pausa). Nada a respeito dela, à parte uma homenagem aos seus olhos. Entusiástica. Tornei a vê-los de repente. (Pausa). Incomparáveis! (Pausa). Enfim... (Pausa). Sinistras estas exumações, mas acho-as as mais das vezes – (Krapp desliga o aparelho, devaneia, torna a ligar o aparelho) utéis antes de me lançar a um novo... (hesita) volta atrás. Difícil acreditar que eu tenha sido alguma vez aquele cretinóide. Aquela voz! [...] Jesus! E aquelas aspirações! (Risada breve a que se junta Krapp) E aquelas resoluções! (BECKETT, s/d, p.225.) Krapp ilustra a teorização romanesca elaborada por Samuel Beckett em Proust de maneira rigorosa. O sujeito que se transforma no tempo, de fato, torna-se outro, diferente do que um dia fora no passado. E em contraposição ao narrador proustiano, o passado não figura como uma extensão temporal para Krapp, sua camada de um ano antigo vem à tona como uma alteridade que colide com o protagonista no presente cênico. Desta forma, a violenta corrosão que Beckett acredita estar no romance de Proust, aparece mais assentadamente no embate de Krapp com aquele do passado, que não é reconhecido na atualidade cênica: “Difícil acreditar que eu tenha sido alguma vez aquele cretinóide. Aquela voz!” As aspirações, que impedem a subjetividade em camadas de tomar a profusão de caminhos decorrentes de seus diferentes desejos, são responsáveis por dar um direcionamento à subjetividade em camadas. Os resultados alcançados a partir destas aspirações encontram-se descompassados em relação aos desejos almejados, pois o sujeito cambiante modifica-se no trajeto de suas realizações. Isso é corroborado, neste trecho, nas afirmativas de Krapp: “Jesus! E aquelas aspirações! E


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aquelas resoluções!”, em que a criatura do presente rechaça as aspirações e resoluções passadas, que não correspondem às suas vontades atuais. Na peça, as realizações reverberam com maior intensidade nas escolhas aparentemente erradas de Krapp, que resultaram em sua miséria atual. Delas se destaca o abandono de seu grande amor para a dedicação aos seus estudos, que resultaram em uma obra literária fracassada. A divisão do sujeito, assinalada por Beckett em sua crítica, pode ser vista no quadro cênico apresentado, uma vez que ele serve como um ponto convergente da subjetividade em camadas, que possibilita inclusive a observação da divisão dos sujeitos: em sujeito “A”, aquele que comenta a audição de uma fita do passado; em sujeito “B”, o qual ainda vivia com Bianca na Kedar Street, comentado pelo sujeito “A”; e em sujeito “C”, o qual está na superfície cênica e que escuta os comentários do sujeito “A” acerca do sujeito “B”. A subjetividade de Krapp desdobra-se sobre si mesma em ações independentes do mundo contingente, de maneira análoga ao que acontece com as criaturas romanescas. A corrosão de Krapp é, assim como em Proust, fruto da influência do tempo. Porém, a ação do tempo em sua subjetividade tem como resultado a ruína de sua identidade, pois o sujeito de superfície da personagem nem sequer compreende os principais acontecimentos que marcaram sua vida no passado. Vemos a seguir: A Fita - volta atrás ao ano passado, com possivelmente -espero – alguma coisa do meu velho olhar por vir, existe naturalmente a casa do canal onde mamã se extinguia, no Outono moribundo, após uma longa viuvez (Krapp estremece), e o – (Krapp desliga o aparelho, põe a fita um pouco mais atrás, aproxima o ouvido do aparelho, torna a ligá-lo) – se extinguia, no Outono moribundo, após uma longa viuvez, e o – Krapp desliga o aparelho, levanta a cabeça, olhos fitos no vazio. Mexe os lábios sem ruído formando as sílabas viuvez. Levanta-se, vai para o fundo da cena que está na obscuridade, volta com um dicionário enorme, senta-se, pousa-o sobre a mesa e procura a palavra. (BECKETT, s/d, p.226-227) Krapp não consegue se lembrar do que foi a viuvez de sua mãe, e no intuito de compreender do que se trata, consulta o dicionário. Desta forma, a personagem mostra-se incapaz de concatenar assim os fatos mais relevantes de sua vida com o presente. Por conseguinte, Beckett, ao pensar sobre a dicotomia radical entre passado/esquecimento na obra de Proust, constrói um pensamento que soa como um eufemismo se projetado na obra Em


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busca do tempo perdido, mas que por outro lado adéqua-se muito bem a sua própria criação. Continua a citação: Krapp (lendo o dicionário) - Estado – ou condição – de quem é – ou permanece viúvo – ou viúva. (Levanta a cabeça. Intrigado). Quem é – ou permanece?... (Pausa. Inclina-se de novo sobre o dicionário, volta as páginas). Viúvo... viúvo... viuvez (Lendo). Os véus espessos da viuvez... Diz-se de um animal, particularmente de um pássaro... Viùvinha ou viúva... A plumagem negra dos machos... (Levanta a cabeça. Com deleite). A viùvinha! (Ibidem) De fato, Krapp se atrapalha na tentativa de compreender ao que se refere a voz do passado ouvida em cena. A viuvez de sua mãe, acontecimento por si só marcante, não apenas é esquecido como também é de difícil compreensão para o velho Krapp, que aparentemente opta pela definição menos plausível de viuvez para esta situação. A conclusão deste trecho é executada somente na subjetividade do protagonista, de modo que visualizamos apenas o deleite de Krapp. Este deleite da personagem sintomatiza o problema da assimilação de características do romance no drama, pois, ao final deste trecho, não sabemos ao certo qual é o motivo da satisfação da personagem, por se tratar de uma reação essencialmente subjetiva. Deste deleite, podemos deduzir - senão até mesmo afirmar - que esta satisfação é proveniente da relação conclusiva que Krapp faz da sua mãe como a viuvinha, ou seja: pássaro macho de plumagens negras. Portanto, a criatura de Beckett é incapaz de formular sem indivisão uma síntese unificadora. Suas tentativas de um novo registro fracassam nas frases que exprimem apenas a gagueira da união dos tempos idos com o dizer improdutivo da reflexão do presente: Krapp -Acabei de ouvir este cretinóide por quem me tomava há trinta anos custa a acreditar que eu já tenho sido bandalho a tal ponto. Ao menos isso acabou, graças a Deus. (Pausa). Os olhos que ela tinha! (Divaga, apercebe-se que está a gravar o silêncio, desliga o aparelho, divaga. Por fim). Tudo ali estava, toda a – (Apercebe-se que o aparelho não está ligado, torna a ligá-lo). Tudo ali estava, toda a velha carcaça do planeta, toda a luz e a obscuridade, a fome e as comezainas dos... (hesita) séculos! Deixar fugir uma coisa daquelas! Jesus! Uma coisa que poderia tê-lo distraído dos seus queridos estudos! Jesus! (Pausa.


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Com cansaço). Enfim, talvez ele tivesse razão. (BECKETT, s/d, p. 230-231) Nesta passagem, Krapp falha nas repetidas tentativas de elaboração de um pensamento detido sobre o cretinóide que ele fora em outros tempos, suas frases não conseguem coordenar o passado com a impressão do momento. Assim, estes períodos fragmentam cada momento da personagem em pequenos trechos sem ligação entre si, a interrupção do discurso a cada momento torna-o tateante e sem forças para considerações críticas. Esta estrutura possibilita a oscilação da personagem entre conclusões que ora considera acertadas ora erradas em relação ao abandono da mulher com a qual conviveu. A gagueira discursiva de Krapp demonstra ainda o caráter essencialmente corrosivo de Samuel Beckett, que se aproxima mais de autores como Gustave Flaubert do que Marcel Proust, haja vista a velocidade da corrosão sofrida pela personagem nesta citação, que inicia seu registro com o intuito de refutar seu amor do passado e que depois de duas frases se entrega às lembranças dos “olhos que ela tinha.” Ao final desta citação, Krapp se curva à opinião de seu sujeito do passado, que é tratado com distância no início deste trecho ao ser concebido como “este cretinóide por quem me tomava há trinta anos”, e que em um breve período sofre a corrosão inexorável que o transforma a ponto de o que, a princípio, era uma represália com distanciamento crítico tornar-se, finalmente, um consentimento derrotado: “Enfim, talvez ele tivesse razão”; claro, ainda em uma concordância incerta pelo emprego do “talvez”. Já em Proust, temos as frases que parecem ter a potência e amplitude de concatenar indefinidamente o tempo e seus diferentes desdobramentos, de retomar e reconstruir os recônditos mais inacessíveis das sensações experimentadas por seu narrador. As frases proustianas unem as diferentes camadas corroídas das personagens, que ainda conseguem projetar-se rumo a um escopo, subjetivo ou temporal, destoando do que afirmou Beckett em sua teorização sobre o romance: E seu eu perguntava: “Conhece os Guermantes?”, o causeur Legrandin respondia: “Não, nunca quis conhecê-los”. Infelizmente respondia tarde, pois um outro Legrandin que ele ocultava cuidadosamente no fundo de si mesmo e que não mostrava nunca, porque esse Legrandin sabia sobre o nosso, sobre o seu esnobismo, histórias comprometedoras, um outro Legrandin já tinha respondido com a expressão do olhar, com o ricto de boca, com a gravidade excessiva do tom da resposta, com mil flechadas que nosso Legrandin se vira em um instante crivado e desfalecente, como um são Sebastião do esnobismo: “Ah, que mal me faz! Eu não conheço os Guermantes,


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não me venha despertar a grande dor de minha vida”. E como esse Legrandin indiscreto, esse Legrandin falastrão, se não tinha a bonita linguagem do outro, tinha o verbo infinitamente mais pronto, composto do que se chama “reflexões”, quando o Legrandin “bom conservador” queria impor-lhe silêncio, o outro já tinha falado e, por mais que nosso amigo se desolasse com a má impressão que as revelações de seu alter ego deviam causar, o mais que podia fazer era atenuá-la. (PROUST, 2006, p.169-170.) O trecho acima condensa duas diferentes camadas de Legrandin: uma na qual emerge espontaneamente o esnobe Legrandin, e que é mantida oculta no fundo da própria personagem, que sabe da inconveniência de suas opiniões; e outra, a qual é conhecida pelo narrador como um bom conservador, que busca remediar a sensação dissonante causada pela sua impulsividade. Assim, encontramos a sobreposição destas camadas em frases que desenvolvem a contradição das camadas simultaneamente. O poder de articulação do qual se serve o narrador de Proust evidencia-se na reflexão que procura atenuar o movimento em falso dado por Legrandin ao deixar emergir sua faceta esnobe. Vemos que neste romance ainda é possível convergir o pensamento de subjetividades cindidas para a expressão da corrosão da personagem, que mesmo disposta em diferentes camadas, ainda consegue tornar o resultado de sua composição heterogênea exprimível. Deste modo, o distanciamento crítico de Legrandin consegue enlaçar uma dissonância presente em sua subjetividade e remediá-la na medida do possível. As frases de Proust comportam as dissonâncias, o distanciamento crítico e as observações de seu narrador em grandes períodos que parecem abarcar tudo a sua volta e dentro de si mesmo. Samuel Beckett não nos apresenta uma obra crítica incoerente em Proust, mas um ímpeto criativo em germinação que transborda frente ao seu objeto. Pois a potência de sua própria estética, que foi concretizada de fato anos mais tarde, parece ter impregnado a crítica acerca de Proust a tal ponto que podemos voltá-la à sua própria obra, ou decompô-la em pontos nos quais o objeto de sua análise escapa ao radicalismo de suas considerações. Não por acaso este livro assinala a renúncia de seu esforço docente para a dedicação à criação de sua própria obra, isto é, o abandono da simples recepção para a criação de uma obra única e incontornável na história da literatura.


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Referências AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Pespectiva, 2007. BECKETT, Samuel. Dias felizes. Lisboa: Editorial Estampa, 1998. _____. Esperando por Godot. São Paulo: Cosac & Naify, 2005. _____. Fim de partida. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. _____. Proust. São Paulo: Cosac & Naify, 2003. _____. Teatro de Samuel Beckett. Lisboa: Editora Arcádia, [19--]. EIKHENBAUM, Boris. et al. Teoria da literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Editora Globo, 1978. HEGEL, G. W. F. Cursos de Estética. 4vols. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000. JAMESON, Fredric. Modernidade singular: ensaio sobre a ontologia do presente. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. JAKOBSON, Roman. O dominante. In: LIMA, Luiz Costa. Teoria da literatura em suas fontes. 2vols. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. LUKÁCS, Georg. A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. 7vols. São Paulo: Globo, 2006. SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880-1950). São Paulo: Cosac Naify Edições, 2003.


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A DAMA DO LOTAÇÃO: UM CASO DE AMOR, INFIDELIDADE E MORTE Andréa Beraldo Borde1

Resumo: Este trabalho apresenta uma análise do conto A dama do lotação, de autoria de Nelson Rodrigues, de modo a observar como a temática amorosa foi explorada pelo autor em um contexto moderno que perpassava por profundas alterações comportamentais. O conto extraído da coluna A vida como ela é..., do extinto jornal Última Hora, aborda um assunto recorrente em suas quase duas mil histórias: traição. Do casamento pautado nos moldes tradicionais até à liberdade sexual vivenciada pela protagonista do enredo, encontramos a crítica Rodriguiana ao florescer de uma revolução sexual que defendia igualdade entre os sexos. Solange, a “dama” do lotação, será retratada pelo autor como uma mulher dúbia, capaz de manter uma conduta em casa e, outra, na rua. Palavras-chave: Amor, Traição, Revolução sexual A DAMA DO LOTAÇÃO: A CASE OF LOVE, INFIDELITY AND DEATH Abstract: This paper presents an analysis of the short story A dama do lotação, written by Nelson Rodrigues. The author discusses how the theme of love has been explored in a modern context that pervaded by profound behavioral changes. The tale drawn from Última Hora newspaper column, A vida como ela é ..., discusses the reoccurring theme of treason in his nearly two thousand of his stories. Wedding lined up along traditional lines for sexual freedom experienced by the protagonist of the plot, we find the critical Rodriguean, the blossoming of a sexual revolution that advocated gender equality. Solange, the "lady" of the stocking, will be portrayed by the author as a dubious woman, able to maintain proper conduct at home and another type of conduct on the street.

Key-words: Love, Treason, Sexual revolution

O conto A dama do lotação, de autoria de Nelson Rodrigues, compõe a coluna A vida como ela é..., escrita entre 1951 e 1961 para o jornal carioca Última Hora. A coluna, que tinha primeiramente seu posto bem delimitado nas páginas policiais, apresentava contos que versavam sobre crimes passionais e traições, mais especificamente, as femininas. É notória a gama de personagens femininas que, insatisfeitas com seus maridos e com os rumos de seus casamentos, partem à procura de novos companheiros e de novas formas de amor.

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Mestre em Literatura e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura da Universidade Federal da Bahia. Professora de Literatura Brasileira da União Metropolitana de Educação. andreaborde@hotmail.com


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Produzido ao longo de uma década, os referidos contos de Nelson Rodrigues acompanharam um momento bastante significativo da história do comportamento humano: o desabrochar da Revolução Sexual, consolidada nos anos 60 a partir de conquistas como o sufrágio universal, a proteção legal para trabalhadoras gestantes, a criação de delegacias especiais para crimes contra as mulheres e a veiculação da pílula anticoncepcional, dentre outras especificidades ligadas ao gênero feminino. O conto – A dama do lotação – aborda e discute questões problemáticas para o seu contexto de produção, um momento ainda arraigado tão somente a um sistema patriarcal de organização familiar, que preconizava uma série de normas, de condutas sociais e morais tanto para homens quanto para mulheres. Preocupado com as diretrizes que a família estava tomando neste novo cenário moderno, Nelson Rodrigues apresentava críticas ao início de um forte abalo das estruturas sociais vigentes, mostrando o deslocamento do poder masculino, fortalecido nas mãos da figura paterna, para novos arranjos familiares, como a chefia da família nas mãos de mulheres, de mães solteiras, de homossexuais, que passam a dar novas configurações para a estrutura familiar, e como esses novos imperativos solapavam a força e a virilidade masculina. Desse modo, os contos de A vida como ela é... apresentam um caráter “didático” para seus leitores (vale lembrar que o público alvo eram os homens), uma forma de denúncia acerca do desenrolar da emancipação feminina, vista como “indecente” para os mais conservadores. Nos contos, é comum encontrarmos a figura do marido como um ser destituído de força, virilidade, dos atributos que deveriam compor o exemplar de “homem” da década de 50/60, em contrapartida com as qualidades dos amantes, normalmente apresentados como homens em pleno vigor físico e sexual. O conto A dama do lotação é narrado em terceira pessoa, sendo intercalado por diálogos diretos que, logo de início, já apresentam a tensão que envolve as personagens. Trata-se, em suma, da história de Carlinhos, homem trabalhador e casado com Solange, que, um dia, durante um jantar em casa, que tinha como convidado o melhor amigo do casal – o Assunção -, começa a desconfiar da honra de sua esposa, já que durante um incidente (o guardanapo que caiu no chão o fez se abaixar e presenciar a cena: sua tão pura esposa esfregava seus próprios pés nos pés do amigo Assunção), adquire motivos para tais desconfianças. Mesmo após desabafar com o pai, um viúvo e general bem respeitado, que se mostra espantadíssimo com as incabíveis suspeitas do filho e o aconselha a esquecer das suas dúvidas, Carlinhos continua a se questionar sobre um possível relacionamento extraconjugal


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de sua esposa. Dias após o “incidente”, ele encontra seu amigo Assunção na rua e este conta que havia se encontrado, por acaso, com Solange, precisamente dentro de um lotação. Intrigado com a situação, Carlinhos mente e afirma que a esposa já havia lhe contado sobre o encontro. Em casa, questiona a mulher se ela teria visto Assunção por aqueles dias e ela, entretida em pintar as unhas, afirma que não via o tal amigo há algum tempo. Carlinhos dirige-se para o escritório da casa, saca uma arma e chama Solange aos berros para uma conversa. Após trancar a porta, tem início um diálogo intimidador – através da presença da arma –, e ele lança uma pista falsa para sua esposa, afirmando que já sabia de todo o seu caso com Assunção. Ela, “até então passiva e apenas espantada” (RODRIGUES, 1992, p. 221), tenta negar a suposta traição, mas quando Carlinhos ameaça matar o amigo como forma de vingança, Solange, desesperada, se agarra ao marido e confessa que Assunção não era o único; existiam mais amantes. Assim, a esposa começa a confessar o que fazia cotidianamente dentro dos lotações, afirmando que parecia que não era ela mesma quem ia para aqueles encontros fortuitos. Nas palavras do próprio Carlinhos, quase que a metade do Rio de Janeiro já havia se deitado com Solange e, sem conseguir expressar palavras ou gestos de ódio, o marido apenas declara que, a partir daquele dia, estava morto para o mundo. Dirige-se então para seu quarto, veste-se formalmente e deita-se na cama, recriando a posição de um morto. A esposa, ao ver tal cena, fica estarrecida e, logo após, produz-se com uma indumentária peculiar: iria velar seu marido vivo. No dia seguinte, pela tarde, ela veste-se tranquilamente, como todos os outros dias de sua vida, e se dirige para o lotação. No fim da tarde, volta para casa e continua a velar o marido vivo. Toda a narrativa é contada por um narrador irônico e mordaz, que, conhecedor da história, narra-a com tal destreza que consegue encadear as tensões do conto, de modo a culminar em um final surpreendente. A linguagem é tida como inovadora para seu contexto de produção, apresentando diálogos curtos e rápidos, os quais acabam ecoando o ritmo acelerado das cidades e encontra nos jornais local profícuo para sua circulação. Assim, a produção e a análise do conto trazem em si elementos que podem servir de base para a visualização de um período de transição. Solange, personificando a imagem do perigo que uma esposa dúbia podia oferecer, trata-se da denúncia de Nelson Rodrigues: os maridos deveriam ficar atentos às suas mulheres, por mais puras e angelicais que elas pudessem se mostrar. A graça e a limpidez de Solange, descritas pelo narrador e alicerçadas através do diálogo do pai de Carlinhos, apresentam uma figura que consegue manter uma


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aparência dentro de casa e outra na rua. Tratava-se da nova mulher que despontava no final na década de 50: uma mulher sagaz, conhecedora e perseguidora de seus desejos mais secretos. A personagem Solange constitui-se, destarte, como uma figura emblemática, representando o medo que a “nova” mulher despertava nos homens mais conservadores. Na década de 50, a honra feminina estava atrelada à manutenção de um corpo puro e destituído de desejos, mantendo a “moça de família” como o modelo de garota a ser seguido, ao contrário do homem, que mantinha sua honra através dos exercícios constantes de virilidade, como a façanha de inúmeros adultérios, os quais ainda eram vistos como algo próprio da natureza masculina. Já o adultério feminino, se constituía como uma ruptura com todo o sistema dominante, na medida em que reformulava novos tipos de comportamentos sexuais para as mulheres, além de, no pensamento da época, estampar a incapacidade de gerenciamento da mulher e do lar por parte do homem, que tinha a sua virilidade posta à prova, uma vez que a cônjuge precisava encontrar fora de casa um amante capaz de suprir suas “necessidades”, o que denunciava algum tipo de “incapacidade” por parte do marido traído. De tal modo, a personagem Solange é marcada por dualidades: vida privada x vida pública; esposa fiel x esposa infiel; manutenção de uma imagem social x uma imagem clandestina. A análise do conto em questão nos permite discutir a nova configuração que o casamento atravessava nos idos de 1950. Calcado em uma concepção cristã de mundo, no Brasil, ao longo do tempo, foi reproduzida uma percepção pecaminosa de sexo, exigindo a criteriosa proibição de tudo o que implicasse e resultasse em prazer. Assim, o casamento, nos moldes do cristianismo, era concebido como um sacramento, em que uma “mulher de princípios, nada deveria saber sobre sexo” (Priore, 2006, p. 198), cabendo tão somente ao homem o papel de professor de sua esposa durante a tão sonhada lua-de-mel, uma vez que o homem era tido como o gestor da autoridade moral, e à mulher cabia o papel de salvaguardar a afetividade e o controle de sua sexualidade, baseada, sobretudo, em uma honra inatingível, afinal, ela era o “sexo frágil”. Segundo a historiadora Mary Del Priore, “o desejo sexual constituía-se em um direito exclusivo do homem, cabendo às esposas, a submissão e a virtude.” (Priore, 2006, p. 31). Assim, uma série de códigos regia a vida de homens e mulheres dessa época, ficando relegada às mulheres uma extrema submissão de suas vontades em prol de um casamento “saudável” e adequado às normas do “bem viver”. Para Priore, “como esposa, seu valor perante a sociedade


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estava diretamente ligado à ‘honestidade’ expressa em seu recato, pelo exercício de suas funções no lar e pelos numerosos filhos que daria ao marido” (Priore, 2006, p. 145). Nesta conjuntura coercitiva, o sexo era visto como a principal questão tabu da sociedade. O ser feminino era criado simplesmente para compor um casamento, ser mãe e condutora de um lar harmonioso e tranquilo para seu marido. O signo “mulher” estava atrelado à significação da maternidade, a reprodutora de um lar repleto de uma numerosa e virtuosa descendência. Vale lembrar que, nos moldes desse casamento de meados do século XX, pressupunha-se uma sexualidade normalizada, que tinha como único fim a procriação da espécie. As questões concernentes ao orgasmo, principalmente o feminino, não eram discutidas, ficando na base dos interditos de uma sociedade opressora e machista. Fora do casamento, nenhuma sexualidade “normal” tinha o direito de se exprimir. A partir do começo da década de 60 tem início um dos maiores movimentos da sociedade: a Revolução Sexual, gestada ao longo de anos e impulsionada por mulheres que, cansadas de séculos de opressão por parte da sociedade, inventam novos moldes de encarar o amor, o sexo, o casamento, a maternidade, o trabalho. O estopim surge com a circulação da pílula anticoncepcional, com os escritos de Simone de Beauvoir e o consequente desligamento da figura da mulher associada à maternidade, garantindo que questões tabus, como o orgasmo, fossem discutidas por outras mulheres, as quais começam a partir em busca de suas satisfações. Nesse contexto, a dominação masculina estava tão impregnada como algo natural de nossa sociedade, que diversas questões relacionadas ao poder simbólico do sexo masculino passavam despercebidas. Homens e mulheres viviam uma situação hierarquizada e inabalável (também não podemos pensar que essa dinâmica, arquitetada como um constructo social naturalizado, era unilateral. O poder era e é opressor sim, mas muitas vezes a mulher também contribuiu para esse conjunto de domínio de forma passiva, assumindo uma identidade feminina basilada na pureza e na castidade, como na expressão “sou moça de família”). Em decorrência dessa revolução, hoje temos o que é chamado de “família mutilada”, caracterizada pela “inversão” dos papéis sexuais, constituindo-se em um novo paradigma da família afetiva contemporânea. É de se notar que a revolução criou profundas máculas nos homens, que viram seu poder ser destituído e apossado por mulheres que abriram mão de uma seguridade e estabilidade em casamentos que não traziam a felicidade tão almejada e vendida nos romances, estes que também já denunciavam há tempos mulheres insatisfeitas em casamentos


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indissolúveis, que partiam em busca de felicidade nos braços de amantes – os clássicos amores impossíveis, como no tão citado O Primo Basílio e Madame Bovary. Em A dama do lotação, é apresentada a mesma estrutura do casamento dos anos 50, mas com uma esposa que foge aos padrões da “boa conduta”, uma vez que não consegue frear os seus impulsos sexuais. Solange, no entender de Rodrigues, e da sociedade da sua época, deveria canalizar a sua sexualidade, controlar sua libido, já que a sexualidade estava tão somente atrelada à reprodução humana. Mas, ao contrário do que preconizavam as normas, Solange desconstrói todo o modelo de esposa da época. No conto, o lotação é o local onde a personagem encontra os seus parceiros sexuais, constituindo-se como revelador de significativas mudanças da sociedade em questão. Solange, todos os dias pela tarde entra no primeiro lotação que aparece e se senta ao lado de qualquer cavalheiro que esteja só – “Podia ser velho, moço, feio ou bonito” (Rodrigues, 1992, p. 222). O contexto sócio-histórico de A dama do lotação perpassava pela modernização acelerada das cidades brasileiras, que, após a Segunda Guerra Mundial, sofria com as influências de uma industrialização exacerbada. É a partir dos primeiros anos do século XX que as cidades brasileiras começam a se modernizar e a criarem novos espaços de entretenimento para a população. A classe média foi uma das grandes beneficiadas neste momento, vivendo um período de grande ascensão econômica e ampliando, dessa forma, seu acesso à informação, ao consumo em massa e ao lazer. O mercado de trabalho também se abria para as mulheres, que ajudavam a complementar o orçamento familiar (nos contos de A vida como ela é... é significativo o número de mulheres que trabalham em repartições públicas, com suas inúmeras secretárias e datilógrafas). Com as cidades em expansão, ocorre a possibilidade de encontros fortuitos que a própria cidade proporciona, como uma maior freqüência às praças, jardins, zoológicos, ônibus. Rodrigues pontua, através de seus textos, o perigo que tais espaços poderiam oferecer à honra de muitas mulheres, que passavam a encontrar abrigo seguro nos automóveis de seus namorados, por exemplo. Dessa forma, inúmeras são as personagens rodriguianas que apresentam um comportamento desviante das normas, colocando em dúvida/suspensão, mais uma vez, o poder e o papel masculino. Na modernidade, os valores da experiência individual passam a constituir a identidade do indivíduo, agregando agora uma identidade feminina. No conto, a cidade é muito mais do que um simples cenário, do que a descrição do espaço físico, e a presença de certos elementos (como o ônibus) estabelecem uma relação profunda com o personagem. O espaço urbano atua


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sensivelmente na trama e a agilidade dos diálogos traduz o ritmo acelerado da cidade. Na rua, podem-se revelar segredos que não são ditos dentro de casa, estabelecendo uma divisão entre o público e o privado, e a metrópole possibilita ao indivíduo a confissão de certas coisas, encontrando na multidão e no anonimato o conforto para suas confissões. O automóvel, um dos símbolos da modernidade, aparece desse modo, como também símbolo recorrente na obra de Nelson Rodrigues. Estar “dentro” de um automóvel é deter poder, mesmo que por um curto período de tempo, e a “dama do lotação” aproveita esse espaço para poder selecionar os seus amantes anônimos, tendo a possibilidade de fugir de sua realidade de dona do lar. Portanto, Solange parte à procura de seus possíveis amantes justamente neste símbolo da modernidade, o lotação, que no contexto moderno das grandes cidades é quem leva a grande massa de trabalhadores para seus respectivos empregos. No conto, Solange relata que seu primeiro amante foi um mecânico desconhecido, “de macacão azul, que saltaria pouco adiante” (Rodrigues, 1992, p. 222), seguido por outros trabalhadores, como o motorista de um dos ônibus, que já conhecia a fama da dama do lotação e que “fingiu um enguiço, para acompanhá-la” (Rodrigues, 1992, p. 222). A personagem Solange, instada pelo marido a contar como foi que tudo começou, passa a narrar “sem excitação, numa calma intensa”, os detalhes de sua sórdida procura. Todos os dias, pela tarde, saía para procurar suas “vítimas” e, assim, a temática do adultério é explorada ao longo da narrativa, apresentando uma jovem esposa que tinha problemas em lidar com sua sexualidade. O mais fantástico da história é que durante dois anos, religiosamente todos os dias pela tarde, ela cometia seu “crime” e ainda conseguia assegurar sua imagem de esposa fiel no lar. Segundo Eduardo Leal, a família é o território de fronteira entre o público e o privado, constituindo-se o adultério como uma violação de um contrato estabelecido entre duas pessoas – o próprio casamento. A mulher é tratada como um lugar reservado, essencialmente doméstico e a sociedade é alicerçada em pactos, em contratos, que garantem ao indivíduo uma sensação de pertencimento. No adultério, o elemento central trata-se da entrada de um terceiro na relação, uma figura estranha, “estrangeira”, que acaba ameaçando o equilíbrio do contrato matrimonial. Em A dama do lotação não existe a figura una de um amante, mas de vários, o que impossibilita que o esposo possa “limpar” a sua honra, recorrendo, dessa forma, a uma morte simbólica, a uma morte social.


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A questão da infidelidade feminina é muito mais caótica em nossa sociedade, já que o adultério feminino está em direta correlação com a masculinidade, com a honra e, mais ainda, com a virilidade do esposo traído. Recorrer a outros parceiros, fora do casamento, de acordo com o pensamento de Rodrigues, revela uma não satisfação por parte da esposa e a uma não capacidade do esposo em “satisfazer” sexualmente sua parceira. O marido, neste contexto histórico, deveria ser o gestor, o administrador da mulher, de suas necessidades e desejos. O adúltero, segundo Leal, é o ser desviante que ameaça a ordem estrutural do matrimônio, colocando em suspensão um aparente equilíbrio em nome de uma relação fortuita. Para Priore, “a fidelidade conjugal era sempre tarefa feminina; a falta de fidelidade masculina vista como um mal inevitável que se havia de suportar. É sobre a honra e a fidelidade da esposa que repousava a perenidade do casal” (Priore, 2006, p. 187). Enquanto para as mulheres era extremamente proibido o crime do adultério, já que constava em lei nacional que o adultério feminino era considerado crime, para os homens, o adultério e a defesa da honra estavam acima de qualquer estatuto. Ainda segundo Priore,

entre os crimes passionais, o mais debatido era o cometido como reação ao adultério. Apoiado na tradição machista e patriarcal, o crime seria predominantemente masculino. Nessa tradição, honra manchada lavava-se com sangue (Priore, 2006, p. 265). Após saber dos tórridos encontros amorosos de sua esposa, Carlinhos dirige-se para seu quarto e dá início ao seu próprio velório. Interessante é notar essa reação do marido, ao saber das “verdades” enunciadas por sua esposa. Matar um único amante seria mais fácil para limpar sua honra, mas “a metade do Rio de Janeiro” seria impossível, ainda mais que a identidade do indivíduo nem devia mesmo ser conhecida pela própria Solange. Consternado com a avalanche de acontecimentos, Carlinhos decide cuidar do seu próprio funeral e tem início alguns ritos funerários, como a colocação da indumentária e a recorrente posição de morto – “Entrou no quarto, deitou-se na cama, vestido, de paletó, colarinho, gravata, sapatos. Uniu bem os pés; entrelaçou as mãos, na altura do peito; e assim ficou” (Rodrigues, 1992, p. 223). Percebe-se nos textos de Rodrigues uma clara compulsão pela temática da morte. Neste conto, a decisão tomada por Carlinhos de fingir-se de morto, revela uma significativa saída para seu problema. Ser traído por muitos homens não lhe possibilitava restituir sua própria honra, assim, a decisão de se fingir de morto denuncia a tentativa de morrer


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socialmente, já que sua honra masculina, sua virilidade tinham sido abaladas a partir do desenfreado apetite sexual de sua esposa e seria impossível restituí-la. A partir da análise do texto Luto e Melancolia, de Freud, pode-se estabelecer um paralelo com a situação do personagem Carlinhos, que dá início aos ritos do seu próprio funeral. Freud, em seu texto, contrasta os ritos de um funeral e o conseqüente estado “normal” de tristeza por parte daquele que perde um ente querido, com as do indivíduo melancólico, que tem por traço distintivo um pesaroso desânimo e uma cessação de interesse pela vida. O indivíduo melancólico é caracterizado por uma extrema autopunição e uma auto-estima baixa. Segundo Freud,

Esse quadro de um delírio de inferioridade (principalmente moral) é completado pela insônia e pela recusa a se alimentar, e — o que é psicologicamente notável — por uma superação do instinto que compele todo ser vivo a se apegar à vida. (...) A melancolia, portanto, toma emprestado do luto alguns dos seus traços e, do processo de regressão, desde a escolha objetal narcisista para o narcisismo, os outros. É por um lado, como o luto, uma reação à perda real de um objeto amado; mas, acima de tudo isso, é assinalada por uma determinante que se acha ausente no luto normal ou que, se estiver presente, transforma este em luto patológico. A perda de um objeto amoroso constitui excelente oportunidade para que a ambivalência nas relações amorosas se faça efetiva e manifesta. (Freud, s/d, p. 3) A aproximação com o estado de ânimo de Carlinhos é possível, já que ao se declarar como morto para a esposa, se nega a jantar e a própria esposa toma a decisão: “foi dizer à empregada que tirasse a mesa e que não faziam mais as refeições em casa” (Rodrigues, 1992, p. 223). Ainda segundo as análises de Freud e tendo em vista a “solução” encontrada por Carlinhos, é percebido que o indivíduo melancólico tende a se auto-punir e a se vingar do ente amado através da sua própria doença, uma vez que a desordem emocional tenha sido causada pelo ser amado. No conto, a esposa prostra-se ao leito de “morte” do marido e é sentenciada a velar o marido vivo como forma de punição para os seus delitos. Nessas correlações entre morte e vida, pode-se também aproximar o conto em questão com as teorias desenvolvidas no texto “Além do princípio de prazer”, também de autoria de Freud, em que as pulsões de vida e de morte são analisadas como inerentes ao instinto de qualquer ser vivo.


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Em A dama do lotação, o instinto reprimido de Solange nunca deixa de se esforçar em busca de uma satisfação completa, daí decorrem os seus inúmeros casos de adultério, em busca de uma possível completude que nunca é alcançada. Os instintos do ego e os sexuais trabalham com as pressões de morte e de vida, impulsionando o ser a seguir sua natureza, seus próprios instintos. Para Freud, os instintos sexuais seriam assemelhados a Eros, força fundamental do mundo que, longe de ser considerado como um Deus todo-poderoso, é uma força que se apresenta em uma eterna insatisfação. Assim, os instintos sexuais seriam prolongamentos da vida, buscando uma renovação incessante, uma corporificação de vontade de viver e de se perpetuar. Solange personificaria, dessa forma, a pulsão de vida, marcada por esse desejo frenético e repetitivo de prolongamento da vida, de necessidade de completude, que a leva a buscar parceiros anônimos em uma ânsia de encontrar satisfação sexual. Carlinhos, situado no outro extremo, na pulsão de morte, tende a querer se destruir, a retornar a um estado primevo, a um momento de total indiferenciação do ser. Nestas pulsões de vida e na tentativa de encontrar parceiros que pudessem realizar momentos de completude no seu cotidiano, Solange é aproximada através do vocábulo “dama” às próprias damas dos cancioneiros medievais do século XIV, aquela que historicamente é a senhora medieval, grande amor dos trovadores e cantada por ser, justamente, inacessível, constituindo-se como aquela que era impossível, aquela que é bajulada e servida. Segundo Priore, Mas não é qualquer mulher essa por quem se “apaixona” o trovador. Ela é elevada. Sua excelência de espírito e sua inteligência contam. A amada é portadora de valores morais que estimulam o que há de melhor no sexo masculino. Ela acende no parceiro o desejo do que lhe é superior. O homem, por sua vez, reconhece o lado sublime da mulher, renunciando, por isso, ao prêmio material – seu corpo. Nesse código amoroso o que está em jogo não é a diminuição do desejo, mas a tensão em que o indivíduo se reconhece na experiência de desejar (Priore, 2006, p. 88/89). Desse modo, a dama do lotação rodriguiana ironiza essas questões, apresentando-se altamente alcançável a inúmeros homens, invertendo até mesmo a lógica da sedução, que antes era refutada apenas ao homem, que cortejava sua dama ao longo de incansáveis dias, mesmo sabendo que a mulher era dita “impossível”. Aqui, Solange é quem desempenha esse papel, deslocando o signo da virgem imaculada para aquela que busca seus companheiros, atrás de um apetite sexual desenfreado. As indicações do narrador rodriguiano é que essa


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dama consegue ter a artimanha de camuflar um valor moral que pode não existir, com seus deleites constituindo-se como algo efêmero, fugaz. A temática amorosa exposta nesse conto mostra como o amor e as formas de amar foram se transformando ao longo dos tempos, e como a inversão de papéis amorosos é reveladora de profundas transformações da sociedade. Seguindo a linha de pensamento de Priore, existia no Brasil colônia “uma tradição portuguesa que interpretava o casamento como uma tarefa a ser suportada” (Priore, 2006, p.13). Com isso, o protótipo de mulher ideal estava atrelado a um padrão de pureza, castidade, generosidade, fidelidade e, sobretudo, a um corpo assexuado, livre de desejos “pecaminosos”, remetendo à imagem da Virgem Santíssima como modelo feminino a ser seguido e cultuado. À mulher cabia a necessidade e o dever de ser disciplinada, com uma domesticação dos impulsos, a “educação dos sentidos”. No conto de Rodrigues, A dama do lotação está entregue a um destino de procura, sendo totalmente deslocada e desvinculada de um papel de mulher casta, esposa e mãe. No novo cenário vislumbrado e tão temido por Nelson Rodrigues, a mulher começa a se desatrelar de papéis que lhe eram designados como naturais e obrigatórios. Ser mulher era sinônimo de ser mãe e à medida que o acesso ao prazer era totalmente dissociado da reprodução (o uso de contraceptivos assinalava esse momento), ocorria consequentemente o declínio do poder patriarcal. Segundo Elisabeth Roudinesco, (...) a família dita “moderna” torna-se o receptáculo de uma lógica afetiva cujo modelo se impõe entre o final do século XVIII e meados do século XX. Fundada no amor romântico, ela sanciona a reciprocidade dos sentimentos e desejos carnais por intermédio do casamento. Mas valoriza também a divisão do trabalho entre os esposos, fazendo ao mesmo tempo do filho um sujeito cuja educação sua nação é encarregada de assegurar. A atribuição da autoridade torna-se então motivo de uma divisão incessante entre o Estado e os pais, de um lado, e entre os pais e as mães, de outro. Finalmente, a partir dos anos 1960, impõe-se a família dita “contemporânea” – ou “pós-moderna” -, que une, ao longo de uma duração relativa, dois indivíduos em busca de relações íntimas ou realização sexual. A transmissão da autoridade vai se tornando cada vez mais problemática à medida que divórcios, separações e recomposições conjugais aumentam (Roudinesco, 2003, p. 19). Assim, Solange representa a nova mulher que despontava nos finais da década de 50 e início da década de 60, desembocando na irrupção do ser feminino, desatrelada da autoridade do marido, da subordinação feminina e da dependência dos filhos. Sua sexualidade não é dada


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em consequência de uma função materna, mas de desejos que não conseguem se controlar, devido a todo um poder sufocante que atuou (e atua) no corpo feminino. A dessacralização de instituições como o casamento, o pai, a mãe, o amor, o sexo, corroboraram para a nova configuração da sociedade contemporânea, com mulheres no mercado de trabalho exercendo profissões que até bem pouco eram tidas como “profissões de homem”, assumindo produções independentes e exercendo a sua própria sexualidade da forma como achar mais conivente, sem estar necessariamente presa a certas dualidades, como no exemplo exposto por Nelson Rodrigues, em A dama do lotação.

REFERÊNCIAS CASTRO, Ruy. O anjo pornográfico: a vida de Nelson Rodrigues. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. CUNHA, Eduardo Leal. Adultério: a família diante do estrangeiro. Disponível em <http://www.ebep.org.br/artigos/3Cunha_-_a_familia.pdf> acesso em 08.12.2010. DRAGO, Niuxa Dias. Espaços da cidade na dramaturgia de Nelson Rodrigues. In ______ Espaço e Teatro: do edifício teatral à cidade como palco. Org. Evelyn Furquim Werneck Lima. Disponível em <http://books.google.com/books?hl=ptBR&lr=&id=xc2BG6i9AVAC&oi=fnd&pg=PA97&dq=a+fam%C3%ADlia+em+cena:+um+estudo+a ntropol%C3%B3gico+da+dramaturgia+de+Nelson+Rodrigues%22&ots=U2fViPLQ52&sig=8AUVU wWKPDtSIzomyuHs3EkFl3M#PPA116,M1> acesso em 05.01.2011. FOUCAULT, Michel. Não ao Sexo Rei. In____ Microfísica do Poder. 22ª Ed. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979. FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. Obras psicológicas de Freud – edição eletrônica, s/d. FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. . Obras psicológicas de Freud – edição eletrônica, s/d. PRIORE, Mary Del. História do Amor no Brasil. 2ª. Ed. São Paulo: Contexto, 2006. Revista BRAVO! Junho 2007. Ano 10. Nº 118 – Nelson Rodrigues. RODRIGUES, Nelson. A vida como ela é...: O homem fiel e outros contos. Seleção de Ruy Castro. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. RODRIGUES, Nelson. Teatro Completo. Organização geral de Sábato Magaldi. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003. ROUDINESCO, Elisabeth. A família em desordem. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.


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O NARRADOR VIAJANTE DE GARRETT Alex Alves Fogal1

Resumo: O objetivo desse artigo é abordar a temática da viagem na obra Viagens na minha terra de Almeida Garrett como uma questão que vai além do âmbito físico e referencial. A intenção é estabelecer uma linha de interpretação capaz de mostrar que o tipo de deslocamento operado pelo narrador do livro não é apenas referencial, mas principalmente formal, pois o que sê na composição da obra é um movimento de constante alternância entre vários métodos de narração e técnicas de composição. A partir de uma relação com a chamada “forma shandeana”, inaugurada por Lawrence Sterne, se buscará compreender como a viagem do narrador de Garrett se torna interessante se entendida como um turismo pelas formas narrativas. Palavras-chave: Viagem, Forma da narrativa, Composição THE GARRETT’S TRAVELER NARRATOR Abstract: The objective of this article is to tackle the travel theme at the book Viagens na minha terra, writed by Almeida Garrett, as a question that goes beyond of the physical and empirical scope. The intention is to establish a way of interpretation capable to show that the type of dislocation performed by the romance’s narrator it’s not only physical, but principally aesthetical, because as we can see at the book’s formal structure is a constant movement of alternating between many methods of narration and techniques of composition. Trough an relation with the “shandean form” initialized by Lawrence Sterne, we will try to understand how the travel of the Garret’s narrator can be interesting if considered like a travel by the narrative forms. Keywords: Travel, Narrative form, Composition.

1. INTRODUÇÃO A temática da viagem ou do viajante é algo inseparável da história da humanidade, uma vez que a figura do indivíduo que percorre espaços até então desconhecidos e descobre novas paragens, sempre habitou o ideário dos homens. Ideário onde sempre teve figuração efetiva a faceta do “homo viator”, que busca sempre a mobilidade constante.

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Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Email: alexfogal@yahoo.com.br.


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No âmbito da criação literária, essa ânsia do ser humano em desbravar novos lugares, em lidar com o novo, apresenta algumas nuances importantes de serem observadas, já que nem sempre o ato de viajar foi representado unicamente no plano das viagens referenciais ou de caráter físico, topográfico. Nesse caso, pode-se dizer que nem sempre a viagem será apenas literal, mas também literária. Para que fique mais claro o que está sendo dito, basta fundamentar-se em alguns autores que, apesar de se utilizarem da forma estética de obras literárias que trazem como elemento central a questão da viagem ou da trajetória de formação de algum personagem, não se prendem estritamente à formula tradicional dos “livros de viagem”, uma vez que adotam estratégias narrativas que destoam das construções literárias que tratam o ato de viajar do modo tradicionalmente concebido. Dentre esses é possível encontrar escritores como Xavier de Maistre, Lawrence Sterne, Diderot, Almeida Garrett e vários outros. No caso desses autores, o que se nota é um tipo de viagem peculiar, diversa da idéia de viagem épica na qual o indivíduo é movido por ações que o levará a conquistas, nas quais a idéia de mobilidade sempre estará associada à busca de grandiosidade. Diferente do tipo de narrador-viajante observável na épica, o viajante da narrativa moderna se acha solitário, enxergando a si mesmo como único portador da substancialidade e perdido em figurações reflexivas. Seus movimentos não são mais plenos de substância, não podem ser vistos mais dentro de um caráter coeso e universal. Em contraposição aos tipos de narradores que podem ser observados nas obras dos autores citados no parágrafo anterior, o herói da epopéia nunca será visto puramente como indivíduo, já que a epopéia possui como um de seus traços mais marcantes o destino de toda uma comunidade, de uma pátria, e não apenas um destino pessoal. O todo do cosmos épico é orgânico demais para que uma de suas partes possa ser representada como isolada de si


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mesma através das impressões de um narrador como ocorre na literatura moderna (LUKÁCS, 2006, p.60-67). Para observar melhor tais questões e analisar de modo pertinente esse tipo de “viagem peculiar” empreendida pelo narrador na literatura moderna, o presente trabalho apresenta como proposta a construção de uma linha de interpretação de tal tópico a partir do estudo da obra Viagens na minha terra (1992), do romancista português Almeida Garrett. A escolha desse romance configura-se como importante devido ao fato do narrador de Garrett servir como exemplo que ilustra esse modelo específico de viajante, tão recorrente nas narrativas modernas. Ou seja, ao contrário do típico narrador das viagens épicas, este segue um percurso nada linear, baseado quase que unicamente em suas impressões sobre o que vê, dando tom próprio ao mundo pelo qual circula. O narrador passa a apresentar como principais marcas a sua forte digressividade, uma característica hipertrofia de sua subjetividade e o tratamento especial que dá ao tempo e ao espaço no decorrer da obra. Na mesma trilha dos romancistas formados pelo método de composição das narrativas antigas, como por exemplo, as luciânicas, o narrador de Viagens na minha terra se utiliza de uma técnica narrativa baseada na relação de distância e cumplicidade entre o narrador e o leitor, fazendo uso das artimanhas da prepotência narrativa (BRANDÂO, 2005, p. 41- 62). A narrativa do romance escolhido como base se filia à linha daqueles narradores que preferiram colocar a História para fora da cena central, não apresentando cerimônias em subverter datas, fatos históricos e tudo aquilo que se mostra como “oficializado”. Para alcançar uma perspectiva de análise que ajude a elucidar tais questões de modo pertinente, o trabalho será estruturado de forma que suas partes estejam em consonância, ou seja, tudo será desenvolvido de modo que os pontos abordados se complementem uns aos outros. Para que isso seja compreendido de maneira mais clara, torna-se importante uma rápida abordagem da configuração segundo a qual o estudo será desenvolvido.


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Inicialmente será observado o tipo de viagem peculiar desenvolvido no romance de Garrett, pois conforme se pretende demonstrar aqui, a narrativa de Viagens na minha terra não pode ser concebida como uma viagem puramente referencial (embora o narrador da obra realmente empreenda uma curta viagem de Lisboa até Santarém, ao contrário de Xavier de Maistre que nem ao menos sai de seu quarto), mas sim como uma viagem pelos próprios métodos ou formas narrativas. Tentarei demonstrar através de alguns teóricos e de exemplos extraídos do romance, como a narrativa do autor português não tem seu centro de tensão na pequena viagem realizada, uma vez que “As Viagens” do título servem apenas como pretexto para que o narrador possa estabelecer um amplo painel das transformações ocorridas em Portugal nas primeiras décadas do século XIX. Conforme se pode observar no prefácio que Carlos Felipe Moisés escreve para o romance1, a obra pode ser observada em dois planos diferentes: num primeiro plano, mais artificial, no qual a obra pode ser vista como simples relato de viagem e num segundo plano, onde o espaço que se percorre funciona apenas como pano de fundo. Porém, apesar desse apontamento ser importante, a perspectiva que será estabelecida aqui pretende observar os dois planos funcionando numa interação dialética, pois as viagens de algum modo dão forma ao estilo narrativo sinuoso, entrecortado e permeado por divagações. Nesse ponto, tentarei compreender a forma da obra não apenas como um invólucro do conteúdo, mas como estrutura significativa para o entendimento total da estética da obra. O segundo ponto a ser abordado consiste numa análise da tradição narrativa que contribuiu para com o desenvolvimento da forma estética observada no romance de Garrett, ou seja, dá fundamentos para que se extrapole a idéia da viagem simplesmente referencial. Para a constituição dessa parte do trabalho será de grande relevância a teorização de Sergio

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A edição utilizada no presente trabalho é a de 1992, da editora Nova Alexandria.


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Paulo Rouanet na obra Riso e Melancolia (2007), haja vista que o crítico empreende um estudo sobre o que ele denomina como “forma shandeana” do romance. Para ele, o autor de Viagens na minha terra é um dos escritores modernos que assimilaram esse método de composição tornado famoso na literatura ocidental por meio da obra de Lawrence Sterne. Tratar de tal questão será de grande valia para compreender o estilo narrativo de Garrett já que ajudará a entender quais as técnicas narrativas empregadas para que o método nãoconvencional de se viajar seja desenvolvido pelo autor. Outro ponto importante para a construção da linha de interpretação que se objetiva construir aqui será a questão da ironia romântica ou formal na construção do romance de Garrett. Um estudo sobre tal ponto, mesmo sem a devida profundidade que o tema merece, pode ser considerado como um auxílio para a compreensão da viagem pelas formas narrativas empreendida por Garrett. Isso pode ser dito devido ao fato de que se entendermos o movimento de auto-reflexão formal proporcionado pela ironia romântica como dispositivo estético da obra do autor, fica nítido que assim como Machado de Assis, Diderot, Sterne e Xavier de Maistre, o escritor português também fornece ao leitor todos os elementos para definir a forma de sua obra, mesmo quando isso é feito de maneira sutil. Conforme foi dito anteriormente, todos esses três pontos que serão abordados na realização do trabalho encontram-se interligados. O primeiro ponto a ser abordado sobre a questão do tipo peculiar de viagem que Almeida Garrett realiza em sua narrativa é a porta de entrada para que possam ser suscitados apontamentos sobre a tradição narrativa ligada a esse método de composição observável em Viagens na minha terra. Já esse segundo ponto, além de demonstrar como as técnicas narrativas utilizadas pelo narrador de Garrett em sua viagem peculiar foram assimiladas, servirá também para deixar visível como essa linhagem de autores se valeu do movimento de auto-reflexão na composição de suas obras.


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Assim sendo, esse segundo ponto encontra-se também ligado ao terceiro, no qual serão tratadas algumas questões sobre a ironia formal como técnica de estruturação das obras literárias, o que será importante para entender de que forma tal elemento de construção serve para realizar uma exposição do esqueleto da obra tornando-a aberta aos seus receptores. Desse modo, será possível compreender como o autor expõe seu método diferenciado de se viajar, sobrepondo a consciência da ilusão à ilusão da consciência no plano ficcional.

2. VIAGENS PELA TERRA OU PELAS FORMAS NARRATIVAS?

Logo de início é possível responder a pergunta feita no subtítulo acima dizendo que em Viagens na minha terra os dois tipos de viagem são perceptíveis. Porém, uma peculiaridade já referida aqui anteriormente consiste naquilo que foi apontado por Carlos Felipe Moisés no prefácio da obra do autor, quando afirma que se retirarmos as divagações, digressões e reflexões do romance, o fio central do enredo mostra-se paupérrimo. Porém, a resposta de caráter duplo dada à pergunta feita no subtítulo dessa parte do trabalho pretende estabelecer uma perspectiva que ilumine também um outro aspecto da questão. Esse outro aspecto é a questão da consonância entre forma e conteúdo na disposição estética que Garrett fornece à sua obra. Para que isso fique mais claro, o que pretendo deixar claro é que, de algum modo, os pequenos traços de viagem referencial que aparecem no romance do autor português também dão forma ao estilo narrativo empregado na obra, uma vez que, se observarmos atentamente, notaremos que o narrador garrettiano imprime em sua técnica narrativa o mesmo espírito vagabundo, curioso e distraído dos viajantes. A narrativa apresenta constantemente interrupções, desvios, acelerações, retardamento, tudo o que pode ser observável na rota de um viajante que tateia por um terreno desconhecido ou então que


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deseja tornar esse espaço que percorre conhecido para outros. Nesse ponto é importante pensar num conceito de forma estética semelhante ao trabalhado por Eikhenbaum , um dos formalistas russos, quando este diz que : A noção de forma adquiriu um novo sentido, não é mais um invólucro, mas uma integridade dinâmica e concreta que tem em si mesma um conteúdo, fora de toda correlação. Aqui ocorre a separação entre a doutrina formalista e os princípios simbolistas, segundo os quais “através da forma” deveria transparecer algo “do conteúdo” (EINHENBAUM, 1976, p.13).

Torna-se importante explicitar tal conceito para tentar elucidar um viés de análise um pouco diverso daquele adotado por Carlos Felipe Moisés, no qual o crítico separa veementemente os “dois planos” da obra de Garrett (o primeiro, concernente ao enredo propriamente dito e o segundo, formado pelas divagações e auto-reflexões). Numa outra instância, mas ainda paralelamente ao que está sendo dito, o tema da viagem em Garrett pode ser entendido também como alegoria de uma postura existencial diante do mundo, ou seja, a vida entendida como errância, aventura e descoberta. Tais apontamentos podem ficar mais claros a partir de vários trechos da obra, porém um, em especial deixa isso bem claro. Logo nas primeiras páginas do romance o narrador fala sobre a questão de Vila Franca e seu nome, enquanto faz considerações sobre o movimento da Restauração em Portugal e o “reviramento por que vai passando o mundo” (GARRETT, 1992, p.26). Logo em seguida, o narrador, sem nenhum aviso prévio, muda seu foco para dissertar sobre o prazer existente no ato de viajar enquanto se fuma a bordo, o que espanta o narrador nunca ter sido algo observável por Lord Byron, o “poeta mais embarcadiço, mais marujo que ainda houve” (GARRETT, 1992, p.26). Logo no trecho posterior, a narrativa já se envereda para a descrição de um “campino” que acende o cigarro do narrador, o que leva a narração para uma disputa travada entre “ílhavos” e “campinos” para ver quais dos dois grupos pode ser considerado mais vigoroso, os primeiros, que lidam com o mar, ou os segundos, que lidam


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com os touros. Nota-se que apenas em três páginas (da pagina vinte e seis até a página vinte e sete) o fio da narrativa passa por três assuntos totalmente diversos e sem conexão alguma entre eles, a não ser a vontade do narrador em abordá-los. Durante toda a obra, a narrativa se estabelecerá dessa forma, entrecortada e ébria, com o narrador sempre mudando seus focos de modo indiscriminado. Conforme Sergio Paulo Roaunet aponta: O narrador de Viagens na minha terra tem opiniões sobre tudo. Move-se com absoluta sem-cerimônia de um tema para outro. Ele acha que no mundo de hoje Sancho triunfou sobre d. Quixote. Não acredita no progresso porque resultou no empobrecimento de milhões. Pondera os méritos comparativos da modéstia e da inocência a hierarquia das qualidades morais, e depois de ter citado a opinião de Dêmades (naturalmente em grego) de que a primeira é mais importante que a segunda, e a opinião oposta de Addison, toma partido, finalmente, pela modéstia (ROUANET,

2007, p.46).

Com base nessa afirmação do crítico, torna-se pertinente dizer que o narrador de Garrett apresenta uma postura marcada pela volubilidade, pela inconstância, assim como é o passo do viajante prototípico, daquele que realmente deseja conhecer sem seguir rotas préestabelecidas. Contudo, apesar dessas considerações sobre a interpenetração desses chamados dois planos do romance é importante abordar de que modo esse narrador se comporta para estruturar esse tipo de viagem que escapa daquilo considerado como padrão nas obras do gênero. Para Maria de Lourdes Ferraz, o texto de Garrett apresenta um desenvolvimento, um tipo de estrutura narrativa que faz com que a as intrusões ou digressões do narrador se destaquem em relação ao desenrolar do enredo (embora, como vimos aqui anteriormente, não deixe de existir uma dialética entre esses dois planos) o que, de algum modo faz com que o narrador aproveite a estória para falar de si e do que diz respeito à sua subjetividade , “do


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próprio acto literário que está a executar, conseqüente da relação entre a ficção e a realidade, entre o seu eu e a sociedade onde se insere” (FERRAZ, 1987, p.71). Desse ponto de vista pode-se afirmar que, diversamente de um livro onde as viagens tomam um sentido unicamente referencial, na obra de Garrett são as impressões, reflexões e devaneios do narrador que dão o tom. Nas palavras do próprio narrador da obra observa-se o seguinte: “Vou nada menos que a Santarém: e protesto que de quanto vir e ouvir, de quanto eu pensar e sentir se há de fazer crônica” (GARRETT, 1992, p.24). Esse tipo de postura adequada a um “sentimental traveller” como o de Sterne não é algo que o narrador tenha desenvolvido fortuitamente, pois chega a argumentar em favor de sua causa, ou melhor em favor da forma narrativa que decide adotar. O trecho que vem a seguir é longo mas explicita bem o que se busca dizer: Isto pensava, isto escrevo; isto tinha na alma, isto vai no papel: que doutro modo não sei escrever.Muito me pesa, leitor amigo, se outra coisa esperava das minhas Viagens, sem o querer, as promessas que julgaste ver nesse título, mas que eu não fiz decerto. Queria talvez que te contasse, marco a marco, as léguas da estrada? Palmo a palmo, as alturas e as larguras dos edifícios? Algarismo por algarismo, as datas de sua fundação? Que te resumisse a história de cada pedra, cada ruína? Vai-te ao padre Vasconcelos; e quanto há de Santarém, peta e verdade, aí o acharás em amplo fólio e gorda letra: eu não sei compor desses livros, e quando soubesse, tenho mais que fazer. (GARRETT, 1992, p.189)

A partir desse exemplo, fundamentado nas próprias palavras do narrador, fica visível como as Viagens de Garrett podem ser entendidas mais como uma viagem pela narrativa ou pelas formas de narrar do que propriamente por sua terra. Para finalizar esse ponto e já se iniciar a passagem para a próxima questão, é pertinente lembrar do que diz Rouanet sobre esse tipo peculiar de narrador viajante e a subjetivação que este realiza em relação ao tempo e ao espaço: Uma das manifestações da ambição de soberania do narrador shandiano é sua maneira arbitrária de tratar o tempo e o espaço. Eles são dissolvidos na


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 118 subjetividade do narrador, que os trata como tratou o leitor: despoticamente.

(ROUANET, 2007, p.120).

3. GARRETT E A TRADIÇÃO SHANDEANA

Até aqui vimos como a forma narrativa adotada por Garrett torna seu livro uma realização estética distinta daquilo que é tradicionalmente considerado como um livro de viagens. Entretanto, nessa parte do trabalho será buscada mais a semelhança do que a diferença, uma vez que entender a tradição por trás do método de composição observável no romance do autor é algo importante para sabermos como ele funciona. As técnicas narrativas observáveis no escritor português também podem ser observadas em autores como Lawrence Sterne,Diderot, Xavier de Maistre e Machado de Assis, o que Sergio Paulo Rouanet optou por chamar de “forma shandeana” no romance, visto que a avenida teria sido aberta pelo romancista inglês. Acertadamente, o crítico identifica muitos elementos em comum no que tange a estrutura de organização da obra desses autores, sendo que centralizarei aqui aqueles que contribuem de forma mais clara para entender o tipo de viagem empreendido pelo autor de Viagens na minha terra. Todos esses autores apresentam a característica comum de utilizarem, cada um a seu modo, os altos e baixos do cotidiano para comporem suas obras, muito raramente fazendo uso de assuntos elevados ou grandiosos. Desse ponto de vista, tais escritores podem ser vistos como parceiros de viagem que conduzem suas ferramentas de bordo pelo âmbito do imaginário, demonstrando pouca ou nenhuma preocupação com as demarcações geográficas e com o tom documental. Em todos eles se pode notar a expansão através do trabalho com o sentido simbólico e/ou alegórico.


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A volubilidade é um ponto comum a todos eles, pois como vimos no caso de Garrett, esses tipos de narradores não conseguem se fixar em ponto algum. Conforme vemos em Rouanet: “não há limites à jurisdição da volubilidade. Pela imaginação, o narrador se move num espaço infinito e no tempo da eternidade”. (ROUANET, 2007, p.44). Observando-se isso nos outros autores basta notar o que faz o narrador de Sterne em relação à “vida e as opinões” de Tristram Shandy, pois apesar desse ser o título do romance, terminamos a leitura sabendo muito pouco sobre o personagem. Ou então se pode lembrar também da famosa retórica da preterição em Machado, quando o narrador aponta um caminho para o leitor, mas opta por seguir outro muito diverso. Entretanto, nada mais esclarecedor do que as referências que o próprio narrador de Garrett faz aos autores dessa linha shandeana, como por exemplo a epígrafe de Viagens na minha terra que é um trecho de Viagem à roda de meu quarto, de Xavier de Maistre e o início do romance, quando o autor dialoga diretamente com o escritor francês: Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes, de inverno, em Turim, que é quase tão frio como São Petersburgo- entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de Maistre que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal. (GARRETT, 1992, p.23)

Nesse ponto é possível notar também uma distinção, visto que diferentemente de Xavier de Maistre, Garrett de certo modo já anuncia que sua viagem também terá algo de referencial, algo do modo tradicional de viajar. A referência à obra de Sterne, logicamente, também não poderia ficar de fora. O autor lusitano deixa bem claro em quais fontes recorreu para estruturar seu estilo peculiar de viajar: Estou com meu amigo Yorick, o ajuizadíssimo bobo de El-Rei de Dinamarca, o que alguns anos depois ressuscitou em Sterne com tão elegante pena, estou sim. (GARRETT, 1992, p.79)


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Além dessa referencias textuais que não são nada gratuitas, o que pode ser notado também em Viagens na minha terra como ponto de associação com a estética shandeana de composição é a questão da viagem através dos temas literários e a demonstração de erudição. Num único exemplo extraído da obra é possível notar a confluência das duas ocorrências, como no trecho a seguir, quando o narrador se utiliza de várias referências literárias para ironizar os autores românticos. O trecho ainda continha mais referências literárias, transbordando erudição, porém ficaria muito extenso se utilizado em sua totalidade: Não havia ainda então românticos nem romantismo, o século estava muito atrasado. As odes de Victor Hugo não tinham desbancado as de Horácio; achavam-se mais líricos e poéticos os esconjuros de Canídia do que os pesadelos de um enforcado no oratório; choravas-se com as Tristes de Ovídio, porque se não lagrimejava com as meditações de Lamartine

(GARRETT, 1992, p.51).

Outro elemento comum na narrativa é a o que Rouanet chama de tema pascalino da natureza dupla do homem, dividido entre um lado angélico e outro bestial (ROUANET, 2007, p.26). Assim como nos outros autores da linhagem shandeana (principalmente em Xavier de Maistre, basta lembrar do tema da “bête”) essa natureza bipartida do ser humano também é abordada por Garrett em sua narrativa, como pode ser visto no trecho que fala da descoberta de um filósofo do Reno sobe a marcha da civilização. Segundo essa idéia desenvolvida pelo narrador há dois princípios no mundo, um espiritualista, representado pela figura do cavaleiro dom Quixote e um outro materialista, concretizado na figura do escudeiro do fidalgo, Sancho Pança. Porém, bem ao modo da linhagem shandeana, os dois princípios são entendidos como antagônicos, porém complementares, assim como observamos em Xavier de Maistre na relação entre besta e alma. Esse é o trecho de Garrett: “Mas, como na história do malicioso Cervantes, estes dois princípios tão avessos, tão desencontrados, andam, contudo juntos sempre” (GARRETT, 1992, p.31).


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Vários outros elementos poderiam ser observados para aproximar ainda mais a obra de Garrett à tradição shandeana, como por exemplo o uso das reticências ( comum em Xavier de Maistre e Sterne) e o tom narrativo adquirido dos grandes moralistas da filosofia ensaística, como Montaigne, o que pode ser notado no multiperspectivismo que o narrador apresenta em relação às opiniões que emite e aos fatos que narra. Porém, é importante frisar aqui um outro ponto comum de grande relevância entre os escritores que adotaram essa forma shandeana, o que também servirá como conexão para o próximo estágio do trabalho: o chamado movimento de auto-reflexão ou desnudamento do processo. Como foi dito anteriormente, seria ingenuidade dizer que esse método de composição se iniciou com os autores dessa linhagem, pois é algo que remete aos escritores da antiguidade. Porém, no que tange um estudo menos ambicioso (como é o caso desse) é importante lembrar que a referência mais próxima para a literatura moderna ocidental é Sterne. Conforme podemos ver em Bakhtin, esse tipo de construção estética: Introduz o autor que escreveu o romance (o “desnudamento do processo”, segundo a terminologia formalista), porém não na qualidade de herói, mas como autor verdadeiro da obra em questão. Paralelamente ao romance em si, são dados fragmentos do “romance sobre o romance” (naturalmente, o exemplo clássico é o Tristram Shandy) (BAKHTIN, 1998, p.203).

Não é necessário muito esforço para notar esse movimento na obra de Almeida Garrett, já que, como se sabe, durante todo o tempo o narrador-autor revela os princípios de organização de sua obra durante o mesmo tempo que narra. Mas isso será visto em seguida.

4. A IRONIA FORMAL COMO MECANISMO DE FUNDAMENTO

Conforme observávamos no tópico anterior, Viagens na minha terra é uma obra regida pelos princípios da auto-reflexão narrativa. Durante todo o desenvolvimento do livro nota-se que as chaves para o entendimento acerca do que se narra são fornecidas ao leitor, quebrando


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o tradicional estatuto da ficção no qual o narrador pretende aproximar o máximo que conseguir, o âmbito da vida e a forma literária. O narrador de Garrett deixa sempre bem claro que tudo o que diz e todo o material que lida é “apenas” literatura. Esse tipo de postura do narrador faz com que a forma do romance se mostre aberta, deixando visíveis todos os dispositivos utilizados. Daí a importância de tratar tal ponto num trabalho que possui como objetivo entender o tipo peculiar de viagem empreendida por Garrett, uma vez que a utilização da ironia em relação à estrutura formal do romance nos revela as intenções presentes na elaboração da matéria narrativa por parte do narrador. Um bom exemplo de uma passagem na qual isso ocorre, está logo no início da obra, quando o desnudamento do processo pelo qual sua viagem será regida é realizado: Estas minhas interessantes viagens hão de ser uma obra-prima, erudita, brilhante de pensamentos novos, uma coisa diga do século. Preciso de o dizer ao leitor, para que ele esteja prevenido; não cuide que são quaisquer dessas rabiscaduras da moda que, com o título de Impressões de Viagem, ou outro que tal, fatigam as impressões da Europa sem nenhum proveito da ciência e do adiantamento da espécie. Primeiro que tudo, a minha obra é um símbolo... (GARRETT, 1992,

p.30)

Nesse trecho o narrador demonstra sem mais delongas como pretende estabelecer o sentido de suas viagens e também como devem ser entendidas, ou seja, de modo simbólico. Escapando às “rabiscaduras da moda”, se diferenciando daquilo observado como padrão em relação aos livros de viagem. Sob esse aspecto fica bem claro que o tipo de ironia utilizado por Garrett, ou seja, a ironia romântica ou formal consiste numa reflexão também irônica sobre a própria utilização da ironia, o que nos remete a uma idéia de quebra da ilusão, da ruptura com uma idéia de simulacro de um mundo e nos apresenta a noção de um infinito como horizonte do próprio jogo irônico (FERRAZ, 1987 p.39-45).


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Para que esse ponto seja abordado com maior clareza é importante entender a ironia em Viagens na minha terra como princípio de construção da obra de arte, o que de algum modo transcende os estudos tradicionais sobre o tema, que se limitam a entendê-lo como tropo retórico (SOUZA, 2000, p.27). Numa narrativa irônica como a de Garrett, observa-se um narrador autoconsciente: Que não se limita a narrar eventos, mas se compraz em sustar o enunciado propriamente narrativo com o deliberado propósito de assinalar criticamente que o narrado não é dado na realidade, mas construído pela enunciação. A intrusão do narrador cumpre desempenho bem definido ao sustar a ilusão ficcional e advertir o leitor que não deve confundir fato com ficção.

(SOUZA, 2000, p.31) O que se observa é que o narrador se dramatiza para desempenhar várias funções no texto que constrói, dando significados múltiplos para o que narra. Desse modo, o narrador garrettiano demonstra como a sua viagem deve ser interpretada, esboçando em Viagens na minha terra um modo de viajar pelas formas narrativas, pelas digressões, pelas divagações filosóficas, pelos caracteres dos personagens e pelo drama romanesco de Carlos e Joaninha, uma narrativa inserida de modo repentino dentro da narrativa “central”. A configuração da obra nos mostra como uma curta viagem de Lisboa a Santarém pode ir bem mais longe, desde que se saiba narrar.

5. CONCLUSÃO

A partir da análise da composição estética de Viagens na minha terra é possível dizer que a obra apresenta uma estrutura bastante diversa do que se observa naquilo considerado como protótipo de um livro de viagens tradicionalmente concebido. Daí o termo “viagem peculiar” utilizado ao longo do trabalho fazer sentido quando aplicado à referida obra de


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Almeida Garrett, pois apesar do termo “viagens” constar no título da obra, não é na viagem referencial realizada no plano do enredo do livro que se encontra o “esqueleto” da obra, mas sim na relação formal desse caráter de viagem com a estética narrativa adotada. Além dessa constatação, foi possível observar também como esse mecanismo que permite a composição do estilo de viagem adotada no livro se estabelece, o que foi feito a partir da análise do modo pelo qual Garrett se enquadra na chamada tradição shandeana e também por meio dos apontamentos sobre a ironia formal como princípio configurador do romance e desnudamento do processo.

REFERÊNCIAS: BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e estética: a teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 1993. BRANDÃO, Jacyntho Lins. A invenção do romance. Brasília: Unb, 2005. EIKHENBAUM, B. A teoria do método formal. In: TOLEDO, Dionísio Oliveira de (org.) Teoria da Literatura-formalistas russos. Porto Alegre: Editora Globo, 1976 FERRAZ, Maria de Lourdes A. A ironia romântica. Lisboa, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1987. GARRET, Almeida.Viagens na minha terra. São Paulo: Editora Nova Alexandria, 1992. LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Duas Cidades; ed. 34, 2000. ROUANET, Sergio Paulo. Riso e Melancolia. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. SOUZA, Ronaldes de Melo e. “Introdução à poética da ironia”. In: Revista Linha de Pesquisa. Rio de Janeiro, vol. 1, n. 1, out. 2000, p.27- 48.


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TEXTO LITERÁRIO E CONTEXTO SOCIAL: ANÁLISE DO POEMA “JOSÉ” DE CARLOS DRUMMD DE ANDRADE Dirce Pereira Lelis1 RESUMO: O artigo tem por propósito analisar o poema José, publicado em 1942, do escritor Carlos Drummond de Andrade, considerando o contexto de produção, os aspectos históricos sociais e ideológicos que proporcionaram essa produção textual. Posteriormente, apresentamos o poema e a interpretação estrutural da obra, pois nos permite verificar que a palavra poética atua de maneira decisiva como participação na vida e como forma de representação histórico-social. Além disso, escolhemos este poema, a fim de demonstrar a importância de Carlos Drummond de Andrade dentro da literatura brasileira, uma vez que o poema sinaliza para situações críticas vivenciadas por indivíduos comuns, pertencentes à maioria da população. PALAVRAS – CHAVE: Texto. Contexto. Ideologia. Poeta.

TEXTO LITERARIO Y CONTEXTO SOCIAL: ANÁLISES CRÍTICO A “JOSÉ”, POEMA DE LA CARLOS Drummond de Andrade RESUMEN: El propósito del artículo es analizar el poema de José, publicada en 1942, el escritor Carlos Drummond de Andrade, teniendo en cuenta el contexto de la producción, la ideología histórica y social que siempre que la producción textual. Posteriormente, se apresenta el poema y la interpretación estructural de la obra, ya que nos permite verificar que los actos de la palabra poética como una participación decisiva en la vida y como una representación histórica y social. Hemos elegido este poema con el fin de demostrar la importancia de Carlos Drummond de Andrade en la literatura brasileña ya que las señales poema a una situación de crise que experimentan los indivíduos normales, pertenecientes a la mayoria de la población. PALABRAS – CLAVE: Texto. El contexto. La ideología. El poeta.

INTRODUÇÃO Sabemos que o reino das palavras é fato. Elas nascem do nosso pensamento de maneira espontânea, não temos a preocupação de organizar o que falamos ou até mesmo o que escrevemos. As palavras, todavia podem ultrapassar suas fronteiras de significação. Podemos, assim, conquistar novos espaços e passar novas possibilidades de perceber a realidade. O caminho que a literatura percorre é este. O artista sente, escolhe e manipula as palavras, as organiza para que produzam um efeito que vá para além da sua significação objetiva procurando aproximá-las do imaginário.

A obra de um escritor é fruto de sua imaginação, embora seja baseado em elementos reais. Da concretização desse trabalho surge então a obra literária. A poesia de Drummond apresenta a reflexão dos problemas do mundo diante dos regimes totalitários da 2ª Guerra Mundial e da Guerra Fria. Em alguns versos ressurge a 1

Graduada em Pedagogia pela UFJF, Pós Graduada em Alfabetização pela PUCMG, Mestranda do Curso de Mestrado do CESJF , Professora da Rede Municipal de Juiz de Fora. E-mail dirceplelis@hotmail.com


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esperança, mas logo se acrescenta a descrença diante dos acontecimentos. Nega a fuga da realidade e por isso volta para o tempo presente. Dotado de uma percepção aguçada, capta a realidade através de seus sentimentos e a expressa, através da palavra, da linguagem. Carlos Drummond de Andrade é considerado um dos maiores representantes da literatura brasileira do século XX. Na década de 20, quando Drummond começou a publicação de seus poemas, o Brasil estava passando pela fase inicial de comoção modernista. Alguns escritores, como por exemplo, Anita Malfatti, Villa-Lobos, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, se manifestavam com atitudes de inovação artística e literária, mas eram gestos isolados, que só ganhariam espaço na Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, em 1922. A partir daí, o movimento se expandiu por grande parte do país. Com a implantação de novas atitudes culturais, sucedeu um período de consolidação e diversificação, em meio a agitado contexto social. Sua estréia oficial deu-se em 1930, com Alguma poesia. Com esta obra, Drummond inaugura a segunda fase do Modernismo. Escreveu também prosa que se caracteriza pela riqueza e expressividade da linguagem e do tema, impregnados de senso de humor. Atribuem-se essas qualidades, igualmente, à sua obra poética. Para Bosi, “Drummond possui uma percepção precisa do hiato entre as convenções e a realidade, entre o parecer e o ser das coisas e dos indivíduos, o que se transforma em objeto privilegiado do humor, seu traço principal. O conjunto de sua obra é complexo e vasto, do qual, pela freqüência, é possível destacar certas características e tendências”. (Bossi, 1994). Ainda se referindo ao poeta, Bosi, considera que “a obra de Drummond alcança como Fernando Pessoa ou Jorge de Lima, Herberto Helder ou Murilo Mendes um coeficiente de solidão, que o desprende do próprio solo da história, levando o leitor a uma atitude livre de referências, ou de marcas ideológicas ou prospectivas.” (Bossi, 1994).

Affonso Romano de Sant’Anna (2004), costuma estabelecer que a poesia de Carlos Drummond a partir da dialética “eu x mundo” desdobrando-se em três atitudes: A primeira, Eu maior que o mundo, marcada pela poesia irônica. Segundo Telles, na poesia de Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), “o humor e a ironia atuam como elementos poéticos e esta comicidade, muitas vezes, consegue outro grau de beleza, uma beleza às avessas, que escapa quase sempre aos esquemas das poéticas tradicionais, ou seja, que desconcerta todo o conhecimento sobre a poesia”. (Teles,1970).


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A segunda, Eu menor que o mundo, marcada pela poesia social. A terceira, Eu igual ao mundo, abrange a poesia metafísica onde o poeta volta-se para um simbolismo abstrato, mediante um processo de interrogações e negações, e a poesia objectural que representa uma ruptura em relação à fase anterior, o poeta abandona a forma fixa, radicaliza os processos estruturais que sempre marcaram seu modo de escrever. .

Na obra de Drummond, exprimem-se os dois pontos da problemática do homem no

mundo moderno: os conflitos individuais do ser e a inserção conflituosa deste na sociedade. De modo geral, a obra de Drummond reflete a grande importância do autor que, em suas diversas fases poéticas, sintetizou a postura do homem frente ao mundo moderno. De acordo com Moriconi, “na literatura moderna, há registro do cotidiano, valorizando os elementos diferenciados, tais como: a linguagem coloquial, a associação livre de idéias, a mescla de sentimentos contrastantes que revelam o subconsciente e o nacionalismo. Os poetas não se pautam mais por uma atitude programática, e sim pela possibilidade de criação em todas as direções, utilizando o verso livre e o "poema-piada". (Moriconi, 2002). Na fase final, em suas últimas produções, o poeta Drummond, reelabora alguns temas e formas dos primeiros livros, mas também acrescenta algumas vertentes novas. Sua obra, elaborada ao longo de mais de seis décadas, compreende, como já visto, poesia e prosa. Apesar das qualidades e da quantidade da prosa (17 livros de crônicas e contos, fora o que ficou nos jornais), o núcleo de sua produção é a poesia. Drummond também escreveu contos e crônicas. Alguns temas são típicos da poesia Drummondiana:

O indivíduo: "um eu todo retorcido". O eu lírico na poesia de Drummond é complicado, torturado, estilhaçado. Vale ressaltar que o próprio autor já se definia no primeiro poema de seu primeiro livro (Alguma Poesia) como um gauche, ou seja, alguém desajeitado, deslocado, tímido, posição que marca presença em toda sua obra. A Terra Natal: a relação com o lugar de origem, que o indivíduo deixa para se formar. A Família: o indivíduo interroga, sem alegria e sem sentimentalismo, a estranha realidade familiar, a família que existe nele próprio.


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Os Amigos: "cantar de amigos" (título que parafraseia com as Cantigas de Amigo). Homenagens a figuras que o poeta admira, próximas ou distantes, de Mário de Andrade a Manuel Bandeira, de Machado de Assis a Charles Chaplin. O Choque Social: o espaço social onde se expressa o indivíduo e as suas limitações face aos outros. O Amor: nada romântico ou sentimental, o amor em Drummond é uma amarga forma de conhecimento dos outros e de si próprio. A Poesia: o fazer poético aparece como reflexão ao longo da sua poesia. Exercícios lúdicos, ou poemas-piada: jogos com palavras, por vezes de aparente inocência. A Existência: a questão de estar no mundo. Buscamos apresentar uma proposta de análise e de interpretação do poema José na fase intitulada Eu menor que o mundo, a fim de demonstrar a consciência política de Drummond diante de sua carreira poética, que oportuniza a evolução de seus temas e visão de mundo, pela vontade do poeta de participar e tentar transformar esse mundo. O poeta se solidariza com os problemas do mundo. Nesta fase, sem se distanciar, deixa-se envolver pela realidade à sua volta e canta a impotência e a solidão em um mundo mecânico, frio e político; a decepção e a falta de perspectiva diante da fragmentação causada pela guerra; o sofrimento e a solidariedade do ser humano brasileiro e universal. Temas estes abordados em tons ora esperançosos, ora sem esperança, com a mesma ironia, humor e sobriedade. Telles, afirma que “os primeiros estudos sobre o Modernismo apontam a poesia de Carlos Drummond de Andrade como pertencente à segunda fase, não somente por seu livro ter aparecido em 1930, mas também por possuir características sociais, aspecto dominante nesta fase”.(Telles, 1970). A escolha desse poema, não ocorre de forma gratuita, mas de uma atitude consciente, a fim de demonstrar a importância de Drummond dentro da literatura brasileira, uma vez que este poema é um exemplo de uma postura crítica, participante e engajada socialmente.

Além disso, escolhemos o poeta Carlos Drummond de Andrade, cuja escrita se faz com senso de humor, emoção e com fragmentos da memória ativa do passado. O poeta, iniciou seus versos num ambiente de mundo moderno, que se arrasta até a contemporaneidade. Seus poemas procuram resgatar a significativa experiência do homem. Extraímos da poética de Drummond elementos que nos remetem à idéia de buscas e dúvidas a respeito das certezas de antes, e que, agora, são postas em questionamento e já não trazem


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mais a marca do definido e sim das incertezas em que o poeta se lançou. Muitos poemas de Drummond mostram um homem ao mesmo tempo torturado pelo passado e assombrado pelo futuro. Ora cético e melancólico, ora irônico e bem-humorado, lucidez e calma, filtrados numa linguagem flexível e rica de dimensões humanas, além de ter sido um grande crítico. A leitura do poema que se segue permite verificar a afirmação de que a palavra poética atua de maneira decisiva como participação na vida e como forma de representação histórico-social.

JOSÉ E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, você? você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? e agora, José? Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, Já não pode beber, Já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José? E agora, José? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio – e agora?’


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Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora? Se você gritasse, se você gemesse; se você tocasse a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse ... Mas você não morre, você é duro, José! Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José para onde?

ANÁLISE DO POEMA Ao analisar o poema “José” deve-se levar em consideração alguns traços sociológicos que contribuem para o sentido do texto, levando-se em consideração que texto e contexto devem estar interligados. Lembramos ainda que o poema está intimamente relacionado a acontecimentos históricos, com marcas profundas na sociedade. O poema foi publicado em 1942, ano de atuação do Estado Novo no Brasil. Desse acontecimento origina-se uma série de episódios políticos e econômicos que irão marcar a sociedade brasileira, tais como a repressão política; o preconceito institucional; a precariedade das condições de trabalho; a modernização industrial; a implantação e a afirmação de condutas autoritárias; a urbanização dispersiva. Esses fatos tornam-se agravantes da situação de miséria enfrentada pela população e resultaram em uma disjuntura social. Desta, originou-


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se, principalmente, a desigualdade de privilégios concedidos à sociedade, intensificando, ainda mais, a formação de classes opressoras e oprimidas. A figura de José vem nesse poema, justamente como representante de um problema coletivo. Todo o poema está centrado na reflexão sobre a existência de José que resiste e segue vivendo. Começa e termina de forma interrogativa o que vem enfatizar o problema do direcionamento da existência. O título é composto por um nome próprio comum e popular: “José”. “José” aproximase não de um homem específico e individualizado, mais do homem no sentido universal – tornou-se mesmo sinônimo de humanidade; representa o ser humano com suas angústias, incertezas e esperanças: José simboliza todos os homens. O poema drummondiano apresenta seis estrofes assimétricas: as duas primeiras são as mais longas (12 e 15 versos), a terceira, a quinta e a última possuem o mesmo número de versos (9) e a quarta estrofe é a mais curta (8 versos). Os versos são pentassílabos com acentuação tônica na segunda e quinta sílabas; a exceção está na segunda estrofe (4º e 5º versos) e no penúltimo verso da última estrofe. Apesar dessas exceções, o ritmo não é quebrado. É mantido, ainda, pela repetição de palavras ou grupos de palavras constantes em todo o texto que é, inclusive, uma característica do fazer poético do poeta. O ritmo é também concretizado pelas rimas e com a repetição, desvela uma dimensão sonora característica dos poemas criados para serem ouvidos. Para Pozenato, Drummond tem consciência de que seu fazer poético está relacionado à escrita: “é o primeiro poeta no Brasil a ter consciência de fazer poesia escrita. Ele não se vê como um poeta cantor, mas um poeta escritor. Seus versos não são para serem ouvidos (com a rara exceção, talvez, de “José”), mas para serem lidos.” (Pozenato, 2002). Nessa segunda estrofe todos os verbos que marcam a ação não estão relacionados a José; ele não pratica nenhuma ação, José está parado, e o verbo “está” revela uma condição momentânea, pois José está e não é, o que pode sugerir um estado passageiro, um momento de crise e de reflexão, o que leva a pensar na possibilidade de uma mudança e de que há alguma esperança. Os únicos versos que revelam uma condição existencial do ser José estão na quinta estrofe: “você é duro, José” – José é forte, pois não morre e apesar de tudo, da solidão e da impossibilidade momentânea de fuga José resiste; e na estrofe inicial: “você é sem nome.”


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Segundo Proença Filho (2002), “esse é um José “desindividualizado”, homem-síntesede-mundaneidade. Marcado pela impossibilidade de ação, de conduzir o seu próprio destino, na fatal condição de viver.” Todo o poema de Drummond está construído com palavras que remetem ao vazio: “Com a chave na mão/ quer abrir a porta,/ não existe porta;/ quer morrer no mar,/ mas o mar secou;/ quer ir para Minas/ Minas não há mais”; não há festa nem povo, não há mulher (símbolo de amor) nem bonde (símbolo de fuga), não há porta nem mar (símbolos de saída), muito menos há um destino ou um caminho a ser seguido. Não existe mais Minas, nem cavalo que o leve a outro lugar (“sem cavalo preto/ que fuja a galope”): é um José que marcha sem saber para onde, por isso tantas dúvidas e questionamentos representados pela pontuação interrogativa, bastante intensa em todo o texto (“e agora, você?”), de modo que ao todo são dez interrogações. Esse José que caminha sem objetivo simboliza a humanidade, seu nome não é apenas um nome, mas uma sina, transmite a idéia de indiferença diante daquilo que não tem nome (verso 8). Ou seja, José é apenas mais um na multidão. A relação do homem José é desvelada por meio da falta e do vazio: “A festa acabou”, “o povo sumiu”, “está sem mulher”, “o dia não veio”, “sozinho no escuro” e pela negação, acentuada pelo uso recorrente do advérbio “não”. A relação temática é predominantemente negativa, devido à própria construção estrutural presença de palavras (verbos, preposição) de caráter negativo, interrogações e conjunção condicional; o poema está construído com base na falta e no vazio sugerindo incertezas e dúvidas que refletem não só o universo individual do homem José, mas toda uma humanidade que busca respostas e soluções, almeja, enfim, um destino. É interessante observar que a palavra José está isolada entre vírgulas ou entre vírgula e ponto (final, de interrogação, ou de exclamação).Isso sugere o próprio isolamento e solidão do homem representado por José; ele está isolado até mesmo na construção textual e, ainda, o fato de estar entre dois pontos revela a falta de caminhos e horizontes, significando que José não tem saída mesmo, como nos versos: “José, e agora?” (quarta estrofe) e “você é duro, José!” (quinta estrofe). O poema “desenvolve-se em torno de uma indagação dramática de caráter temporal – “e agora?” – e termina com outra pergunta da mesma natureza, mas de caráter espacial: “José, para onde?”. “Espaço e tempo: dimensões fundamentais da existência humana.” (Proença Filho, 2002).


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Nos versos 45 a 51, a utilização dos verbos no imperfeito do subjuntivo compondo orações condicionais, anuncia a possibilidade de mudança que o verso seguinte desmente, evidenciando que não há resolução para a dúvida em relação ao futuro, já que nem mesmo morrer vale a pena , pois não resolveria o problema. Nos versos finais, há sensação de um futuro, mesmo porque José no final marcha, não fica parado, apesar de toda situação adversa e negativa; embora todo o momento anterior seja de reflexões e angústias e indique um momento estático (não há festa, nem bonde, mar, ou cavalo) José é duro e não desiste: marcha. O uso do verbo marcha expressa a única reação de José, que, sem ter nenhuma forma de liberdade, recorre ao seu próprio corpo. O texto “José”, de Drummond, é um poema bastante conhecido, tanto que sua fraserefrão, “E agora José?”, é repetida em muitas situações do cotidiano, fazendo parte do senso comum.

CONCLUSÃO

Não foi nossa pretensão, em absoluto, esgotar o assunto. Muito provavelmente, ângulos importantes deixaram de ser explorados, ou sequer foram vislumbrados. Por ora, dada à complexidade do tema, este é o trabalho possível. Espero ter conseguido estabelecer relações pertinentes nesta proposta, considerando o contexto de produção, os aspectos históricos sociais e ideológicos, que deu origem ao poema. Para tanto, nossa interpretação particular, lê o poema José como uma obra comprometida com o social, que debate demandas identitárias expressando choques culturais na subjetividade da personagem principal foi de imensa reflexão e de aprendizado. Também o lemos como discurso revelador da sensação de deslocamento e de estranhamento em que a vida de um indivíduo encontra-se minada por mudanças, tensões e conflitos com outras culturas, além de ainda fomentar os efeitos que se refletem na configuração deste indivíduo. Esta é a visão que o escritor parece abarcar da realidade, percebemos o autor implícito nos discursos, sinalizando para situações críticas vivenciadas por indivíduos comuns, sobretudo, pela maioria da população.


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WALT WHITMAN, EMILY DICKINSON E A GUERRA CIVIL AMERICANA Natalia Helena Wiechmann1 Resumo: Este estudo tem por objetivo tecer algumas considerações sobre a poética de Walt Whitman em relação a sua resposta à Guerra Civil Americana e contrastar alguns trechos de seu grupo de poemas intitulado “Drum Taps” com dois poemas de Emily Dickinson que possam sugerir uma alusão ao mesmo contexto histórico: “My Portion is Defeat – today –” e “Our journey had advanced –” . Percebemos, contudo, que Whitman faz referência explícita à Guerra Civil, enquanto Dickinson privilegia imagens que possivelmente se relacionam ao ambiente de guerra. Assim, nossas reflexões partem do conhecimento de que os poetas foram contemporâneos e, portanto, vivenciaram a Guerra Civil cada um a seu modo, mas não perdemos de vista o fato de que a obra poética produzida por Dickinson e por Whitman apresenta maiores diferenças do que semelhanças. Ainda assim, acreditamos que a Guerra Civil possa ser lida como um tema comum dentre as diferenças que as duas poéticas estabeleceram entre si. Palavras-chave: Walt Whitman. Emily Dickinson. Guerra Civil Americana. WALT WHITMAN, EMILY DICKINSON AND THE AMERICAN CIVIL WAR Abstract: This study aims to take into account the poetics of Walt Whitman in relation to his response to the American Civil War in order to contrast some excerpts of his cluster of poems entitled “Drum Taps” with two poems by Emily Dickinson that may suggest an allusion to the same historical context: “My Portion is Defeat – today –” and “Our journey had advanced –”. However, we observe that Whitman refers to the Civil War explicitly, whereas Dickinson privileges images that are possibly related to the war environment. Thus, our considerations start from the awareness that the poets were contemporary and, therefore, they experienced the Civil War in their own ways, but we must keep in mind that the poetic work produced by Dickinson and by Whitman presents more differences than similarities. Yet we believe that the Civil War may be read as a common theme among the differences that these two poetics established with each other. Keywords: Walt Whitman. Emily Dickinson. American Civil War.

APRESENTAÇÃO

Este trabalho tem por objetivo contrastar a poética de Walt Whitman (1819-1892) no que concerne a sua resposta à Guerra Civil Americana com alguns poemas de Emily Dickinson (1830-1886) em que se pode identificar uma possível referência a esse mesmo acontecimento da história dos Estados Unidos.

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Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, campus de Araraquara-SP. Bolsista Fapesp. Contato: nataliahw@hotmail.com.


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Para isso, tomamos por base o fato de os dois poetas terem sido contemporâneos e, cada um a sua maneira, terem tido algum contato com a Guerra Civil e com seus efeitos na sociedade norte-americana. Nesse sentido, teceremos algumas considerações sobre excertos de “Drum Taps”, conjunto de poemas de Whitman dedicado à Guerra Civil Americana, e sobre dois poemas de Emily Dickinson: “My Portion is Defeat – today –” e “Our journey had advanced –”1. Os poemas de Dickinson serão apresentados conforme a edição de Thomas H. Johnson e os de Whitman seguirão a edição divulgada no site do The Walt Whitman Archive, acompanhados da tradução de Luciano Alves Meira. Entendemos, contudo, que a obra de Emily Dickinson e de Walt Whitman são marcadamente distintas, e, portanto, não nos parece haver pontos de convergência em que possamos nos apoiar para defendermos que seus poemas revelem releituras de ou respostas a poemas de um ou de outro. Ainda assim, o fato de os dois poetas terem sua produção localizada no mesmo contexto histórico nos permite sugerir que ambos tenham respondido às mesmas questões de seu tempo. Diante disso, é preciso destacar que essa resposta à Guerra Civil Americana é visível em Whitman, uma vez que o poeta dedicou, inclusive, um conjunto de poemas a esse tema, expressando-se ora de maneira elogiosa à Guerra, ora lamentando-a. Em Dickinson, ao contrário, não há referências explícitas, mas, sim, poemas que notadamente privilegiam imagens relativas a um contexto de guerra e que foram produzidos durante os anos da Guerra Civil2. Desse modo, acreditamos que a Guerra possa se revelar um tema comum diante das diferenças que as poéticas de Dickinson e de Whitman estabelecem entre si. O que buscamos com este trabalho é, portanto, partir do modo como Whitman se expressa sobre a Guerra Civil Americana e contrastá-lo com o modo como Dickinson teria, supostamente, feito o mesmo. A escolha por essa perspectiva de estudo se justifica por ser Emily Dickinson também um nome de grande importância na formação da poesia norte-americana e por ser a Guerra Civil um marco na história dos Estados Unidos e na poesia de Walt Whitman.

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Outros poemas de Emily Dickinson que também pode ser lidos como referências à Guerra Civil são “It feels a shame to be Alive —”; "They dropped like Flakes“; "It don't sound so terrible, quite, as it did," e "When I was small, a woman died”. 2 É importante lembrar que os poemas de Emily Dickinson não foram datados por ela, mas por editores que compararam a evolução de sua escrita poética e de suas cartas para identificar o suposto ano de produção dos poemas. Enfatize-se, também, que mais da metade de seus poemas teriam sido escritos durante os anos da Guerra Civil Americana (1861-1865).


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Por fim, salientamos que este trabalho se iniciará com algumas reflexões acerca das diferenças mais comumente apontadas entre a escrita poética de Whitman e de Dickinson para chegarmos, então, aos poemas referentes à Guerra Civil. Durante essas primeiras discussões, serão destacados alguns trechos de “Song of myself”, que é talvez o poema mais conhecido de Walt Whitman, e os poemas de Emily Dickinson “I’m Nobody! Who are you?” (288J) e “Death is a Dialogue betwewn” (976J).

WALT WHITMAN E EMILY DICKINSON

Apesar de contemporâneos, não há evidências de que Walt Whitman e Emily Dickinson tenham se conhecido ou de que tenham lido o trabalho um do outro. Morando na Cidade de Nova Iorque, Whitman publicou por conta própria o volume de poemas Leaves of Grass (1855) e se encarregou de sua divulgação enquanto, em Amherst, a aproximadamente 270 km de Whitman, Emily Dickinson produzia sua vasta obra poética em silêncio 1, reclusa na casa de seu pai e mantinha contato com o mundo exterior basicamente por meio de visitas de amigos e familiares, de sua correspondência com os mesmos e pela leitura de jornais diários. Contudo, sabe-se que Dickinson conhecia o nome de Walt Whitman ao menos minimamente, como se observa na resposta que a poeta escreve a uma carta de seu amigo T. W. Higginson: “You speak of Mr. Whitman – I never read his book – but was told that He was disgraceful –” (Dickinson, 1996, p. 404). Não se pode afirmar, no entanto, que Dickinson de fato não lera os poemas de Whitman, uma vez que, trabalhando na imprensa de Nova Iorque, Whitman não poupara esforços para uma auto-publicidade e, desse modo, pode ter adentrado o lar dos Dickinsons com sua auto-divulgação jornalística. Diante desse cenário, a produção poética de Whitman se contrasta com a de Dickinson em especial por se tratarem de dicções poéticas absolutamente diversas, sendo que a diferença entre eles é comumente resumida pela crítica em classificar o primeiro como poeta do espaço público e a segunda como poeta do espaço privado. Essa classificação reflete tanto o comportamento dos dois poetas em relação a sua obra como as características da voz lírica de seus poemas. Como já foi mencionado, Whitman trabalhava pela divulgação de seu livro, 1

É preciso lembrar que seus 1775 poemas somente foram encontrados após a morte da poeta e editados em 1893.


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enquanto Dickinson escolhera a reclusão e escrevia uma obra de fôlego em silêncio; já o sujeito lírico de Whitman se apresenta com a mesma grandiloqüência de seu autor em um estilo que privilegia a exaltação a si, à vida, ao universo através dos versos longos e livres que se aproximam da prosa e de um ritmo bastante fluido; por outro lado, o sujeito lírico de Dickinson é aparentemente despretensioso, mas se revela altamente irônico em seus versos curtos de estrutura rítmica quebrada por travessões a todo momento. Esses contrastes são mais claramente observados quando colocamos lado a lado o modo como os sujeitos líricos de Whitman e de Dickinson se apresentam em “Song of Myself” e em “I’m Nobody! Who are you?”: em “Song of myself”, Whitman se coloca como o porta-voz da humanidade e sua experiência está imersa na atemporalidade do fluxo da vida; em oposição, o eu-lírico no poema de Dickinson afirma não ser ninguém e parece ver com desprezo a fama, o desejo de ser público. Dessa forma os sujeitos líricos em ambos os poemas refletem também o posicionamento de seus criadores, uma vez que no poema de Dickinson, como em vários outros, é perceptível um certo senso de isolamento, de solidão (porém não com sentido pejorativo, de sofrimento), ao contrário da expressão de Whitman que busca se colocar sempre em contato com todo e qualquer ser existente. Os aspectos rítmicos dos poemas também exemplificam as particularidades do fazer poético de um e de outro. Observe-se que em “Song of myself” o ritmo é marcado pelo uso da vírgula, que impõe pequenas pausas e não interfere na leitura do poema, como em: “Walt Whitman, um cosmos, filho de Manhattan, / Turbulento, carnal, sensual, que come, bebe e procria, [...].”(Whitman, 2002, p.105). É por meio dessa pontuação que Whitman também desenvolve sua técnica de catalogação, em que ele vai acrescentando termos numa seqüência enumerativa que marca toda a sua obra. No entanto, Harold Bloom salienta que: A originalidade de Whitman tem menos a ver com seu verso supostamente livre do que com sua inventividade mitológica e seu domínio da linguagem figurativa. Suas metáforas e argumentos, criando metro, abrem a nova estrada ainda mais efetivamente que suas inovações na métrica. Mesmo poemas muito curtos e ligeiros manifestam o impacto de sua originalidade. (Bloom, 1995, p.258)

Por sua vez, em “I’m Nobody! Who are you?”, os versos curtos são entrecortados por travessões que impõem pausas mais bruscas e tornam o ritmo do poema de certo modo quebrado e até mesmo um pouco incômodo. Além disso, os travessões parecem isolar os


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termos no verso de maneira a dar maior ênfase para os seus possíveis significados: “Que triste – ser – Alguém! / Que pública – a Fama – [...]” (Dickinson, 2008, p.41). Esse tipo de pontuação é característico do estilo de Dickinson e responsável por infindáveis discussões por parte da crítica. Além disso, a poeta se apropria de termos aparentemente simples, como, por exemplo, a rã e a lama e os reveste de novos significados muitas vezes de difícil compreensão: “O que seus críticos quase sempre subestimam é a espantosa complexidade intelectual dela. Nenhum lugar-comum sobrevive às suas apropriações; o que ela não renomeia ou redefine, revisa além do fácil reconhecimento” (Bloom, 1995, p.284). Dessa forma, se colocarmos o eu-lírico de Whitman ao lado do eu-lírico de Dickinson, observaremos o contraste entre um eu universal, público, e um eu individual, privado. Em outras palavras, a identidade de Whitman é cumulativa, pois ela se expande de modo a estar sempre em contato com tudo e ser tudo: ele é o amante masculino e o feminino, o poeta, o profeta, o líder, uma voz das massas, um médium, o corpo e a alma, o passivo e o ativo, o espiritual e o científico, enfim, um organismo vivo em constante mobilidade. Por outro lado, o eu-lírico dos poemas de Dickinson parece fechar-se em si e debruçarse sobre momentos particulares de sua existência: “She [Dickinson] tends to focus her poems on single moments, and the isolation of an individual event in her poem corresponds to her sense of the self’s ultimate loneliness” (Salska, 1985, p. 47). Esse isolamento de um acontecimento particular que se torna matéria de poesia faz com que a escrita de Dickinson seja também atemporal, mas em um sentido diferente da atemporalidade assumida por Whitman. Enquanto o poeta universal condensa em si o seu próprio tempo, o tempo de seus antepassados e o dos que ainda estão por vir e se torna, portanto, atemporal, em Dickinson essa atemporalidade não se dá em um movimento expansivo, mas sim de concentração em si e no isolamento do momento presente que, sem referências temporais diretas, torna-se, assim, atemporal. Diante disso, Walt Whitman e Emily Dickinson são considerados precursores da modernidade poética na literatura norte-americana, tanto pela forma poética utilizada – em Whitman, por exemplo, os versos muito longos e o estilo prosaico, e em Dickinson o uso exacerbado do travessão1 - como pelos temas – a exemplo, o amor homossexual em Whitman e a maneira de retratar a morte em Dickinson. Assim, o nome dos dois poetas tem grande peso na história literária dos Estados Unidos e do Ocidente em geral, como afirma Bloom: “Nada 1

Note-se que apesar dessa inovação na forma poética, Emily Dickinson retoma a tradicional balada inglesa, característica dos hinos religiosos, muito provavelmente por causa da educação religiosa que ela recebera.


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na metade do século 19, ou no nosso quase concluído século, se iguala à obra de Whitman em poder e sublimidade diretos, a não ser talvez Emily Dickinson” (Bloom, 1995, p.257). Apesar das diferenças marcantes na escrita dos dois poetas, é possível identificar temas similares entre ambos. No entanto, essas possíveis aproximações não podem deixar de considerar as formas distintas que os temas tomaram na poesia de cada um. Nesse sentido, as duas principais aproximações temáticas a que a crítica tradicionalmente se refere são em relação à morte e à religião. Para nenhum dos poetas a morte é tida como intimidadora, isto é, não há uma postura de temor em relação a ela, mas sua presença na poesia de ambos é quase que uma obsessão: Dickinson, the poet of dashes and telegraphic urgency, and Whitman, the poet of the deep breath and the long line, are alike in the extent to which they obsess about death. For both, the problem of human mortality is an insistent challenge, not an abstraction but an experience somehow to be endured. (Lehman, 2008, p. 12)

Para Whitman, a morte não representa um final, mas, sim, renovação, pois a energia da vida não pode ser destruída, apenas modificada. Além disso, Lehman afirma que: “The vision he proposes is of a self that will not die, and the reason he will not die is that he is a poet and lives on his poetry” (Lehman, 2008, p.13). Em oposição a isso, a morte é retratada nos poemas de Dickinson ora como elemento personificado (a morte se coloca, por exemplo, como um senhor ou um amante), ora narrada pelo próprio sujeito que estaria vivenciando essa situação de morte. A morte como fim absoluto é, por vezes, negada e, outras vezes, ironizada, mas sem que se caia em pretensões espirituais. Contudo, o sujeito lírico de Dickinson também não vê a morte com implicações negativas e, sim, com serenidade e sem perturbações maiores. Ligada ao tema da morte está a religião, que no século XIX ainda era uma questão dominante nos EUA e mais especificamente na Nova Inglaterra, região onde viveu Emily Dickinson e onde os puritanos ingleses estabeleceram suas primeiras colônias ao saírem da Inglaterra por questões de perseguição religiosa. Para Whitman, a religião e a espiritualidade de maneira mais abrangente estão em cada indivíduo, em cada ser ou coisa existente no universo, não em uma entidade superior. O próprio poeta se coloca, em alguns poemas, como Deus. Já nos poemas de Dickinson nota-se com freqüência um questionamento irônico acerca da existência de um Deus e de sua importância caso ele exista:


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 141 A entidade chamada ‘Deus’ tem uma carreira bastante dura na poesia dela, e é tratada com bastante menos respeito e compreensão que a entidade rival que ela chama de ‘morte’. [...] Um poeta que só chama Deus de pai depois de chamá-lo de ladrão e banqueiro pretende outra coisa que não religiosidade. (Bloom, 1995, p.287)1

Contudo, apesar do tom irônico com que o sujeito lírico de Dickinson muitas vezes trata a figura de Deus e as questões religiosas, ainda assim há muito em sua poesia de um sentimento religioso que, no entanto, não pensa a religião como uma simples declaração de fé, mas como reflexão sobre a beleza da natureza, por exemplo, e das experiências de alegria e de êxtase. Nesse ponto, Salska afirma que talvez o posicionamento de Dickinson lembre o de Whitman, no sentido de que para um e outro a poesia toma o lugar da religião. Whitman se coloca como a voz oficial de uma nova religião enquanto Dickinson “[...] turned to poetry as believers do to religion, for solace and sustenance in her hours of need” (Salska, 1985, p. 24). Em meio a essas duas poéticas tão distintas se coloca o contexto histórico que os poetas compartilham. Como já foi mencionado, Walt Whitman viveu entre 1819 e 1892, em Nova Iorque, e Emily Dickinson viveu entre 1830 e 1886, em Amherst, Massachussetts. Assim, morando na região Norte do país, ambos assistiram o desenrolar dos conflitos que resultaram na Guerra Civil Americana, cujos combates duraram de 1861 a 1865. Whitman dedicou diversos poemas a esse fato histórico e Dickinson, apesar de não se referir diretamente à Guerra, escreveu poemas que concentram em si imagens claramente relacionadas ao combate militar. Passaremos, então, a discutir a maneira como os dois poetas responderam a esse marco do século XIX norte-americano.

WHITMAN, DICKINSON E A GUERRA CIVIL

A Guerra Civil Americana, também chamada de Guerra de Secessão, ocorreu de 1861 a 1865 e é um dos momentos históricos mais importantes durante os últimos três séculos para a formação econômica e social de todo o mundo, em especial das Américas e da Europa. Foi também o conflito bélico que causou mais mortes na história dos EUA até a atualidade. As razões para essa guerra se concentraram na discórdia entre os Estados do Norte, mais desenvolvidos industrialmente e defensores do abolicionismo, e os Estados do Sul, cuja

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Bloom se refere, aqui, ao poema 49J, “I never lost as much but twice”.


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economia baseava-se no latifúndio e na mão-de-obra escrava. O desenvolvimento do Norte deveu-se, entre outras causas, a um acúmulo de capital durante o período colonial que deu a essa região condições de crescimento industrial, gerando consequentemente a necessidade de um mercado e de mão-de-obra assalariados. Por outro lado, o Sul manteve uma economia agro-exportadora de algodão e de tabaco, baseada no latifúndio e no trabalho escravo e tornou-se comprador dos produtos industrializados pelo Norte. Diante desse cenário, em 1860 Abraham Lincoln, candidato do Partido Republicano e representante dos interesses nortistas, é eleito para a presidência do país após anos de poder do Partido Democrata e esse fato tornou-se, então, a causa imediata do início da Guerra. Lincoln apregoava que trabalharia pela unidade da nação americana, independentemente da questão abolicionista, mas, ainda assim, os Estados do Sul, em atitude radical, decidiram se constituir numa Confederação separada na União, o que resultou em operações militares para conter essa ação sulista e deu início à Guerra Civil. Os conflitos se intensificaram com os esforços presidenciais pela defesa da União e da abolição da escravatura e com a insistência do Sul em se manter independente. A rendição dos Estados do Sul se deu apenas em 1865, deixando o país em ruínas, mas mantendo a unidade dos EUA e abolindo a escravidão. Contabilizou-se, ao final, um número de mortes superior a 600.000. Contudo, os esforços de guerra geraram ganhos em diversos campos, como na medicina e na tecnologia, além do crescimento ferroviário e nas indústrias armamentista e metalúrgica. Durante a Guerra, Walt Whitman trabalhou como voluntário em hospitais militares, prestando seus serviços de 1863 até o final dos combates, em 1865. Dessa experiência surgiu um grupo de poemas sob o título de “Drum Taps” que foi anexado ao Leaves of Grass em 1865. Esses poemas refazem a experiência de Whitman nos hospitais militares e nos dão um retrato do que foi a Guerra Civil. Seu tom é por vezes celebratório, de exaltação à coragem dos que lutaram pelo país, além de ser bastante narrativo e descritivo. Contudo, ao longo da leitura desses poemas, notamos um crescente tom mais sóbrio e angustiado, indicando que o poeta parece compreender o preço pago pela nação. Sobre o desenrolar de “Drum Taps” Huck Gutman (1998) afirma em seu texto para o The Walt Whtiman Archive que: “In "Drum-Taps" Whitman projects himself as a mature poet, directly touched by human suffering, in clear distinction to the ecstatic, naive, electric voice which marked the original edition of Leaves of Grass.” (Gutman, 1998, s.p.). Para entendermos melhor essa passagem de um tom entusiasmado a um envolvimento emocionado


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e até angustiante com a realidade da Guerra, transcrevemos abaixo três trechos de “Drum Taps”: “1861” ARM'D year! year of the struggle! No dainty rhymes or sentimental love verses for you, terrible year! Not you as some pale poetling, seated at a desk, lisping cadenzas piano; But as a strong man, erect, clothed in blue clothes, advancing, carrying a rifle on your shoulder, With well-gristled body and sunburnt face and hands —with a knife in a belt at your side, As I heard you shouting loud—your sonorous voice ringing across the continent; Your masculine voice, O year, as rising amid the great cities, Amid the men of Manhattan I saw you, as one of the workmen, the dwellers in Manhattan; […] Saw I your gait and saw I your sinewy limbs, clothed in blue, bearing weapons, robust year; Heard your determin'd voice, launch'd forth again and again; Year that suddenly sang by the mouths of the round- lipp'd cannon, I repeat you, hurrying, crashing, sad, distracted year. “The Dresser” 3 On, on I go – (open, doors of time! open, hospital doors!) The crush'd head I dress, (poor crazed hand, tear not the bandage away;) The neck of the cavalry-man, with the bullet through and through, I examine; Hard the breathing rattles, quite glazed already the eye, yet life struggles hard; (Come, sweet death! be persuaded, O beautiful death! In mercy come quickly.) […] I dress the perforated shoulder the foot with the bullet wound Cleanse the one with a gnawing and putrid gangrene, so sickening, so offensive, While the attendant stands behind aside me, holding the trail and pail. I am faithful, I do not give out; The fractur’d thigh, the knee, the wound in the abdomen, These and more I dress with impassive hand – (yet deep in my breast a fire, a burning flame.) “Turn, O Libertad” TURN, O Libertad, for the war is over, (From it and all henceforth expanding, doubting no more, resolute, sweeping the world,) Turn from lands retrospective, recording proofs of the past; From the singers that sing the trailing glories of the past; From the chants of the feudal world—the triumphs of kings, slavery, caste; Turn to the world, the triumphs reserv'd and to come — give up that backward world; Leave to the singers of hitherto—give them the trailing past; But what remains, remains for singers for you—wars to come are for you; (Lo! how the wars of the past have duly inured to you — and the wars of the present also inure:) —Then turn, and be not alarm'd, O Libertad—turn your undying face, To where the future, greater than all the past, Is swiftly, surely preparing for you (The Walt Whitman Archive: www.whitmanarchive.org)


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“Mil oitocentos e sessenta e um” Ano armado – ano de porfia, Sem rimas deliciosas ou versos de amor sentimental para ti, ano terrível, Não serás algum pálido poeta sentado ao piano, balbuciando cadências, Mas como um homem forte e ereto, vestido em uniforme azul, avançando, carregando um rifle em teus ombros, Com um corpo bem formado, com as mãos e o rosto bronzeados, com uma faca na cintura, Quanto te ouço gritar bem alto, tua voz sonora atravessando o continente, Tua voz masculina, ó ano, como que se erguendo em meio às grandes cidades Em meio aos homens de Manhattan te vi, como um dos trabalhadores, como um dos residentes de Manhattan, [...] Observei tua andadura e teus membros firmes vestidos de azul, carregando armas, ano robusto, Ouvi tua voz determinada soando e soando novamente, Ano que subitamente foi cantado pelas bocas de lábios redondos do canhão, Eu repito o que fizeste, ano corrido, desastroso, triste, disfarçado. (Whitman, 2006, p.284-5) “O médico de feridas” 3 Para frente sigo (abrindo portas do tempo! abrindo portas do hospital!) A cabeça esmagada eu curo (pobre mão louca, não tires a bandagem) O pescoço do homem da cavalaria com uma bala atravessada examino, Difícil, a respiração vem em espasmos , os olhos já bastante fixos e, contudo, a vida luta duramente para se manter, (Vem, doce morte! Sê convencida, ó linda morte! Por misericórdia, vem logo.) [...] Penso o ombro perfurado, o pé com o ferimento de bala, Limpo aquele que tem dor persistente e pútrida gangrena, tão enjoativo, tão ofensivo, Enquanto o assistente permanece atrás de mim e ao meu lado, segurando uma bandeja e um balde. Sou dedicado, não desisto, O fêmur fraturado, o joelho, o ferimento abdominal, Isso e mais eu curo com mão impassível (e contudo no fundo de meu coração há um fogo, uma chama ardente.) (Whitman, 2006, p.311) “Volta, ó Liberdade” Volta, ó Liberdade, pois a guerra terminou, Vem a partir dela e de hoje em diante expande-te, sem hesitações, resolutamente, varrendo o mundo,

Volta de terras retrospectivas, registrando provas do passado, Dos cantores que cantam as glórias rebocadas do passado, Dos cantos do mundo feudal, os triunfos dos reis, escravidão, casta, Volta ao mundo, aos triunfos reservados e aos que hão de vir – desiste daquele mundo atrasado, Deixa para os cantores de até agora, dá a eles o passado rebocado, Mas o que resta, resta para os que cantam por ti – as guerras do porvir serão por ti, (Olhe como as guerras do passado se submeteram devidamente a ti e as guerras do presente também se submetem;) Então retorna e não fiques alarmada, ó Liberdade – volta a tua face imorredoura


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 145 Para onde o futuro, maior do que todo o passado, Está, rapidamente e com certeza, se preparando para ti. (Whitman, 2006, p.324-5)

No primeiro trecho de “Drum Taps” transcrito aqui, notamos que prevalece um sentimento de heroísmo em relação à Guerra, desenhando-se para o leitor uma imagem quase que romantizada dos conflitos em defesa da nação. O poema é intitulado pelo ano em que se inicia a Guerra Civil (1861) e é caracterizado como um “ano de porfia” (primeiro verso), isto é, de empenho, de persistência, o que nos revela uma visão otimista sobre esse momento histórico para os EUA. Contudo, o poeta anuncia em seguida: “ano terrível”, e estabelece uma contradição que antecipa a realidade dos acontecimentos futuros. Inicia-se, então, uma comparação entre o ano de 1861 e a imagem do soldado nortista “vestido em uniforme azul, avançando, carregando um rifle em teus ombros”. Esse soldado é “um homem forte e ereto”, de “corpo bem formado”, “voz sonora”, “voz masculina” e “membros firmes”. Ora, essa caracterização aproxima o soldado à figura de um herói de cuja força o país depende para que se obtenha a vitória. A descrição desse soldado nos parece compor uma imagem fotográfica que, naquele momento, era uma arte nova e em desenvolvimento. O ano de 1861 torna-se, assim, o próprio soldado. Por ser apenas o primeiro ano da Guerra, esse ano é “robusto” e tem “voz determinada”, como é de se esperar dos soldados em início de batalha. No entanto, ao final do poema o sujeito lírico repete a contradição mencionada anteriormente e anuncia: “Eu repito o que fizeste, ano corrido, desastroso, triste, disfarçado.” Dessa forma, percebe-se que o sujeito lírico situa-se em um momento posterior ao focalizado pelo poema e o que ele descreve são, na verdade, os sentimentos e as glórias esperadas no início de uma guerra. Ademais, o eu - lírico se coloca nesse poema como observador, diferentemente do poema seguinte em que o sujeito lírico descreve sua atuação na Guerra. Muito provavelmente, a recriação, em “Mil oitocentos e sessenta e um”, de suas percepções sobre a Guerra foi resultado das informações que o poeta obtinha nas cartas de seu irmão (que lutou no início da Guerra), das suas idas aos fronts de combate e de suas conversas frequentes com soldados feridos. Já em “O médico de feridas” o que se tem é o retratado da morte e do sofrimento causados pela Guerra. O sujeito lírico é, agora, o enfermeiro que cuida dos feridos em um hospital militar e assiste à dor dos soldados para quem a morte seria mais “doce” e “linda”:


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“[...] the dominating metaphor for the war is a hospital, filled with injured men who must be nursed or, if dying, comforted.” (Gutman, 1998, s.p.). A descrição da situação dos feridos é bastante realista (“cabeça esmagada”, “ombro perfurado”, “pútrida gangrena”, “fêmur fraturado”, etc.), mas se mescla a imagens poéticas que dão o poder emocional do poema (“pobre mão louca”, “a vida luta duramente para se manter”, “Vem, doce morte!”, etc.). Ao final, o poeta afirma que, apesar de todo o sofrimento, ele não desiste, pois sua “mão impassível” alivia a dor alheia e seu coração possui “uma chama ardente” que lhe dá esperanças e ânimo para prosseguir. A imagem desenhada nesse poema parece, portanto, fotográfica e carrega em si a experiência do próprio poeta. Assim, o sujeito lírico se coloca como participante das situações descritas e, por isso, tem condições de retratar a guerra mais realisticamente do que no poema anterior. É preciso mencionar, ainda, que “The Dresser” está localizado na metade de “Drum Taps” e se diferencia significativamente dos poemas anteriores e posteriores a ele. Em outras palavras, é visível que “The Dresser” marca a mudança de tom em “Drum Taps”, da exaltação à Guerra para a crueza de sua realidade. Dessa forma, parece-nos plausível afirmar que “Drum Taps” se constitui de três conjuntos de poemas em uma sequência cuidadosamente preparada: o primeiro seria composto por poemas de exaltação à Guerra, o segundo é o próprio “The Dresser”, com o retrato do sofrimento advindo dos conflitos armados, e, por último, os poemas que clamam pela liberdade e refletem sobre os efeitos dessa Guerra tão sangrenta. Para elucidar a terceira parte de “Drum Taps” escolhemos um poema cujo título explicita seu tema – “Volta, ó Liberdade”. Nele, o poeta canta o fim da Guerra e o desejo de que a liberdade se restabeleça, num tom otimista e esperançoso de que as atrocidades desses conflitos não se repitam na história. Aqui, a voz lírica se dirige à Liberdade, personificando-a, e o pedido feito a ela é para que volte ao mundo, “registrando provas do passado” e permanecendo para “os que hão de vir”. Note-se que a Liberdade é tratada como uma entidade de grande poder, uma vez que as guerras, do passado e do presente, submetem-se a ela e as guerras do futuro serão por sua preservação. Nesse sentido, os últimos versos concentram em si a esperança do poeta de que a Liberdade seja agora permanente: “Então retorna e não fiques alarmada, ó Liberdade – volta a tua face imorredoura / Para onde o futuro, maior do que todo o passado, / Está, rapidamente e com certeza, se preparando para ti.”


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Com isso, “Drum Taps” se encerra cantando o retorno da paz e da liberdade. Percebese, portanto, que há um caminho percorrido pelos poemas de Whitman sobre a Guerra, iniciado com sua celebração, de um ponto de vista de observador, passando por um retrato mais realista dos combates, a partir de seu envolvimento pessoal com a Guerra, e terminando com a esperança de que tudo será reconstruído. Sua resposta à experiência da Guerra se modifica ao longo dos poemas, como explica Gutman: The sequence as a whole traces Whitman's varying responses, from initial excitement (and doubt), to direct observation, to a deep compassionate involvement with the casualties of the armed conflict. The mood of the poems varies dramatically, from excitement to woe, from distant observation to engagement, from belief to resignation. (Gutman, 1998, s.p.)

Ao contrário do que ocorre na poesia de Walt Whitman, não se pode afirmar que Emily Dickinson tenha dedicado uma parte de seus poemas às questões da Guerra Civil. Isso se deve, em primeiro lugar, à ausência de referências diretas a fatos ou pessoas ligados ao contexto da Guerra. Soma-se também o fato de que Dickinson não datou seus poemas, o que dificulta a comprovação de que tal ou qual poema teria sido escrito durante os anos da Guerra Civil. Além disso, os poemas que podemos classificar como sendo sobre a Guerra falam, na verdade, de morte, de Deus, da existência humana, de conflitos, isto é, de temas comuns em sua poesia, o que faz com que muitos críticos rejeitem a possibilidade de ela ter se expressado especificamente sobre a Guerra Civil. Desse modo, não se pode identificar um posicionamento da poeta em relação ao seu contexto histórico sem que se caia em sugestões. Emily Dickinson não teve um envolvimento direto com a Guerra como o fez Whitman. Aparentemente, a poeta não se preocupava com questões políticas, uma vez que não há, por exemplo, registros em suas cartas de comentários ou críticas acerca dos conflitos entre os Estados do Sul e os do Norte, região onde ela habitava. No entanto, com o avanço dos combates a família Dickinson viu amigos partirem para a Guerra (inclusive o amigo mais próximo da poeta, T. W. Higginson) e serem feridos ou mortos em batalha, o que pode ter afetado significativamente o interesse da poeta pelo assunto. Ademais, o pai de Dickinson assinava jornais diários que traziam as notícias da Guerra e o próprio irmão da poeta pagara uma taxa para não ter que lutar. Assim, apesar da reclusão, Emily Dickinson tinha pleno conhecimento sobre o que estava acontecendo nos EUA, mas sua relação com a Guerra e sua possível resposta a ela são ainda enigmáticas.


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Para pensarmos no possível posicionamento de Emily Dickinson, tomamos dois poemas que nos parecem evocar o contexto de guerra: 639J My Portion is Defeat – today – A paler luck than Victory – Less Paeans – fewer Bells – The Drums don't follow Me – with tunes – Defeat – a somewhat slower – means – More Arduous than Balls – 'Tis populous with Bone and stain – And Men too straight to stoop again, And Piles of solid Moan – And Chips of Blank – in Boyish Eyes – And scraps of Prayer – And Death's surprise, Stamped visible – in Stone – There's somewhat prouder, over there – The Trumpets tell it to the Air – How different Victory To Him who has it – and the One Who to have had it, would have been Contenteder – to die –

615J Our journey had advanced – Our feet were almost come To that odd Fork in Being's Road – Eternity – by Term – Our pace took sudden awe – Our feet – reluctant – led – Before – were Cities – but Between – The Forest of the Dead – Retreat – was out of Hope – Behind – a Sealed Route – Eternity's White Flag – Before – And God – at every Gate –

Nesses poemas, observa-se que Dickinson não tem versos comemorativos, de exaltação aos que lutaram na guerra. Além disso, seu tom é mais estável, ou seja, menos emocional que o de Whitman e o ritmo dos poemas é entrecortado por travessões, como lhe é característico.


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A voz lírica em ambos os poemas parece se apropriar da voz de um soldado. No primeiro poema, esse soldado vê a morte como sendo seu provável destino, mas também como sendo uma vitória. É possível, ainda, afirmar que ele esteja morrendo e, então, faça suas reflexões sobre vitoriosos e derrotados. Assim, na primeira estrofe percebemos um tom de aceitação que permanece ao longo do poema e é coerente com a situação em que o soldado se encontra. Esse soldado descreve, então, um lugar repleto de ossos e manchas e de pilhas de gemidos, compondo uma imagem severa de morte e destruição que se destaca de todo o poema e acaba por reafirmar a própria situação do soldado. Ao final do poema, e provavelmente ao final de sua vida, ele discute a diferença entre a vitória e a derrota e percebe o custo da guerra. Nesse sentido, o soldado afirma na última estrofe: “How different Victory / To Him Who has it – and the One / Who to have had it, would have been / Contenteder – do die –”. Ora, como morrer implicaria não vivenciar as brutalidades da guerra, isso traria ao soldado maior contentamento e alívio. Em outras palavras, as visões da guerra seriam marcantes demais para não afetarem o soldado profundamente e, por isso, a morte e a derrota são apenas mais pálidas que a vitória, sugerindo que vencer também possui a palidez da morte. A escolha vocabular nesse primeiro poema também nos remete ao contexto histórico em questão, mesmo que não se mencionem batalhas, pessoas ou acontecimentos específicos da Guerra Civil, pois palavras como defeat, victory, drums, arduous, balls, bone, men, death, stone e trumpets criam no poema uma imagem de Guerra de maneira bastante visível. A mesma criação imagética ocorre no segundo poema, em que o soldado descreve uma jornada, um trajeto, que em seu final o levou a uma “floresta dos mortos”. A imagem dessa floresta metafórica, na segunda estrofe, é certamente a mais significativa na interpretação desse poema como sendo sobre a Guerra, pois sabe-se que os soldados, ao passarem por campos em seus caminhos para outras cidades e combates, avistavam muitos corpos que eram deixados ao longo das estradas e de florestas antes que tivessem um funeral apropriado. Observe-se também como essa “Forest of the Dead” retoma o poema anterior em sua segunda estrofe que, por sua vez, poderia ser a descrição dessa floresta: “’Tis populous with Bone and Stain - / And Men too straight to stoop again, / And Piles of solid Moan – / And Chips of Blank – in Boyish Eyes – / And scraps of Prayer – / And Death's surprise, / Stamped visible – in Stone –”. Além disso, palavras como advanced, pace, retreat, route e white flag criam no leitor a idéia de uma vivência da guerra apesar de não serem referências explícitas a ela.


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Nesse poema, o sujeito lírico também parece se apropriar da voz de um soldado, mas se diferencia do poema anterior por apresentar-se na forma do plural: “Our journey”, “Our pace”, “Our feet”. Compreende-se, portanto, que enquanto no primeiro poema o soldado parecia estar sozinho no momento de sua morte, aqui o sujeito lírico fala em nome de um regimento de soldados que, em seu caminho, se deparou com a morte. Diante dessa situação, recuar não seria possível (“Retreat – was out of Hope –”), pois atrás dos soldados a estrada está fechada e à frente a bandeira branca da eternidade se impõe como um símbolo da morte, retomando e ao mesmo tempo amenizando a imagem da floresta dos mortos. A idéia de “retreat” aqui também pode ser entendida como um recuo emocional, que não é possível por serem as imagens da guerra e da morte marcantes demais para serem apagadas, como cicatrizes. Por fim, é preciso enfatizar que a interpretação desse poema como a expressão de Emily Dickinson sobre a Guerra Civil é apenas uma das possibilidades de leitura. Podemos pensar, por exemplo, que o sujeito lírico está falando da jornada da vida, da existência humana e da morte, que são os motivos de nossos conflitos pessoais e que, quando se impõem, não há como recuar. Ademais, ao termos que enfrentar a morte de um modo ou de outro, perdemos a ingenuidade da vida e passamos a enxergar sua finitude sem podermos recuar, isto é, sem podermos voltar à nossa inocência anterior. Da mesma forma, “My Portion is Defeat – today –” também nos coloca a possibilidade de interpretá-lo por um viés mais subjetivo, uma vez que vitória e derrota são inerentes à nossa vivência pessoal e nos suscitam reflexões existenciais tão complexas como as do soldado, em especial no momento em que nos despedimos da vida. Assim, é por essa possibilidade de dupla interpretação que a crítica com freqüência nega que Emily Dickinson tenha, de fato, escrito sobre a Guerra Civil e argumenta que as imagens referentes a uma situação de guerra são, na verdade, uma apropriação temática por parte da poeta para expressar seus próprios conflitos internos. Nesse sentido, poemas como os dois que destacamos neste trabalho seriam a expressão das dúvidas e medos da poeta sobre a existência humana, sobre Deus e sobre ela mesma. Ainda assim, não se pode negar que esses poemas possuem em si uma carga semântica que nos lembra o cenário bélico em questão e, que, por isso, fundamentam a leitura aqui proposta.


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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como foi discutido, a ausência de referências contextuais nos impede de afirmar que Emily Dickinson teria dedicado, de fato, uma parte de sua obra à Guerra Civil. Entretanto,a leitura de “My Portion is Defeat – today –” e de “Our journey had advanced –” sob a luz dos poemas de “Drum Taps” nos revela uma nova porta de entrada para sua poesia. Em outras palavras, uma vez que se lêem os poemas de Whitman sobre a Guerra Civil e a eles se sobrepõem os poemas de Dickinson, podemos ver com maior nitidez as imagens referentes a um contexto de guerra. É evidente, contudo, que essas imagens se constituem de modos diferentes em cada poeta. Whitman privilegia as descrições ricas em detalhes, fazendo com que as imagens dos soldados, por exemplo, se pareçam com fotografias e, assim, correspondam ao máximo de realidade possível. Por outro lado, as descrições de Dickinson são obscurecidas pelo ritmo interrompido dos travessões e pelas construções metafóricas que exigem uma leitura mais atenta, além dos termos empregados por ela com conotações polissêmicas (a exemplo: portion, victory, defeat, blank, journey, eternity, route, etc.). Além disso, a leitura de “Drum Taps” nos mostra o quanto Walt Whitman se envolveu na Guerra Civil e como ele se posiciona diante desse contexto. Já na poesia de Emily Dickinson, é exatamente por ela não se referir claramente à guerra que muitos estudiosos rejeitam seu envolvimento nas questões políticas e sociais de sua época. A falta de referências diretas à Guerra não significa, no entanto, que a poeta não teria sido afetada por esse acontecimento e, consequentemente, não teria respondido a ele, inclusive porque seus poemas foram escritos de maneira muito reservada, o que lhe dava a possibilidade de se expressar sobre o que desejasse e da maneira que lhe fosse mais conveniente. É precisa lembrar, ainda, que a escrita de Dickinson é caracteristicamente elíptica e, por isso, instiga diversas referências possíveis, o que faz com que sua poesia seja vista como enigmática. Os poemas de Dickinson sobre a guerra também não possuem os versos comemorativos como os que ocorrem, por exemplo, em “Mil oitocentos e sessenta e um” e em “Volta, ó Liberdade”. Dessa forma, a poeta não só deixa de se referir a aspectos particulares da guerra como também constrói seus poemas de modo a não se equiparar a qualquer ideologia de perpetuar os esforços pela manutenção da unidade dos EUA.


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Também nos chama atenção a maneira como a morte é apresentada nos dois poemas de Dickinson aqui estudados e em “The Dresser”. Como foi mencionado anteriormente, a morte não é uma questão intimidadora para os poetas e se torna quase que uma obsessão dentro da obra de ambos. Assim, em “The Dresser” Whitman retrata a morte como um alívio diante de todo o sofrimento causado pelos combates bélicos. A mesma postura parece ter Dickinson em “My Portion is Defeat – today – ”, enquanto que em “Our journey had advanced –” a morte vem como uma imposição e não há meios de não encará-la, mas ainda assim não se deixam entrever quaisquer sentimentos de medo ou repugnância para com ela. Ademais, a Guerra Civil causou, como se sabe, um número de mortes superior a qualquer outro conflito envolvendo os EUA e devastou esse país de maneira assustadora. Por isso, o retrato dessa situação é composto, em Whitman, de cabeças esmagadas, ombros perfurados, pés feridos, dores persistentes e partes do corpo fraturadas; a mesma imagem se constrói em Dickinson, mas de forma mais metafórica, como se observa no uso de termos como “Forest of the dead”, “Piles of solid Moan” e “scraps of Prayer”. É preciso observar, também, como ambos os poetas falam da morte sem implicações religiosas. Novamente, a morte em “The dresser” e em “My Portion is Defeat – today – ” significa o fim da realidade da guerra, sem que se mencione nenhum apego a qualquer entidade superior capaz de confortar o soldado que sofre. Apenas em “Our journey had advanced –” é que a figura de Deus aparece e a morte se liga à eternidade, isto é, a morte não é considerada o fim absoluto do ser. Esse Deus está “at every gate”, mas não se sabe se Ele se encontra ali para acolher ou para bloquear a passagem à eternidade. Se temos conhecimento da ironia com que Dickinson costuma tratar a figura de Deus, então as duas leituras se tornam possíveis. Por fim, salientamos que a obra poética de Whitman e de Dickinson é de tamanha importância para a literatura que não há meios de compará-los a não ser para mostrar as peculiaridades de cada um e as diferenças tão grandes entre eles. O que propomos aqui foi partir dos poemas de “Drum Taps” para poemas de uma contemporânea de Whitman que, vivendo sob o mesmo contexto histórico e sendo possuidora de uma mente tão genial quanto a dele, teria tido condições de refletir sobre as questões de seu tempo e de criar uma forma de expressão para elas, ainda que enigmática. Nesse sentido, buscamos compreender melhor a possível resposta de Emily Dickinson à Guerra Civil ao mesmo tempo em que nos aprofundamos no posicionamento de Whitman em relação ao mesmo tema e percebemos que


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a leitura do poeta universal se revela uma contribuição significativa para que se ramifiquem as possíveis interpretações da poesia de Emily Dickinson. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BLOOM, Harold. Emily Dickinson: Vazios, Arrebatamentos, as Trevas. In: ________. O Cânone Ocidental: Os Livros e a Escola do Tempo. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1995. ____________. Walt Whitman como centro do Cânone Americano. In: ________. O Cânone Ocidental: Os Livros e a Escola do Tempo. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 1995. DICKINSON, Emily. The complete Poems of Emily Dickinson. Edição de Thomas H. Johnson. New York: Back Bay Books, 1961. ____________. The letters of Emily Dickinson. Organizado por Thomas H. Johnson e Theadora Ward. Cambridge: Harvard University Press, 1996. ____________. Alguns poemas. Traduções de José Lira. São Paulo: Iluminuras, 2008. GUTMAN, Huck. Drum Taps. In: LeMASTER, J. R. e KUMMINGS, D. D. (Edição). Walt Whitman: An Encyclopedia. New York: Garland Publishing, 1998. Disponível em http://www.whitmanarchive.org/criticism/current/encyclopedia/entry_83.html. Último acesso: 08/101/2011. KIRCHBERGER, Joe H. Civil War and Reconstruction: an Eyewitness History. New York: Facts on File, 1991. LEHMAN, David. The visionary Whitman. In: BLAKE, David Haven; ROBERTSON, Michael (Ed.). Walt Whitman, where the future becomes present. Iowa: University of Iowa Press, 2008. SALSKA, Agnieszka. Walt Whitman and Emily Dickinson – Poetry of the Central Consciousness. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1985. WHITMAN, Walt. Drum Taps. In: Leaves of Grass. Disponível em <http://whitmanarchive.org/published/other/DrumTaps.html> Último acesso em 10 de janeiro de 2011. _______________. Folhas de Erva. Tradução de Maria de Lourdes Guimarães. Vol.1. Lisboa: Relógio D’água Editores, 2002. _______________. Folhas de Relva. Tradução de Luciano Alves Meira. São Paulo: Martin Claret, 2006.


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O REALISMO NA PEÇA LE DEMI-MONDE (1855), DE ALEXANDRE DUMAS FILHO Silvia Pereira Santos1 RESUMO: O objetivo deste artigo é ilustrar as fases do realismo, de Courbet e Champfleury a Dumas Filho, e caracterizar o pertencimento deste autor dramático ao movimento a partir da análise do prefácio da peça Le demi-monde (1855). Mais do que simplesmente pertencer a um movimento literário, Dumas Filho discorre sobre a necessidade de fazer uma arte “útil”, que mostre a realidade dos fatos para nela identificar o certo e o errado – de acordo com sua visão de mundo. A peça Le demimonde, não só levou aos palcos este “mundo intermediário”, situado entre o mundo respeitável e o mundo da prostituição, como pretendeu redefini-lo, enriquecendo o verbete para compor os dicionários futuros. PALAVRAS-CHAVE : realismo, arte útil, drama burguês THE REALISM IN ALEXANDRE DUMAS JR’S PLAY LE DEMI-MONDE (1855) ABSTRACT: The aim of this paper is to illustrate the phases of the realism, from Courbet and Champfleury to Dumas Jr., and characterize the membership of this playwright to the movement from the analysis of the preface of the play Le Demi-Monde (1855). More than simply belonging to a literary movement, Dumas Jr. writes about the need of an useful art that shows the reality of the facts to identify therein right and wrong – according to his world view. The play Le Demi-Monde not only took to the stages this “intermediate world”, placed between the respectable world and the world of prostitution, but also intended to redefine it, enriching the entry to the future dictionaries.

KEY WORDS: realism, useful art, bourgeois drama

ALEXANDRE DUMAS FILHO E O DEMI-MONDE

Alexandre Dumas Filho, filho ilegítimo do romancista Alexandre Dumas com a costureira Catherine Laure Labay, nasceu em Paris, em 1824. Sua primeira obra de sucesso foi o romance A dama das camélias (La dame aux camélias), escrita em 1852 e posteriormente adaptada para o teatro. A ópera La traviata (1853), de Giuseppe Verdi, é baseada na peça dama das camélias, e há ainda várias adaptações feitas para o cinema, dentre

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Mestre em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos Literários Neolatinos, opção Literaturas de Língua Francesa. Grupo PRISMA, Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro/Brasil. E-mail: silviaufrj@yahoo.com.br. Este artigo é baseado na dissertação de mestrado SANTOS, Silvia Pereira. Le demi-monde (1855) de Alexandre Dumas Filho: cenografia de um drama burguês. Faculdade de Letras / Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010. http://www.letras.ufrj.br/pgneolatinas/ media/bancoteses/silviapereirasantosmestrado.pdf


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as quais o filme Camille, de 1936, dirigido por George Cukor, com Greta Garbo e Robert Taylor, e uma versão de 1980, dirigida por Mauro Bolognini, com Isabelle Huppert. A peça Le demi-monde foi escrita em 1855 e também se tornou um grande sucesso. Porém, trata de uma realidade muito peculiar da cidade de Paris do século XIX, e por isso de difícil tradução atualmente. O demi-monde, para Dumas Filho, se refere, conforme definição dada no prefácio da obra, a uma “classe de [mulheres] desclassificadas”, definição esta que o autor distingue da “multidão das cortesãs” (Dumas Fils, 1898, p. 11).

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Trata-se de uma

redefinição do demi-monde, com a qual Dumas Filho pretende estabelecer o verbete para os dicionários futuros. Segundo ele, “Não pertence ao demi-monde quem quer. É preciso mostrar seu valor para ser admitida” (Dumas Fils, 1898, p. 11). Ou seja: é um mundo composto por mulheres cujas raízes estão na “sociedade regular”, mas que resolveram desertar, sobretudo em nome de um amor questionável. Mas é um mundo que também acolhe jovens que começaram a vida por uma falta (como uma gravidez indesejada, por exemplo). Dumas Filho admite que os “diferentes mundos se mesclaram nas últimas oscilações do planeta social”, e teme que as “inoculações perniciosas” resultantes deste contato se generalizem, que sua definição seja para as gerações futuras descendentes nada mais do que um “detalhe puramente arqueológico”, e que eles confundam “o alto, o meio e o baixo” (Dumas Fils, 1898, p. 12).

O REALISMO

Champfleury (1821-1889), no manifesto Le réalisme (1857), discute em seu prefácio sobre as causas e os meios que dão aparência de realidade às obras de arte, o que, segundo ele, era uma questão sem resposta, produzida de forma instintiva até o movimento de 1848. Com as Revoluções de 1848, que instauraram a Segunda República na França e nos quais estavam em jogo ideais republicanos e socialistas, o realismo veio se juntar às “numerosas religiões em ismo que víamos aparecer todos os dias, expostas nas paredes, aclamadas nos clubes, adoradas nos templos e servidas por alguns fiéis” (Champfleury, 1857, p.2). Embora não aprecie as palavras em ismo, que ele considera como palavras de transição, diz que deu este nome ao seu trabalho porque é a palavra adotada pelos filósofos, críticos e magistrados, e portanto se

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As traduções utilizadas são nossas e os trechos originais foram omitidos para facilitar a leitura.


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arriscaria a não ser compreendido falando em realidade. Reconhece apenas a sinceridade na arte, mas se recusa a ser o “deus da igreja do realismo” (Champfleury, 1857, p.3). Champfleury considera o realismo como uma insurreição. A palavra realismo, inventada pelos críticos como uma máquina de guerra, é uma palavra de transição que na opinião de Champfleury não duraria mais de trinta anos; é um destes termos ambíguos que se prestam a todo tipo de emprego. Champfleury sempre protestou contra esta palavra por não gostar de classificações. O conjunto de mentes cansadas das mentiras versadas, das teimosias das fileiras românticas, que se libertam da linguagem bela, que não estaria em harmonia com os temas de que tratam, não constitui, para Champfleury, base para uma escola: para ele, produzir e criar sem se preocupar com dogmas ou classificações é o mais importante (Champfleury, 1857, p. 6). A arte é, segundo Champfleury, a comunicação à multidão de sensações pessoais; é agitar, aquecer corações, fazer sorrir ou chorar indivíduos que não se conhece. Estudando as aspirações, os desejos, as alegrias e tristezas das classes que lhe são simpáticas, Champfleury se diz intérprete destes grupos, escrevendo o que não saberiam escrever. Ao contrário dos autores que “marcaram os últimos tempos”, definição que podemos entender como aquela que foi dada ao grupo dos românticos - dentre os quais cita Théophile Gautier -, que têm representado “os burgueses e os camponeses, pelo fato de terem estudado mais especialmente estas duas classes”, embora “as altas classes, a elegância e os encantos sutis da civilização não sejam negligenciados”, Champfleury considera mais válido pintar as classes baixas, nas quais “a sinceridade dos sentimentos, das ações e das palavras está mais em evidência do que na alta sociedade” (Champfleury, 1857, p. 10). Percebe-se, aqui, que a posição de Champfleury no campo literário aproxima-se daquela que Bourdieu (1992, p. 107) chama de arte social, sempre distante e em contraposição à arte burguesa, que engloba a arte mercenária menor, representada pelo cabaré ou o folhetim, e a arte mercenária maior, representada pelo teatro burguês. Segundo Bourdieu, a arte social é defendida, nos anos 1850, por “intelectuais proletaróides”, entre eles Champfleury, que manifestam uma solidariedade em relação aos grupos dominados, especialmente por serem eles mesmos ligados às classes populares (o pai de Champfleury era secretário municipal) (Bourdieu, 1992, p. 110). O realismo como um movimento político-estético, com Champfleury como líder, juntamente com Courbet, como veremos a seguir, é a antítese da corrente realista contemporânea representada por Dumas Filho, fator que mostra a dificuldade


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em definir o realismo como um movimento único.

Para Champfleury, um grande exemplo de operário habilidoso que une, com maestria, a realidade inventada à realidade da natureza é Diderot. Segundo Champfleury, quando se tenta diminuir o mérito do escritor, acusando-o de falta de imaginação, esquece-se que poucos são capazes de tornar a história dramática, como fez Diderot. Todos os dias acontecem em nossas vidas eventos singulares que nos tocam, mas não somos capazes de transformá-los em romances ou comédias. O soldado que assiste à batalha é incapaz de contá-la no papel. Diderot é um inventor ao deixar esta obra de arte, pois cem escritores no seu lugar não seriam tocados pelo tema. E a forma que utiliza para tornar o drama possível lhe é própria (Champfleury, 1857, p. 93). A vida é composta por numerosos fatos insignificantes; as conversas são cheias de detalhes que não devem ser reproduzidos sob pena de fatigar o leitor. Um drama real não começa com uma ação interessante. O romancista é o responsável pela escolha dos fatos interessantes, pelo seu agrupamento, distribuição e encadeamento. Os partidários da realidade na arte sustentam que há uma escolha a fazer na natureza. Curioso, ativo, frequentador assíduo do mundo, o autor deve ser capaz de descrever, em um ser, vários seres que encontra. (Champfleury, 1857, p. 96). Reconhecemos em Alexandre Dumas Filho estas principais características dos grandes realistas nos moldes propostos por Champfleury: curioso, ativo e frequentador assíduo do mundo, ou melhor, da sociedade parisiense de seu tempo. Tais características podem ser notadas no prefácio da peça Le demi-monde, em que Dumas Filho narra com detalhes suas incursões pelo submundo que dará nome à peça, demonstrando seu caráter investigativo. Dumas conta que em uma noite de sábado de janeiro de 1853, no teatro Opéra, foi abordado por uma dominó “muito elegante e saltitante”, que se apresentou como senhora M... e perguntou se ele a conhecia. A seguir o diálogo que se travou: — — — — — —

De reputação, apenas. E o que dizem de mim? Que você é muito graciosa, muito espirituosa e... muito alegre. Você quer ter certeza disto? Adoraria. — Venha, terça-feira, para uma recepção em minha casa. — A que horas começa a recepção? — Como em qualquer lugar; quando as pessoas chegam.


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 158 — E termina? — Quando se vão. (Dumas Fils, 1898, p. 5).

Trata-se de um diálogo bastante emblemático para se iniciar um prefácio. Com ele, notamos não só o nível de detalhamento que caracteriza seu trabalho como também o tipo de realismo ao qual se propõe, em que suas experiências pessoais são o próprio objeto de suas comédias-tese. Ele próprio dirá que, ao penetrar na história, “o leitor reconhecerá no drama alguns dos tipos que me marcaram na realidade” (Dumas Fils, 1898, p. 10). De fato, os tipos descritos encontram-se todos nas personagens, com mudanças em alguns detalhes e com algumas características “diluídas” em mais de uma personagem. A descrição acima é a mesma dada à Suzanne d’Ange na peça: bonita, espirituosa, alegre. Mais adiante, no prefácio, o autor dirá que a senhora M... tem trinta anos, o que também a aproxima da senhora d’Ange. Por outro lado, Suzanne aparece na peça como uma falsa viúva, a fim de manter uma reputação ilibada para partir em busca de um marido; enquanto não o encontra, é sustentada por seu amante, de Thonnerins. Não se conhece sua história, mas sabe-se que veio “de baixo”, não teve uma família abastada. A senhora M..., por outro lado, é descrita pelo autor no prefácio como “uma das celebridades da galanteria parisiense, mas da galanteria aristocrática. Filha de uma honorável personagem do Império, casou-se muito jovem, em 1840, com um estrangeiro distinto” (Dumas Fils, 1898, p. 6). Surpreendida pelo marido quando estava com seu amante, a senhora M... foi banida da convivência conjugal, destino semelhante à personagem Valentine de Santis, que terá ainda características comuns à senhora S..., também descrita por Dumas no prefácio. Dando continuidade à narrativa de suas experiências pelo demi-monde, Dumas Filho dirá que, ao chegar à casa da senhora M... no dia e horário indicados para a recepção, encontrou o conde de R..., que ele considera “o mais parisiense dos parisienses” que já conheceu, e que, “sem saber, já servira de tipo para Gaston Rieux em A Dama das camélias, para Maximilien em Diane de Lys, e que seria Olivier de Jalin em Le demi-monde” (Dumas Fils, 1898, p. 6). Segundo Dumas Filho, foi o conde quem o advertiu a abrir os olhos ao entrar naquela sociedade: “você vai ver um mundo bizarro” (Dumas Fils, 1898, p. 7). Tal como Olivier vai advertir o ingênuo Raymond de Nanjac na peça... Neste trecho, Dumas Filho reforça mais uma vez a metodologia de seu realismo, que busca na sociedade de seu tempo a matéria-prima para sua obra; além disso, lança mão de personagens conhecedoras do tema central da peça, neste caso do demi-monde, para que


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atuem como guias autorizados a convencer o leitor ou o espectador de sua tese. É esta a função-padrão do raisonneur1 em suas comédias-tese. O autor apresentará ainda as pessoas que encontrará no salão: três mulheres, duas jovens moças, um agente de câmbio de sessenta anos e o marquês de E..., apelidado de fiel-ao-rei devido às suas opiniões legitimistas.

A mais velha das senhoras, que ele chamou de baronesa V..., tinha cerca de cinqüenta anos e era mãe das duas jovens. Viúva, ela contava com a ajuda dos antigos amigos e depositava suas esperanças no casamento das filhas para desfrutar de uma velhice tranqüila. Uma das filhas, porém, já tinha dado à luz um menino, que era criado às escondidas “como se fosse o Homem da máscara de ferro” (Dumas Fils, 1898, p. 8). Ninguém à volta da jovem mãe parecia suspeitar deste detalhe, que, na verdade, era conhecido por todos. Esta mulher, a baronesa V..., é representada na peça pela viscondessa de Vernières. As filhas da baronesa V... são substituídas na peça pela simpática sobrinha Marcelle, que mantém intacta sua honra e é salva do demi-monde por Olivier, que ao final está disposto a desposá-la. Observa-se aqui um contraponto à verdade nua e crua, que é atenuada para dar um ar de final feliz à trama, típico da comédia. Por outro lado, se Marcelle aparece como a “mocinha”, Valentine de Santis herda as mesmas características da senhora S..., a terceira e última mulher descrita por Dumas Filho no prefácio. Assim como a senhora S..., Valentine se separa do marido por causa de uma traição e volta a utilizar o nome de solteira; mas a senhora S... tem ainda um agravante que não aparece na peça: um filho, que cresce acreditando que sua mãe está morta, enquanto ela recebe uma pensão para não revelar a verdade. Enfim, o autor dirá: “tudo que acabei de contar sendo absolutamente verdadeiro, o leitor reconhecerá que apesar de nossa ousadia, ficaremos sempre abaixo daquilo que a realidade nos oferece” (Dumas Fils, 1898, p. 9). René Doumic, em Portraits d'écrivains (Retratos de escritores) (1892), ilustra de forma adequada o tipo de descrição da realidade que Dumas utiliza e que destacamos aqui. Segundo Doumic, embora todas as resoluções de Dumas Filho sigam uma lógica, elas apresentam-se em contradição com o desfecho provável que a situação teria na vida real, ou seja, existe um desacordo entre a lógica do teatro de Dumas Filho e a lógica da vida. Não há intenção de mostrar como as coisas se passam ordinariamente, mas como deveriam acontecer (Doumic, 1

Raisonneur é a personagem, geralmente de comédia, da qual o autor se serve para exprimir a ideia que quer pôr em cena.


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1892, p. 48). Tais observações apresentam uma característica interessante e única no realismo de Dumas Filho, que está perfeitamente de acordo, mais uma vez, com seus objetivos moralistas. Trata-se da apresentação de experiências destinadas a fazer com que os exemplos mostrem o triunfo do bem e do ideal. Assim, Doumic conclui, de forma coerente, que Dumas Filho não é propriamente o que se chama comumente de realista, pois, enquanto o realista atém-se à reprodução do que a vida apresenta de ordinário e comum, Dumas Filho estudou os casos de exceção; enquanto o realista tem por constante preocupação não intervir no jogo natural dos acontecimentos, Dumas Filho arranja os fatos. Como bem observa o autor:

O realista fica chocado ao ver que na maior parte do tempo nossas intenções ficam sem efeito, nossos projetos não alcançam sucesso, nossas investidas não terminam, que tudo fica incompleto, inacabado, que tudo aborta. Dumas nos apresenta ações completas; ela vai até o topo de suas ideias, e leva a paixão até suas últimas consequências. (Doumic, 1892, p. 49-50).

Esta citação é a definição mesma da arte de Dumas Filho, que, segundo Doumic, parte do realismo, mas para ultrapassá-lo, e tem como base o real, mas como fim um ideal (Doumic, 1892, p. 50). As habilidades investigativas de Alexandre Dumas Filho também não passaram despercebidas por seus críticos. Na crítica da peça O Filho Natural (Le fils naturel, 1858) Montégut (1858) comenta que a maior qualidade de Dumas Filho é saber observar e ouvir o mundo parisiense; ver, ouvir e escrever: isto é, para ele, ser um realista. E, de acordo com sua opinião, o realismo é detestável no teatro, que vive de ação e paixão, uma vez que, na ausência de um narrador, como no romance, a personagem precisa transmitir seus sentimentos com uma simplicidade que a complexa realidade não pode fornecer. Porém, admite que certos sentimentos e condições da vida são mais aplicáveis ao realismo do que outras – para ele, o mal e a vulgaridade são condições humanas normais e, por isso, devem ser transcritas exatamente como são, pois serão compreendidas. O crítico considera que a peça Le demi-monde foi um sucesso porque teve o objetivo de mostrar os costumes deste mundo artificial que vive de mentiras e falsas aparências, e o atingiu graças a mais uma qualidade de Dumas Filho ressaltada pelo crítico: “ele sabe discernir o que é digno de atenção e o que é digno de desprezo” (Montégut, 1858, p. 710).


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Montégut vai sublinhar ainda outra característica marcante de Dumas Filho, ao acunhálo de “jacobino dramaturgo”: “É um jacobino dramaturgo que não hesita diante de meio algum para atingir seu objetivo, e que pensa que o fim justifica todos os meios” (Montégut, 1858, p. 702). Utilizando a nomenclatura dos grupos proeminentes de Revolução Francesa, empregase o termo girondinos para aqueles grupos que, embora proponham mudanças, aplicam as teorias políticas de forma mais tímida, e apesar de serem tidos como de direita, aceitam fazer concessões e conjunções de interesses, posicionando-se mais ao centro e adquirindo mais funções reformistas do que revolucionárias. Possuem um estilo sóbrio, falam lentamente, sem paixão. Os jacobinos, por sua vez, são os verdadeiros revolucionários no sentido puro da palavra: são aqueles tidos como radicais, aqueles que buscam o reverso da ordem estabelecida – são os “demolidores”. Se considerarmos a utilização que Alexandre Dumas Filho faz de seu teatro como uma tribuna, em que defende os valores morais de uma burguesia não reformista, há aí um hibridismo entre a forma radical de propaganda política, típica de um jacobino, e a defesa de valores e instituições tais como família e fidelidade. Da mesma forma, o prefácio também apresenta um componente híbrido de um vocabulário que denota uma luta em busca de um lugar de destaque no campo literário, enquanto a escolha pela dramaturgia já consagra tal lugar, visto ser o teatro um gênero literário de grande prestígio. O realismo, como precursor do naturalismo, movimento este associado a um cientificismo positivista que busca “relatar” a “realidade” tal como ela é, aplicando à literatura métodos das ciências matemáticas e naturais, tenderia à busca da verdade acima de tudo, o que traria embutida uma impessoalidade, um afastamento do escritor-cientista de seu mundoobjeto de estudo. Nas peças de Dumas Filho, ao contrário, observa-se a presença constante do autor em suas personagens e em seus textos. No romance A dama das Camélias (1848), seu trabalho mais famoso que foi por ele mesmo adaptado ao teatro, inspirou-se em suas próprias relações com a cortesã Marie Duplessis. Dumas Filho participou ativamente em uma recepção no demi-monde, nos mesmos moldes daquelas que apresentará na peça homônima. Finalmente, no prefácio à peça O Filho Natural (Le fils naturel, 1858) Alexandre Dumas Filho confessa que se trata de sua peça preferida, visto tratar-se do desenvolvimento de uma tese social e de uma “pintura dos costumes, dos caracteres, dos ridículos e das paixões”, de forma a fazer o espectador refletir, e


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para tanto escolheu a questão que considera “mais interessante e mais dramática” neste sentido, que é a questão dos filhos naturais. “É uma idéia fixa”, escreve ele (Dumas Fils, 1899, p. 5). Ao eleger a peça O Filho Natural como favorita, por seu tema e pela forma como foi escrita, Dumas Filho mais uma vez se faz presente em seu trabalho, tendo sua situação familiar particular de filho ilegítimo representada em cena. A arte de Courbet apresenta-se em um momento decisivo durante o período da Revolução de 1848. Naquele momento, ele produz uma série de telas tidas como realistas, tais como Après-dîner à Ornans (1848-49), Les Casseurs de pierre (1849) e Un enterrement à Ornans (1849-50), que vão consagrá-lo não só como um grande pintor mas também como um revolucionário da vida cultural parisiense. Sua figura era incômoda, tanto pelo desprezo que tinha pelas autoridades oficiais e por sua simpatia pela vida republicana como, principalmente, pelo escândalo que provocava seu realismo, o qual afrontava os cânones dominantes e os dogmas clássicos segundo os quais a arte digna deste nome implicaria mais do que a exata reprodução das aparências naturais (Fried, 1993, p. 14). Fried chama a atenção para a distinção que faz Diderot entre teatro, que seria uma construção artificial, e o drama, que supõe uma descontinuidade entre representação e público, um isolamento entre o mundo da representação e o mundo do espectador (Fried, 1993, p. 22). Diderot leva esta concepção dramática para a pintura: ela deve “esquecer” o espectador. A arte de Courbet, segundo Fried, apresenta características desta tradição antiteatral da pintura francesa, como ao representar figuras vistas de costas - sugerindo que não tem consciência ou não se importa com a presença do espectador (Fried, 1993, p. 246). Pode-se trazer esta visão antiteatral de recusa de artificialidade, esta descontinuidade entre representação e público, para a leitura peça Le demi-monde. Uma das características do drama sério sistematizado por Diderot e retomado por Alexandre Dumas Filho é a presença de pantomima, ou seja, do movimento dos corpos, que, aliada ao cenário e ao figurino da peça, colocam o espectador em uma posição de voyeur, que observa a intimidade doméstica dos personagens. Ora, trata-se de uma estratégia do teatro de Dumas Filho de tornar seu teatro realista no que se refere à representação, em que as cenas se passariam independentemente da presença do espectador. A presença recorrente de imagens de si nas pinturas de Courbet, seja explicitamente, seja metaforicamente, leva frequentemente à caracterização de sua arte como narcisista, tese refutada por Fried por centrar-se excessivamente no ato da visão em detrimento do ato da pintura (Fried, 1993, p. 286), simplificando grosseiramente a dinâmica de sua obra. A


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representação de si implica mais do que um simples reflexo: mais do que admirar passivamente seu reflexo, está em jogo o ato de pintar, a primazia da ação sobre o olhar passivo. A representação de si em Courbet é essencialmente uma função do engajamento do pintor-espectador no ato de pintar, fator que chama atenção para a continuidade entre a arte de Courbet e a tradição dramática de Diderot, na qual a representação da ação humana tem papel fundamental. Da mesma forma, em Alexandre Dumas Filho temos a representação de si na obra, com a projeção de suas experiências nas personagens, mas com objetivos distintos. Em Courbet, há um esforço de fusão quase física do pintor-espectador na pintura, enquanto em Dumas Filho o engajamento está ligado à sua busca pela utilidade da arte. De fato, a função do teatro era, para Dumas Filho, a de servir como uma arte útil, que pudesse ensinar, trazer alguma mensagem ao público. Assim sendo, seguindo as teorias apresentadas por Touchard (1960, p. 224), para quem o realismo se mostraria mais como um procedimento ou uma maneira do teatro de atingir sua função do que como uma forma artística ou uma natureza do teatro, o realismo de Dumas Filho apresenta-se mais como uma função do teatro do que como uma natureza, um pertencimento a um movimento estético.

CONCLUSÃO

Conclui-se que a questão do realismo, especialmente do realismo no teatro, é uma questão complexa, que pode ser vista sob os mais diferentes ângulos: o realismo pode ser visto como um movimento estético, mas também como a representação fiel da natureza e ainda como a finalidade de um certo tipo de teatro. A classificação de uma peça de teatro como realista depende, ao considerar todos estes elementos, mais de uma análise subjetiva e ideológica do que um simples rótulo pode prever. Sendo assim, no que se refere ao realismo de Dumas Filho, observou-se um grande distanciamento entre seu posicionamento estético frente à realidade e o realismo de Champfleury e Courbet. Porém, tal como pregava Champfleury, o termo realismo é uma palavra ambígua que se presta a todo tipo de uso, e, conforme vimos, não designa apenas o movimento estético, mas também atende a outros critérios. Cada escritor fará uso da representação da realidade em sua obra, de acordo com seus objetivos e interesses, de acordo com sua posição no campo literário. Para Alexandre Dumas Filho, o realismo servirá como


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uma estratégia de legitimação da enunciação: ao mostrar o que é “real”, assume o papel de guia para seus leitores/espectadores, papel a que atribui importância porque lhe dá credibilidade para difundir sua concepção de arte útil.

REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. Les règles de l’art: genèse et structure du champ littéraire. Paris: Seuil, 1992. CHAMPFLEURY. Le Réalisme. Paris: http://gallica.bnf.fr/. Acesso em: 16 out. 2009.

Michel

Lévy

Frères,

1857.

Disponível

em:

DOUMIC, René. Portraits d'écrivains : Alexandre Dumas fils, Émile Augier, Victorien Sardou, Octave Feuillet, Edmond et Jules de Goncourt, Émile Zola,Alphonse Daudet, J.-J. Weiss. Paris: Crété, 1892. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/. Acesso em: 16 out. 2009. DUMAS FILS, Alexandre. Théâtre complet avec préfaces inédites. T. II. Paris: Calmann Lévy, 1898. Disponível em: <http://gallica.bnf.fr>. Acesso em: 12 jan. 2008. FRIED, Michael. Le réalisme de Courbet. Trad. Michel Gautier. Paris: Gallimard, 1993. MONTÉGUT, Émile. Le théâtre réaliste: Le fils naturel, comédie en cinq actes, par Alexandre Dumas fils. In: Revue des deux mondes. T. 13, jan-fev, 1858, p. 701-716. Disponível em: <http://gallica.bnf.fr>. Acesso em: 10 jan. 2008. SANTOS, Silvia Pereira. Le demi-monde (1855) de Alexandre Dumas Filho: cenografia de um drama burguês. Faculdade de Letras / Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2010. Dissertação de Mestrado. TOUCHARD, .P. A. Réalisme, poésie et réalité au théatre. In: JACQUOT, Jean (org). Réalisme et poésie au théâtre. Paris: Centre National de la Recherche Scientifique, 1960.


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REALISMO E REALIDADE: ALGUMAS PROPOSIÇÕES DE EÇA DE QUEIRÓS Giuliano Lellis Ito Santos1 RESUMO: Este trabalho busca entender, através de algumas observações pontuais, a relação entre realismo e realidade em Eça de Queirós. Essa leitura visa compreender a mudança na forma do romance na última década do século XIX por parte do escritor, além de expor os problemas vinculados ao intento de produzir uma literatura calcada na observação do mundo como perspectiva de representação da realidade. Palavras-chave: Eça de Queirós, Realismo, Realidade. REALISM AND REALITY: SOME PROPOSITIONS ABOUT EÇA DE QUEIRÓS ABSTRACT: This paper tries to understand, through some punctual observations, the relationship between realism and reality in Eça de Queirós. This lecture want comprehend the change in the novel form on the last decade of XIXth century, and explain the problems linked with the intent to produce a literature based on the world’s observation like perspective of representation of reality. Keyword: Eça de Queirós, Realism, Reality.

A proposta deste artigo é alinhar algumas observações de Eça de Queirós sobre o realismo para entender a mudança de ordem na forma de seus romances. Além do romancista, também consideraremos alguns comentários de Antero de Quental, já que ambos buscam entender o pensamento por meio da apreensão do mundo. De início, podemos começar pela apresentação do jovem Eça de Queirós, que, em 1871, mais especificamente em 12 de junho, expõe suas ideias sobre o realismo em um discurso incluído no ciclo das Conferências do Casino Lisbonense. Estas falas não foram conservadas na íntegra, o que nos abriga a resgatar suas observações através de artigos e comentários publicados nos jornais no calor da hora, para que, assim, se possa entender a opinião do escritor sobre o realismo nessa época. Na recepção à conferência do romancista, percebemos a insistência na questão da observação como melhor forma de apreensão da realidade, assim o lemos no artigo de Alberto de Queirós, irmão do escritor: “observar os costumes no que eles têm de mais exacto, de mais real” (apud Berrini, 2000, p. 24). Neste caso, podemos perceber a afirmação de que a recriação artística da realidade depende da observação quase clínica das ações sociais.

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Doutor em Literatura Portuguesa pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, com a tese sobre A Ideia de História no Último Eça. E-mail: giuito@hotmail.br


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Também, em outro artigo, este sem assinatura, sobre a conferência de Eça de Queirós apresenta-se a afirmação de que “[a literatura] começa a reagir contra o falso, pintando a realidade. O realismo é a arte do presente” (apud Berrini, 2000, p. 36). Neste ponto, temos o argumento de que o realismo é uma reação contra a falsificação, já que esta noção de literatura seria a arte da verdade, ou seja, a arte que reproduz a realidade em sua melhor forma. Com estas duas apreciações da apresentação de Eça de Queirós sobre a literatura realista nas Conferências do Casino, podemos depreender que a nova literatura depende da observação atenciosa da realidade para que sua transposição para a linguagem artística não soe falsa. Desse ponto de vista, podemos destacar duas etapas:

1. a primeira diz respeito à matéria da arte, pois esta depende do presente e da experiência empírica; 2. a segunda diz respeito à linguagem, pois depende da transposição mais exata da realidade observada.

Nestas etapas notamos que a transposição da observação para a linguagem se dá sem problemas, a linguagem não é um empecilho, já que a realidade tratada de outra maneira exige uma escrita mais objetiva, principalmente se a contrapusermos à escrita “inchada” do romantismo.1 Passados alguns anos, depois da publicação de dois romances, O Crime do Padre Amaro e O primo Basílio, e por ocasião da republicação do primeiro, Eça de Queirós escreve um prefácio – que não é publicado com o romance, mas aparece posteriormente a sua morte, datado de 1879 – em que o realismo é defendido contra críticas emitidas sobre esses dois romances, além da acusação de plágio da obra de Émile Zola, La faute de l’Abbé Mouret. Mantenhamos nossa atenção sobre as condições do realismo e deixemos de lado as discussões sobre plágio. Vale destacar deste texto o apontamento de que “é, porém, diferente, penso eu, tratando-se dum romance de observação e de realidade, fundado em experiências, trabalhado sobre documentos vivos” (Queiroz, 1979, p. 908). Ainda, deste mesmo teor, ao final do artigo, o escritor português chama a atenção para o fato de que 1

Como aponta dos artigos coligidos por Beatriz Berrini: “é a abolição da retórica considerada como arte de promover a comoção pela inchação do período, pela epilepsia da palavra, pela congestão dos tropos” (apud Berrini, 2000, p. 29).


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 167 o simples fato de ir ver Virgínia quando se pretende descrever Virgínia, é uma revolução na Arte! É toda a filosofia cartesiana: significa que só a observação dos fenômenos dá a ciência das coisas. (Queiroz, 1979, p. 916).

Nestes dois trechos citados, vemos a importância da observação como metodologia de trabalho do escritor realista, ou naturalista, pois há necessidade de se ter a experiência para se fazer uma descrição. Neste sentido, descrição não se limita ao modo descritivo do texto, pois este processo reveste-se da observação para tornar-se verdadeiro. Ainda sobre a reedição de O crime do Padre Amaro, temos uma carta de Antero de Quental, principal responsável pela publicação da primeira versão na Revista Ocidental, que rendeu rusgas e desavenças entre Eça de Queirós e o poeta. Nesta carta, o missivista, depois de ler a segunda edição do romance, aponta que agora está V. [Eça] na região serena da contemplação pura das coisas, cheio de longanimidade, imparcial vendo só os homens e os corações dos homens, pelo interesse que neles há, pela verdade natural, e não como argumentos para teses. Isto, quanto a mim, é o que é verdadeiro realismo. (apud Berrini, 1992, p. 208). Nesta carta, ao menos no trecho destacado, notamos que é mantida a importância que a observação tem para a produção do romance, já que, do ponto de vista do leitor, neste caso Antero de Quental, o romance deixa transparecer a realidade natural das coisas. Se levarmos em conta a relação entre observação, ponto crucial neste primeiro momento do realismo, e transposição artística do real, temos que a primeira é responsável pela representação da verdade, e, se a verdade das coisas está ligada ao mundo, obtemos que verdade é realidade, portanto o realismo representa através da observação o mundo em si. Num segundo momento, em prefácios a livros de amigos, Eça de Queirós faz alguns apontamentos sobre o realismo/naturalismo, como no prefácio ao Brasileiro Soares de Luiz de Magalhães, em que Eça de Queirós aponta para a qualidade do escritor e destaca que “o seu livro […] tem a realidade bem observada e a observação bem exprimida – as duas qualidades supremas, as que se devem procurar antes de tudo na obra de Arte” (Queiroz, 2000, p. 1808). Neste caso, ele aponta as categorias seguidas pelo escritor e a atualidade de seu livro, fato que nos deixa entrever dois pontos para o julgamento, a observação e a transposição desta para o escrito. Em outro prefácio, nesta caso aos Azulejos do Conde Arnoso, o romancista afirma “que o Naturalismo consiste apenas em pintar a tua rua como ela é na sua realidade e não


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como tu a poderias idear na tua imaginação” (Queiroz, 2000, p. 1795, destaque do autor). Neste ponto apresenta-se a relação que a realidade guarda com o eu, já que a pintura da obra de arte depende da sua realidade. Aqui, já se pode perceber que a representação através da observação não dá conta de toda a realidade envolvida, além de destacar que o processo de criação da arte realista desprezava o “ruído” que havia entre observador/mundo e matéria observada/produto textual. Ambos os prefácios são datados de 1886, com uma pequena diferença de tempo (Brasileiro Soares de 21 de maio e Azulejos de 12 de junho), mas apresentam um contraste quanto à noção de realismo, já que no primeiro texto temos a confirmação de preceitos apresentados anteriormente, enquanto no segundo somos sutilmente expostos ao problema de que a observação situa-se no particular, condição que não permite dar conta da realidade inteira que o romance tenta representar. Passando adiante, notamos que em A Correspondência de Fradique Mendes fica perceptível uma mudança na representação de Eça de Queirós. Isso é destacado por Carlos Reis quando aponta que este romance “representa […] uma superação de estratégias literárias e métodos críticos ditados pelo Realismo e pelo Naturalismo” (Reis, 2001, p. 199). É justamente neste romance que encontramos uma carta, deste personagem para Antero de Quental, problematizando a observação. Esta passagem chamou a atenção de A. Campos Matos que a intitulou de alegoria do nevoeiro, afirmando que neste ponto Fradique Mendes “pretende demonstrar as limitações da nossa capacidade de ajuizar e discernir a realidade que vemos” (Matos, 1993, p. 425). Antes de vermos os argumentos de Fradique Mendes, precisamos entender os pressupostos de uma carta endereçada a Antero de Quental, afinal este breve excerto de carta citada na primeira parte do romance faz menção ao pensamento do poeta. Dessa maneira, como um primeiro exemplo destacamos a abertura do perfil feito por Eça de Queirós para o In Memoriam do amigo: Em Coimbra, uma noite, noite macia de abril ou maio, atravessando lentamente com as minhas sebentas na algibeira o Largo da Feira, avistei sobre as escadarias da Sé Nova, romanticamente batidas pela lua, que nesses tempos ainda era romântica, um homem, de pé, que improvisava. (Queiroz, 2000, p. 1761).


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Este homem era Antero. As referências ao Romantismo, com sua noite e sua lua, demonstram mais do que o homem, expõe a impressão que o jovem Eça teve do poeta e mais tarde amigo. Passando a outros pontos deste perfil, ressaltamos um comentário do escritor sobre a inteligência de Antero de Quental, a sua inteligência, como ele depois contava, toda penetrada do Naturalismo, que era a atmosfera onde se desenvolvera, só lhe oferecia a solução naturalista – só lhe podia afirmar que a Vida, na sua forma empírica, é a luta obscura de forças obscuras. (Queiroz, 2000, p. 1775). Neste ponto, o pensamento de Antero é representado pelo empirismo, pela apreensão do real através de sua observação. Porém, em artigo publicado na mesma revista que o Fradique Mendes de Eça de Queirós, A Revista de Portugal, Antero pretende entender as Tendências da Filosofia na segunda metade do século XIX. Neste ensaio, ele problematiza a realidade, como se pode perceber nas linhas retiradas deste ensaio: sendo realista tem de aceitar esses elementos taes como se lhe apresentam, sem indagar se n’essa idéa immediata que d’elles fórma não haverá porventura alguma grande illusão, se ella não envolve algum fundo problema ontologico, que lhe escapa. (Quental, 1890, p. 186). Deste ponto de vista, encontramos o contraste entre a particularidade da apreensão do real pelo homem e a verdade que excede a condição humana. Quer dizer, a observação somente permite ao homem enxergar o que esta dentro das condições físicas, já que a totalidade inapreensível permanece extrínseca ao ente. Afora esta problemática da apreensão da realidade pelo homem, também outro empecilho surge, pois ainda afirma que “o segredo sublime das coisas gaguejado n’uma linguagem deficiente e barbara, cheia de lacunas e obscuridades” (Quental, 1890, p. 5). Aqui temos a linguagem qualificada como ineficiente, incapaz de traduzir a realidade das coisas, por isso quando se faz a transposição da realidade observada para linguagem, torna-se inevitável o surgimento de lacunas e obscuridades. A partir destas observações podemos notar duas questões sobre a apreensão da realidade. Numa primeira etapa, a observação, que era encarada como ponto fulcral do romance realista/naturalista, é questionada através da limitação da visão do homem, pois esta


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se encontra impossibilitada de apreender a totalidade das coisas, já que a totalidade só possível se idealizada. Numa segunda etapa, a linguagem é apresentada como empecilho, pois ela não possui a propriedade inerente de se refazer a realidade, já que a transposição para a escrita caracteriza-se pela tradução, o que não permite a recriação efetiva do observado. Essas mesmas questões surgem na criação de Eça de Queirós, quando digo criação, penso na constituição de um personagem que não possui materialidade, mas possui uma existência discursiva indiscutível, Fradique Mendes, personagem quase heteronímico. A princípio vale ressaltar um trecho de carta, destacada pelo narrador enquanto recompunha a vida do poeta das Lapidárias, esta carta é endereçada a Antero de Quental, nela o missivista observa que Todo o fenômeno, pois, tem, relativamente ao nosso entendimento e a sua potência de discriminar, uma Realidade — quero dizer certos caracteres ou […] certos contornos que o limitam, o definem, lhe dão feição própria no esparso e universal conjunto, e constituem o seu exato, real e único modo de ser. Somente o erro, a ignorância, os preconceitos, a tradição, a rotina e sobretudo a Ilusão, formam em torno de cada fenômeno uma névoa que esbate e deforma os seus contornos, e impede que a visão intelectual o divise no seu exato, real e único modo de ser. (Queiroz, 1997, p. 92). Aqui temos que a condição humana com suas características inerentes figura como um “ruído”, uma névoa, que não permite perscrutar a realidade em sua forma mais exata. Quanto a isso, o missivista continua e constrói uma imagem que ilustra este processo, retornamos então à alegoria do nevoeiro, É justamente o que sucede aos monumentos de Londres mergulhados no nevoeiro... Tudo isto vai expresso dum modo bem hesitante e incompleto! Lá fora o sol está caindo dum céu fino e nítido sobre o meu quintal de convento coberto de neve dura: neste ar tão puro e claro, em que as coisas tomam um relevo rígido, perdi toda a flexibilidade e fluidez da tecnologia filosófica: só me poderia exprimir por imagens recortadas a tesoura. Mas você decerto compreenderá, Antero excelente e sutil! Já esteve em Londres, no outono, em novembro? Nas manhãs de nevoeiro, numa rua de Londres, há dificuldade em distinguir se a sombra densa que ao longe se empasta é a estátua dum herói ou o fragmento dum tapume. Uma pardacenta ilusão submerge toda a cidade — e com espanto se encontra numa taverna quem julgara penetrar num templo. Ora para a maioria dos espíritos uma névoa igual flutua sobre as realidades da vida e do mundo. Daí vem que quase todos os seus passos são transvios, quase todos os seus juízos são enganos; e estes constantemente estão trocando o Templo e a Taverna. Raras são as visões intelectuais


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bastante agudas e poderosas para romper através da neblina e surpreender as linhas exatas, o verdadeiro contorno da Realidade. (Queiroz, 1997, p. 92). A condição colocada por Fradique dificulta a visão, levando ao engano, pois segundo ele há um paralelo entre o homem imerso no nevoeiro e o homem imerso no mundo moderno, já que ambos têm sua visão obstruída, o que dificulta, se não impossibilita, observar a realidade. Se lembrarmos da atitude do jovem Eça que defendia a observação como meio para criar o romance realista, temos, neste ponto, uma problematização desse método, já que, neste caso, a realidade observada aparece incompleta, enganosa, pois a visão encontra-se obstruída. Fradique Mendes coloca outra questão sobre o realismo, a linguagem, pois quando afirma que “o verbo humano, tal como o falamos, é ainda impotente para encarnar a menor impressão intelectual ou reproduzir a simples forma dum arbusto... Eu não sei escrever! Ninguém sabe escrever!” (Queiroz, 1997, p. 112). Ele está pensando na relação que o signo guarda com o mundo em si, o que nos faz lembrar a definição de Saussure de que o laço que une o significante ao significado é arbitrário ou então, visto que entendemos por signo o total resultante da associação de um significante com um significado, podemos dizer mais simplesmente: o signo linguístico é arbitrário. (SAUSSURE, 2000, p. 81). Fazendo um paralelo com a citação de Antero de Quental sobre a linguagem, podemos notar a intuição desses dois artistas em perceber que o mundo das coisas não pode ser traduzido completamente pela linguagem, pois ela guarda em sua estrutura uma relação arbitrária. O caminho percorrido por minha argumentação foi o de buscar, nos primeiros anos do realismo em Portugal, algumas ideias expressas por Eça de Queirós para que pudéssemos entender as convenções defendidas naquele momento. Pelo que vimos, havia uma contraposição entre o que era produzido até então como literatura e o projeto da Geração de 70, o cerne desta contraposição estava na observação do cotidiano como meio para obtenção de matéria para arte. Ainda se contrapunham quanto a forma de escrita, a retórica, pois quando se pensava em linguagem a proposta era de substituir a retórica romântica, que os partidários do realismo caracterizavam como inchada, por uma escrita mais sóbria. Porém, com o passar dos anos, a posição de Antero e Eça muda, fazendo com que eles enxerguem a realidade de maneira mais complexa, o que os leva a questionar a relação direta que a observação mantinha com a realidade, num primeiro momento, isso os leva a substituir esta


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visão por uma mais complexa, em que problematizam justamente a apreensão do mundo pelo homem, pois reconhecem que a realidade do mundo não é apreensível em sua completude. Esta problematização exige que eles reformulem o modo de representar a realidade: Antero opta por escrever ensaios filosóficos, enquanto Eça modifica a forma de seus romances. Os romances de Eça de Queriós passam a ter uma forma calcada na complexidade narrativa, ao invés de narradores objetivos e impessoais dos primeiros romances, o escritor produz narradores com posições precárias, como é exemplo a função de Zé Fernandes, narrador de A Cidade e as Serras, ou do narrador sem nome de A Correspondência de Fradique Mendes, ou, ainda, a condição que o narrador de A Ilustre Casa de Ramires ocupa no último capítulo, em que o protagonista, que seguiu durante toda a narrativa, se ausenta e faz com que o narrador tenha que seguir núcleos de personagens secundários. Desses três romances, a estrutura que mais chama a atenção é a de A Correspondência de Fradique Mendes, pois neste romance, além de apresentar uma estrutura na forma de uma dissertação científica, uma introdução situacional, biográfica, e uma seleção de documentos. Além disso, o romance tem em sua contrução um personagem que possui um estatuto de realidade, algo semelhante com os heterônimos de Fernando Pessoa. Esta condição do personagem permite pensarmos na relação que o mundo guarda com a linguagem, pois se o signo é arbitrário, este permite a criação de entes sem posição material no mundo, já que a relação que o significado mantém com o significante não possui parâmetro exato. Se pensarmos na separação entre a observação, ainda que ela seja relativizada, e a linguagem que vai representá-la, temos um realismo ingênuo pautado somente no observável, que não leva em conta a condição primeira de que não é possível a compreensão do mundo sem que seja pela linguagem. Porém, ainda assim, se mantém a questão de como conciliar a suposição de um mundo idêntico para todos os observadores se não é possível acessá-lo se não mediado pela linguagem. Desse ponto de vista, a observação do mundo não permite a apreensão total da realidade, pois, se tivermos em mente a ideia de que mundo e linguagem são dois elementos separados, se o mundo existe independente da linguagem, quer dizer que qualquer exposição sobre o mundo será incompleta, por causa da descontinuidade intrínseca da relação. Porém, se tivermos que o mundo já se encontra linguisticamente estruturado, teríamos que a apreensão do mundo através da observação não atingiria a totalidade, mas seria a única apreensão possível dele (Cf. Habermas, 2004, p. 8).


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Ao que parece, as leituras de Eça de Queirós e Antero de Quental, na década de 1890, aproximam-se do que Habermas chama de questão epistemológica do realismo, ou seja, existe um mundo independente de nossas descrições, mesmo que nosso acesso somente seja possível através da linguagem. Por isso, quando Antero escreve seu artigo para a Revista de Portugal sobre as tendências da filosofia na segunda metade do século XIX, ele está preocupado em entender a filosofia, definida por ele como “a equação do pensamento e da realidade, n’uma dada phase de desenvolvimento d’aquelle e num dado periodo de conhecimento d’esta” (Quental, 1890, p. 7). Com isso, se percebe a relação entre o pensar e o mundo na filosofia de Antero de Quental, pois somente através da possibilidade de entender a relação entre pensamento e realidade é possível pensar na história da filosofia. De outra forma, Eça de Queirós chega à relação entre realidade e pensamento, pois quando escreve a Clara, e já estou tentando recontinuar ansiosamente, por meio deste papel inerte, esse inefável estar contigo que é hoje todo o fim da minha vida, a minha suprema e única vida. (Queirós, 1997, p. 161) em que se percebe a descontinuidade entre a experiência e a produção textual sobre a experiência. Neste sentido, temos que o realismo de Eça de Queirós – penso essencialmente no romancista, porque as obras de Antero de Quental não refletem sobre a forma do romance realista – na última década do século XIX é repensado no sentido de que linguagem passa a ocupar o lugar central da reflexão sobre a realidade, ao invés de defender a causa de escola, ou o realismo.

REFERÊNCIAS BERRINI, Beatriz. “Antero de Quental e Eça de Queirós: correspondência inédita”. In: Colóquio/Letras. Lisboa, nº123/124, janeiro-julho, pp. 201-211, 1992. HABERMAS, Jürgen. “Introdução: realismo após a virada da pragmática lingüística”. In: __________. Verdade e justificação: ensaios filosóficos. São Paulo: Edições Loyola, 2004, pp. 7-60. MATOS, A. Campos. “Filosofia e personagens”. In: __________(org.). Dicionário de Eça de Queiroz, 2ª Ed. Lisboa: Caminho, 1993. QUEIROZ, Eça de. “A correspondência de Fradique Mendes”. In: __________. Obra Completa, vol II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997, pp. 53-216.


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 174 QUEIROZ, Eça de. “A Nova Literatura: o Realismo como nova expressão da arte”. In: __________. Literatura e Arte: uma antologia. Lisboa: Relógio d’Água, 2000, pp. 21-39. QUEIROZ, Eça de. “Prefácio ao Brasileiro Soares de Luiz e Magalhães”. In: __________. Obra Completa, vol III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000, pp. 1804-1809. QUEIROZ, Eça de. “Prefácio aos Azulejos do Conde de Arnoso”. In: __________. Obra Completa, vol III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000, pp. 1791-1803. QUEIROZ, Eça de. “Um gênio que era um santo”. In: __________. Obra Completa, vol III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2000, pp. 1761-1787. QUEIROZ, Eça de. Idealismo e realismo. In: __________. Obras completas, vol. III. Porto: Lellos & Irmão, 1979, p. 907-916. QUENTAL, Antero de. Tendencias geraes da philosophia na segunda metade do século XIX. Revista de Portugal. Porto, Editores Lugan & Genelioux, 1890, vol. II, pp. 5-20; pp. 149-171; pp. 281-306. REIS, Carlos. Eça de Queirós do Romantismo à superação do Naturalismo. In. __________(dir.). História da Literatura Portuguesa, vol. 5. Lisboa: Publicações Alfa, 2001. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Editora Cultrix, 2000.


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LIMA BARRETO: CRÍTICO DA VACUIDADE DA ELITE INTELECTUAL EUROPEIA E DO DESPREPARO DAS ELITES BRASILEIRAS Ione Eler E Herler 1 Rosemary Sousa Cáfaro 2 Rauer Ribeiro Rodrigues 3

RESUMO: Propomo-nos analisar a obra Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto, publicado em 1915. Num primeiro momento, abordamos a visão política de Lima Barreto. Em seguida, enfatizamos como essa visão o influenciou a criar uma personagem grotesca e caricatural como representação do Brasil. Percebe-se que Lima Barreto ridiculariza o Brasil e o sistema de governo de sua época, através da personagem de Policarpo Quaresma. Finalmente mostramos como Lima Barreto alterna humor e tragédia para construir a caricatura do nacionalismo. Parece-nos que, em Triste fim de Policarpo Quaresma, há um nacionalismo-absurdo. Na tentativa de prová-lo, fazemos as seguintes perguntas: Que classe social Lima Barreto critica? Seria ele antinacionalista ou apenas não tolerava os falsos nacionalistas? Para tal fim nos valemos do conceito de caricatura de Mikhail Bakhtin, em A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais (1993); do conceito de tragédia de Aristóteles, em Arte Poética (2000) e também de A história concisa da literatura brasileira de Alfredo Bosi (2006). PALAVRAS-CHAVE: Caricatura; Drama; Ironia.

INTRODUÇÃO Propomo-nos analisar a obra Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, publicada em 1915. Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881 e morreu na mesma cidade em 1922. O ano de sua morte é considerado o início do movimento modernista, com a Semana paulistana; no entanto, Lima Barreto, como afirma Rangel (1984, p. 96), foi o precursor desse movimento devido sua linguagem despojada e popular num momento de preciosismo linguístico. O que hoje é natural, na época foi inovação.

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Formada em Letras no CPAN / UFMS; eherler@ibest.com.br. Formada em Letras no CPAN / UFMS; mary_corumba@hotmail.com. 3 Doutor em Estudos Literários pela UNESP de Araraquara; professor no CPAN; coordenador do Grupo de Pesquisa Luiz Vilela – gpluizvilela.blogspot.com; rauer.rauer@uol.com.br. 2


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Neste trabalho, em um primeiro momento, abordamos a visão política de Lima Barreto. Em seguida, enfatizamos como essa visão o influenciou a criar uma personagem grotesca e caricatural como representação do Brasil. Percebe-se que Lima Barreto ridiculariza o Brasil e o sistema de governo de sua época, através da personagem de Policarpo Quaresma. Finalmente mostramos como Lima Barreto alterna comicidade e tragédia para construir a caricatura do nacionalismo. Entendemos que, em Triste fim de Policarpo Quaresma, há um nacionalismoabsurdo. Na tentativa de prová-lo, fazemos as seguintes perguntas:

1. Que classe social Lima Barreto critica? 2. Seria ele antinacionalista ou apenas não tolerava o falso nacionalismo? Para respondermos a esses questionamentos e comprovarmos nossa proposição, nos valemos do conceito de grotesco e caricatura de Mikhail Bakhtin (1993),, em A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais, do conceito de tragédia, de Aristóteles (2000), em Arte Poética, e também de A história concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi (2006).

ENREDO

Triste fim de Policarpo Quaresma narra a historia de Major Quaresma. Homem de vida simples, solteiro, que vivia em companhia de uma irmã também solteira. Major Quaresma era um nacionalista que não admitia nem mesmo discutir com os que não o eram. Quando tomava a palavra, exaltava as belezas do Brasil e dizia que não havia país mais maravilhoso e com tantas riquezas naturais como o nosso. Seu nacionalismo era tão ufanista que ele considerava a terra e tudo quanto produzia aqui como melhores do que em outros lugares. Major Quaresma chegava ao extremo de rejeitar qualquer produto importado, tanto alimentos como livros e até a música estrangeira. Dominado por seu ufanismo, ele elabora um projeto no qual propõe a mudança do idioma oficial no Brasil para o Tupi Guarani, pois essa língua, segundo ele, era a dos índios. Quando a proposta foi enviada ao Congresso, causou riso geral e o tiveram por louco; mas


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entre os amigos, ele já causava preocupação ao cumprimentá-los chorando, segundo ele um hábito dos tupinambás. Quaresma tanto assustou sua irmã e os amigos com suas ideias consideradas malucas, que acabou internado num hospício. Quando voltou para casa, era uma pessoa desanimada e triste; então Olga, sua afilhada, sugeriu que se mudasse para um sítio. A mudança trouxe novas esperanças a Quaresma, que logo se viu próspero com os lucros do sítio. O desânimo, no entanto, se apoderou dele novamente após a primeira colheita, pois os alimentos cultivados com tanto sacrifício não renderam quase nada. Quaresma escreveu uma carta ao presidente da República, Marechal Floriano Peixoto, reclamando do valor pago à produção dos agricultores, mas não obteve resposta. Estourou a Revolta da Armada e Quaresma se alistou com a finalidade de defender o governo. Voltou para o Rio de Janeiro onde combateu e acabou ferido. Finda a revolta, ficou responsável pelos prisioneiros e, mais uma vez, se decepcionou com o governo ao ver que os presos eram levados, no meio da noite, sem julgamento prévio. Escreveu uma carta ao presidente, Marechal Floriano, denunciando o abuso de autoridade. Foi preso como traidor e nem mesmo o empenho da afilhada consegui salvá-lo.

VISÃO POLÍTICA DE LIMA BARRETO

Segundo Bosi (2006), Lima Barreto sofreu com o preconceito por ser mulato e pobre. Por causa de tudo que viveu e sofreu, ele desenvolveu certa aversão às classes dominantes e, consequentemente, desenvolveu uma visão muito pessimista em relação à pátria. Em carta a Georgino Avelino, ele desabafa:

A pátria me repugna, Avelino, porque a pátria é um sindicato dos políticos e dos sindicatos universais, com os seus esculcas em todo o mundo para saquear, oprimir, tirar o couro e cabelo, dos que acreditam nos homens, no trabalho, na religião e na honestidade. (Barreto, apud Lins, 1976, p. 21).

A carta mostra um homem sem esperanças no seu país. Ele vê os defeitos e faz acusações graves contra os políticos. Seria ele antinacionalista? Ou estava apenas sendo crítico?


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Em Triste fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto deixa transparecer um pouco da sua visão política. As falas das personagens são reveladoras. A princípio, ele não parece ser contra o sistema republicano, como podemos verificar quando a personagem Albernaz conversa com Caldas: “A república precisa ficar forte, consolidada... Esta terra necessita de governo que se faça respeitar” (Barreto, 1995, p. 117). Porém com o passar do tempo, ele percebeu que o advento da república havia retirado do poder os liberais e colocado os conservadores (Bosi, 2006, p. 318). Vejamos o que ele diz: “Estávamos melhor naquele tempo, digam lá o que quiserem...”; “... os governos que temos tido que não têm prestígio, força...”(Barreto, p. 121). Como ele era radicalmente contra o conservadorismo, não apoiou a república, pois ela estava escorada nas idéias positivistas. O incomodavam o autoritarismo dos militares e dos políticos, os privilégios, as promoções, os empregos e as gratificações concedidos a poucos; é o que vemos nesta passagem que fala sobre o governo militar: “toda gente ainda se lembra como foram os seus primeiros meses de governo [...] tendo mandado fazer um inquérito [...], deu a essas pessoas as melhores e as mais altas recompensas” (Barreto, 1995, p. 131). Enfim, tudo é justificado pelo positivismo como, nesse trecho em que ele se refere aos militares: “Eram os adeptos desse nefasto e hipócrita positivismo tirânico, limitado e estreito, que justificava todas as violências, todos os assassínios, todas as ferocidades em nome da manutenção da ordem...” (Barreto, 1995, p. 120-121). A república, os presidentes, os militares e suas arbitrariedades e, principalmente, Floriano Peixoto, são alvo de suas críticas: “... uma ausência total de qualidades intelectuais, havia no caráter do Marechal Floriano uma qualidade predominante: tibieza de ânimo; e no seu temperamento, muita preguiça (Barreto, p. 136). Por todos esses motivos, o obra de Lima Barreto deixa transparecer que ele era radicalmente contra a república, o positivismo e as classes dominantes — enfim, era contra aqueles não faziam nada para mudar a situação do país. De acordo com Rangel (1984, p. 84), Triste fim de Policarpo Quaresma “mistura ficção e política”. Mas não é só nesse livro que esse tema está presente. Toda a obra de Lima Barreto tem como característica comum a preocupação com o social. Ela aborda os mais diferentes temas, sendo eles os mais graves e sérios problemas sociais e políticos do Brasil. Rangel os enumera:


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 179 O regime político e administrativo, os entraves burocráticos, o tráfico de influencias, a política econômica, a oligarquia rural e o abandono da agricultura de consumo interno assim como a dureza da vida no campo; os preconceitos de raça e de cor, a exploração dos mais fracos pelos mais fortes e a impunidade destes, o poder do compadrio, a futilidade e os rebrilhos falsos da diplomacia “elegancial”; na vida social assim como na vida literária, as igrejinhas, as sociedades de elogio mútuo, a literatura transformada em “sorriso da sociedade”, a linguagem alambicada e de colarinho duro patrocinada pela Garnier. (Rangel, 1984, p. 94).

Se não considerássemos o fato de que a literatura de Lima Barreto tem caráter social, poderíamos concluir que ele era antinacionalista. Mas, aqui, um novo problema se coloca: como alguém pode denunciar os problemas de uma pátria que não ama? Lima Barreto utiliza seus romances para combater as arbitrariedades e injustiças daqueles que realmente não se preocupam com os problemas que então existiam no Brasil. A crítica política e social é uma constante na obra de Lima Barreto (BOSI, 2006, p. 316-324). Em Numa e Ninfa (1923) ele também não perdoa os políticos e usa a caricatura para mostrar os problemas sociais, econômicos e políticos da república, em especial os desmandos dos políticos. Em Clara dos Anjos, obra inacabada, há também crítica social. A pobreza é denunciada bem como a discriminação racial e social, tema também presente em Recordações do escrivão Isaias Caminha (1909). Em os Bruzundangas (1923), a sátira é contra o Brasil e a sociedade do início do século XX. Houais afirma, no prefácio de Vidas urbanas, que a literatura de Lima Barreto é engajada. Suas palavras têm a finalidade de “mover, demover, comover, remover e promover” (Houais apud Lins, 1976, p. 18). Portanto, sua escrita não é apenas para divertir, mas vai muito além, pois é também um instrumento de denúncia contra os poderosos e seus desmandos, contra as injustiças e o descaso para com os mais pobres.

O RISO LITERÁRIO EM LIMA BARRETO

De acordo com Bakhtin (1993, passim) o riso se manifesta na forma do humor, da ironia, da sátira, da caricatura, do chiste, da piada. Lima Barreto se utiliza de vários elementos do riso literário para fazer sua crítica. Diz Rangel (1984, p. 96): “o estilo limiano é a sátira, o


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humor, a ironia, o sarcasmo”. Essa afirmação pode ser confirmada em várias passagens do romance, tanto nas protagonizadas por Quaresma quanto por alguma outra personagem: caricaturista nato, Lima Barreto pinta suas personagens com as cores do ridículo. Major Quaresma é apresentado de forma histriônca. Não ridículo quanto à aparência física, mas sim nas atitudes. A caricatura é o exagero das características de um indivíduo. No caso de Quaresma, o que é caricaturado é o seu nacionalismo exagerado, nacionalismo cujo molde é contrário às ideias do autor. Rangel afirma ainda que. na obra de Lima Barreto, “[a] ironia chega ao sarcasmo, à sátira, ao caricatural. Os tipos que ele traça são raramente tipos complexos. São almas lineares de psicologia simples: ridículos sempre ridículos; maus sempre maus; bons sempre bons” (Rangel, 1984, p. 97). Também essa afirmação pode ser confirmada no romance O triste fim de Policarpo Quaresma, pois o protagonista é caricaturizado e se mostra ridículo, embora seja uma boa pessoa. Não há mudança: Quaresma é o que é. Quando imaginamos que ele aprendeu a lição, percebemos que não. Ele continua simples, acreditando nas pessoas e lutando por seus ideais. Morre porque não consegue se calar ante as injustiças; no entanto, tem a simplicidade de não perceber o perigo que corre. Bosi (2006, p. 319) diz que o cômico acontece pelo quixotismo de Quaresma. Suas ações são sempre cômicas, além do mais, ele, como Dom Quixote, é um visionário, como afirma Floriano quando ele pergunta se O Marechal leu seu memorial sobre a agricultura. Ele quer fazer algo para ajudar o país, tem boa-fé, mas não tem noção da realidade, o que o expõe a situações perigosas. Seus projetos são de um despropósito que gera comicidade. Há uma alternância do trágico e do cômico no romance. Segundo Aristóteles (2000, p. 39), a tragédia imita as ações de pessoas superiores e deve ter um desfecho capaz de provocar piedade. A comédia é a imitação das ações inferiores, se volta para o cômico com a intenção de fazer rir. Ambas fazem parte do drama. Há, em várias momentos do romance, a presença do cômico e do trágico em alternância contínua. O projeto de mudança de idioma, os momentos de delírio de Quaresma, sua mania de apreciar tudo que é nacional em detrimento aos outros países, bem como os vários trechos que mostram a sociedade fútil, que apenas vivia de aparências, são responsáveis pela comicidade da obra. Já a internação de Quaresma, sua prisão e o desfecho são responsáveis pelo tom trágico. Em Triste fim de Policarpo Quaresma, Lima Barreto critica o nacionalismo exacerbado de pessoas, que como Policarpo, só conseguem ver o que o país tem de bom. Por isso a personagem de Quaresma é caricaturada e grotesca. Lima Barreto, apesar de ser


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nacionalista, não admitia os exageros, conseguia ser crítico o suficiente para perceber o que estava errado, por isso fazia uma literatura de denúncia. Ele critica também os políticos e suas arbitrariedades e sua pouca capacidade, bem como o positivismo, que, segundo ele, dá base para todas as injustiças. Sua crítica se volta também para o coronelismo, praga do latifúndio que invade as cidades, e o empreguismo, praga da vida pública para resolver questões privadas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Lins (1976, p. 22) afirma que Lima Barreto foi “um dos mais interessados analistas de nossa realidade geografia, política e psicológica”. Considerando essa afirmação e as considerações dos demais estudiosos que citamos, percebemos que Lima Barreto sempre usou a palavra para denunciar os problemas sociais. Sendo assim, em um primeiro momento, ao que parece, ele já não tem mais esperanças quanto ao futuro do Brasil, o que o leva a um profundo pessimismo. Esse sentimento o faz construir uma personagem como Policarpo Quaresma. Tudo em Quaresma é exagerado. Seu nacionalismo ufanista, seu amor pela pátria, a valorização das belezas naturais e dos produtos nacionais. Quaresma não possui equilíbrio emocional, não tem limites. Seu nacionalismo é tão absurdo e suas reações tão exaltadas que sua figura dá um tom quixotesco ao romance. Provoca riso. No entanto, a obra também explora o trágico, pois as mesmas atitudes que dão o tom cômico levam a personagem a momentos trágicos, como o da sua morte, por exemplo. Outras passagens como a morte de Ismênia e a violência após a batalha também são responsáveis pelo tragicidade da obra. Bosi (2006, p. 320) afirma ainda que Quaresma queria “viver mais brasileiramente em um Brasil que já estava deixando de o ser”. Apesar da crítica de Lima Barreto ao nacionalismo isolado e doentio, em O triste fim de Policarpo Quaresma a criatura representa alguma das ideias de seu criador, pois Lima Barreto, como a personagem Quaresma, implica com tudo que é de fora, “até mesmo com o futebol, porque era um jogo ‘importado’ e soltava um bando de ‘homens seminus’ correndo


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diante da multidão” (Rangel, 1984, p. 93). No entanto ele não chega ao exagero de Quaresma, consegue ser mais racional. Sabe dos problemas existentes no país e usa suas obras como instrumento de denúncia. Apesar desse caráter, a força da ficção de Lima Barreto está na reflexão que provoca a partir da humanidade com que impregna suas personagens, a partir da revolução literária que produz, incorporando à linguagem da literatura brasileira um modo de se expressar que rompe com o academicismo até então vingente, e a partir de uma visão de mundo que amalgama a vivência do subúrbio carioca a uma crítica que engloba da elite intelectual europeia e sua vacuidade ao despreparo e ignorância das elites brasileiras. Neste quadro, discutir se Lima Barreto era nacionalista quixotesco como Quaresma, ou um crítico implacável da nacionalidade medíocre, torna-se questão menor.

REFERÊNCIAS: BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Martin Claret, 2001. BOSI, Alfredo. História concisa da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006. LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976. RANGEL, Pascoal. Ensaios de literatura. Uma introdução à leitura de 16 autores brasileiros. Belo Horizonte: O lutador, 1984.


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MUDANÇA E INSTITUCIONALIZAÇÃO: O LUGAR DO NARRADOR NO ESPANTO DISSIMULADO E BUROCRATIZADO EM JOÃO DO RIO E DALTON TREVISAN Sandro Roberto Maio1

RESUMO: O artigo busca articular o conceito de modernização conservadora de Florestan Fernandes a partir de uma leitura comparativa que foca a posição do narrador na Literatura Brasileira em dois momentos distintos: a entrada de certa modernidade na dissimulação espantada de João do Rio e a burocratização da miséria em Dalton Trevisan. PALAVRAS-CHAVE: Mudança, narrador, Literatura Brasileira, modernidade, violência. ABSTRACT: This article seeks to articulate the concept of Florestan Fernandes's conservative modernization from a comparative reading, which focuses the narrator's position in the Brazilian Literature at two distinct moments: the entry of certain modernity in João do Rio’s amazed dissembling and the bureaucratization of misery in Dalton Trevisan. KEY-WORDS: Change, narrator, Brazilian Literature, modernity, violence

A produção literária no Brasil no decorrer do século XX indica um posicionamento do narrador para uma leitura reflexiva de seu papel social. Em certos momentos da historiografia, a figura do narrador parece portar uma forma-voz que traduz elementos da estrutura social. Certos aspectos objetivados por tal narrador singularizam uma situação político-social que sustenta a estagnação da mudança a favor da manutenção de um poder subjetivado no ideal do progresso. Por tal paisagem, o narrador na Literatura Brasileira sofre algumas constantes. As estruturas que movimentam o texto relacionam-se de modo acentuado com as estruturas sociais: a dificuldade de narrar aproxima-se da dificuldade de estabelecer paradigmas de mudança social. O narrador busca, então, a expressão da lacuna, da indeterminação e do impasse que regem de certa forma a própria existência social. Sua voz articula-se na relação conflitiva dos elementos da história e as possibilidades de figuração na ficção. Parece relacionar-se com os objetos de seu discurso de modo predominantemente negativo, já que 1

Mestre em Literatura e Crítica Literária pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor convidado do curso de Pós-Graduação (Especialização) em Literatura pela PUC-SP, Departamento de Literatura e Crítica Literária; sandromaio@hotmail.com.


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traz a consciência crítica que percebe a conservação de modelos e sistemas em que a desigualdade funciona de modo eficaz. Nesse sentido, invariavelmente, a figura excluído é uma presença que se desdobra em vários níveis. Em alguns casos protagoniza narrativas canônicas (Vidas secas, A hora da estrela), em outros, sua insistente presença traz traços de um imaginário que se articula na constante e paradoxal reformulação de uma sistemática estabilidade. O presente texto irá ter como corpus ficcional para análise a narrativa Sono Calmo de João do Rio, encenada no inicio do século XX, período caracterizado pela euforia pequenoburguesa em relação à importação de signos capazes de elencar formas de certa modernidade européia. A miséria, neste caso, é proposta como espetáculo integrante do novo cenário que avulta. Em comparação, o conto Debaixo da Ponte Preta de Dalton Trevisan, elaborado nos anos 60, período em que algumas formas da “modernidade” encontram-se em plena maturidade funcional, aponta para a burocratização estatal da miséria, formalizada no discurso de autoridade nos anais da justiça. De toda forma, o cruzamento de uma perspectiva que orienta a exclusão como forma de justificar a entrada de uma tardia modernidade em um Estado predominantemente fundamentado por um sentido colonizador é dominante na construção narrativa dos dois textos. Percebe-se um ponto de contato entre os narradores, o que pode significar uma constante nas narrativas que compreendem a produção literária do século XX no Brasil. Para isso, propõe-se a seguinte questão: como a voz narradora em João do Rio, enlevada de certo espanto simulado acaba por se desdobrar em fantasmagoria na narrativa de Dalton Trevisan, enquanto burocratização narradora dos excluídos? Não estaria depositado em tais formas de narrar uma percepção de que “tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral”, segundo Walter Benjamin? Como centro teórico utilizaremos conceitos presentes nas teses sobre a história de Walter Benjamin e o conceito de modernização conservadora de Florestan Fernandes, além de textos recorrentes de tais perspectivas.

1. O espetáculo da miséria: modernização como espanto dissimulado

Cronista do inicio do século, flâneur de uma belle époque deslocada frente ao cenário de certa modernização, João do Rio procurou narrar o avesso das importações artificiosas do


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imaginário pequeno-burguês que invadia a Primeira República. De certa forma, percebe-se um narrador preocupado em expor os resíduos sociais que margeiam o “progresso” do ideário positivista não exatamente no intuito de denúncia (ou reflexões que pudessem ler algum tipo de estrutura social excludente), mas para efeito das “sensações” que o incipiente cenário urbano acenava. Os textos que compõe A alma encantadora das ruas (1908) traçam um cenário prefigurado pela idéia de modernização conservadora. Para Florestan Fernandes, a modernização traz em si um aspecto de forte dependência, o que justifica uma transposição quase integral de processos de culturas dominantes, o que não significa adequação ou saneamento de dificuldades históricas: [...] a mudança social é comprimida, convertendo-se, extensa e profundamente, em um processo de ‘modernização dependente’, produzido e regulado graças à absorção de dinamismos socioeconômicos e culturais das nações capitalistas hegemônicas. (FERNANDES, 2008, p.41). O modelo europeu aqui repercutido pensa a exposição das mazelas sociais através de imagens que buscam o efeito do choque, pois atenua o papel das figuras de autoridade que acompanham o jornalista-personagem em suas incursões no submundo, ao mesmo tempo em que torna agudos aspectos próprios da miséria como se fossem alheios ao reconhecimento do processo. O crime e os criminosos ou miseráveis que compõem os quadros narrativos são personagens que “ilustram” a modernização social, de modo a representar um traço já previsto no modelo ideal das culturas dominantes, a partir de tensões atenuadas por um reconhecido domínio histórico, o que é um padrão frente às mais variadas circunstâncias: Aquele padrão compatibiliza a coexistência da tolerância e até da cordialidade com um profundo desdém elitista por quem não possua a mesma condição social. O que faz com que aquilo que parece ‘democrático’, na superfície, seja de fato ‘autoritário’ e ‘autocrático’, em sua essência. Esse patamar psicossocial das relações humanas é a nossa herança mais duradoura (e, ao mesmo tempo, mais negativa) do passado colonial e do mundo escravista. (FERNANDES, 2008, p.43). Logo, traços de negatividade acompanham os procedimentos narrativos que encontram no tema da exposição do excluído uma forma a trazê-lo como coadjuvante natural do espetáculo que oferece a modernidade, porém sempre como representação de uma consciência que o considera: “[...] o inimigo principal da burguesia vêm a ser os setores despossuídos, na


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maioria classificados negativamente em relação ao sistema de classes [...]” (FERNANDES, 2008, p.37). A narrativa Sono calmo é exemplar nesse sentido. Diz o narrador: “Os delegados de polícia são de vez em quando uns homens amáveis” (RIO, 2007, p.114). A adjetivação positiva da autoridade é correspondência simétrica à idéia de superficial democracia citada acima. O que, posteriormente se desenvolve, é espelhamento de um sistema em que “[...] o autoritarismo desvenda na prática o que nas fases democráticas fica dissimulado: o caráter da repressão autoritária e os contornos da violência física e ilegal” (PINHEIRO, 1991, p.49). A figura de autoridade conduz o narrador aos “círculos infernais” – moradias que acolhiam provisoriamente figuras constantes da rua, o que o narrador chama de “covis horrendos”. O modo de apresentação do tema ao leitor é significativo, pois justifica a manutenção da miséria como forma de inserção no “mercado” do alto capitalismo: Lembrei-me que Oscar Wilde também visitara as hospedarias de Má fama (...) em Paris os repórteres do Journal andam acompanhados de uma apache autêntico. Eu repetiria apenas um gesto que era quase uma lei. (RIO, 2007, p.114). O que para o narrador é uma “lei”, uma conseqüência medida já por determinada situação histórica, é para Florestan Fernandes outra face da mesma história: O regime de classes ‘transborda de um para o outro, graças às estruturas de poder criadas no plano internacional do capitalismo, porém o primeiro ‘faz a história’, enquanto o segundo ‘a sofre’. (FERNANDES, 2008, p.34). O delegado como figura que orienta os caminhos em espaços de degradação somente reforça a idéia de uma estrutura social que também orienta e delimita as ações em tais espaços: “Íamos caminhando pela rua da Misericórdia [...] e, afundando o olhar pelos becos estreitos em que a rua parece vazar a sua imundície por aquela rede de becos[...]” (RIO,2007, p.145). No mesmo sentido, Paulo Sérgio Pinheiro relaciona o estado de exceção de que fala Walter Benjamin como a única continuidade visível, já que o próprio espaço de vivência de tal população é pontuado por cortes e deterioração para a garantia da própria sobrevivência: Para os pobres, miseráveis e indigentes que sempre constituíam a maioria da população podemos falar de um ininterrupto regime de exceção paralelo, sobrevivendo às formas de regime, autoritário e constitucional. (PINHEIRO, 1991, p.48).


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A narrativa segue para tornar a ação policial um fato da realidade, a ser trazido para o imaginário dessa desconhecida modernização como “espetáculo”, elencado por figuras como o soldado e o próprio delegado que revela a violência como uma forma de relação com o outro da História: O soldado tornou a bater. De dentro então uma voz sonolenta indagou: - Quem é? - Abra! É a polícia! Abra! O silêncio continuou. Nervoso, o delegado atirou a bengala à porta. (RIO, 2007, p. 146). A figura de autoridade torna-se núcleo modelar que exerce sua heroicidade ao confirmar a violência posta em tensão pela confirmação do poder exercido: “O delegado, entretanto, gozava aquele espetáculo” (RIO, 2007, p.147). A própria comparação que faz o narrador para as condições de moradia revela uma mentalidade que nivela as existências enquanto funcionamento regulado: “Parecia que o ar rareava, e, parando um instante, ouvimos a respiração de todo aquele mundo como o afastado resfolegar de uma grande máquina” (RIO, 2007, p. 147). Assim, a incorporação da técnica como forma de justificar uma modernidade inaudita serve como preciosismo vocabular, já que a prática da idéia progressista revela a própria iniqüidade interna de seu próprio discurso, o que expõe: A violência ilegal do Estado e a impunidade da violência por parte dos cidadãos continuam depois das transições políticas, mascarada pela retórica democrática, dissimulando relações fundamentais de forças intocadas. (PINHEIRO, 1991, p. 45). Logo, as condições de vida não demonstram a reforma esperada pelo narrador e, por isso, justifica a comparação como continuidade natural de uma História que perpetua o movimento de exclusão como norma. Tal questão parece criar espaço para a adjetivação do narrador, no momento de sua retirada do “covil horrendo”: “Desci. Doíam-me as têmporas. Era impossível o cheiro de todo aquele entulho humano” (RIO, 2007, p. 149). Mais uma vez o progresso figura como signo mentor da reforma (seu produto de exclusão: o entulho), o que é a correspondência que o narrador parece buscar enquanto identificação do herói da sua narrativa (a figura de autoridade) e um previsto público leitor (a sociedade conservadora que tinha acesso à leitura). O próprio espaço original de veiculação do texto – o jornal – é fonte de construção de um imaginário que imprime pela idéia de inserção social certas proeminências:


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Ela projeta, desse modo, a condição burguesa para fora da burguesia e implanta, no coração mesmo de seus inimigos de classe, identificações e lealdades mais ou menos profundas para com o consumismo, a ordem social competitiva e o Estado ‘democrático’ e ‘nacional’. (FERNANDES, 2008, p.61). A narrativa projetada para a descrição do excluído pelo efeito do choque através do horror prepara o caminho para a entrada do arremedo de certa política conservadora, como na conclusão que acredita no próprio cinismo e arrogância: “É verdade, os asilos, a higiene, a limpeza. Tudo isso é bonito. Havemos de ter. Por enquanto Nosso Senhor, lá em cima, que olhe por eles” (RIO, 2007, 149). A modernização cumpre assim, seu principal intuito de nivelamento da desigualdade pela exclusão e o apagamento dos rastros do passado pela higiene, a limpeza do “entulho humano”. Dessa forma, a narrativa de João do Rio que principia pela busca do efeito da “sensação”, orientada o relato das vivências, acaba por oferecer uma cena que muito retrata as contradições em termos da própria construção narrativa e do processo histórico apresentado. Tal temática transpõe para o campo de orientação do narrador a implantação de uma situação modernizante, pautada na transposição pura e simples de certa cultura de importação. A tensão advém da convivência que dispõe o motivo de fascínio (“encantadora”) a partir da uma percepção hesitante, porém afirmadora das diferenças que elaboram as relações sociais. Logo, a modernização não cria, senão um sentido de “plastificação” do real para o Brasil e de certa maneira, uma paisagem constantemente reformada que preserva as relações de poder e servidão vivas na recente abolição da escravatura, elementos autoritários, impregnados na cultura brasileira, que fomentam antagonismos: [...] a modernização institucional do Estado, coincidia com a renovação e o reforçamento das técnicas oligárquicas e autocráticas de dominação patrimonialista, elevadas da esfera privada a órbita da ação político-burocrática do Estado. (FERNANDES, 2008, p. 58).

2. Burocratização da miséria: o outro no silêncio da história

Dalton Trevisan, escritor brasileiro que desponta nos anos 60, traz um narrador que visita espaços e personagens à margem dos imperativos da modernização. Como revestimento para essa voz narrativa, a consciência da concretização de uma modernização que trata o


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desvio (o crime) como norma burocrática e previsível. A figura de autoridade repressora agora está solidificada na impessoalidade que nivela e confunde os papéis ali desempenhados. O conto Debaixo da Ponte Preta presente no livro O vampiro de Curitiba (1965) repercute o que antes era a busca de elementos articuladores de uma imaginada modernidade, agora na indiferença de uma voz que traveste os elementos de choque em anestesiada conferência: Noite de vinte e três de junho, Ritinha da Luz, dezesseis anos, solteira, prenda doméstica, ao sair do emprego, dirigiu-se à casa de sua irmã Julieta atrás da Ponte Preta (...). Arrastada pelo chão, fortes dores nos seios e nas partes. Que não gritasse por socorro, barbaramente espancada. (TREVISAN, 1985, p. 76). Tal discurso “maquinizado” pelo aparelhamento jurídico, ou seja, legitimizado legalmente pelo Estado revela uma modernização que não interfere ou muda as relações sociais, mas continua um percurso agora normatizado pelo testemunho que atesta. O que é exemplo histórico de uma prática de assimilação da modernidade para fins conservadores: As classes dominantes e suas elites, pouco propensas a assimilar e por em prática técnicas, valores e instituições sociais que poderiam redundar em ‘maior abertura’ e ‘maior fluidez’ da ordem social competitiva, aproveitam com avidez as vantagens de sua incorporação às fronteiras culturais das nações capitalistas hegemônicas, para modernizarem sua tecnologia de controle repressivo e violento dos conflitos sociais, aumentando, com isso, a eficácia dos mecanismos de segurança da ordem ou da repressão policial-militar. (FERNANDES, 2008, p.54). Daí o outro do processo histórico ser mera peça de arquivo, previsível na constituição social violenta em seus pequenos desvios cotidianos. O conto é ambientado possivelmente em uma sala delegacia, onde vozes são recortas para a construção do texto. Percebe-se a presença de um investigador, delegado ou mesmo escrivão que toma nota de um estupro que ocorre “atrás da Ponte Preta”, na linha do trem. O texto preserva o tom de depoimento dos personagens participantes a partir do recorte de vozes que organiza a narrativa. Tais personagens, anônimos a princípio (a nomeação é sempre generalizante: Miguel de Tal, Nelsinho de TAL, etc.) podem ser reconhecidos pela narrativa que os constroem através da recolha burocratizada de sua voz. Cada um oferece seu traçado da “ocorrência”, forma que obedece aos níveis de consciência e percepção, porém pontuados por certa intencionalidade, decorrente de sua posição social. Todos justificam o crime, de uma forma ou de outra, sem que não deixe de haver justificativa para sua existência: Miguel de Tal, foguista, diz que “Ao


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cruzar a linha do trem, avistou três soldados e uma dona em atitude suspeita. Sentiu um tremendo desejo de praticar o ato”. Logo à frente, a descrição do “ato”: “[...] retirando-lhe a roupa e com ela mantendo relação, embora a força. Derrubou e, para abafar os gritos, tapoulhe o rosto com o casaco de foguista. Saciado ajudou os soldados [...]” (TREVISAN, 1985, p. 77). Apesar da aparente neutralidade daquele que escreve o depoimento, percebe-se certa complacência: desde a “atitude suspeita” que insinua certo pacto de todos os participantes, passando pelo “tremendo desejo” que por conseqüência justifica a utilização atenuante do “embora a força” para a caracterização do crime. Por isso, a assertiva moral absolve de antemão, pois o arrependimento do “mau gesto” (outra atenuação...) cria uma situação que faz com que Miguel “[...] se oferece para casar com a menina [...] isto é, tão logo apronte os papéis do desquite, de momento é casado” (TREVISAN, 1985, p. 77). Assim, a adversativa “embora” se transfere para um termo explicativo “isto é” como construção de um discurso que busca formas de reconhecimento em uma natureza violenta e arbitrária: Os aparelhos repressivos do Estado no Brasil estão impregnados do arbítrio, do terror e dos abusos das relações de poder. Os governos da transição trataram os aparelhos policiais como se fossem aparelhos neutros capazes de servir à democracia e subestimaram o legado autoritário em suas práticas. (PINHEIRO, 1991, p. 50). O reconhecimento pelo discurso do oprimido não transforma as relações sociais, mas apenas testemunham a eficiência de uma transformação que busca preservar seus sistemas de relação e poder. O depoimento é fruto do aparelhamento judiciário como forma da atuação de uma pretensa neutralidade democrática, porém tal neutralidade não questiona os mecanismos, mas concretiza uma indiferença estruturadora. A inversão pela indiferença pode ser constata pelo segundo participante, Nelsinho de Tal, menor que “[...] deparou com três soldados e um paisano atacando uma negrinha [...]” e “Acabada a brincadeira [...] se confessa contrariado [...] ações como a que praticou apenas servem para estragar o futuro de um jovem” (TREVISAN, 1985, p. 77). Nova inversão: o crime toma o status de “brincadeira” e o “futuro estragado” não pertence à vítima – “negrinha e menor” – mas àquele que comete o crime. Tal cena narrativa traz a percepção da violência articulada na cultura brasileira por uma linguagem paterna, estruturadora do social. Logo, percebe-se: “Além das formas de violência ilegal, a violência doce (nem sempre) dos preconceitos e das discriminações compõe o autoritarismo socialmente implantado” (PINHEIRO, 1991, p.56).


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A narrativa encena personagens como Alfredo de Tal, Durval de Tal e Pereira, todos eles soldados que protagonizam o crime. Para Durval “[...] a menina gostou de seu cabelo loiro e olho azul. Aproximaram-se os colegas, um de cada vez abusou da pequena” (TREVISAN, 1985, p.78). Discurso semelhante está no depoimento de Pereira que justifica o crime pelo ensejo da ocasião: [...] tendo um deles exclamado: Que morena linda. A qual parou e perguntou o que havia dito. Começaram a conversar, Alfredo a convidou pra dormirem juntos. Ela respondeu: Este loiro tem tempo. (TREVISAN, 1985, p.79). O depoimento é conduzido em um crescente que irá inverter a consciência do crime: “Feita a combinação, entraram no mato. Ela quis dinheiro, não a puderam pagar, estavam de bolso vazio” (TREVISAN, 1985, p. 79). Tal posicionamento situa a vítima de modo reduzido no plano narrativo, emudecida, a corroborar com a figura do [...] soldadinho quando investido de autoridade, usa e abusa do poder, achando-se no direito de prender e bater, reprimir e oprimir. Sujeito a essas condições hostis, impostas historicamente, parte substancial das classes e camadas dominadas, incorporou em seu imaginário o sentimento de impotência ante os desatinos dos donos do poder. (SEGATTO, 2000, p.204). De certa maneira, a indiferença burocratiza e torna igual vítima e criminoso – a personagem estuprada é negra e “provocante”, o que justifica moralmente o crime iniciado por soldados: “Os soldados disseram algumas gracinhas. Um deles a convidou para ir a um quarto, ela respondeu que no campinho era melhor” (TREVISAN, 1985, p.79). Não estaria ai uma forma de sustentação da inércia burocratizante da justiça em um estado que não visa propriamente à modernização, mas a administração continua dos pequenos delitos de forma a preencher tais expectativas punitivas do imaginário moral? É dessa maneira que o Estado, segundo Florestan Fernandes, posiciona-se como órgão regulamentador dos fantasmas de um discurso incapaz de elaborar o passado, mas de encadear novas formas de sua perpetuação: [...] o Estado não é, para as classes dominantes e como o controle do poder político, um mero comitê dos interesses privados da burguesia. Ele se torna uma terrível arma de opressão e de repressão, que deve servir a interesses particularistas (internos e externos simultaneamente), segundo uma complexa estratégia de preservação e


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ampliação de privilégios econômicos, socioculturais e políticos de origem remota (colonial ou neocolonial). (FERNANDES, 2008, p. 37). O narrador de Dalton Trevisan expõe as personagens e suas vozes de modo condicionado, como se a escrita da autoridade fosse naturalmente superior por saber organizar o que é substancial em cada depoimento. As vozes que depõem parecem se encerrar no momento que “Ritinha submeteu-se de livre e espontânea vontade ao desejo dos outros [...]” (TREVISAN, 1985, p. 80). A assertiva que conclui os depoimentos justifica o crime como um dado socialmente implantado no imaginário moral. Apesar do aparelhamento modernizador que está por trás do aparato de investigação – o que supõe existência de um apuramento legal e democrático do desvio – as relações estão cristalizadas no conservadorismo que trata a verdade como objeto de manipulação e isso parece percorrer todo o enunciado narrativo. O narrador se duplica entre o oral e o escrito para demonstrar a dificuldade do relato frente a constituição histórica brasileira: a autoridade como liderança afetiva, de integração social como rede familiar e que se propõe ao papel de acolhimento e proteção, acaba por ser agente do crime e locutor do apagamento constante do passado. O que prova mostra: A estrutura de poder que tem prevalecido no Brasil durante todo século XX pressupõe a negação dos direitos da maioria da população para que o sistema de exploração possa ser reproduzido sem acidentes maiores: a transição política é um episódio soft que não afeta esse sistema hard de exploração. (PINHEIRO, 1991, p. 52). A narrativa, porém, tem como fechamento não exatamente seu início – atrás da Ponte Preta – mas, como sugere o título Embaixo da Ponte Preta. Tal expressão se impõe como forma conclusiva da narrativa: o subsolo pelo qual escorre a história dos excluídos, a norma do estado de exceção: Ritinha estava chorando debaixo da Ponte Preta. Não sabia quem lha havia feito mal, um dos soldados lhe enfiou a Túnica na cabeça [...] Deflorada havia um mês por um soldado loiro chamado Euzébio”. (TREVISAN, 1985, p.80). O que faz da precariedade constitutiva da personagem (“A patroa deu-lhe um sapato velho e vendeu-lhe dois vestidos, que descontou do ordenado”) a exposição de uma fragilidade convidativa, oportunidade para que a voz do excluído seja abafada no processo de modernização, como no conto que não se ouve a voz da personagem, mas somente seus “gritos”:


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O guarda mal-encarado bradou: Tem de conhecer homem senão te mato. Primeiro foi o Durval, depois o Alfredo, em seguida o Pereira, agora minha vez, oba!Ritinha começou a gritar e quis correr, foi agarrada pela perna. (TREVISAN, 1985, p. 81). Voz abafada que segue uma lógica de preservação das relações sociais dirigidas por um Estado que sempre: […] agiu prontamente para impedir, seja pela repressão pura e simples seja por outras formas,como a manipulação e a cooptação ou ainda por meio da criação de instrumentos jurídico-políticos de controle e exclusão. (SEGATTO, 2000, p. 202). Situação que na narrativa redunda na seguinte construção cênica: “[...] largada bastante ferida no seio e nas partes, até que o guarda-civil a encontrou, queixosa de frio e de dor” (TREVISAN, 1985, p.81). A narrativa parece retornar ao ponto de origem na medida em que as figuras de autoridade se posicionam em pólos distintos: enquanto agentes do crime e, ao mesmo tempo, protetores. Tal construção narrativa demonstra uma espécie de metonímia do papel do Estado na sociedade brasileira: o convívio de uma fachada modernizadora de afirmação que se confirma ao preservar os instrumentos de repressão, como se quisesse a conciliação de uma herança que incute traços de conduta pautados nas relações de servidão como lógica social: “Em vez de transições temos uma extraordinária continuidade: podemos ter mudanças no quadro político institucional sem que a cultura política, por exemplo, seja afetada” (PINHEIRO, 1991, p. 47). Dessa forma, percebe-se um narrador que constrói negativamente as personagens, de modo a afirmar a dificuldade que se torna imperativa tanto à mudança quanto ao narrar. Tais procedimentos narrativos partem da impossibilidade para a construção de uma ambigüidade que se forma justamente pela falta de elaboração de seus traumas: Se a transmissão histórica falha, ela acontece por meio sintomáticos: a repetição do ato negado, a incorporação do fantasma, a interdição do estabelecimento de uma identidade autônoma. (LANDA, 1998, p. 69). De certa forma, a narrativa demonstra o trauma que regulariza o procedimento narrativo, pois não há uma construção possível da interioridade das personagens, o que expõe um sujeito que não consegue se constituir. O que faz a narrativa voltar a seu estado inicial de indiferença que atesta o processo histórico de modernização que não torna possível a voz do


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excluído: “O guarda-civil Leocádio, ao passar debaixo da Ponte Preta, viu uma negrinha chorando” (TREVISAN, 1985, p. 81). A voz do excluído tem sua trajetória realizada em espaços reduzidos, exposta como uma fresta, porém intensa nos diminuídos espaços narrativos. A narrativa parece seguir um conceito que parece estar densamente impregnado na construção histórica brasileira: A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores [...] todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo, como de praxe. Esses despojos são chamados de bens culturais. (BENJAMIN, 1996, p. 225). Tal identificação recolhida historicamente faz com o que o narrador traga como matéria para sua narrativa o recalque de traumas não elaborados enquanto construção de uma memória. O apagamento dos rastros, o solo que encobre a voz do excluído pelo qual passa o “cortejo triunfante dos bens culturais”, faz da fantasmagoria uma constante enquanto pesadelo, lapsos e reaparições de temas obsessivos, o que cria, conforme a narrativa propõe, espaço para o trânsito dos discursos imobilizados na sua própria inscrição social: os papéis estão dispostos e obedecem rigidamente ao que Sérgio Buarque de Holanda define como: “[...] ‘ os movimentos aparentemente reformadores, no Brasil, (que) partiram quase sempre de cima para baixo” (apud SEGATTO, 2000, p.207). João do Rio sai às ruas para reconhecer não uma forma social, mas para a punição daqueles que reconhecem a diferença como norma social. Nesse sentido, a rua não seria um espaço público, mas espaço para a encenação de uma modernidade que torna o público projeção individual de um cenário pequeno burguês de encenação de uma forma cultural de transposição integral da internacionalização. Já Dalton mostra que a saída da rua é o acolhimento da autoridade: de certa forma, a extensão do público é a reclusão institucionalizada na proibição de um corpo sem espaço habitável. Daí que a cadeia ou o isolamento – moral e social - é extensão da rua, no sentido de ser um outro pólo de exploração e exclusão, porém regularizada formalmente e aceita como norma e conseqüência de uma modernização que instaura a violência (em forma de fantasmagoria) como fundamento de sua renovação – da senzala para a cela. A fantasmagoria se dá pela integração social pela exclusão: o acolhimento é o recolhimento. O que cumpre a sentença benjaminiana de que “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade regra geral” (BENJAMIN, 1996, p.226).


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Percebe-se pela comparação entre as narrativas aqui destacadas a percepção de um discurso que vê na presença do excluído uma forma de modernização, que se confirma conservadora a partir da inicial busca do efeito do choque como forma de tratamento e o posterior anestesiamento do discurso pela burocratização da voz. O silêncio que toma a voz do oprimido mostra a rigidez cadavérica que estrutura historicamente uma sociedade que “[...] em nome do pregresso, considerado como uma norma histórica” (BENJAMIN, 1996, p.226), preserva relações de poder, porém rearticulados na contínua reforma de um eficiente sistema de exclusão. O espanto do narrador transfere-se da dissimulação estética para uma concreta burocratização da violência sobre o oprimido. O apagamento da história como forma de constante interdição ao discurso do Outro da História tem no ideário progressista sua resposta fundamental. Aquele que posiciona o passado a partir do silêncio do excluído busca paralisar o tempo presente para a passagem e cortejo dos mortos. Esta pode ser um indicativo presente na prática narrativa através da literatura: no lugar do eterno renovar da aparência, o salto revolucionário que desestabiliza as imagens do presente para sua refuncionalização redentora.

REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire – um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 2000. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996. FERNANDES. Florestan. Mudanças sociais no Brasil. São Paulo: Global, 2008. LANDA. Fabio. Crimes simbólicos, crimes paradigmáticos. IN: HARDMAN. Francisco Foot (org.) Morte e Progresso. Cultura brasileira como apagamento de rastros. São Paulo: Unesp, 1998. PINHEIRO. Paulo Sérgio. Autoritarismo e transição. Revista USP. São Paulo: USP, 1991. RIO. João do. A alma encantadora das ruas. Belo Horizonte: Crisálida, 2007. SEGATTO. José Antônio. Cidadania de ficção. In: SEGATTO. José Antonio e BAIDAN. Ude (org.). Sociedade e Literatura no Brasil. São Paulo: Unesp, 2000. TREVISAN. Dalton. O vampiro de Curitiba. Rio de Janeiro: Record, 1985.


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O QUARTO FECHADO E A MENTE DESNUDA: DESVENDANDO A NARRATIVA Cristiane Barbosa de Lira1 RESUMO: Este artigo discute o romance O quarto fechado de Lya Luft através da análise da voz narrativa. Nossas considerações sobre o trabalho de Luft são baseadas nas contribuições feitas por Norman Friedman em seu trabalho “O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico”. PALAVRAS-CHAVE: Lya Luft, voz narrativa, O quarto fechado O quarto fechado and the nude mind: unmasking the narrative ABSTRACT: This article discuss Lya Luft’s novel O quarto fechado (1984) through the narrative voice’s analyzes. Our considerations about Luft’s work are based on the contributions made by Norman Friedman’s article “O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito critic”. KEY WORDS: Lya Luft, narrative voice, O quarto fechado

Neste trabalho pretendemos explorar o papel da criação narrativa como estrutura do romance. De acordo com Norman Friedman, há diversos tipos de narrador, não somente os convencionais. Assim, é partindo dos apontamentos do teórico que tentaremos encontrar a fundação da voz narrativa dentro da obra em questão. Procuramos caminhos possíveis para mostrar que esta se trata de uma voz de onisciência seletiva múltipla, isto é, “o leitor ostensivamente escuta a ninguém: a estória vem diretamente das mentes dos personagens à medida que lá deixa suas marcas” (177). Para alcançarmos o nosso objetivo, procuraremos os fios que engendram a narrativa, apontando como um pensamento vai se costurando ao outro em uma teia cuja memória é a força motriz. Além disso, tentaremos analisar em que medida as personagens são fruto da construção do pensamento do outro, ainda que emitam opiniões a respeito de si mesmas durante o romance. Sendo, por fim, uma construção da mente do leitor, posto que com a não constância da presença da voz narrativa, é nosso papel ligar os pontos entre os fios de pensamentos que se destilam durante o enredo. Além disso, uma vez que temos uma constante oscilação entre a presença e a ausência do narrador, gostaríamos de explorar o quarto fechado como um espaço corporal, não somente 1

Aluna de mestrado no Departamento de Línguas Românicas da Universidade da Geórgia, Estados Unidos da América; clira@uga.edu.


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como aquele físico onde Ella se encontra. Uma vez que a história se constitui de “pensamentos, percepções e sentimentos à medida que eles ocorrem,” (177) desejamos mostrar que esse espaço pode ser a mente. Logo, todos os personagens estão em seus quartos fechados, seu universo particular e mental ao qual temos acesso pela via do romance. Tentaremos, ainda, estabelecer um diálogo, quando possível, com a obra de Franz Kafka, A metamorfose. Trazemos a personagem principal desta e a sua condição para dialogar com as personagens e as situações apresentadas em O quarto fechado, sobretudo porque consideramos que a figura grotesca de Ella (e também a de Gregor Samsa em A metamorfose) podem ser lidas como a materialização dos nossos porões mentais. Ambos são aquilo que os outros desejam esconder, uma mácula em um universo de aparências, algo que pode, de repente, ruir; como as propostas de Freud sobre o inconsciente e seu conteúdo que temos que reprimir. Como a nossa intenção é a busca e a captura da voz narrativa no engendramento do texto, iniciamos, pelo primeiro capítulo. O título deste é “A ilha.” A partir disso já começamos a fazer algumas importantes inferências sobre o percurso narrativo. Inicialmente, temos a ideia de isolamento, haja vista que segundo o Dicionário de símbolos, “[a] ilha [é o lugar] a que se chega apenas depois de uma navegação ou de um vôo, é o símbolo por excelência de um centro espiritual e, mais precisamente, do centro espiritual primordial” (501). Assim, logo na abertura do capítulo temos a ideia desta movimentação que se dá rumo à ilha, pois “[e]le dava os primeiros passos em sua Morte” (13) é a frase que abre o capítulo. À medida que avançamos com a leitura, que é iniciada por esta voz em terceira pessoa, vamos descobrindo que este novelo narrativo não vem de uma voz distanciada em sua onisciência, pelo contrário, o fio monológico é quebrado com a pergunta, “[o] que está fazendo conosco?” (13). Aqui, temos a inserção da voz narrativa, revelando que o que fora construído anteriormente é fruto das construções mentais da voz que faz a pergunta. Além disso, é possível dizermos que a maneira como começa resgata o pensamento da personagem Renata, isto é, reitera a nossa observação do uso da onisciência seletiva múltipla. Ao mesmo tempo, porém, logo depois de fazer a sua pergunta, temos, “[m]as calavam-se, procurando ignorar um ao outro” (13). Aqui, embora pareça uma construção interna aos fatos, vemos que ainda não há o distanciamento. Parece-nos que este comentário poderia ter sido feito tanto por Martim quanto por Renata. Na sequência, fala-se sobre a mulher muito cansada que toca um “teclado de vento” e depois a respeito do homem que é um bruto e gostaria de esmurrar aquela que “reinava na


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casa” (14). Com base nisso, vemos, a partir de toda a leitura do romance, que estes juízos que são exprimidos pelo narrador são, também, reinforçados na narrativa através dos pensamentos de Renata e Martim (e das outras personagens), do resgate que nós, leitores, temos destes. Daí dizer, portanto, que ainda que pareça uma voz em separado, nada mais é que a recuperação dos ecos dos pensamentos das próprias personagens a respeito dos outros e também a respeito de si mesmas. Não se trata de um juízo externo, como em alguns momentos a narrativa parece deslizar para isso. O que ocorre dentro do quarto fechado, em nosso trabalho entendido, sobretudo, como o espaço mental, só é acessível ao leitor através da penetração na mente das personagens e no conhecimento das suas vivências, não nos é trazido, portanto, por uma voz impessoal. Quando muito, se não diretamente através da voz das personagens, esta figura narrativa que oscila entre a presença e a ausência surge somente para catalizar os ecos mentais, reunir os fragmentos, e devolvê-los em forma de ponte, conectando os pensamentos de uma personagem a outra personagem. Seguindo com a nossa análise, logo após a abertura em que temos acesso ao pensamento de Renata, temos a transição entre o pensamento dela e o de Martim. Para que isso ocorra, temos acesso aos seus questionamentos, depois o olhar de quem observa a cena, como já mencionamos, mas que pode partir, também, de Renata para Martim ou de Martim para Renata e, na sequência, adentramos a mente de Martim. Em um primeiro momento, através do externo, uma maneira de compreender isso seria entendermos como o próprio olhar de Renata capturando-o de relance, “o pai, ao lado dele, esticou as pernas procurando uma posição melhor” (14). Daí em diante, uma nova pergunta, “[q]uem era sua adversária?,” questão esta que pode, de fato, ser emitida por uma voz externalizada, mas que também pode ser da própria personagem em relação a si mesma. Vemos, já desde o princípio da narrativa, que o trabalho de construção desta se faz através desta ambiguidade, mas sempre visando a nossa entrada nos pensamentos, desejos e pulsões das personagens. Como podemos ver, ainda nesta primeira parte, o pensamento volta para Renata e há uma série de questionamentos sendo construídos. Contudo, entre eles, permanece a sensação de falência, primeiro por nunca ter conseguido cessar o distanciamento que existe entre ela e Martim, segundo porque desconhece o que fez com o próprio filho. Logo, há representações da sua falência no papel de esposa, mas também no papel de mãe. No libelo de seu pensamento, questões são levantadas, fragmentos são trazidos à tona, a atmosfera que se criara ali, o velório de Camilo, permite as incursões mentais às personagens.


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Martim também está explorando seus porões mentais, “nunca amei assim outra mulher” (16). Parece-nos que existe uma espécie de diálogo entre as personagens, ainda que seja um diálogo silencioso, feito, justamente, do silêncio no plano do real. As cobranças, frustrações e também a falência amorosa, a sensação de impotência e de desamor, ficam, assim, reservadas à exploração do leitor. Este é que avança na narrativa, tal qual a chegada à ilha, posto que esta “é um mundo em miniatura, uma imagem do cosmo completa e perfeita,” (Chevalier e Gheerbrant 501) ou seja, adentramos a mente das personagens, através da sua própria abertura na exibição de seus pensamentos. Somos nós os responsáveis, ao lado deste narrador oscilante entre a presença e a ausência, por tecermos os fios que conectam a trama e vão desembocar, do micro para o macro, na visão ampla desta família aprisionada em seu quarto fechado. A questão da presença narrativa, também na análise da obra de Lya Luft pode ser considerada dado interessante, haja vista que segundo apontamentos de Donizete Batista em “Espaço e identidade em Lya Luft,” os romances de Luft anteriores a O quarto fechado são todos narrados em primeira pessoa. Portanto, sendo este o primeiro em que “utiliza um narrador em terceira pessoa, mas mesmo assim, ainda promove, com extrema crueldade, uma devassa na intimidade dos personagens desse romance” (9). No entanto, se considerarmos a fundação da nossa análise, vemos que este não pode ser redutivamente considerado um narrador de terceira pessoa, trata-se, no nosso ponto de vista, como já observamos, de um voz narrativa de onisciência seletiva múltipla. Assim, se pensarmos na constituição da obra de Luft, sempre de acordo com os apontamentos de Batista, vemos que não há uma verdadeira mudança de foco narrativo. Existe, porém, quando muito, um formato mais informal de adquirir os pensamentos das personagens sem a ciência destas se prostrarem per se em análise. Retomando Friedman, “[a] aparência dos personagens, o que eles fazem e dizem, o cenário – todos os materiais da estória, portanto – podem ser transmitidos ao leitor unicamente através da mente de alguém presente” (177). Debruçando-nos novamente em O quarto fechado, o viés de como aquela sala está dividida, das pessoas que entram e saem do velório, a névoa que insiste em invadir a casa, tudo que ali está sendo posto vem da mente das próprias personagens, ora desnuda e declarada, normalmente através do uso explícito de perguntas, ora de maneira ambígua, como já pontuamos anteriormente. Além disso, uma vez que a mente é o espaço privilegiado ao qual temos acesso, o quarto fechado que entramos, observamos a importância do uso da metáfora do quarto.


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Batista, valendo-se dos apontamentos de Vanessa Kukul, informa que “tanto no âmbito do território privado como no existencial, ‘o quarto é um dos espaços mais introspectivos que existem,’” (63) daí a importância deste lugar para apontamento da reserva física de onde armazenamos aquilo que nós é mais próprio e pessoal, a mente. Para iluminarmos a questão do espaço, é possível trazermos as considerações de Lins na obra Lima Barreto e o espaço romanesco, centrando-nos, porém, nos apontamentos dos capítulos IV, V e VI a saber, “Espaço romanesco: conceito e possibilidades,” “Espaço romanesco e ambientação” e, finalmente, “Espaço romanesco e suas funções.” Iniciamos com a dicotomia apontada por Nelly Novaes Coelho citada por Lins. Conforme Coelho, o ambiente natural equivale à paisagem, natureza livre, já o ambiente social relaciona-se à natureza modificada pelo homem como, por exemplo, a construção de uma casa, castelo, prédio, tenda. Entretanto, Lins amplia a questão do ambiente social aplicando a este, também, os efeitos de ordem social, econômica e até mesmo histórica. Dessa maneira, é através da oposição entre o ambiente natural, que pode, em O quarto fechado, ser representado pela fazenda, uma vez que é o espaço onde o animal, o sentido primevo dos homens é realçado, com o ambiente social, que aqui pode ser representado pela casa de Mamãe, ampliando-se, porém, a sua atmosfera à mente, que vamos ter acesso ao reverso da medalha das personagens. Do ponto de vista físico, ambos os espaços são marcados pela morte. No primeiro, temos a morte de Camilo que se locomove do ambiente da casa para, possivelmente, suicidar-se no ambiente natural. Dessa maneira, se ampliarmos este movimento para uma leitura alegórica, é possível dizer que este se liberta das amarras do quarto, do inconsciente e permite que tudo o que estava dentro venha à tona. Este processo ocorre, sobretudo, através dos humores humanos que ele libera na hora da morte: [c]avalgando o demônio, o cheiro do próprio sêmen misturado ao de suor e emanações brutais, ele urrara de prazer e medo, ódio e vitória. Expelira fezes e urina, e despencara enfim naquele abraço onde seria unicamente Camilo: dissolvido, liberado, a um tempo barco, passageiro e profundezas”. (Luft, 97). Aqui, as secreções que emanam do corpo de Camilo simulam a libertação ao simulacro sexual no qual este estava atado à condição dúbia de talvez amar a própria irmã, ao passo que também deseja sê-la ou se realiza através do ato sexual que esta protagonizou com aquele que Camilo amava. Desta forma, o espaço natural propicia o desvelo das paixões, a


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natureza humana que pode aflorar dos porões interiores, lembremos, ainda, os encontros furtivos entre Martim e Ella, um deles, aliás, que, antes da chegada de Martim, resultou na “queda fatal” de Ella, condenando-a àquela vida vegetativa. Em contra partida, mas em certa medida complementar, haja vista que a casa está maculada pela presença bestial de Ella em seu quarto fechado, temos o espaço da casa. Este, considerado ambiente social, é o lugar onde as aparências precisam ser mantidas. Entretanto, esta condição não o impede, também, de ser cenário para a morte. Na casa ocorre a morte (assassinato?) daquele que é nomeado na obra como anjo Rafael, “Clara já saía novamente do quarto quando ouviu um baque surdo, mais outro e outro, alguma coisa rolando nos degraus. Uma pancada final, um gemido fraquinho, como um miado” (Luft 91). Interessante é observarmos que as memórias do anjo Rafael são durante a narrativa, recuperadas, sobretudo, pela mente de Renata na tentativa de reconstruir o percurso frustrado do ato materno. As outras personagens, na sua recuperação de seus mundos interiores, não se estendem muito à condição do anjo. Notamos, ainda, que uma vez que ele é recuperado como anjo, vê-se também a condenação da casa, posto que este ambiente é aquele onde ocorrera a morte de um enviado divino, alegoria discreta da falência divina no manejar destas vidas também. Continuando com a questão da construção narrativa, vemos que através do processo da onisciência seletiva múltipla, nós temos acesso à história através da construção mental de todas as personagens. No romance de Luft, como já apontamos, inicialmente, adentramos a mente de Renata, depois incursinamos pela mente de Martim, ao passo que retornamos à mente de Renata e através das construções que esta estabelece, conectamo-nos com a mente do morto, “Camilo estava apaixonado [ . . . ] ‘é meu para sempre agora’ [ . . . ] Toda a beleza, a ternura, o amor iam-se misturando numa nuvem, imprecisa noção de felicidade possível” (22). Essa confissão é possível, através do relato único da mãe. Sem a reconstrução de toda a atividade que envolve Camilo, não seria possível adentrarmos este universo, não fosse a utilização do recurso do discurso fixo entre aspas, recuperando as memórias da própria personagem, ainda que os verbos que introduzam estes discursos em via direta não sejam enfáticos, como “imagina,” “pensava,” “sabia,” revelando que embora diálogos, são monólogos mentais. Além das personagens supracitadas, ainda temos, através do mesmo recurso, acesso à mente de outras personagens. Na segunda parte do capítulo “A ilha,” adentramos o universo de Carolina, “[e]ra uma moça? Um rapaz?”. Ainda que a sequência impersonalize o discurso, “[o] sexo não se definia na pessoa deitada na cama,” (28) dando elevações de alguém que


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observa a pessoa deitada na cama, compreendemos ser completamente possível que estas observações sejam construções feitas dos ecos emitidos pelos juízos das outras personagens, haja vista que o que está sendo dito não é algo que entre em dissonância com o que fora pregrado até o momento a respeito de Carolina. Além disso, uma vez que a atmosfera é construída, o acesso aos pensamentos da personagem se torna evidente. Alguns exemplos disso são os momentos em que a construção narrativa declara “me deram uma injeção” ou, até mesmo, quando a personagem fala com esta ausência, “_Não vá embora, Camilo” (29), fazendo uma ligação entre o seu processo mental e o de outra personagem. Entre os meandros que conectam os pensamentos das personagens umas as outras nesta densa atmosfera, há momentos em que a voz coletiva, ou um sentimento que perpassa a todos, é capturado. Algumas ilustrações possíveis deste ponto são recuperadas pelo soar da campainha, nomeada como “instrumento de tortura” de Mamãe. Além desta, temos aquela em que Mamãe e Carolina estão na escada e a voz ambígua do narrador, seriam os pensamentos de Renata ou de Martim?, atesta “[u]ma velha gorda e bizarra, uma adolescente magra, de ar doente. Nos calcanhares delas o bafo da repugnante goela que acossava atrás e aguardava no fim do caminho. ‘Todos iremos para lá um dia.’ Todos” (63). Logo, vemos que o temor da morte e também certa atração por este desconhecido incompreensível é assimilado através do processo de recuperação de que todos os seres presentes passarão pelo mesmo processo, tratase de algo que os irmana em certa medida, uma vez que para a morte não existe nenhum tipo de remédio, é um mal irreparável. Ainda com relação à voz narrativa, ainda temos que discutir o momento em que a mente de Mamãe e Clara são as mentes expostas em evidência na narração. Embora Mamãe seja recuperada durante muitos momentos da tessitura narrativa, observamos que esta é composta das construções dos outros, sobretudo os sentimentos de admiração por parte de Martim e os de repulsa/adoração por parte de Renata. Durante boa parte da narrativa, tudo o que temos dessa personagem nos é trazido pelas mentes de ambos, daí dizer que Mamãe é, portanto, uma construção. O acesso à mente dela é retardado na narrativa e só vamos penetrar este espaço, uma vez que Mamãe é como uma entidade que circunda aquele espaço e é recuperada pelas outras personagens, por volta da terceira parte. O acesso a este processo já começa com um antítese grotesca, “[b]ela merda,” (98) em forma de discurso direto que é dirigido em forma monológica, uma vez que Mamãe fala consigo mesma. A partir daí o capítulo irá recuperar o


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itinerário do amor entre Ella e Martim, o qual já fora fornecido previamente pela mente de Martim, mas aqui assume uma nova perspectiva, isto é, o olhar de Mamãe. Além disso, a imagem um tanto quanto mítica e ambígua que é construída dela por Renata e Martim da sua devoção e amor incondicional por todos, “Mamãe é de uma grandeza comovente” (52) ou “Mamãe sempre queria compreender e perdoar” (72), mostra as ruínas da sua fundação. Assim, acaba por pender totalmente para a ridicularização e a aproximação com o universo caricatural e grotesco, haja vista que o adentramento do leitor ao seu universo é, justamente, quando esta começa a se desnudar. Assim, este pode ser lido de maneira alegórica também. Uma vez que Mamãe é capturada como esta mulher capaz de se desdobrar e fazer tudo pelos outros, é ao “tirar a pintura com algodão passado e creme. Já [de cílios desgrudados que vemos] os olhos nus [que] eram tristes entre dobras de pele murcha” (98) que as suas verdades íntimas começam a aflorar. Portanto, uma vez que ela está já quase sem qualquer retoque superficial, “Mamãe gemeu; deixara um resto de pintura no rosto, a cara de um velho palhaço infeliz” emerge à superfície mental aquilo que ela tentara repelir e que, uma vez desprovida da sua artificialidade, não é possível esconder, “[s]e ao menos Ella tivesse ido em lugar de Camilo, pensou sem remorso” (99). Por conseguinte, acessamos seus pensamentos secretos, penetramos seu porão mental e vemos a verdadeira face de Mamãe: o palhaço infeliz que precisa entreter em um processo de punição infinita, aquele ser que se transformara em animal, a filha que nunca amara. Além de Mamãe, ainda temos o percurso narrativo de onisciência seletiva múltipla, capturando os pensamentos de Clara. É através deste que temos acesso, também, ao indizível, àquilo que os convivas desta não conhecem, isto é, sua breve e ambígua relação com o Padre. Inicialmente, a visão que temos de Clara é aquela que chega até nós através das outras personagens. Renata, por exemplo, ao trazer a construção familiar até nós, afirma sobre Clara, “a irmã mais moça: bonita, solteira, cabelo branco em torno do rosto liso, um pouco fraca dos nervos por algum desgosto de amor na juventude” (47). Além disso, ainda pelo pensamento de Renata, temos a cena em que esta chega à casa de Mamãe logo depois de ter sido comunicada sobre a morte de Camilo e sua visão de Clara a recrimina, “Clara esperando na porta da casa, aparentemente calma, o rosto de boneca maquilado. ‘Ela nunca se descompõe’” (66). Assim, partindo desta teia construída pelas outras personagens, vamos capturando uma vaga ideia a respeito dela e do seu papel na narrativa. Entretanto, é somente ao termos acesso à sua voz que vamos descobrir os meandros da sua vida, adentrando o seu quarto fechado.


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A mente de Clara se desnuda pouco a pouco para nós ao final da segunda parte, iniciando pelo processo em que esta escreve no “vidro embaciado: Clara. Por baixo, um grande P elaborado” (75). Aqui, ainda como alguém que observa a cena em sua externalidade, a voz narrativa prepara o adentramento à mente de Clara. Sua iniciação dá-se no rasgo do discurso direto em forma monológica que se reproduz durante toda a obra, “‘Ele vai voltar’, repetia. ‘Vai voltar’” (77). A partir daqui temos a permissão para ver os fatos a partir do ponto de vista de Clara, da sua memória dolorida dos fatos. Clara reconstrói o amor que sentira pelo Padre, a entrega de ambos e, finalmente, sua decepção ao saber que aquele que era objeto de seu amor, não a desejava para possuir, senão para ver: “Ele precisava ver, só isso, ver” (84). Aqui, partindo do percurso narrativo, é possível fazermos uma leitura freudiana a respeito da função escópica. De acordo com Freud em Os instintos e as suas vicissitudes, o objeto [Objekt] de um instinto é a coisa em relação à qual ou através da qual o instinto é capaz de atingir sua finalidade. É o que há de mais variável num instinto e, originalmente, não está ligado a ele, só lhe sendo destinado por ser peculiarmente adequado a tornar possível a satisfação. (143). Logo, quando o padre pede somente para ver aquele que é símbolo do nascimento universal, o sexo de Clara, haja vista que o Padre diz que “seria quase uma visão, uma visão mística,” (Luft 84) temos a ideia exposta por Freud reforçada. Somente o olhar implica a satisfação. Ainda de acordo com os apontamentos do teórico, o olhar adquire a função de gozo, uma vez que é a realização da pulsão escopofílica, por ser posto no lugar de outro objeto. Logo, no caso específico que estamos examinando, é possível dizer que a visão do sexo de Clara, teria, para o Padre, a mesma pulsão sexual que possui-lo ou a mesma natureza sexual. Uma vez que apresentamos o percurso narrativo de quase todas as personagens, restanos, ainda, debruçarmo-nos na personagem que oscila, mesmo no universo narrativo, entre o escopo de ser personagem ou somente uma menção, quase uma memória coletiva. Se Ella não é assim, na nossa opinião, é simplesmente pelo fato de poder tocar a campainha e, tal qual despertar as personagens de seus universos particulares, despertar, também, a nós leitores. Essa personagem, tanto quanto as outras, é construída, inicialmente, pelo processo mental dos presentes naquele ato cênico, “inaugural” de Camilo. Como vemos com a narrativa, a primeira aparição de Ella no romance, dá-se através do adentramento de um pensamento coletivo, “_O que será de Carolina?” ao que a voz narrativa nos informa, “Todos indagavam-se, sussurravam na sala, diziam baixo na cozinha,


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no jardim. ‘O que será de Carolina?’ A pergunta pairava no ar, arfava.” Assim, trata-se de algo que era possível a Renata pensar, mas também a Martim, como também a Mamãe ou como a Clara. Daí, por consequência, a ideia de totalidade reproduzida pela utilização do pronome indefinido, “Todos”. Interessa-nos, porém, que a partir desta indagação e da utilização do verbo “arfava,” que está relacionado intimamente a ideia de “respiração forçada” (Aurélio), tenhamos, “[t]alvez a moradora do quarto no fim do corredor, no andar de cima, percebesse que algo mudara na casa e no mundo; porque sua campainha tocara várias vezes naquela noite” (Luft 23). Logo, embora possamos entender a pergunta como algo que pulsa em todos os presentes, também é possível pensarmos como sendo o próprio questionamento de Ella. Ela, a personagem, assume a sua voz através do uso daquela campainha, participando da exposição dos porões daquelas personagens, sendo ela, porém, a própria personificação do porão, uma vez que é um ser que os outros repelem e fica aprisionada ao seu universo dentro daquele quarto fechado. Para além desta nossa leitura da presença de Ella no romance, temos as considerações de Maria Osana Costa em A mulher, o lúdico e o grotesco em Lya Luft. Segundo a autora, “Ella, a personagem de ‘nome ambíguo, profético,’ revela-se como ‘o quarto fechado da gestação, da transformação: o quarto onde jazia o cadáver é finalmente uma matriz de onde surge um novo ser [ . . . ] O quarto fechado é o lugar da escritura feminina, onde o desejo reprimido vai sendo transformado em linguagem. ‘O quarto já não é um cubículo, mas um receptáculo da feminidade’”. (101-102). Se tomarmos isso como uma maneira de olhar, temos o grotesco como síntese desta presença, ou seja, Ella personifica todos os desejos reprimidos, os sentimentos ocultos, dentre eles, em processo de extensão, o próprio ato da prática da escritura por parte de Luft. Logo, o ato de escrever assume uma característica catártica e de transmutação, uma vez que é através dele que é possível transformar a matéria estranha em algo reconhecível. Partindo deste ponto, aliás, sobre a questão do estranho e tomando as observações de Freud em seu artigo, “O estranho” é que vemos as relações possíveis entre Kafka e Luft, sobretudo, pela presença de Ella e Gregor Samsa. De acordo com Freud, “o tema do ‘estranho’ [ . . . ] relaciona-se indubitavelmente com o que é assustador – com o que provoca medo e horror.” Analisando o caso de ambas as personagens, elas passam do universo familiar ao universo do estranho. Segundo Freud, embora ele vá desenvolver as suas ideias em contraponto, mas antes de fazê-lo, estabelece, “o estranho é aquela categoria do assustador


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que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar.” Assim, temos Gregor Samsa era um filho exemplar e muito trabalhador, porém, “numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes [ . . . ] deu por si na cama transformado num gigantesco inseto” (Kafka). Logo, ocorreu um trânsito, ele deixa de ser o filho exemplar e adorado, aquele que traz o pão para casa, para se tornar algo abominável, completamente estranho e que causa horror e repulsa. Chegando, somente, a ser tolerado, “pelo dever familiar que impunha que esquecessem o desgosto e tudo suportassem com paciência” (Kafka). Processo semelhante ocorre com Ella em O quarto fechado, “‘[s]erá que ela sabe que sempre atendo porque tenho medo? Nunca me queixo, não reclamo: medo’” (Luft 101). Essas personagens não são reconhecidas pelos laços do passado ou pelo que têm de semelhantes àqueles que a circundam, senão pelo medo e pelo terror que impõem aos presentes, isto é, são o “estranho” proposto por Freud personificado. Aliás, julgamos importante o fato de que uma vez que são o “estranho,” ainda que no caso de Gregor Samsa ele tenha sido metamorfoseado em um inseto, no caso de Ella, esta também seja descrita como um inseto: “Martim tremeu ao zumbido do inseto gigante cujas instalações permeavam a casa toda” (45). À primeira vista, a ideia que temos da construção narrativa é o desejo de criar a repulsa, trazer o grotesco como forma de afastamento. Entretanto, a escolha do inseto parece ser bastante significativa, haja vista que de acordo com o Dicionário de Símbolos, os “insetos voadores são considerados frequentamente como as almas dos mortos que visitam a terra” (507). Ainda que não exista referência ao fato de ser voador ou não, no caso de O quarto fechado, temos a ideia de gigantesco, isto é, remete-nos à impossibilidade do voo. No caso da Metamorfose de Kafka, sabemos que é um inseto que rasteja, daí, talvez, se ampliarmos a leitura do dicionário, termos a noção de que talvez, por estarem “pregados” à terra, são seres apegados a aspectos materiais. No caso de Ella, o sexo, e o fato do desejo pelo “quase irmão” é que a leva ao seu estado vegetativo. Já no caso de Gregor Samsa, existe a questão da avareza em certa medida, pois ele não para de trabalhar e, de repente, contra a sua vontade, seu corpo se metamorfoseia, fazendo com que ele tenha que parar. Buscando ainda relações entre essas duas personagens, Gregor Samsa e Ella, podemos falar a respeito da aparição pública de ambas quase ao final das obras. No caso de Gregor Samsa, vemos que a irmã dele estava tocando música e a família tinha visita, mas, atraído pelo som, ele decide sair do seu quarto fechado, “fora-se o tempo em que se orgulhava de ser discreto” (Kafka). Este processo de saída do quarto pode ser compreendido em várias esferas, haja vista, por exemplo, a exposição deste porão social que a família desejava esconder. Para


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os parentes de Gregor, ele era um bicho e deveria ser mantido fora do convívio social. Porém, tal e qual as aparições do inconsciente humano, ele decide sair e transitar pelo universo proibido, humanizando-se, inclusive, neste processo, “poderia ser realmente um animal, quando a música tinha sobre si tal efeito?” (Kafka). Seu surgimento, porém, desperta o horror daquela que ele pensava ser a sua única aliada, sua irmã. Ao final, resta-lhe a morte e o retorno daquele círculo fechado, à família, ao seu universo de aparências que por ser tão tênue, pode ruir a qualquer momento, resultando no total apagamento das evidências, “[h]oje à noite vamos despedi-la,” (Kafka) mas reconhecido da impossibilidade de interromper o fluxo do inconsciente, resultando somente no processo das tentativas, até que este volte, novamente, à tona. No caso específico de O quarto fechado, este processo ocorre com a risada bestial ao final do romance. Dentro daquela atmosfera extremamente pesada e compenetrada pela grande anfitriã da noite, A Morte, o grotesco se rompe e invade o espaço, “Ella estava rindo: sacudia o corpanzil de tanto rir, premia as pálpebras, virava a cabeça freneticamente no travesseiro.” Ella, através da sua risada deixa de ser apenas uma presença recuperada pela mente das outras personagens e se torna voz. Esta é recuperada pela narrativa como sendo “o coração doente da casa [que] explodia” (Luft 110). Com isso, é como se todos as personagens se irmanassem naquele rompimento, naquela explosão e ainda que não seja como no caso de Gregor, isto é, através da morte, todas as repressões são trazidas ao espaço externo e todas as pulsões escondidas e reprimidas são banidas de seus secretos espaços e os “novelos de poeira e teias longamente tecidas agitaram-se” (110). Rompe-se, assim, qualquer possibilidade de retorno à frágil e falsa estabilidade que se impusera até aqui, mostrando a sua verdadeira face. Para concluirmos, vemos que todas as histórias que exploramos em nosso trabalho revelam que no terreno destinado à mente nem sempre existe a possibilidade de mantermos o quarto fechado. Nas edificações onde são construídas estas possibilidades sempre existe a fragilidade de que aquilo que vem sendo escondido e enterrado nos nossos cemitérios mentais retorne, de repente, à vida.

REFERÊNCIAS BATISTA, Donizete A. Espaço e identidade em Lya Luft: Exílio. Tese de mestrado apresentada à UFPR (2007): 57-69.


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CHEVALIER, Jean, Gheerbrant, Alain. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007. COSTA, Maria Osana de Medeiros. A mulher, o lúdico e o grotesco em Lya Luft.” São Paulo: Annablume, 1996. FREUD, S. “Os instintos e suas vicissitudes.” Obras completas. 1915. _______. “O estranho.” Obras completas. 1919. FRIEDMAN, Norman. “O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico.” Revista USP, nº53, março/abril de 2002. KAFKA, Franz. A metamorfose. Companhia das Letras: São Paulo, 1997. LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976. 63-110. LUFT, Lya. O quarto fechado. Rio de Janeiro: Record, 1984.


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A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NOS MANUAIS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS Jeferson Carlos Cordeiro de Brito1 Resumo: Durante muito tempo a variação lingüística esteve ausente na proposta pedagógica de ensino de língua materna. Entretanto, com a democratização do ensino surgiu a necessidade de que esse fenômeno lingüístico fosse tema de discussões no meio educacional. Dessa forma, o Manual Didático de Português (MDP), como instrumento auxiliar a prática docente, é orientado a tratar da língua em seu uso efetivo. Neste sentido, o presente trabalho possui como objetivo principal a realização de uma análise descritiva, para observar a abordagem que o MDP confere à variação lingüística. Verificou-se que os manuais apresentam significativo avanço quando garantem espaço a essa inovadora temática e primam pelo reconhecimento e respeito às diferentes formas de fala e escrita distintas da considerada como padrão. Palavras-chave: Variação Lingüística. Ensino de língua materna. Manual Didático de Português. . THE LINGUISTIC VARIATION IN PORTUGUESE’S DIDACTIC MANUALS Abstract: During many years, linguistic variation was absent in the educational proposal of teaching mother tongue. However, with expansion of teaching arised the necessity that this linguistic phenomenon was theme of discussion of teaching and learning. So the manual teaching methodology of Portuguese, like auxiliary instrument of teaching, is direct to use the mother tongue actually. And then, this essay has a main goal to realize a descriptive analysis, observing how way the manual didactic of Portuguese check the linguistic variation. We verify that manuals present an important advance when give a space to new thematic, it is free of prejudice about language, it respects all of differences about speaking and writing. Keywords: Linguistic variation. Tongue mother. Manual ditactic of Portuguese

INTRODUÇÃO As conquistas alcançadas pelos membros das sociedades permitiram que a educação escolar passasse a ser um direito de todos. Anteriormente, somente os cidadãos pertencentes às classes mais privilegiadas, financeiramente, desfrutavam de tal serviço. O processo de democratização do ensino acabou por gerar um confronto entre o repertório linguístico dos que já frequentavam as escolas e o apresentado pelos novos membros. Dessa forma, o ensino de língua materna primava pela validação da norma culta em detrimento das variedades

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Especialista em Língua, Linguística e Literatura pela FIP — Faculdades Integradas de Patos, na Paraíba; email: jefersoncarlos23@bol.com.br.


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trazidas pela nova clientela, tentando imprimir nesta a variedade padrão como enfatiza Bagno (2007, p. 30). Por outro lado, os avanços das pesquisas em estudos da linguagem permitiram que a variação linguística não ficasse mais à margem do ensino de língua materna. Essa perspectiva passou a integrar as propostas pedagógicas do ensino de língua, na tentativa de validar o pensamento de que, no ensino-aprendizagem de diferentes maneiras de fala e escrita, o que se deve buscar não é a introdução, quase que mecânica, de regras e mais regras gramaticais. Pelo contrário, parece mais justo permitir que os educandos, levando em consideração as características e condições do contexto de produção, possam escolher a forma de fala ou escrita que considerarem mais adequada. Dessa maneira, configura-se como imprescindível a realização de uma análise em torno do material mais utilizado no processo de ensino de língua materna: os MDP’s1. Esse material consolidou-se como um dos principais instrumentos auxiliares dos educadores no desenvolvimento de sua prática. Dessa forma, observar e descrever como os manuais abordam o fenômeno da variação linguística consiste no principal objetivo dessa investigação. Para tanto, considera-se de suma importância a Teoria da Variação, segundo a qual as línguas são frutos das relações estabelecidas entre seus usuários através da linguagem, seja em sua modalidade oral ou escrita. Sobre essa perspectiva Labov apud Hora (2004, p. 9) esclarece que “A Teoria da Variação enfatiza a variabilidade e concebe a língua como instrumento de comunicação usado por falantes da comunidade, num sistema de associações comumente aceito entre formas arbitrárias e seus significados”. Nesse sentido, é relevante reconhecer a manifestação do fenômeno da variação linguística na Língua Portuguesa, mais precisamente no português brasileiro. As diferenças nas falas dos brasileiros podem ser constatadas sob a ótica de alguns fatores como idade, classe social, nível de escolarização ou localização geográfica. Tais peculiaridades não permitem a consolidação dessa língua como uniforme ou homogênea. O que corrobora com o pensamento de Possenti (2002, p. 23) ao enfatizar que todas as línguas variam. Na verdade o ensino de língua portuguesa ainda considera como prioritário o estudo de regras gramaticais. Não menos importante é o fato de que os estudos linguísticos já têm espaço no ensino de língua materna. Tal postura deve-se ao fato de o próprio estado brasileiro

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Leia-se Manuais Didáticos de Português.


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elucidar o papel primordial da escola no combate ao preconceito linguístico. Dessa feita o que busca é o respeito às variedades linguísticas.

VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

Por ser uma das características inerentes aos seres humanos, a linguagem configura-se desde muito tempo, mais precisamente com os gregos, como dado relevante às reflexões em torno das línguas. Essas são consideradas instrumentos indispensáveis às relações estabelecidas entre os participantes das mais diversas sociedades. A ciência linguística surge com o objetivo principal de descrever as línguas, livre de qualquer forma de preconceito, visto que, como as demais ciências, procura não desenvolver especulações em torno do seu objeto de estudo, mas descrevê-lo. Nesse caso, visa tão somente, uma análise descritiva acerca das línguas e não como essas poderiam vir a ser. Reconhecer que uma língua apresenta variedades é validar seu caráter heterogêneo motivado não só por fatores internos à língua, mas também pelos externos que correspondem a fatores sociais através dos quais o reconhecimento das variedades linguísticas torna-se menos complicado. Esses fatores procuram estabelecer parâmetros segundo os quais a língua varia conforme a posição geográfica, status socioeconômico, grau de escolarização, idade, sexo ou profissão, característica de cada falante. Portanto não existem variedades melhores ou piores do que outras, pois todas se equivalem. Em toda comunidade de fala são freqüentes as formas lingüísticas em variação. Como referimos anteriormente, a essas formas em variação dá-se o nome de “variantes”. Variantes lingüísticas, são, portanto, diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo contexto, e com o mesmo valor de verdade (Tarallo, 1997, p. 8).

É bem verdade que, ao lado da ideia de língua heterogênea ainda persistem os defensores da instituição de uma língua homogênea, da qual todos devem ser escravos. O problema não está no fato da existência ou não de um padrão na língua, mas como as pessoas lidam com esse universo paralelo estabelecido entre língua culta e variação. O que se percebe é a validação de atitudes discriminatórias, conforme as quais quem não segue a norma-culta da língua é posto à margem da sociedade gerando, assim, o que se convencionou em se chamar de preconceito linguístico, fato reconhecido pelo estado brasileiro.


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A Língua Portuguesa, no Brasil, possui muitas variedades dialetais. Identificam-se geográfica e socialmente as pessoas pela forma como falam. Mas há muitos preconceitos decorrentes do valor social relativo que é atribuído aos diferentes modos de falar: é muito comum considerar as variedades lingüísticas de menos prestigio como inferiores ou erradas (Brasil, 1998, p.27).

Cabe destacar também o preconceito provocado pelas diferenças nos falares de cada região, à medida que um estado federativo quer se sobressair ao outro, linguisticamente falando. Fato que acaba transformando a variação linguística em um fenômeno gerador de disputas sobre quem melhor fala português. Essa realidade vem se modificando, à medida que inovadoras posturas pedagógicas defendem o reconhecimento e estudo em torno das variedades presentes no português brasileiro. Contudo, essas teorias ainda penetram de forma tímida carecendo, também, de pesquisas analíticas sobre como as novas metodologias fundamentadas na sociolinguística estão sendo desenvolvidas.

A sociolingüística acentuou ainda mais a inadequação das gramáticas normativas tradicionais, que sempre tratam da língua como se ela fosse uma coisa só, um bloco compacto e uniforme, imóvel e imutável. [...] Esses livros não exemplificam as variedades de língua portuguesa com que estão trabalhando, e tentam impor suas explicações e suas regras para todos as muitas e muitas variedades da língua (Bagno, 2001, p. 43).

Comprovada a ineficiência de um modelo educacional de ensino de Língua Portuguesa que priorizava a exposição de regras gramaticais, passou-se a buscar novas formas na constituição dos conteúdos programáticos a serem trabalhados nessa disciplina em escolas de ensino fundamental e médio. Na verdade, durante décadas perdurou a ideia de que, para dominar uma língua, seria necessário aprender regras gramaticais quase que de maneira técnica. Contrária a essa perspectiva, surge à ideia, segundo Possenti (2002, p. 54) de que o usuário de uma língua deve compreender que, conhecer uma língua e conhecer sua gramática são fatores distintos. A partir desse momento, o que se recomenda é que o ensino de Língua Portuguesa gire em torno do texto, com o objetivo de desenvolver competências linguísticas, textuais e comunicativas nos educandos, para que os mesmos convivam de forma mais inclusiva no


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mundo letrado. Não só para aceitá-lo, mas também para questioná-lo e mudá-lo estando conscientes das variedades linguísticas presentes em sua língua materna.

Estuda-se o texto, como unidade maior, acompanhado de seu contexto extralingüístico (locutores, situação, local, tempo, intenções, crenças, valores e outros aspectos) e de itens antes não observados (critérios de textualidade, tipologia textual, novas regras gramaticais e outros). Assim, ler é compreender (dar um sentido, entre vários possíveis) e escrever é possibilitar ao leitor, através de pistas lingüísticas, a atribuição de sentido (Bezerra, 2001, p. 31).

É preciso que as escolas adotem uma postura de validação dos hábitos linguísticos trazidos pelos educandos, priorizando um estudo reflexivo em torno das variedades constituídas por fatores aqui já expostos. Com isso, o educando compreenderá que a sua maneira de falar ou escrever é apenas diferente das outras e não inferior, podendo, a partir daí, estar aberto à conscientização de que existe uma norma padrão da língua, tanto na sua forma escrita quanto oral, a qual deve ser utilizada em determinadas situações comunicativas que exigem o uso desta variante.

Ver considerado na escola seu modo próprio de falar, ser sensibilizado para a aceitação da variedade lingüística que flui do outro, saber escolher a variedade adequada a cada situação – estes são os ideais da formação da lingüística do cidadão numa sociedade democrática. [...] A escola é o primeiro contacto do cidadão com o Estado, e seria bom que ele não se assemelhasse a um “bicho estranho”, a um lugar onde se cuida de coisas fora da realidade cotidiana. Com o tempo o aluno entenderá que para cada situação se requer uma variedade lingüística, e será assim iniciado no padrão culto, caso já não o tenha trazido de casa (Castilho, 2000, p. 21).

Nesse sentido, acredita-se que não há melhor material didático para que os estudos linguísticos possam ser introduzidos em sala de aula do que os MDP´s que ao longo dos anos vêm se consolidando como instrumento fundamental no processo de ensino-aprendizagem. Entretanto, o que se observou durante algum tempo foi uma reclamação dos educadores em torno do fato de que os textos, da maioria dos MDP’s, ainda configuravam-se distantes da realidade dos educandos, como coloca Caporalini (2003, p. 99) ao afirmar que “os textos apresentam apenas uma face da realidade, a qual é pouco representativa para a maioria dos alunos”. Assim, as propostas apresentadas nos MDP’s podem ser questionadas evitando o enfado ou desmotivação por parte dos educadores, bem como dos educandos.


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O que se constatava em Manuais Didáticos de Português (MDP’s), até pouco tempo, era uma priorização do ensino de regras gramaticais totalmente descontextualizadas, em detrimento da criação de condições para que os educandos compreendessem a língua em seu uso efetivo. Essa realidade tem mudado à medida que o ensino de língua portuguesa passou a ter como base a leitura e a escrita, visto que textos e regras gramaticais passaram a ser estudadas de maneira contextualizada, facilitando assim, a aprendizagem dos educandos. Dessa forma, o que se percebe é a presença de vários tipos de textos, bem como de gêneros textuais com a finalidade de aproximar os educandos dessas variações e, a partir daí, saber utilizá-las nas diversas situações comunicativas.

Assim, percebemos a preocupação dos autores de livros didáticos em favorecer ao aluno o contato com um número diversificado de textos que circulam na sociedade, o que é positivo. [...] Com a preocupação de aproximar o estudo da língua de seus usos, pelo menos em relação ao texto os LDP sugerem textos interessantes para leitura (Bezerra, 2005, p. 42).

Para muitos, mesmo introduzindo os estudos linguísticos, os MDP´s ainda deixam a desejar quanto ao trato com as variações linguísticas. Ao analisar algumas atividades sugeridas em MDP´s Marcuschi (2001) coloca que algumas das atividades ainda propagam preconceitos, pois prestigiam a norma-padrão e estigmatizam as variedades. Outro ponto de vista crítico é o de alguns estudiosos que aplaudem a boa vontade dos autores dos MDP´s em tratar da variação linguística, mas continuam considerando que as abordagens ainda deixam a desejar.

A gente percebe, em muitas obras, uma vontade sincera dos autores de combater o preconceito lingüístico e de valorizar a multiplicidade lingüística do português brasileiro. Mas a falta de uma base teórica consistente e, sobretudo, a confusão no emprego dos termos e dos conceitos prejudicam muito o trabalho que se faz nessas obras em torno dos fenômenos de variação e mudança (Bagno, 2007, p. 119).

O fato é que é através, principalmente, dos MDP´s que os educandos entram em contato com os diversos conteúdos referentes ao ensino de língua materna. Dessa forma, torna-se relevante que esse material garanta espaço às novas posturas pedagógicas pautadas no uso efetivo da língua. Ao garantir espaço a essa temática os autores dão um passo enorme, pois demonstram estarem em sintonia com os novos pensamentos norteadores do ensino de língua materna. Como alguns autores abordam a variação linguística em seus MDP’s é


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questão a ser verificada, na tentativa de enriquecer os trabalhos em torno dessa temática e auxiliar a todos que se interessam pela mesma.

A VARIAÇÃO LINGUÍSTICA NOS MDP’s

Ainda se caracteriza como tímida a abordagem desse tema em Manuais Didáticos de Português. Dessa maneira, o corpus dessa investigação delimitou-se aos manuais que, de alguma forma, apresentam dentre os seus conteúdos a temática da variação linguística, bem como circulam com grande prestígio no meio educacional. Tendo como pressuposto, o fato de os manuais analisados tratarem da variação linguística torna-se imprescindível a apresentação dos MDP’s que servirão de objeto de análise a essa investigação, já que eles constituem o corpus da análise de dados, sendo: duas edições do ‘Português: Linguagens’ de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães, sendo uma referente ao ano de 2003 e outra ao ano de 2005. Antes de partir para a análise dos referidos manuais, considerou-se primordial o esclarecimento em torno de como essa investigação foi direcionada. Nesse sentido, vale ressaltar que, ao se observar a maneira como esses manuais abordam o fenômeno da variação lingüística no português brasileiro, valeu-se de alguns questionamentos que serviram como base a essa investigação. Tais indagações partem do fato de em que amplitude esse fenômeno é abordado pelo manual analisado, quais conceitos são atribuídos à norma-padrão, culta e variedade lingüística, até que ponto há coerência na proposta apresentada nos capítulos dedicados à variação linguística e o trabalho desenvolvido no que concerne à gramática, como também com que intuito a temática em questão é apresentada. O manual didático ‘Português: Linguagens’ dos professores William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães aborda a temática da variedade linguística, e a desenvolve em duas (2) edições correspondentes aos anos de 2003 e 2005. Dessa maneira, considerou-se interessante à realização de uma análise em torno das edições mencionadas, observando as semelhanças, diferenças, evoluções e, até mesmo, um possível retrocesso ocorrido nas abordagens desenvolvidas nessas edições. O manual de 2003 equivale a 1ª edição. Nela, a introdução da abordagem acerca do tema em questão se dá a partir de um título que corrobora inteiramente com o defendido pelas novas posturas pedagógicas pautadas nos estudos linguísticos. O título diz ‘Língua: uso e


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reflexão’, seguido por um subtítulo (Linguagem, comunicação e interação) que reafirma todo o pensamento e tem a linguagem como meio de interação entre os membros das sociedades. O que demonstra a importância dessa faculdade para os seres humanos. Nesse sentido há, de início, a apresentação dos tipos de linguagem, seguidas do que seria código, até a formação de um conceito para língua, então passam a tratar das variedades lingüísticas tentando elucidar alguns fatores geradores de tal variação, deixando claro que, dependendo da situação comunicativa a que o falante está exposto, pode fazer uso da variedade que considerar mais adequada, à medida que, enquanto falante competente, deve estar atento ao estabelecimento do uso efetivo da língua. Livre de qualquer forma de preconceito, já que a linguagem deve ser tida como instrumento de aproximação entre as pessoas e não como elemento de discriminação. Os autores fazem questão de demonstrar que cada grupo social acaba desenvolvendo uma forma específica de comunicação que consegue caracterizar os seus membros. É o caso, por exemplo, das gírias que se consolidam, cada vez mais, como uma das variedades encontradas na língua portuguesa brasileira. Ainda destacam que as gírias, diferentemente do que muitos acreditam, não fazem parte apenas do repertório lingüístico de falantes pertencentes às classes sociais menos favorecidas, mesmo porque quando relacionadas a profissões, essas maneiras de fala denominam-se jargões. Merece destaque, também, o trabalho desenvolvido em torno das variedades linguísticas na construção do texto, onde, através de atividades contextualizadas, pôde-se perceber o interesse acerca da discussão sobre o fenômeno da variação lingüística, de maneira a conscientizar os educandos a respeito do fato de que tal fenômeno se faz presente na língua materna. Nesse sentido esclarecem que, apesar do estabelecimento de um padrão exigido em situações formais de comunicação, as demais maneiras de fala não são melhores nem piores, mas, simplesmente, diferentes e merecem respeito, à medida que são construções, cujos arquitetos são falantes que o tempo todo acrescentam novas falas ao seu repertório linguístico. A 1ª edição do manual analisado consegue abordar a variedade lingüística de maneira esclarecedora, quando apresenta uma linguagem acessível expondo claramente as diferenças entre variedade padrão e não padrão. É de suma importância ressaltar que essa temática não é trabalhada apenas no capítulo destinado, mas também ao lado de outras temáticas que permite tal vinculação. Como, por exemplo, quando no Capítulo V ao trabalharem o gênero texto teatral os autores retomam a abordagem linguística indagando os leitores sobre qual


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variedade predomina no texto trabalhado. Dessa feita é perceptível o desejo dos autores em tentarem desmistificar, junto aos educandos, algumas obscuridades existentes em torno das variedades linguísticas. Na 2ª edição, do mesmo manual, constatou-se que, assim como na 1ª edição, a abordagem dispensada ao estudo em torno das variedades lingüísticas configura-se como objetivo claro, quando visa ao reconhecimento desse fenômeno na língua portuguesa brasileira. Dessa maneira, busca-se garantir que os educandos entrem em contato com uma realidade caracterizadora do repertório linguístico, inquestionavelmente, adotado pelos falantes brasileiros conforme a região geográfica, classe social, idade, sexo ou profissão em que cada indivíduo está inserido. Observou-se que a abordagem realizada pela edição de 2005 se assemelha à desenvolvida pela edição de 2003, visto que ambas trabalham com a variedade das gírias repetindo, inclusive, alguns exercícios. Porém, é preciso esclarecer que, no referente ao tratamento das variedades linguísticas relacionadas a textos, comprova-se a ocorrência de um aprofundamento, pois na 2ª edição esse trabalho se dá de maneira mais detalhada através de uma maior exploração, visto que os autores utilizam-se de vários textos como anúncios publicitários e, até mesmo, textos de cunho humorístico. Tal fato consolida as metodologias que primam por um ensino de língua materna marcado pela contextualização das atividades, aliadas às abordagens conscientes do caráter heterogêneo das línguas. Dentre as atividades, destacou-se uma em que, por meio de um anúncio publicitário, os autores conseguem explorar não só o gênero em trabalhado, mas colocam os educandos diante de questões que visam direcioná-los a refletirem sobre como, dependendo da situação comunicativa a que possam estar expostos, podem utilizar-se do repertório lingüístico que entenderem mais adequado. O texto a seguir compõe a 2º edição do manual analisado.

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Tomando como referência o texto acima exposto, os autores conseguem trabalhar as características desse gênero, aliadas a uma abordagem em torno da importância dos fatores linguísticos na construção textual. Nesse sentido, por meio da seguinte indagação: “Conclua: Qual a importância da variedade lingüística escolhida na construção do anúncio, tendo em vista a finalidade deste?” Cereja; Magalhães. (2005, p. 21). Acredita-se que o educando consegue perceber que a utilização de uma linguagem mais informal tem como finalidade uma maior aproximação entre o texto produzido, seja oral ou escrito, e o seu público alvo. No caso deste anúncio fica evidente a intenção do seu autor em, através de uma linguagem informal, caracterizadora do repertório linguístico utilizado por adolescentes, tornar o texto o mais acessível possível, já que o seu interesse maior é a comercialização do produto entre o público jovem. Observou-se, ainda, que ambas as edições, apesar do grande espaço dedicado às temáticas gramaticais, os autores conseguem inovar quando pontuam quando pontuam em outros capítulos, que não o específico, a variedade linguística. Tal fato comprova que o compromisso dos autores não é oportunista, mas sim consciente, à medida que tratam da questão com o devido cuidado colocando-a em pé de igualdade com o tão valorizado estudo gramatical. Dessa forma, entendeu-se que as edições do manual ‘Português: Linguagens’ conseguem explorar os aspectos constituintes da língua sob a perspectiva de uso efetivo. Para tanto, primam pela reflexão acerca da utilização da linguagem sob os mais diversos prismas, sem que tal temática sirva apenas como pretexto ao estudo de outras, à medida que buscam o estabelecimento de um ensino de língua materna democrático em que as variedades construídas pelos próprios falantes sejam reconhecidas e respeitadas, seja em sua forma oral ou escrita. Segundo Bagno (2007, p. 119) ao longo dos anos o manual didático de português vem se consolidando como instrumento indispensável ao ensino de língua materna, o que não torna esse material como o único detentor da verdade, visto que, enquanto meio auxiliador à prática docente pode, e deve estar aberto às inovações pedagógicas, bem como passível as adequações consideradas necessárias pelos educadores.


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Nessa perspectiva, constatou-se que os manuais didáticos mais do que conteúdos, apresentam métodos e propostas, as quais podem, ou não, ser seguidas pelos educadores, que precisam estar preparados para utilizar esse material de maneira a garantir que os maiores interessados, os educandos, tenham assegurado o direito ao conhecimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do reconhecimento do caráter heterogêneo da língua portuguesa brasileira, tornou-se imprescindível à inclusão dessa realidade linguística ao processo de ensino de língua materna. Então, começaram a surgir propostas pedagógicas que primam por um ensino de língua portuguesa consciente da existência das variedades linguísticas. Desde seu surgimento, o manual didático de português passou por transformações que contribuíram significativamente para sua evolução, enquanto instrumento auxiliar à prática docente. É através desse material que os educandos entram em contato com os diversos conteúdos referentes ao ensino de língua materna. Dessa forma, é preciso ressaltar a importância desse material se adequar às novas posturas pedagógicas pautadas na reflexão em torno do uso efetivo da língua. Apesar de muitos manuais ainda resistirem à idéia de tratar da variação lingüística, constatou-se que esse material didático tem conseguido desenvolver uma abordagem consciente em torno da referida temática. Nos manuais analisados, verificou-se que ambos abordam o tema de forma esclarecedora, visando garantir que os educandos realmente compreendam a temática proposta. Essa conclusão deve-se ao fato de ter-se tomado como referência, principalmente, a maneira como o conteúdo é disposto, junto às atividades propostas, os conceitos apresentados e, também, a relação estabelecida entre a temática da variedade lingüística e os conteúdos relativos ao estudo dos aspectos gramaticais. Dessa forma, verificou-se que os manuais analisados apresentam uma abordagem pautada na reflexão em torno da língua em seu uso efetivo. Percebeu-se, ainda, uma preocupação em tentar sanar qualquer nível de preconceito linguístico buscando, tão somente, a consolidação do respeito às variedades da língua. Nesse


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sentido, o educando é colocado a par da realidade da existência de um padrão da língua que é exigido em determinas ocasiões, mas, ao mesmo tempo, compreende que, conforme cada situação comunicativa a que estiver exposto, poderá fazer uso do repertório linguístico que julgar conveniente. Espera-se que os resultados obtidos nessa investigação venham esclarecer as dúvidas em torno de como os Manuais Didáticos de Português têm abordado o fenômeno da variação lingüística, na medida em que esse material possui grande relevância no meio educacional. Dessa maneira, desperta o interesse dos educadores comprometidos com o estabelecimento de um ensino de português caracterizado pela reflexão acerca do caráter heterogêneo da língua, enquanto meio de socialização e não de exclusão.

REFERÊNCIAS BAGNO, Marcos. Português ou Brasileiro? Um convite à pesquisa. 5ª ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2001. _____. Nada na língua é por acaso: por uma pedagogia da variação lingüística. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. BEZERRA, Maria Auxiliadora. DIONÌSIO, Ângela Paiva. O livro didático de Português: múltiplos olhares. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2005. BEZERRA, Maria Auxiliadora. Livros didáticos de Português e suas concepções de ensino e de leitura: Uma retrospectiva. In: Texto, escrita, interpretação: Ensino e pesquisa. João Pessoa: Idéia, 2001 BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto. Parâmetros Curriculares Nacionais – Língua Portuguesa. Brasília (DF). MEC, 1998. CAPORALINI, Maria Bernadete Santa Cecília. Na dinâmica interna da sala de aula: O livro didático. In: Repensando a didática. 20ª ed. São Paulo: Papirus, 2003. CASTILHO, Ataliba T. de. A língua falada no ensino de português. São Paulo: Contexto, 2000. CEREJA, William Roberto. MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: Linguagens. 1ª ed. São Paulo: Atual, 2003. _____. _____. 2ª ed. São Paulo: Atual, 2005. HORA, Dermival da. Teoria da Variação: Trajetória de uma proposta. In: HORA, Dermival da. Estudos Sociolingüísticos: perfil de uma comunidade. João Pessoa, 2004. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001. POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. 9ª ed. Campinas: Mercado das Letras, 2002. TARALLO, Fernando. A pesquisa Sociolingüística. 5ª ed. São Paulo: Ática, 1997.


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A DÍNÂMICA LEXICAL DA LINGUAGEM JORNALÍSTICOPOLÍTICA EM TEXTOS ESCRITOS EM LÍNGUA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA NA PRIMEIRA DÉCADA DO SÉCULO XXI Pedro Antonio Gomes de Melo 1

RESUMO: A dinâmica do léxico é resultado da criatividade linguística do falante e das necessidades de representação da realidade. Os neologismos são criados a partir da utilização dos processos de formação de palavras e o surgimento destas novas unidades léxicas na língua está vinculado às inovações do mundo exterior, uma vez que o léxico corresponde ao nível linguístico mais diretamente ligado à realidade extralinguística. Neste artigo, apresentamos uma reflexão sobre a formação lexical neológica observada em textos jornalístico-político escritos na imprensa periódica em língua portuguesa contemporânea na primeira década do século XXI. Esta investigação do léxico, objetiva descrever a neologia na mídia escrita e seus fatores internos e externos relacionados a essa formação vocabular. PALAVRAS-CHAVE: Léxico; Língua portuguesa; Linguística; neologismo. THE DYNAMICS OF LANGUAGE LEXICAL-JOURNALISTIC POLITICAL IN TEXT WRITTEN IN CONTEMPORARY PORTUGUESE LANGUAGE IN THE FIRST DECADE OF THE XXI CENTURY ABSTRACT: The dynamics of the lexicon of linguistic creativity is a result of the speaker and the needs of representing reality. The neologisms are created from the use of processes of word formation and the emergence of these new lexical units in language is tied to the innovations from the outside world, since the lexical level corresponds to the language more directly connected to extra-linguistic reality. This article presents a reflection on the lexical formation neological observed in journalistic and political texts written in the press in contemporary portuguese in the first decade of this century. This investigation of the lexicon, aims to describe the neology in print media and its internal and external factors related to the training vocabulary. KEYWORDS: Lexicon; Portuguese language; Linguistics; neologism.

Considerações preliminares Os neologismos são algo de necessário à sociedade contemporânea, participante de mudanças e ávida por novidades. Estas novas formações vocabulares são responsáveis pelo crescimento lexical da língua, dando ao sistema linguístico expansão, pois as línguas vivas, 1

Graduado em Letras: português / inglês pelo Centro Estudos Superiores de Maceió - CESMAC, especialista em língua portuguesa e mestre em linguística pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Atualmente, é professor assistente de língua portuguesa e linguística da Universidade Estadual de Alagoas - UNEAL e da Faculdade São Vicente de Pão de Açúcar - FASVIPA. E-mail: petrus2007@ibest.com.br.


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isto é, “que serve de instrumento diário de comunicação entre os indivíduos componente de uma nação” (SILVA, 2010, p. 15) não podem ficar na inércia, precisam crescer, precisam acompanhar as transformações políticas, econômicas e sociais pelas quais passa uma nação, para que possam servir de instrumento atualizado de comunicação. Neste artigo, faremos uma reflexão sobre a neologia, seguida de uma exposição dos processos responsáveis pela dinâmica léxica do português contemporâneo na formação e/ou criação de neologismos na linguagem jornalística escrita na primeira década deste século. Como forma de delimitarmos o campo de observação do fenômeno linguístico investigado, optamos pelo exame de textos jornalísticos escritos, pois a imprensa escrita periódica possui uma linguagem dinâmica, resultado da necessidade de sua constante atualização para informar seus leitores, como também para exprimir situações novas ou noticiar novas ideias e objetos criados, consequentemente, formando palavras novas. É oportuno ressaltarmos que a nossa opção pela investigação do léxico a partir da modalidade escrita, no presente artigo, não significa a falta de consciência do valor linguístico da modalidade falada para os estudos da linguagem, mas, para o propósito deste trabalho de cunho lexicológico e/ou lexicográfico, essa nos pareceu ser a escolha mais apropriada. Para Matoré (1972), essas duas disciplinas que estudam o léxico mantêm necessariamente uma forte relação de interdependência e complementaridade entre si. Apesar da relação de completude entre elas, Nunes (2006, p. 149) explica-nos que, a distinção fundamental entre “Lexicologia e Lexicografia está no fato de que a primeira, com o estudo do léxico, desenvolve um saber especulativo, enquanto que a segunda, com a produção de dicionários, caminha para o desenvolvimento de um saber prático”. O princípio adotado neste estudo como discernimento para reconhecermos uma palavra como nova no acervo lexical da Língua Portuguesa do Brasil, foi o critério do nãoregistro dessa unidade lexical nas seguintes obras: Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa (2009) e Vocabulário ortográfico da língua portuguesa (2009), que são, após o novo acordo ortográfico da língua portuguesa, os dicionários de palavras mais utilizados, no Brasil, do português contemporâneo. Admitimos o critério da não-dicionarização como caráter neológico de uma palavra, pois concordamos com Carvalho (1983, p. 48), quando afirma que “o dicionário é a fonte segura do estudo do léxico. A ele recorremos, quando hesitamos quanto à grafia e o significado de um termo”. Sendo assim, as palavras já registradas nos citados dicionários de


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palavras do português brasileiro não terão status de neologismos nas observações realizadas neste estudo. Finalizando esta apresentação, destacamos que a neologia consiste em um tema fundamental para descrição do léxico segundo uma ótica científica, contribuindo para um melhor entendimento desse sistema, visto que sua evolução lexical, embora constante, passa despercebida ao próprio usuário da língua geral. Na verdade, a língua é neológica por natureza, já que toda sociedade evolui, consequentemente também evolui o seu código linguístico, sendo incontestável que a língua se vale fundamentalmente de mecanismos lexicais, em lato sensu, para cumprir os propósitos comunicativos de seus usuários.

O léxico e a formação lexical da Língua Portuguesa em sua variante brasileira O léxico consiste no inventário aberto de palavras de que uma dada língua dispõe. De forma geral, podemos considerá-lo como sinônimo de vocabulário. Na verdade, o vocabulário é o léxico individual de um dado falante/ouvinte. Léxico e vocabulário se encontram em relação de inclusão, isto é, o vocabulário é sempre uma parte, de dimensões variáveis conforme a solicitação do momento, do léxico individual, que por sua vez, faz parte do léxico global. Conforme Katamba (1993, P. 99), “o léxico não é uma lista passiva de palavras e de seus significados, mas um lugar cheio de vitalidade em que as regras são usadas ativamente para criar novas palavras.” Trata-se de um repertório aberto, quer dizer, capaz de se enriquecer e se ampliar sempre. Filologicamente, estudos lexicais possibilitam não apenas conhecermos a língua em si mesma, mas também, questões extralinguísticas relacionadas às comunidades que a fala. Isquerdo & Krieger (2004, p.11) explicam-nos que “como repertório de palavras das línguas naturais traduz o pensamento das diferentes sociedades no decurso da história, razão por que estudar o léxico implica também resgatar a cultura”. Do ponto de vista sociolinguístico, Biderman (1981), concebe o léxico como o patrimônio social da comunidade por excelência, juntamente com outros símbolos da herança cultural. Partindo dessa abordagem, o léxico é transmitido de geração a geração como signos


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operacionais, por meio dos quais os indivíduos de cada geração podem pensar e explicar seus pensamentos e ideias. O sistema lexical de uma dada língua dispõe de diferentes regiões linguísticas, a saber: as gírias (linguagem comum a um mesmo grupo social); os jargões (vocabulário típico de uma dada especialidade profissional); os estrangeirismos (palavras estrangeiras incorporadas à língua); os arcaísmos (vocábulos e/ou expressões que caíram em desuso) e os neologismos (palavras recentemente formadas e/ou criadas). Segundo Carvalho (2009, p. 19), o léxico é “a menos sistemática das estruturas linguísticas, o léxico depende, em grande parte, da realidade exterior, não-linguística”, ele reflete a cultura da comunidade, a qual serve de meio de expressão, visto que, no momento em que se cria algo de novo ou surgem novos fatos sócio-político-culturais, há uma necessidade de nomeá-los, formando-se novas palavras; esses itens lexicais, por serem uma criação individual, podem ser aceitos ou não, ter vidas breves, caindo no esquecimento. A constituição do acervo lexical do Português é basicamente latina. A Língua Portuguesa representa o estado atual do sermo vulgaris passado por inúmeras transformações na Lusitânia; por isso não é de estranhar que a língua dos romanos constitua o substrato de nossa língua. O idioma dos romanos sobrevive nas atuais línguas românicas como antecedente imediato dessas línguas, sua dinâmica lexical se apresenta como um fenômeno linguístico de caráter universal, já que todas as línguas vivas estão em constante transformação e ampliação. Isso ocorre de maneira lenta e gradual que geralmente passa despercebida ao falante/leitor. (MELO, 2008) No entanto, não só do acervo latino se valeu a Língua Portuguesa, já que houve também a influência de outros idiomas de povos invasores (ou não-invasores), em seu acervo lexical. Podemos detectar a existência de elementos aloglóticos pré-romanos e pós-romanos, introduzidos na fase da formação da língua; elementos aloglóticos das modernas línguas europeias, latinas e não-latinas; elementos aloglóticos de línguas extra-europeias, resultado dos descobrimentos (CARVALHO, 2009). E ainda houve, na Língua Portuguesa, variante usada no Brasil, pelas condições de ocupação e colonização, uma grande influência dos substratos indígenas e dos falares africanos, justamente no campo lexical, pelas necessidades comunicativas surgidas. Portanto, também se enriqueceu a Língua Portuguesa do Brasil de uma gama considerável de palavras não registradas no Português falado em outros continentes.


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No que diz respeito a palavras não vernáculas, ou seja, os empréstimos e os estrangeirismos, podemos afirmar que são muito frequentes no mundo moderno, sobretudo os anglicismos, que se vêm propagando por todas as línguas, em virtude do papel hegemônico exercido pelos Estudos Unidos da América. Assim sendo, decorrentes de contato interlinguístico, não poderia ser diferente no sistema lexical do português brasileiro contemporâneo. De fato, o idioma inglês tornou-se a língua universal da ciência e da tecnologia, por conseguinte, representa uma fonte lexical muito fecunda na formação do léxico das línguas modernas. A frequência dos anglicismos, no acervo português do Brasil, demonstra a relação da língua com o mundo exterior; na medida em que há mudanças de ordem econômica entre as nações, essas modificações se refletem também no sistema linguístico, sobretudo em seu léxico. Assim, os estudos diacrônicos mostram que a incorporação de unidades léxicas neológicas representa o desenvolvimento do léxico dos idiomas. Essas transformações linguísticas são motivadas também por influências de fatores de natureza diversas: geográfica, sociocultural, histórica, entre outros. Esse desenvolvimento lexical se faz através dos processos de formação de palavras, portanto com os recursos linguísticos que a própria língua oferece. Essa ampliação e/ou renovação lexical pode ser condicionada por fatores externos e internos à língua. No que diz respeito aos primeiros, as evoluções sócio-econômico-culturais parece-nos ser um dos elementos extralinguísticos mais atuantes nesse processo de dinamização

lexical

junto

com

a

criatividade

comunicativa

dos

falantes.

Esse

desenvolvimento modifica o meio, faz com que o homem, envolvido no processo de evolução, crie e reformule certos termos e expressões linguísticas. Já em relação aos internos, parece-nos que os mecanismos derivacionais proporcionam aos usuários diversas possibilidades nas combinações para formação lexical. Tornando-se mais produtivos na função de criar neologismos. Em suma, a língua está sempre recebendo forças externas e internas em sentidos opostos, não-excludentes, mas complementares. As primeiras dão um cunho novo à expressão são as forças dinâmicas da linguagem. As segundas asseguram a sua conservação, são as forças conservadoras da linguagem, responsáveis pela impressão de que a língua em uso encontra-se estática. Todavia, temos conhecimento que só aparentemente a língua se


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apresenta inerte. Em outros termos, Freitas (2007) explica-nos que, toda língua é o produto de forças que sobre ela atuam: a centrífuga, que corresponde à força externa, e a centrípeta, que corresponde à força interna. Desse modo, A inovação lexical, ampliando e/ou renovando o léxico, torna-se verificável na medida em que signos linguísticos são criados e/ou formados ou sofrem modificações e/ou acréscimos em seus significados. Trata-se de um processo inerente à língua e não uma ameaça à sua continuidade. Na verdade, essa dinâmica é uma característica necessária a todas as línguas e poucos se dão conta dessa evolução, porque é feita de modo inconsciente e coletivo. No entanto, o aparecimento de novos termos e significados é fácil de ser constatado, sobretudo nos meios de comunicação escrita. Para corroborar o supradito, faz- se necessário citarmos Barbosa apud Isquerdo; Oliveira (1998, p. 34) quando afirma que É lícito definir a norma do universo léxico como o lugar de equilíbrio dinâmico, o lugar do conflito e o epicentro da tensão entre aquelas forças contrárias. Esse equilíbrio e essa tensão são observáveis com clareza, em qualquer etapa sicronicamente considerada de uma língua, por três aspectos: a conservação de grande parte do léxico, o surgimento de novas unidades lexicais, o desaparecimento de outras. Distinguem-se, entre as unidades que permanecem as que apresentam freqüência de atualização estável, crescente ou declinante.

Processos lexicais formadores de neologismos na linguagem jornalística escrita na primeira década do século XXI

Toda língua se constitui fundamentalmente por duas classes de palavras: as que refletem o universo extralinguístico, nomeando as coisas, as qualidades e os processos, cujo grupo constitui o léxico – um sistema aberto em constante ampliação, e as que funcionam apenas dentro do sistema linguístico, aquelas palavras de significação interna como os morfemas gramaticais, responsáveis pela organização e estrutura da língua. Os processos neológicos de formação lexical, registrados em textos jornalísticos escritos na mídia impressa, são os mecanismos pelos quais os novos itens


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lexicais do sistema aberto são formados e/ou criados na língua. Esses recursos linguísticos atuam em nível fonético-fonológico, morfossintático e semântico-lexical. No português contemporâneo, variante usada no Brasil, os processos mais produtivos na formação neológica são a Derivação e a Composição, que, apesar de completamente diferentes no procedimento de formar palavras, unem-se na função de formálas e, consequentemente, tornam-se os mais fecundos na ampliação e/ou renovação do acervo lexical do sistema linguístico em questão. A derivação consiste no mecanismo pelo qual as novas unidades lexicais são formadas a partir da anexação de afixos (prefixo e/ou sufixo) a uma base autônoma. Basilio (2007) explica-nos que os afixos apresentam funções sintático-semânticas definidas: essas funções delimitam os possíveis usos e significados das palavras a serem formadas pelos diferentes processos de derivação. Vale destacarmos que todo processo derivacional ocorre em torno de uma só palavra primitiva, de um só radical. A tradição gramatical considera afixos apenas as formas presas (não-autônomas). Todavia, registram-se ocorrências de palavras novas formadas a partir de unidades léxicas que não são reconhecidas como prefixos, mas palavras autônomas com categorias gramaticais definidas. Porém, podem ser detectadas na função prefixal, sendo assim inclusas na derivação, formando neologismos. Dentre esses itens lexicais as formas NÃO- e RECÉM-, tradicionalmente classificados como advérbios ou substantivos, anexam-se a bases autônomas, não com a função de adjunto, mas para formarem nas sentenças em que são registrados unidades lexicais novas. Na Língua Portuguesa do Brasil, geralmente, os morfemas prefixais não mudam a categoria gramatical da base a que se unem. Entretanto, é possível registrarmos em textos jornalísticos escritos na primeira década século XXI, os prefixos ANTI- e MACROunidos a uma base substantiva atribuindo-lhe função de adjetivo, ocorrendo o processo de recategorização. Portanto, podemos afirmar que em certos casos os prefixos mudam a classe da palavra a que se agregam na função de formar neologismos. Como também, os prefixos MACRO-, MICRO- e VICE-, no português brasileiro atual, podem ser usados como formas autônomas (formas livres). Na verdade, os referidos elementos prefixais se desprendem de suas bases para formar novas unidades lexicais substantivas a partir do processo de abreviação vocabular.


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Acreditamos que essas unidades estejam se gramaticalizando como prefixos, ampliando, assim, os recursos comunicativos da língua, sobretudo para expressar novos conceitos, surgidos a partir do desenvolvimento político, econômico e social. O processo de formação derivacional subdivide-se em prefixal, sufixal, parassintética e regressiva. Porém, na tradição gramatical, acrescenta-se como processo de formação derivacional a conversão, denominada pela nomenclatura gramatical brasileira como derivação imprópria. No entanto, a conversão é um processo com características próprias, pois não há anexação de afixos à nova palavra formada, nem há redução de elementos em sua formação mórfica, a nova palavra é formada pela recategorização, isto é, pela mudança de sua categoria gramatical. Portanto, não se trata de um processo derivacional; além do mais, no fenômeno da conversão ocorre um processo semântico e não morfológico que é a caracterização do processo derivacional. É o contexto em que está inserida a unidade lexical que nos permite observar o fenômeno da conversão (BASÍLIO, 2007). No processo de derivação prefixal, a nova palavra é obtida a partir da anexação de um prefixo a uma base. Já na derivação sufixal, a nova forma lexical é formada a partir da anexação de um sufixo a uma base. “Na Língua Portuguesa, os sufixos lexicais servem principalmente para acrescentar a um termo a ideia de grau e a de aspecto, ou para transformar uma palavra de uma classe para outra”. (CARVALHO, 1983, p. 79) Ao contrário do que ocorre com os prefixos que guardam certo sentido, de maneira mais ou menos clara, com relação ao sentido da palavra primitiva, os sufixos, geralmente vazios de significação, têm por finalidade formar paradigmas de palavras da mesma categoria gramatical. Na derivação regressiva, a nova unidade lexical é formada pela redução da palavra primitiva. Em outras termos, ocorre o fenômeno da derivação regressiva quando a criação e/ou formação do neologismo deve-se à supressão de um elemento considerado de caráter sufixal. Esse processo torna-se importante na formação de substantivos derivados de verbos que são chamados de deverbais e são sempre abstratos. Esse procedimento de formação de palavras se opõe às derivações prefixal e sufixal que são progressivas, pelo fato de haver redução de uma palavra já existente. Faz-se mediante supressão de elementos terminais (sufixos ou desinências). A derivação parassintética ocorre quando a palavra nova é obtida por acréscimo de afixos (prefixo e sufixo) ao mesmo tempo a uma base, de forma que a exclusão


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de um ou de outro morfema derivacional resulta numa formação lexical inaceitável na Língua Portuguesa. Nesses neologismos ambos os afixos são co-responsáveis pela nova acepção que se introduz. Logo, o que distingue a derivação parassintética dos outros processos derivacionais é o fato de o acréscimo dos afixos ser simultâneo. No caso de formação lexical por composição, o novo item lexical é formado a partir da junção de mais de uma base autônoma para obtenção de uma nova palavra. Enquanto, na derivação, o processo de formação envolve afixos, que são elementos fixos, na composição, ao contrário, o procedimento de formar palavras envolve a união de uma base à outra. Convém assinalarmos que na palavra composta, os elementos primitivos perdem a autonomia de significação em benefício de uma unidade semântica, isto é, um único conceito, novo, global. Essas composições lexicais desempenham função de palavras, tendo-se unidades sintáticas se cristalizando numa função morfológica ou lexical. O que caracteriza e define a função do processo de composição é a sua estrutura, de tal maneira que, das bases que se juntam e/ou aglutinam para formar uma palavra, cada uma tem seu papel definido pela estrutura. Essa é sintática, diferentemente do que ocorre nos casos de derivação. No processo de formação neológica composicional, podemos distinguir duas formas de composição: a justaposição e a aglutinação. Nos compostos formados de palavras ou radicais pertencentes a classes gramaticais diferentes, de estruturas sempre binárias, tem-se um elemento que é o principal, o núcleo, e um elemento que é o especificador, o adjunto. São, portanto, compostos determinativos ou subordinativos. Na formação dos compostos por justaposição, também denominada de composição perfeita, não há alteração gráfica nas bases que se unem para formar a nova palavra. Nas palavras justapostas, os termos associados conservam a sua individualidade. Já na formação dos compostos por aglutinação há perda gráfica nas bases (ou em uma das bases) que formam o novo vocábulo. Esse fica subordinado a uma única acentuação tônica, ordinariamente a do último vocábulo Além dos dois processos principais na formação neológica na função de formar palavras novas, derivação e composição. Há outros mecanismos linguísticos, embora menos gerais, usados pelo falante no procedimento de formar novas palavras, que também contribuem para o enriquecimento do acervo lexical da Língua Portuguesa, a saber: hibridismo, a abreviação vocabular, a acrossemia, a conversão, as formações onomatopaicas e o redobro.


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Esses procedimentos lexicais são normalmente pouco abordados nos compêndios gramaticais modernos, como também nas gramáticas tradicionais, que pecam pela sumaridade e pela insuficiência de análise. (cf. BUENO, 1968; ALMEIDA, 1985; MESQUITA, 1996; LIMA, 2000; CUNHA; CINTRA, 2008; BACHARA, 2009; entre outros). O hibridismo consiste no processo de formação lexical no qual a nova palavra é formada a partir de elementos de sistemas linguísticos diferentes. A abreviação vocabular é um caso particular da derivação regressiva, mas com características linguísticas próprias. Genericamente, o processo derivacional regressivo ocorre também através da mudança da categoria gramatical (recategorização), já no caso da abreviação, apesar de ocorrer redução do vocábulo, esse permanece na mesma classe de palavra da unidade lexical reduzida. Na derivação regressiva há redução específica: eliminase no vocábulo derivado o sufixo ou a desinência do derivante, no caso da abreviação, a redução não se pauta por critérios específicos e homogêneos, podendo a unidade lexical nova ser obtida a partir da redução ao prefixo ou corte de sílabas. A Acrossemia constitui um tipo especial de formação de vocábulos e de fecundidade lexical relevante na Língua Portuguesa hodierna, na qual a unidade lexical nova pode ser formada a partir da redução de uma expressão substantiva a seus elementos: letras, sílabas iniciais, mediais ou sinais. Trata-se, portanto, de um mecanismo fonomorfológico de criação lexical que nem sempre os fonemas são encadeados nos significantes desses signos linguísticos, todavia, segue o princípio de linearidade, nessa particularidade reside toda vitalidade do processo acrossêmico na língua e sua produtividade lexical. Alves (1990, p. 56) afirma que esse tipo de formação lexical “é resultado da lei de economia discursiva. O sintagma é reduzido de modo a torna-se mais simples e mais eficaz no processo de comunicação”, porém, somente exerce tal papel se essas formações forem identificadas pelo receptor. Essa identificação dependerá da competência linguística e, mais ainda, do conhecimento de mundo do mesmo. O processo de redobro se apresenta como um recurso de caráter morfológico, no qual o neologismo é obtido a partir da repetição ou reduplicação completa ou parcial da base que formará a nova palavra. Em outras palavras, consiste na criação de forma lexical pela repetição de outra preexistente, sem ou com alteração de sua estrutura fônica. É pertinente destacarmos que os elementos repetidos (letras, sílabas ou palavras) não apresentam interesse quanto à questão das relações sintáticas. Todavia, são


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relevantes quanto às relações semântico-fonéticas da língua. Por conseguinte, a característica essencial do redobro consiste em concatenar duas ou mais formas explorando o efeito semântico ou sonoro daí decorrente. Esse recurso linguístico era muito comum na morfologia do indo-europeu. As formações onomatopaicas são palavras que procuram imitar sons, voz ou ruídos de objetos ou animais, contudo não há uma idêntica reprodução do som ou ruído originário pelo vocábulo criado, mas apenas uma aproximação destes. Para Alves (1990, p. 12), “a criação onomatopaica está calcada em significantes inéditos. Entretanto, [...] não é totalmente arbitrária, já que ela se baseia numa relação, ainda que imprecisa, entre a unidade lexical criada e certos ruídos ou gritos”. Podemos considerar uma arbitrariedade relativa em oposição a uma arbitrariedade absoluta.

Considerações finais

Os aspectos abordados no presente artigo, envolvendo a formação neológica na linguagem jornalística escrita na primeira década do século XXI, permitem-nos tecer algumas considerações. Primeiramente, a neologia está presente na língua, em suas modalidades escrita e falada, contribuindo à ampliação e/ou renovação do léxico. Pode ser considerada como um fenômeno linguístico de caráter universal, uma vez que toda língua viva se expande, se transforma, evolui, sobretudo seu acervo lexical. Esses vocábulos novos atestam a criatividade comunicativa e a necessidade de novas unidades lexicais na função de nomear a realidade extralinguística do falante, ou seja, o aparecimento de novas realidades sócio-econômico-culturais geralmente, propicia e, às vezes, até obriga, a criação de neologismos em favor da economia discursiva. Todavia, para formarmos uma palavra nova, não basta apenas a criatividade: torna-se necessário, também, obedecermos a certas regras inerentes à língua para compormos os vários segmentos que formam a estrutura da nova unidade lexical. Caso contrário, seria impossível decodificá-la. No entanto, acreditamos que essas normas ou regras de formação de palavras não são conscientes no usuário no momento da formação lexical.


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Essa dinamicidade léxica está condicionada a fatores externos e internos à língua. Na verdade, uma língua está sempre recebendo força centrífuga e força centrípeta em sentidos opostos, não excludentes, mas complementares. A dinâmica lexical, no âmbito dos fatores externos, depende principalmente da evolução das necessidades comunicativas da sociedade que a usa, e esta evolução se encontra diretamente relacionada ao crescimento intelectual, social e econômico dessa mesma sociedade. Essas novas unidades lexicais se não desaparecerem, desneologizar-se-ão, ou seja, integrar-se-ão ao léxico geral da língua. A dicionarização pode representar a continuidade de seu uso, consequentemente, a sua integração no acervo lexical do português. A grande parte dos neologismos tem sua origem em formas linguísticas préexistentes ligadas a determinadas noções e utilizadas em novas formações lexicais, estabelecendo uma ligação com conhecimentos anteriores. Os vocábulos novos podem ser formados a partir de processos autóctones ou por adoção de um item lexical de outra comunidade linguística. A produtividade lexical do processo derivacional por prefixação, em muitos casos, decorre de um desejo de economia discursiva por parte do falante/emissor porquanto uma frase negativa, expressa por uma palavra formada por prefixação, torna-se mais econômica do que uma construção sintática negativa; da mesma forma são os casos do emprego de elementos prefixais seguidos de substantivos exercendo uma função adjetiva. Podemos interpretar esse procedimento lexical como um indício de que a formação lexical segue uma tendência natural da língua em favor da economia expressional. Já na formação lexical por composição, a justaposição imediata é bem mais produtiva do que a justaposição mediata; a estrutura justaposta por substantivo mais substantivo (subst. + subst.) pode ser considerada como o modelo de estrutura morfológica mais produtiva entre todas as estruturas compostas de caráter neológico. Na formação lexical por aglutinação, os neologismos são formados por truncação linguística de bases autônomas e não-autônomas que se aglutinam, ocorrendo perda gráfica em um ou mais elementos que constituem a nova palavra. A produtividade lexical dos processos de formação dos compostos tem na justaposição sua fonte mais produtiva na criação de neologismos. Acreditamos que essa fecundidade léxica pode ser interpretada como uma tendência linguística, na qual há um favorecimento à formação lexical em que não ocorra perda mórfica entre os constituintes da


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nova palavra, em favor de regras linguísticas conservadoras inerentes à língua, com a finalidade de assegurar a conservação desse sistema linguístico. Além da derivação e da composição, também, são registrados na formação neológica da língua portuguesa outros mecanismos lexicais menos gerais na formação e/ou criação de novos vocábulos. Embora menos importantes, também contribuem para a ampliação e/ou renovação do léxico português. A acrossemia é um desses processos de formação vocabular menos gerais e bastante frequente na formação de palavras novas na linguagem jornalística escrita. Essa produtividade lexical é previsível, uma vez que o citado mecanismo linguístico consiste em um processo moderno e generalizado na imprensa periódica. Podemos relacionar a grande fecundidade lexical da acrossemia ao dinamismo da linguagem jornalística que exige o máximo de informações com um número mínimo de palavras. Dessa forma, motivando o uso de formações acrossêmicas como as siglas e os acrônimos. Atualmente, as instituições são menos conhecidas por suas denominações completas do que pelas siglas e/ou pelos acrônimos correspondentes, em virtude da nãonecessidade do usuário da língua de reconhecer, em muitos casos, a forma plena subjacente à forma acrográfica. Essas formas lexicais, uma vez criadas e vulgarizadas, passam a ser reconhecidas como palavras primitivas, inclusive formando derivados. Além da acrossemia, podemos detectar a formação lexical por redobro, esse mecanismo apresenta uma produtividade regular na mídia escrita. Trata-se de um procedimento de formação neológica que se caracteriza pela exploração do efeito semânticovisual decorrente da repetição lexical, com a finalidade de acentuar o aspecto durativo do citado processo de formação neológica. Os neologismos formados por redobrom pode apresentar uma repetição parcial ou total. O surgimento dessas novas unidades a partir da repetição total (ou reduplicação) de bases é mais fecundo lexicalmente do que por meio da repetição parcial. O usuário da língua ao criar um neologismo tem, muitas vezes, plena consciência de que está inovando, neologismando, criando e/ou formando novas unidades lexicais, quer pelos processos autóctones, quer pelos processos não-autóctones. Essa sensação neológica é traduzida, nos textos jornalísticos, por processos visuais como as aspas, o tipo de letra, a presença do hífen, entre outros, que visam realçar o resultado da criatividade lexical na modalidade de língua escrita.


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Muitos dos neologismos cairão no esquecimento e não serão mais lembrados, enquanto outras formações lexicais, dentro de algum tempo, não mais serão percebidas como novas, devendo ser incorporadas ao léxico da Língua Portuguesa do Brasil. E, ainda, as renovações e/ou inovações da produtividade lexical do Português atual, variante usada no Brasil, devem ser entendidas apenas como uma amostra limitada do que esse tema pode proporcionar, se pesquisado mais amplamente. Essa limitação é, no entanto, imposta pela própria amplitude e largueza da temática do trabalho ora realizado. O surgimento de novas unidades lexicais na língua está vinculado às inovações do mundo, isto é, a comunidade evolui, consequentemente evolui também seu código linguístico, já que ao léxico corresponde o nível linguístico mais diretamente ligado à realidade extralinguística pelas necessidades surgidas.

REFERÊNCIAS

ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, Vocabulário ortográfico da língua portuguesa. 5. Ed. São Paulo : Global, 2009. ALVES, Ieda Maria. Neologismo : criação lexical. São Paulo : Ática, 1990. ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática metódica da língua portuguesa. 33. ed. São Paulo : Sairava, 1985. BASILIO, Margarida. Teoria lexical. 8. ed. São Paulo : Ática, 2007. BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37. ed. Rio de Janeiro : Nova Fronteira/ Lucerda, 2009. BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. A estrutura mental do léxico. In: Estudos de filosofia e linguística. São Paulo : T. A. Queiroz / Universidade de São Paulo, 1981, p. 131-45. BUENO, Francisco da. Gramática normativa da língua portuguesa. 7. ed. São Paulo : Saraiva, 1968. CARVALHO, Nelly. Empréstimos linguísticos na língua portuguesa. São Paulo : Cortez, 2009. _____.Linguagem jornalística: aspectos inovadores. Recife : Secretaria de Educação de Pernambuco - Associação de Imprensa de Pernambuco, 1983. CUNHA, Celso; CINTRA, Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 5. ed. Rio de Janeiro : LEXIKON, 2008.


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 235 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 4. ed. Curitiba : Positivo, 2009. FREITAS, Horácio Rolim de. Princípios de morfologia. 5. ed. ver. e ampl. Rio de Janeiro : Lucena, 2007. ISQUERDO, Aparecida Negri.; KRIEGER, Maria da Graça. (orgs). As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. v. II Campo Grande : EDUFMS, 2004. _____.; OLIVEIRA, Ana Maria P. Pires. As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. Campo Grande : EDUFMS, 1998. KATAMBA, Francis. Morphology. Houndmills : The Macmillan Press, 1993. LIMA, Rocha, Gramática normativa da língua portuguesa. 38. ed. Rio de Janeiro : J. Olympio, 2000. MATORÉ, G . La méthode en lexicologie. 2. ed. Paris : Didier, 1972. MELO, P. A. G. de. Relevância do estudo do latim e sua Derivação Portuguesa na Formação do estudante dos cursos de Letras Clássicas e Vernáculas. In: SILVA, Eliane Bezerra da; MELLO, Janaina Cardoso de (org). Literatura, História e Linguagens: Diálogos possíveis. João Pessoa: EDUFPB, 2008. pp. 29-37. MESQUITA, Roberto Melo. Gramática da língua portuguesa. 5. ed. São Paulo : Saraiva, 1996. NUNES, José Horta. IN: GUIMARÃES, Eduardo (org). A Palavra e a Frase. Campinas, SP, Pontes Editores: 2006. SILVA, José Pereira da. Gramática histórica da língua portuguesa. Rio de Janeiro : Edição do Autor, 2010.


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LITER’ARTES Poesia


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TRILOGIA DAS VERDADES Rogério Lobo Sáber Mestrando do curso de Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), SP. E-mail: rogeriosaber@gmail.com.


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DOXA E hoje, manhã ainda custando a ceder espaço para o dia, E olhos ainda preguiçosos, buscando o escuro ou quem sabe, um ponto, além do horizonte, estático, que não desse trabalho para ser observado… E foi hoje que, acordando com a intenção de mudar o mundo, sofri o que chamei de “momento mais revelador de minha vida”. Caminhava sem pressa, sentindo a doce e débil névoa da manhã. E sem pressa, e também sem nenhuma pretensão, olhei para pessoas. Mas não enxerguei através das pessoas. Das mesmas pessoas. Nada havia mudado. — E eu não queria mudar o mundo? De um dos lados da pequena rua da pequena cidade, Homens grandes que, talvez, tivessem espíritos grandes. Precisava mudar, embora ao mesmo tempo, sentisse que não devesse. Mudar, mudar… sempre assim?! Jornada sem fim?! Sofrimento infinito? Forma indefinida? Não. Os homens grandes de espíritos grandes não mudam o mundo. Não mudam. Porque apesar de eu estar sentindo uma inevitável necessidade, talvez não fosse necessidade o que eu estava sentindo. Não tinha cor, não tinha forma, não tinha nada que se fizesse mostrar à luz do mundo. Não mudam. Os homens grandes de espíritos grandes não mudam o mundo. — Mudam a si mesmos e almejam, com afinco, ser humanos.


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MINAS Acalmei-me em caráter temporário. Aceitei-me. Entendi-me: sou uma farsa. Hesitei, desde o início, estas palavras. Mal pude conseguir rimas esparsas. — Avistei o sangue vermelho e vibrante. E que se faz quando a fonte escurece? Caminho pela calçada? Converso com algum amigo? Percebo as flores na primavera? Sinto o frio que invade meu quarto-abrigo? Parece-me que a janela está aberta: o vento me acompanha nesta noite fria. Não sabia se dividia isto ao meio: pois pensava e me feria, pois pensava e me feria. — E escorre sangue vermelho vibrante. E o leitor vai se escorrendo E avista a incoerência Não encontra sentidos juntos: Saem apenas reticências… Escorre, leitor, que a noite é fria. Mova-se que a noite é triste. Não sou Munch: meu grito não me mantém acordado. Escorra, pois o sol está parado. — E no interior vermelho do sangue vibrante, algo persiste. Devo ter, mesmo, um comparsa. O vermelho vibrante coagula. Acalmei-me. Entendi-me: sou uma farsa. Hesitei, desde o início, estas palavras. Mal pude conseguir rimas esparsas. — E frise-se enquanto é tempo: não estamos preparados para dilúvio. Dilúvio-sangue. Dilúvio-vermelho. Não estamos preparados: já vivemos. — E frise-se enquanto é tempo. Quero, antes, conhecer todos os cantos Meus atalhos, encruzilhadas e esquinas. Andar pela chuva em um dia triste de setembro, Avistar meu sangue horrendo Escorrendo em doces minas.


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AS HORAS Penso nas horas, Mas as horas não pensam: passam. Passam, amassam, pisoteiam, quem, à sua frente, por ventura, ficar. Os olhos imóveis, o tato insensível, a pele gelada. Minha veia a pulsar. — E o relógio a passar. Penso nas horas Mas as horas não ficam: seguem. Seguem, caudalosas, rio selvagem. As mãos já tão frias, a mente vazia. A boca fechada, a veia parada. — Grande e eterna estiagem. ( — E o relógio a passar).


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Dossiê:

O MICROCONTO Luciene Lemos de Campos (org.)


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.

Ivana

Rauer

.

Marçal

Heloísa

Vilela

Candido

Woolf

Piglia

Mansfield

Tchékhov

http://alexmelodiniz.blogspot.com/

Marcelino

Poe


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A

singularidade, necessidade e importância deste Dossiê se justifica pela explosão do

microconto no Brasil da primeira década do século XXI, com centenas de autores divulgando suas micronarrativas na internet, razoável número de livros publicados e boa repercussão

na

imprensa,

porém

com

mínima

contrapartida no âmbito acadêmico, que não elaborou, ainda, sequer teoria específica sobre o microconto. Ao organizarmos o presente Dossiê, partimos de artigos acadêmicos, frutos de discussões fomentadas nas aulas ministradas pelo Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues em programas de mestrado da UFMS nos câmpus de Corumbá, Campo Grande e Três Lagoas. Para iniciar, apresentamos artigo do prof. Rauer, “Apontamentos sobre o microconto”, versão definitiva de comunicação apresentada no I Congresso Internacional do Programa de Pós-Graduação em Letras da UNESP de São José do Rio Preto, que aconteceu de 25 a 27 de outubro de


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2011 no Ibilce. Por meio de aforismos e metáforas, o trabalho descreve e conceitua o microconto. Em seguida, descrevendo o contexto cultural e histórico em que o microconto brasileiro de nossos dias se constitui, trazemos

trabalho conjunto de

Martinez

Ribeiro

e

Rauer

Rodrigues,

Fabrina “Introdução

historiográfica ao estudo do microconto brasileiro”. Parte deste artigo, com o título “A ascensão do microconto brasileiro”, foi apresentada no Seminário “Microcontos e outras microformas”, que aconteceu na Universidade do Minho, em Braga, Portugal, nos dias 6 e 7 de outubro de 2011. O Dossiê tem sequência com o estudo “Intensidade, brevidade e coalescência: das vertentes do conto, o microconto”,

no

qual

Waleska

Martins

estuda

a

formulação do microconto em nossos dias, a partir da leitura de um poema narrativo de Manoel de Barros e de um conto de Luiz Vilela. O embrião deste texto foi apresentado, como comunicação oral, no I I Congresso


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Internacional Brasil, Paraguai, Bolívia: Fronteira, cultura e interdisciplinaridade, que aconteceu em Corumbá em 2009. Por fim, no artigo “Entre frinchas, a poética do microconto brasileiro” — comunicação apresentada no XII Congresso Internacional da Abralic (UFPR, Curitiba, 2011), tendo sido publicada nos Anais do evento —, Luciene Lemos de Campos estuda alguns microcontos da literatura brasileira, elencando invariantes estruturais e narrativos configuradores de um modo de pensar e construir a micronarrativa brasileira contemporânea. Uma vez que os artigos de Fabrina, Waleska e Luciene decorrem de debates fomentados nas aulas do prof. Rauer, e considerando a significativa produção de microcontos de sua autoria, divulgados na internet, bem como sua reflexão teórica sobre o tema, dele selecionamos 33 microcontos para fechar este Dossiê. O que nos moveu para organizar este trabalho foi a constatação de que a micronarrativa, no âmbito da pesquisa literária no Brasil, carece de referencial e estudos


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mais aprofundados, quer no domínio da estética, quer no âmbito da poética, quer na atuação da crítica literária. Por outro lado, descobrimos que, se a literatura brasileira é das mais ricas em contos, também apresenta, de forma expressiva, experiências estruturais e temáticas no que se refere à micronarrativa. Os artigos evidenciam a interrelação entre os gêneros literários como característica do microconto brasileiro atual. Isso pode ser verificado nos microcontos estudados e na seleção que encerra o Dossiê. Uma última palavra cabe ao ilustrador, Alex Sandro Melo Diniz, uma grata revelação de artista. Sua leitura é, cada uma, um microconto visual instantâneo que interliga autor, vida, obra e feições dos escritores que retratou.

Luciene.


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Da introdução a Os cem menores contos brasileiros do século: Se “conto vence por nocaute”, como dizia Cortázar, então toma lá. (Marcelino Freire)


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APONTAMENTOS SOBRE O MICROCONTO

Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS)

O assim chamado microconto têm-se destacado nos últimos tempos, no Brasil, como subgênero da prosa ficcional com imensa divulgação, centenas de cultores e milhares de publicações nas mídias sociais. Disseminado sob a égide da virtualidade digital, trata-se, no entanto, de modalidade de expressão literária que já era cultivada, em especial entre autores hispano-americanos, desde meados do século XX. A forma expressiva do microconto, cuja síntese termina por coalescer com formas expressivas de outros subgêneros e mesmo com o gênero lírico, faz com que, olhando em revisão crítica para a expressão poética do modernismo, percebamos que muitos poemas do início do novecentos, e mesmo de épocas precedentes, podem ser lidos hoje como microcontos avant la letre. A presença massiva de produções chamadas de microconto em blogs e em outras plataformas e mídias da internet não tem tido correspondente interesse de avaliação teórica na universidade brasileira. Já nos países de língua castelhana das Américas, nomeada quase sempre como microficción, mas também recebendo outras denominações, há uma produção teórica que procura descrever o subgênero, verificando sua configuração e traçando os seus limites. O objetivo deste trabalho é, por meio de 29 aforismos, principiar um levantamento das características do microconto brasileiro, considerando publicações assim nomeadas por autores que já tenham alcançado algum reconhecimento crítico ou editorial por suas realizações literárias.


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OS AFORISMOS 1. O microconto é uma casca de ovo, com alguma clara e um pingo de gema que escorreu, boiando na enxurrada escura sob a luz noturna da lua minguante. 2. O microconto já existia em sociedades ágrafas; na sequência, podemos vê-lo em Tales e em Heráclito, assim como em Hesíodo e em Safo. 3. O microconto foi praticado em todos os períodos da humanidade, oculto nas dobras de outros gêneros e formas. 4. O microconto marca a ascensão do mundo digital, eletrônico, computacional, internético, que sepulta — sem ultrapassar — o universo das máquinas mecânicas. 5. O microconto é alexandrino por essência, e se vale da ambiguidade do ocaso que é aurora. 6. É desse microconto, que sepulta o albatroz baudelariano erigindo bytes virtuais, de que falamos. 7. O microconto só se faz — de modo intenso e completo — com o espírito da virtualidade, mas se presentifica independente do suporte e do media. 8. O microconto é a fronteira da expressão literária, no limes entre poesia e prosa, entre épica e elipse, entre a rigidez do amor e a sinfonia atonal.


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9.

O microconto, mesmo aquele que se aproxima do humor mais escrachado, tem algo de soturno.

10. O microconto absorve todas as formas, fôrmas, gêneros e modos de expressão de todas as artes: é antropofágico e onívoro. 11. O efeito único do microconto é como um raio de sol que se refrata em todas as cores do arco-íris. 12. O microconto apresenta tantas menções intertextuais quantas são as palavras que o compõe. Onde se lê intertexto, leia-se hipertexto. 13. O microconto é o nó da rede: cada nó nunca é mais que a fração mínima de um possível narrativo: o microconto é um fóton que contém o universo. 14. No microconto, os hipertextos intertextuais que suplementam em acréscimo, debate ou derrogação presentificam-se como a sombra de um eclipse. 15. O microconto é silêncio, alma, morte e ressurreição. 16. O microconto transpõe barreiras, sendo o próprio limes. 17. A história submersa do microconto é um mergulho em desvãos pressentidos, porém insondáveis. 18. O microconto realiza todos os gêneros literários, todas as formas poéticas, todas as estratégias narrativas; o microconto é um fractal que convida o leitor para a contradança. 19. Não existe microconto de atmosfera ou de enredo: todo microconto persegue um enredo forjando uma atmosfera.


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20. O microconto é o encontro da poesia com a prosa no balbucio do recém-nascido. 21. No microconto não há uma história evidente e uma segunda história, secreta — jamais fragmento, há no microconto o encontro de diversas histórias, ou microconto não há. 22. Se a narrativa tem mais que a epifania após o clímax, não é um microconto. 23. Se a epifania do microconto fulge, o microconto vira um falso fogode-artíficio 24. O microconto pode ser um haiku, mas ao contrário do haiku, que morre se recebe um título, o microconto sem título fica manco das duas pernas. 25. O microconto pode ser lido em uma única risada. 26. O microconto, ainda que encene um dia radioso, de sol escaldante, no meio da tarde, é um gênero noturno. 27. O microconto é inapreensível. Toda arte é. A arte, em seu recorte, representa uma totalidade fechada, autônoma — e oxímora, referencial. O microconto também é totalidade. 28. O microconto coalesce nos limites da poesia e da narrativa, incorporando e transformando formas simples e sub-gêneros literários, formatando-se como um novo gênero. 29. O microconto é a poalha em réstia de luz nos escombros de uma casa em ruínas.


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EPITÁFIO Sultão, gozei festas, carrões, consumo, mulheres mil. Deixo filhos às dezenas, para que acabem logo com o planeta. (RAUER, 2010)


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UMA INTRODUÇÃO HISTORIOGRÁFICA AO ESTUDO DO MICROCONTO BRASILEIRO Fabrina Martinez de Souza1 Rauer Ribeiro Rodrigues 2 INTRODUÇÃO

Uma geração de novos escritores brasileiros apostou no subgênero e iniciou o processo de migração da internet para o papel, aumentando a quantidade de livros e antologias dedicadas ao microconto. Essa geração foi impulsionada pela tecnologia que oferece suportes baratos para a publicação e divulgação do ofício da escrita. Assim como Ian Watt, no livro Ascensão do Romance, enumerou os impactos da revolução industrial do século XVIII que permitiram que a narrativa romanesca se estabelecesse, hoje não é possível ignorar o impacto da internet na ascensão do microconto brasileiro. Tendo em vista fazer uma introdução historiográfica ao estudo do microconto brasileiro, comparamos o poema “Amor”, de Oswald de Andrade, publicado em 1927 no Primeiro Caderno do Aluno de Poesia Oswald de Andrade, a um microconto de Daniel Galera, sem título, publicado na antologia Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Freire, 2004). Registre-se que o volume organizado por Marcelino Freire contempla diversos autores dos mais conhecidos da literatura brasileira, tais como Antônio Torres, Dalton Trevisan,João Gilberto Noll, Luiz Ruffato, Lygia Fagundes Telles, Manoel de Barros, Marçal Aquino, Miguel Sanches Neto, Millôr Fernandes e Moacyr Scliar, para mencionar somente uma dezena entre eles. Nossa proposição é de que a diferença entre a proposta estética de Oswald e a proposta estética de Galera decorre da revolução tecnológica do final do século XX, a partir do momento em que a mídia eletrônica muda a forma como entendemos e nos relacionamos com a literatura. Se a tecnologia impõe mudança na abordagem do fenômeno

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2

Fabrina Martinez de Souza é graduada em jornalismo, mestranda no Programa de Pós-Graduação em Letras na área de Estudos Literários da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Campus de Três Lagoas, e Bolsista Capes/Reuni; fabri_na@yahoo.com.br. Rauer Ribeiro Rodrigues é professor de Literatura Brasileira na UFMS, doutor em Estudos Literários pela UNESP de Araraquara e professor no Mestrado em Letras da UFMS, em Três Lagoas, onde coordena o Grupo de Pesquisa Luiz Vilela (www.gpluizvilela.blogspot.com); rauer.rauer@uol.com.br.


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literário, há mudanças também no comportamento das pessoas. Verificamos como uma mudança comportamental no âmbito do entendimento do que é público e do que é privado implica em diferentes soluções estéticas na produção de microcontos.

MICROCONTO: GÊNERO FUGIDIO Diante da evidência empírica, válida para todas as Américas e para a Europa, da multiplicação de narrativas de poucas palavras em blogs, em periódicos e em livros, cabe perguntar: o microconto é uma forma literária nova? O microconto é uma forma literária? Ou, simplesmente: tendo por referência a produção atual na literatura brasileira, o que é microconto? Quais precursores devemos considerar para elaborar uma historiografia do microconto na literatura brasileira? Heloísa Buarque de Hollanda, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), afirma que “a crítica tem que correr atrás do seu objeto porque este está andando muito rápido e, principalmente agora, ele está andando rápido

mais ainda”

(Hollanda, 2010, p. 138). Nas últimas duas décadas, a quantidade

de

livros e antologias de microcontos Brasil

no

cresceu

vertiginosamente. A pesquisa não. Sequer temos uma linha do tempo dos autores que em algum momento dedicaram-se ao subgênero. E não são poucos. Ou insignificantes. A


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pesquisadora afirma ainda que o “truque” para acompanhar os novos tempos é historicizar. Nesse caso, na busca de resposta a essas questões fulcrais, propomos voltar nossa visada contemporânea à Inglaterra do século XVIII com um questionamento em área das mais exploradas nos estudos literários: o romance é uma forma literária nova? No livro Ascensão do Romance, lançado em 1957, Ian Watt enumerou os impactos da revolução industrial que, no século XVIII, permitiram que a narrativa romanesca se estabelecesse mesmo em condições desfavoráveis, que não eram poucas ou insignificantes. A nossos olhos, acostumados com luz, era uma época estranha. Precisamos considerar, e talvez seja esse o melhor começo, que as condições para a leitura eram precárias. A privacidade era mínima, pois as moradias viviam cheias, o interior das residências era escuro e as velas, ainda que baratas, eram artigos de luxo. No século XVII foi instituído um imposto sobre janelas e as poucas que restaram eram fundas e estavam cobertas com papel ou vidro verde. O número de pessoas alfabetizadas era irrisório. Disciplina social e educação religiosa eram as prioridades: “ensinar a ler, escrever e fazer contas constituía um objeto secundário, raramente perseguido com grandes esperanças de sucesso” (Watt, 2010, p. 41). Raramente uma criança permanecia na escola: depois dos seis ou sete anos elas eram encaminhadas às fábricas e o trabalho tinha a duração da luz do dia. Saber ler era necessário somente para quem se destinava ao comércio ou à administração, por exemplo. Ironicamente, essa foi a época em que o ofício da escrita deixou de ser restrito a quem se dedicava a aprender ou ao menos aparentava isso. As pessoas comuns estavam trabalhando e não tinham tempo para aprender a ler, o que dirá imaginar. Mas esse foi o século dos autores, quando homens de “todos os níveis de capacidade, todo tipo de instrução, toda profissão e todo emprego se dedicaram com tamanho ardor à palavra impressa” (Dr. Johnson apud Watt, 2010, p. 61).1 Numa época na qual as pessoas mal conseguiam enxergar os tipos sobre o papel, escrever virou profissão. Relativamente bem remunerada, uma vez que os livreiros — um cargo semelhante ao do atual editor — pagavam por página produzida. Os livreiros não

1

Eis a fonte de Watt: H. J. Habakkuk, “English land owership, 1680-1740”, Economic History Review, X (1940), p. 2-17. Em seu trabalho, Watt referencia também as seguintes obras: 1) Londres, 1904, p. 26. 2) Helen Sard Hughes, “The middle class reader and the English novel”, JEGP, XXV (1926), p. 362-378. 3) Cross, Fielding, I, p. 315-316.


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faziam distinção entre poema e prosa, o que eles viam era a página escrita, prestes a ser impressa e vendida. Tornou-se comum, na época, dizer que as obras eram desnecessariamente alongadas para que o autor pudesse ganhar mais com o trabalho. Sobre o preço dos exemplares, Watt explica que proporcionalmente se manteve no mesmo patamar até 1956, quando realizou seu estudo. Já o salário cresceu, no mesmo período, até dez vezes. “Nenhuma velha pode arcar com o preço, mas (todas) compram Robinson Crusoé”, caçoava Charles Gildon (apud Watt, 2010, p. 43).1 A edição original custava dinheiro suficiente para sustentar uma família por uma semana ou duas. Depois de tantas dificuldades, o processo natural é nos perguntarmos: quem lia? Mulheres. A revolução industrial permitiu que as mulheres deixassem de realizar algumas atividades, aumentando o período de ócio. O acesso à diversão também era restrito, uma vez que elas não podiam participar do entretenimento masculino, que consistia basicamente em beber. Além das mulheres, é preciso considerar os aprendizes, camareiras e criados mais favorecidos que usufruíam de condições favoráveis para leitura, tempo e, é claro, da biblioteca dos patrões. Watt afirma que é difícil precisar quanto do ócio era dedicado à leitura, mas que era existente e considerável. Contudo, para o propósito específico desta comunicação, nos interessa relacionar a revolução industrial do século XVIII com as mudanças na mecânica industrial do final do século XX. Por quê? Deixemos a explicação com Ítalo Calvino: A segunda revolução industrial, diferentemente da primeira, não oferece imagens esmagadoras como prensas ou laminadores ou corridas de aço, mas se apresenta com bits de um fluxo de informação que corre pelos circuitos sob a forma de impulsos eletrônicos. As máquinas de metal continuam a existir, mas obedientes aos bits sem peso. (Calvino, 1990, p. 20).

Quando pensamos na produção literária brasileira, a afirmação de Calvino, publicada em Seis Propostas para o Próximo Milênio, nos mostra pelo menos duas linhas de força; sociedade e escritor. O microconto é um subgênero em ascensão no Brasil que, muitas vezes, se confunde com a poesia. Desde a década de 1920, autores como Oswald de Andrade publicam poemas desconcertantemente curtos. É dele, inclusive, o marco dessa contravenção lingüística brasileira, publicado em 1927: 1

GILDON, Charles. Robinson Crusoe examin’d and Criticis’d, Ed. Dottin (Londres e Paris, 1923), p. 71-2.


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 257 ISSN - 2176-6835 Amor humor (Andrade, 2006, p. 27).

Ele teve precursores ilustres — e inesperados: por exemplo, em Canções sem metro, volume de contos de Raul Pompéia, muitos deles de meia página, ou menos. Destaquemos “Uma impressão” (1881): Subia o pano... Vi-a pela primeira vez... Pequenina e fulgurante como uma estrela; possuía todas as cintilações do gênio num rosto de criança. Iluminava o palco, maravilhava a plateia. Aquele pequeno sorriso que ela tinha; as mil cambiantes de olhar, que lhe passavam pela fisionomia como raios luminosos através das facetas das gemas; as inapreciáveis ternuras da voz... calaram-me fundo no coração... E eu recalquei dentro em mim um temor: não vá consumir-se o foco de tanta luz; não vá muito cedo extinguir-se a pobre estrela, culpada de ser estrela. (Pompéia, 1982, p. 106).

Trata-se de um flagrante em que se pode entrever a atmosfera, sendo a narrativa tão só a apreensão do olhar, com sua consequência única e imediata. Exemplo único, talvez, em toda a obra, dado o pendor de Pompéia de quebrar a síntese que caracteriza, hoje, o microconto, por acrescentar, ao final, um juízo, como se seus quadros impressionistas fossem fábulas filosóficas. Vislumbramos ao menos mais um exemplo. De “Vozes da vida”, podemos citar o “A carne”: “Eu sou o amor.” (Pompéia, 1982, p. 76 ou 135). Parece um precursor interessante do “Amor” oswaldiano, na síntese de uma única frase, embora sua proposição se assemelhe mais à feita por Manuel Bandeira em seu poema “Arte de amar”: “Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo. / Porque os corpos se entendem, mas as almas não.” (Bandeira, 1973, p. 202). Em todo caso, é precursor legítimo do microconto brasileiro que vigorará mais de um século depois. No primeiro livro de Carlos Drummond de Andrade, Alguma poesia (1930), diversos poemas bem podem ser considerados microcontos avant la letre. Eis alguns, mantidas a ortografia da primeira edição: “Construcção”, “Nova Friburgo”, “VIII – Bahia”, “Política literária”, “Poema que aconteceu”, “Cidadesinha qualquer”, “Quadrilha”, “Anecdota bulgara” e, em particular, “Cota O” [“Cota Zero”]: “Stop. / A vida parou / ou foi o automóvel?” (Andrade, 2010, p. 189). Já aqui se vislumbra a coalescência inescapável do microconto de nossos dias, fazendo da prosa, poesia, e incorporando a poesia à prosa. Nas palavras de Régis


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Bonvincino, “‘Cota zero’ é peça que representa o espírito crítico, a vanguarda, para além da própria ‘vanguarda’, e fala para o presente” (Bonvicino, 2009). Oswaldo França Júnior, um romancista com um único livro de narrativas curtas, As laranjas iguais (1985), tem, entre os sessenta e um contos da coletânea, diversos que são muito curtos, como — para citar somente alguns — “O erro”, “O tempo lá de fora” e “O nome”. São narrativas que já se aproximam daquelas em que há uma situação e uma única ação ou mudança de estado, como podemos caracterizar o microconto de nossos dias. Mas estamos ainda em uma etapa de transição, pois França Júnior (1985) não visava o elíptico e a síntese, uma vez que, embora buscasse a gênese de uma única ação, desdobrando-a em uma ou duas consequências, descrevia espaço e tempo, o que, ainda que sucinto, não se observa nos microcontistas do século XXI. Mais sintéticos, foram, nos anos 90, Millôr Fernandes e Dalton Trevisan. Com seus haikais narrativos, com suas frases pícaras ou fesceninas, com a redução da narrativa a cacoetes linguísticos cuja reiteração ampliava as cargas semânticas das escolhas lexicais, produziram microcontos — dir-se-ia — quase que em série. Se muitas dessas narrativas são antológicas, a opção pelo riso ou pelo escatológico produziu epígonos também em série, desgastando o modo, transformado em modelo. Por isso, é somente no século XXI que o microconto brasileiro — enquanto subgênero narrativo — ganhou fôlego, no momento em que uma geração de autores brasileiros na faixa dos vinte anos começa a migrar da internet para o papel. Não nos interessa, aqui, discutir o suporte, as novas tecnologias ou a convergência da mídia: não é caminho necessariamente novo, se lembrarmos que muitos romancistas do século XVIII publicavam em jornais para depois publicarem seus folhetins em livros. O que nos importa, nesse momento, é pensar na leveza e agilidade da revolução anunciada por Calvino, pois ela traz consigo elementos que estão na raiz do microconto.

O AUTOR SE EXPLICA

Para historicizar, vejamos o depoimento de um novo autor brasileiro:


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 259 ISSN - 2176-6835 Publiquei meus primeiros textos na web, em diversos sites e publicações online, o que me permitiu formar um público leitor antes mesmo de ter livro publicado. O uso desse meio me pareceu uma escolha óbvia na época, por seu baixo custo e alto potencial de divulgação. Não sei como estaria hoje sem a internet. (Galera, 2011).

A afirmação do escritor Daniel Galera, que nasceu em 1979 e publica na rede desde 1996, pode ser lida como uma epígrafe de toda uma geração. Entre os anos de 1998 e 2001, antes do twitter e do blog, Galera criou e foi colunista do mailzine Cardosonline (COL), que revelou — no mínimo — dois outros escritores: Daniel Pellizzari, nascido em 1974, e Clarah Averbuck, que nasceu em 1979. Galera, com Pellizzari e o artista plástico Pilla, fundou em 2001 o selo editorial independente Livros do Mal, onde lançou a coletânea de contos Dentes Guardados (2001) e a novela Até o Dia em que o Cão Morreu (2003), que deu origem ao premiado filme Cão sem Dono. Três anos depois, Mãos de Cavalo, seu primeiro romance, foi publicado pela Companhia das Letras, uma das maiores editoras comerciais do Brasil. Desde então, sua novela foi reeditada (2007), lançou um segundo romance, Cordilheira (2008), e a graphic novel Cachalote (2010). Atualmente trabalha em seu terceiro romance, ainda sem data prevista de lançamento. Além disso, fez parte de diversas antologias focadas nos novos autores e mantém um site pessoal, uma conta no twitter e um perfil no facebook, prioritariamente voltados para sua atividade literária. Galera ocupa um lugar confortável na literatura brasileira. A crítica especializada aponta sua produção como consistente, seus contos foram adaptados para o teatro e cinema, a novela deu origem ao premiado filme Cão sem Dono e seus primeiros livros impressos se tornaram objetos de desejo. Num site que reúne milhares de sebos e livreiros brasileiros, só há um exemplar de Dentes Guardados, disponível à venda por R$ 100 reais.1 Os livros de Galera, produzidos em sua extinta editora, são rapidamente vendidos — a qualquer preço — quando surge algum exemplar na rede de sebos. O escritor, ainda jovem com seus 31 anos, é visto como um referencial para aspirantes e iniciantes. Em 2004, participou da antologia Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século, com um microconto sem título. Ei-lo:

1

Site Estante Virtual, < http://estantevirtual.com.br/livrariapassos/Daniel-Galera-Dentes-Guardados-52213941 >, consultado em 05 de outubro de 2011.


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 260 ISSN - 2176-6835 Botei uma sunga para apavorar. (Galera, in Freire, 2004, p. 36).

Mais à frente, retomamos esse microconto para discutir a questão do público e do privado na nova literatura brasileira. Agora, tendo o microconto de Daniel Galera em nosso horizonte e depois das analogias empreendidas, vejamos as diferenças formais entre romance e microconto. E não se trata apenas de tamanho. Jornal e romance “estimulam um tipo de hábito de leitura rápida, desatenta, quase inconsciente” (Watt, 2010, p. 51). Está tudo lá. Personagens, espaço, acontecimentos e outras categorias que definem um discurso narrativo. Olhemos para o microconto de Galera. Um discurso com enunciado referencial, formado por cinco palavras, sendo dois verbos. Embora haja uma única indicação do gênero da personagem, que vem através do substantivo sunga, não há evidências de que realmente se trate de um homem. O que podemos afirmar com certeza é que esse microconto narrado em primeira pessoa constrói uma imagem e lança inúmeras dúvidas. O microconto — a julgar por esse — é um desafio. O microconto faz referência ao período anterior ao lançamento do primeiro livro de Galera. O COL inicialmente era visto como um mailzine com resenhas, reportagens ou contos; contudo, dez anos depois do seu fim, é inegável que ele tenha seu lugar na literatura brasileira contemporânea. Para nos mantermos no mesmo autor, é preciso dizer que treze dos catorze contos selecionados no livro de estréia de Galera foram publicados inicialmente no mailzine. Nos arquivos do COL1 é possível encontrar textos confessionais, de memória ou biográficos que expõe a vida desses jovens escritores. E fotos. Nelas, registros das festas que aconteciam na casa dele em Porto Alegre. Numa dessas, um amigo dele chegou e declarou: coloquei uma sunga para apavorar. O microconto é, nesse caso, uma piada interna, uma piscadela de Galera ao passado, aos amigos e aos antigos leitores. Cumplicidade que se repete várias vezes em sua obra e de várias formas. Após a extinção do COL, muitos participantes migraram para sites pessoais ou blogs e mais recentemente para as redes sociais. Cabe aqui uma hipótese interessante, que merece ser devidamente pesquisada, já que foge do objetivo deste artigo: aparentemente, a quantidade de

1

O arquivo do COL, que inclui as 278 edições regulares, especiais e fotos, está disponível para download no endereço http://qualquer.org/col/. Acesso em 27 de setembro de 2011.


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informações sobre a vida pessoal dos autores é tão abundante que acabamos por saber mais do autor do que da obra. Essa (por falta de opção assim a chamaremos) nova fronteira entre o público e privado pode tanto iluminar quanto deixar opaca a leitura dos microcontos. Para verificar o modo como o privado invade o público na nova literatura brasileira, vamos percorrer caminho que perpassa a relação entre literatura e sociedade, ficção e história, a partir de exemplos da literatura brasileira dos anos 60 aos nossos dias.

O PÚBLICO E O PRIVADO O escritor não é uma mônada. Reservado ou recluso, o escritor está no mundo e de alguma forma, em maior ou menor intensidade, é influenciado por ele. No conto “No bar”, publicado em livro homônimo no ano de 1968, o escritor mineiro Luiz Vilela apresenta duas personagens discutindo a teoria da mônada do filósofo Leibniz. Em determinado momento da narrativa, a personagem principal tem uma epifania. Para ela, o amor é uma chaminé. Uma brecha na casca que permite que a mônada receba e envie influências do e ao mundo externo. Para o leitor, essa chaminé é a Literatura. Voltemos. Ainda que o escritor seja reservado ou recluso há muito do mundo — seu mundo particular, principalmente — em sua obra. Memórias de infância, de família, a vizinha, um emprego antigo, a cor do asfalto, um cheiro de ralo, o barulho do elevador, a cor do cachorro. O mundo influencia. E não há como descolá-lo do autor. Em Literatura e Sociedade, cuja primeira edição é de 1965, o crítico Antonio Candido cita René Bady para falar da relação entre artista e meio: O poeta não é uma resultante, nem mesmo um simples foco refletor; possui o seu próprio espelho, a sua mônada individual e única. Tem o seu próprio núcleo e o seu órgão, através do qual tudo o que passa se transforma, porque ele combina e cria ao devolver a realidade. (Bady apud Candido, 1976, p. 18).1

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René Bady, Introduction à l’étude de la literature françoise, Friburgo, Éditions de La Librairie de l’Univerisité, 1943, p. 31.


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Dessa forma, considera-se que o poeta — e aqui estenderemos essa definição a todos os escritores — não são mônadas, mas possuem uma dentro de si. Um núcleo criador que funciona como filtro entre o mundo, ele e sua produção literária. Consequentemente, para acessar sua obra dos mais diversos ângulos, é preciso olhar para esse núcleo. Visão que muitas vezes fica disponível quando atravessamos a linha que divide o público e o privado na produção literária. Biografias, memórias, entrevistas, cartas, crônicas e, mais recentemente, blogs, redes sociais, sites, são instrumentos que não apenas podem iluminar um poema ou uma narrativa, mas principalmente podem fornecer novas perspectivas de crítica e interpretação de um texto literário. É material que sempre contém a valiosa voz do autor a respeito da sua obra e de si mesmo. Ainda que se mantenha a saudável postura da dúvida, de ceticismo quanto ao que o autor diz de si mesmo e de sua obra, é preciso reconhecer o valor que esse instrumental oferta. Quem há de negar o imenso valor exegético, para ambas as obras, da correspondência trocada entre o poeta pernambucano Manuel Bandeira e o modernista Mário de Andrade, entre 3 de fevereiro de 1914 e 17 de maio de 1945 — carta, essa última, que chegou após o falecimento de Mário de Andrade. O volume, organizado por Marcos Antonio de Moraes e publicado pela Edusp em 2000, permite novas hipóteses de leitura tanto de um quanto de outro autor: Esse diálogo epistolar forja um espaço ficcional privilegiado para onde convergem personagens, situações, confrontos e ambiência histórica abarcando mais de duas décadas. (Moraes, 2000, p. 13).

Há de se considerar que o privilégio deste espaço resida na confiança mútua, garantindo aos críticos e pesquisadores um registro — sem censura — de uma das mais relevantes épocas da Literatura Brasileira. Entre as preciosidades mais óbvias, podemos citar alguns versos manuscritos de Paulicéia Desvairada, publicado em 1922. Além disso, é possível ler as confissões de Manuel Bandeira sobre seu trabalho como cronista. Em carta de 24 de julho de 1928, Bandeira conta sobre seu novo emprego como cronista.

Isso é novidade. A Província é um dos jornais tradicionais de Pernambuco. Ultimamente andava muito decaída. Agora foi adquirida por uma sociedade anônima que convidou o Gilberto Freire para diretor do jornal. Gilberto vai levantá-lo. O Manuel Bandeira pintor


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será diretor artístico e desenhista. Gilberto me convidou a escrever duas vezes por semana sobre atualidades cariocas. Poderei juntar um cobrinho regular. (Carta de Manuel Bandeira, in: Moraes, 2000, p. 398). Poucos meses depois, em carta de 29 de setembro, uma reclamação: — Ai, que fadiga! Com essa coisa de escrever um artigo por semana para A Província e uma coisa ou outra para a Ilustração e Para Todos fico pregado. Só faço isso porque pagam bem. [...] Escrevo o diabo do artigo e num instante a outra semana chega! (Carta de Manuel Bandeira, in: Moraes, 2000, p. 407).

Nesses recortes de apenas duas cartas, uma quantidade considerável de informações sobre o trabalho de Manuel Bandeira como cronista, que rendeu três volumes1 reunindo seus textos. Podemos analisar sua relação com o gênero (crônica e/ou prosa), o suporte (jornal), a periodicidade e, porque não falar?, de suas motivações financeiras. Fato é que o acesso a essas informações privadas abrem novas possibilidades de leitura de um poeta canônico, e mostram os caminhos traçados pela poesia num gênero que circula em espaço distinto, o jornal diário. No artigo “O estudo da crônica sob o foco da crítica contemporânea”, o pesquisador Luiz Carlos Santos Simon afirma: [...] é preciso reconhecer que a mídia e seu acelerado processo de alargamento exercem influência decisiva sobre os rumos tomados pela literatura e pelos estudos literários. À medida que as incorporações são promovidas pelos escritores, cresce também a demanda para estudos que investiguem esse fenômeno de invasão midiática sobre o terreno da cultura erudita. [...] O estudioso passa a procurar novas ferramentas para prosseguir em seu ofício, que já não é mais o mesmo. Inclusão torna-se a palavra de ordem. E nesse processo, é preciso também dar atenção às novidades e às diferenças reveladas nas produções mais recentes. (Simon, 2010, p. 72-73)

Ao apontar para esse processo acelerado da mídia e a influência que ela gera nos escritores, nossa primeira reação é pensar na geração de escritores surgida a partir da década de 90 do século passado. E ainda que tenham se passado apenas vinte anos, o peso dos séculos se faz sentir quando pensamos que Nelson de Oliveira referenciou essa geração como aquela 1

Recentemente, a editora Cosac Naify lançou três volumes com as crônicas de Manuel Bandeira. São eles: Crônicas da Província do Brasil (2006; a primeira edição saiu em 1937); Crônicas Inéditas 1 (2008); e Crônicas Inéditas 2 (2009).


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que produzia “manuscritos de computador”. Uma geração que não mais escreve a lápis, utilizando caneta ou em máquinas de escrever. Que nasceu à margem da internet e fez dela seu suporte de publicação, divulgação, crítica e relacionamento com o leitor. O que, de certa forma, obriga a crítica a olhar para sites especializados, pessoais, blogs ou redes sociais não como modismo, mas como instrumentos de formação do escritor, de conformação da linguagem do escritor, e de possibilidades autorais e editorias sem paralelo nas obras nascidas para o suporte papel, em especial com a constituição de links, de hipotextos e hipertextos, de simultaneidade de formas de representação, de interconexão com outras artes, além de recursos de interrelação com o leitor ainda inexplorados esteticamente. Além, claro, de espaços capazes de fornecer informações sobre os autores e suas obras. Beatriz Resende, em Contemporâneos: expressões da literatura brasileira no século XXI, de 2008, afirma que Os diversos usos da internet rapidamente influenciarão a escrita em suas formas mais antigas: a carta será substituída pelo e-mail; o diário íntimo, pelo blog, que torna público, em maior ou menor escala — conforme o gosto do autor —, o registro da vida privada. (Rezende, 2008, p. 136).

A exposição de informações íntimas é um fato consumado. Se até meados da década de 1990, o leitor tinha que esperar a publicação de uma biografia ou memórias de seu autor favorito para ler informações íntimas sobre ele, seu relacionamento com outros autores ou simplesmente ver suas fotos, hoje tudo isso é simultâneo, instantâneo, às vezes precedente. É fato também que nem todo autor se expõe ou se mantém exposto. Basta citarmos duas figuras clássicas nesse tópico: Rubem Fonseca (1925- ) e Dalton Trevisan (1925- ). No extremo, dois outros autores, Daniel Galera (1979- ) e Ivana Arruda Leite (1951- ), que teriam contribuído para a mudança no que até então entendíamos como fronteira entre o público e o privado ao exporem informações íntimas simultaneamente à construção de sua obra ao mesmo tempo em que abrem espaços para o contato direto com o leitor, deixando “rastros” de sua intimidade na internet. Para isso, temos em nosso horizonte os microcontos “Feijoada” de Leite e o já mencionado [Sem título], de Galera, ambos publicados na antologia Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século (Freire, 2004). Vejamos os textos:


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FEIJOADA Confesso. Fui eu que enfiei a faca na barriga desse porco. (Leite in Freire, 2004, p. 37). Botei uma sunga pra apavorar. (Galera in Freire, 2004, p. 21).

As duas narrativas diferem entre si em inúmeros aspectos e uma tentativa de aproximação, tendo em vista sua estrutura, talvez se mostre improdutiva. O recorte foi feito tendo em vista a quantidade de informações íntimas dos autores disponível na internet que elucidam a leitura dos microcontos. Para a leitura do microconto de Galera, elegemos os “e-mails”1 que o autor trocou com o editor André Conti a pedido do Instituto Moreira Salles 2. A correspondência se deu entre os meses de janeiro e abril de 2011. No e-mail do dia 25 de fevereiro de 20113, Galera conta:

Eu também fiz essa travessia da Lagoa da Conceição em Florianópolis. Foi a primeira travessia que nadei na vida, eu tinha uns dezesseis anos, acho. Na época o percurso era de 2300m. Falei brevemente dessa prova num texto sobre a Travessia dos Fortes que publiquei na Piauí uns anos atrás. Comentei a violência da largada e a visão de sofás, cuecas e detritos diversos no fundo da lagoa, era algo assim. Existe uma foto horrorosa que meu pai tirou na chegada, estou com uma garrafa d´água na mão, de sunga e óculos na testa, inchado e desprovido de pêlos corporais, com uma expressão patética no rosto, parecendo alguém que acaba de acordar de uma anestesia geral após um grave acidente de carro. (Galera, 2011).

1

A denominação “e-mail” foi mantida em função do suporte onde foi publicado, um site. http://blogdoims.uol.com.br/correspondencia/. Acesso em 20 de novembro de 2011, às 00h17. 3 http://blogdoims.uol.com.br/daniel-galera/a-morte-num-corpo-vigoroso-e-saudavel/. Acesso novembro de 2011, às 00h17. 2

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Seria esse relato uma chave para a leitura do conto? Ainda que exista a possibilidade de aproximação e leitura é preciso considerar alguns fatores. Embora essa troca de e-mails entre Galera e Conti seja farta de detalhes, não podemos deixar de ponderar que (a) ela foi uma encomenda de uma instituição privada, e (b) não teria o mesmo grau de naturalidade que uma ação espontânea teria; portanto, (c) essa reprodução não apenas elimina completamente a liberdade do autor em dizer o que pretende, mas (d) faz com que ele seja a representação pública, idealizada até quando desidealizada, de si mesmo. Considerando esses elementos, é preciso seguir adiante na pesquisa e buscar novas fontes. E, consequentemente, a chave para a leitura. Nesse caso, outro lugar, o mesmo suporte. O microconto faz referência ao período anterior ao lançamento do primeiro livro de Galera. O COL1 inicialmente era visto como um mailzine com resenhas, reportagens ou contos. Apresenta textos confessionais, que expõem o modo de vida dos autores. Portanto, seu texto é baseado no mecanismo da memória. Uma situação que viveu e que quase de imediato torna-se público. Anos depois, a memória do amigo que chega a uma festa do COL dizendo que “colocou uma sunga pra apavorar” ganha status de literatura ao ser tratada como um microconto e publicada numa antologia temática. O microconto pode ser visto, nesse caso, como uma memória privada que não apenas se torna coletiva como é anos depois elevada à condição de literatura. Nesse caso, cabe perguntar: onde está grafado o limite entre público e privado? Sem poder responder à essa pergunta de maneira direta, consideramos que o microconto seja uma piada interna, uma piscadela de Galera ao passado, aos amigos e aos antigos leitores. Cumplicidade que se repete várias vezes em sua obra e de várias formas. No entanto, essa leitura é possível devido ao trabalho de pesquisa. Entretanto, uma vez que responde à origem do microconto, não elimina suas possibilidades de leitura, análise ou interpretação — para além, e mesmo desconsiderando, a questão biográfica. Olhemos para o microconto de Galera. Está tudo lá. Personagens, espaço, acontecimentos e outras categorias que definem um discurso narrativo. Um discurso com

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O arquivo do COL, que inclui as 278 edições regulares, especiais e fotos, está disponível para download no endereço http://qualquer.org/col/. Acesso em 27 de setembro de 2011.


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enunciado referencial em cinco palavras e dois verbos. Uma imagem, inúmeras dúvidas, e um desafio, quase uma charada, constituem o microconto. É, o microconto, como subgênero, não é gentil. Não tem a compaixão do romance ou a simpatia do conto. Não oferece filme ou foto. Exige. É o leitor quem começa, termina ou, simplesmente, aceita a história. O microconto provoca perguntas cujas primeiras respostas só podem ser proporcionadas por quem vivenciou seu período de formação como escritor — ou por quem tem em mãos suas publicações iniciais e seus emails. Já o microconto de Leite (in Freire, 2004) fornece mais subsídios para análise estrutural. A presença de um título — “Feijoada” — permite duas possibilidades de leitura. A primeira com temática gastronômica, o cozimento de um prato típico, e a segunda de um assassinato. O tipo de porco esfaqueado fica a critério do leitor. Contudo, uma pesquisa no blog Doidivana1, não só aponta as duas direções como reforça as possíveis leituras supracitadas. No blog que mantém desde agosto de 2007, Leite publica fotos de lançamentos de livros, palestras, seminários, reuniões íntimas em sua casa (na de parentes ou amigos), premiações e viagens; e, também, relatos, memórias, divulgação de seus livros, informes sobre outros escritores, atividades culturais, receitas culinárias ou contos. Rápida pesquisa no sistema de busca do blog mostra catorze resultados para a palavra “Feijoada”. Aliás, considerando as categorias do blog, é preciso dizer que ele registrava 2 110 textos falando de restaurantes, comidas e gastronomia. Mas, antes de optarmos pela leitura de uma escritora da área dos comes & bebes, é preciso dizer que existem 35 crônicas — publicadas na Revista da Folha entre fevereiro e novembro de 2004 — e 93 contos, retirados de seus dois livros de contos e inúmeras antologias. Além deles, Leite publicou um romance, uma novela, quatro livros juvenis, um infantil e organizou duas antologias, além de participar de outras. Nos contos cadastrados no blog, a temática da violência aparece. Como no conto a seguir, publicado em 31 de dezembro de 2009:

Pegue o homem que te maltrata, estenda-o sobre a tábua de bife e comece a sová-lo pelas costas. Depois pique bem picadinho e jogue na gordura quente. Acrescente os olhos e a cebola. Mexa devagar até tudo ficar dourado. A

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http://doidivana.wordpress.com. Acesso em 20 de novembro de 2011, às 23h15 Acesso em 20 de novembro de 2011


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 269 ISSN - 2176-6835 língua, cortada em minúsculos pedaços, deve ser colocada em seguida, assim como as mãos, os pés e o cheiro verde. Quando o refogado exalar o odor dos que ardem no inferno, jogue água fervente até amolecer o coração. Empane o pinto no ovo e na farinha de rosca e sirva como aperitivo. Devore tudo com talher de prata, limpe a boca com guardanapo de linho e arrote com vontade, pra que isso não se repita nunca mais. (Leite, 2009).

O conto “Receita para comer o homem amado”, publicado inicialmente no livro Falo de Mulher, em 2002, tem a mesma estrutura textual de “Feijoada”. Relaciona o homem com uma comida e o ato de comer a uma ação violenta. Se considerada a teoria da história secreta — todo conto conta duas histórias — do escritor argentino Ricardo Piglia, é possível entrelaçar essa relação entre gastronomia e violência. Como se ambas as personagens fossem antropofágicas e não apenas carnais. E ao acionarmos outros instrumentos de análise, como o blog, percebemos que a comida tem um papel muito mais importante do que alimentar. Tem a função de celebrar, vivenciar, experimentar e compartilhar — no que, aliás, segue a construção simbólica universal do ato de comungar refeições. Portanto, é possível dizer que a leitura dos microcontos tende a ser enriquecida pelas informações disponíveis de ambos os autores. Somente através da trajetória pessoal de Galera, que tem detalhes pessoais publicados em vários sites, é que a opacidade de seu texto se dilui e podemos enxergar o que há naquela frase além da evocação inicial. No caso de Leite, há um aprofundamento das temáticas, pois elas estão presentes tanto em seus textos literários quanto nos registros pessoais. Em “Novas geografias narrativas”, Maria Zilda Ferreira Cury afirma que a literatura contemporânea mudou e que é preciso fazer uma reflexão sobre “novas cartografias literárias”. Eis a reflexão da pesquisadora: Muitos desses escritores têm, hoje, uma inserção maior ou mais visível na imprensa, fazem apresentações em festivais de literatura (como a Flip, por exemplo), participam de performances, exercem a função de críticos literários em revistas especializadas, alargando enfim, o espaço de sua participação para outros que não o exclusivo do livro, caracterizando-se como agentes culturais, transitando por espaços que não estritamente literário, o que, inevitavelmente, interfere na escrita dos seus textos. (Cury, 2007, p. 7).


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Escritores não são mônadas. Podem ter sua mônada particular, seu núcleo. Mas não são mônadas. Ao contrário, esses artistas estão em todos os lugares, exercendo inúmeras funções, falando de suas obras e de si mesmo. Intimidade, memórias, biografia e confissões. Está tudo disponível paralelamente à construção da obra. A historiografia literária do futuro haverá de mostrar os impactos permanentes dessa mudança, mas cabe desde já, a críticos e pesquisadores, observar, considerar e trabalhar com essas novas fontes. A função da literatura permanece a mesma, contudo essas novas fronteiras entre público e privado ampliaram o conceito de relacionamento e produzem novos modos de leitura. No caso do microconto, um subgênero cuja maior característica é a concisão extrema, a disponibilidade de informações privadas enriquece a leitura e desafia o leitor a entender os limites entre o escritor e sua obra, bem como dos elementos que constituem a narrativa

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Retomemos algumas de nossas considerações. O microconto não é gentil. Não tem a compaixão do romance ou a simpatia do conto. Não oferece filme ou foto. Exige. É o leitor quem começa, termina ou, simplesmente, aceita a história. Assim se faz, no Brasil, a literatura que surge na interface com a internet na primeira década do século XXI. Sob esse aspecto notamos uma grande diferença entre Oswald e Galera. E não está na forma, mas no contexto. Oswald fala com todos e Galera fala aos seus. Amor é um tema comum, mês nem por isso ordinário, e sim universal. O poema de Oswald é transparente quando pensamos nas reações que o amor provoca no indivíduo. Todas as oscilações de humor que provoca. O verso de Oswald é transparente aos nossos olhos, enquanto o microconto de Galera é quase 100% evocação, o que a princípio está inacessível ao leitor. Ao tentarmos entender o microconto, somos jogados diante de um novo problema. Quem é o público-leitor da literatura contemporânea brasileira? E de carona com esse problema, outro: a excessiva oferta de informações sobre os autores afeta o entendimento de categorias dos estudos literários, como, por exemplo, a de escritor ou a de leitor?


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Antonio Candido afirma que a produção literária é formada por quatro momentos: “a) o artista sob o impulso de uma necessidade interior, orienta-o segundo os padrões de sua época, b) escolhe certos temas, c) usa certas formas e d) a síntese resultante age sobre o meio” (Candido, 1976, p. 21). No caso do microconto brasileiro, é preciso considerar que a internet tem uma influência significativa na sua produção. Nesse sentindo, é preciso repetir, ela funciona como um suporte de divulgação. O livro ainda é o objetivo dos autores. Não apenas como uma conquista pessoal, mas como um reconhecimento social. Ou, nas palavras de Candido, uma ação de “reconhecimento coletivo”. Não para responder se ele é uma forma literária nova, se é uma forma literária ou o que é. Considerando que os autores o praticam, que as editoras os publicam, devemos analisá-los diante da diacronia da literatura brasileira com o objetivo de definir qual é, nesta primeira década do terceiro milênio, a poética do microconto brasileiro. Nossas questões básicas, talvez por falta de distanciamento entre pesquisadores e objeto de pesquisa, permanecem inapreensíveis. O microconto é um subgênero da narrativa de ficção, sendo uma nova forma, mas sua constituição, sua formatação, exige autor e leitor com a memória de toda a literatura precedente. Ao mesmo tempo, em poemas antigos, ou mesmo em narrativas do século XIX, vislumbramos traços indiciadores de conto com um único nó narrativo. Assim, do ponto de vista da construção estética, o microconto não decorre tão só das exigências da mídia eletrônica e das possibilidades advindas da revolução tecnológica digital iniciada no final do século XX e ainda em plena florescência. Embora tal contexto modifique o modo como os leitores se relacionam com a literatura, o entendimento do que é a literatura segue seu curso natural, em via de mão dupla entre a autonomia estética e as implicações do contexto sobre a criação artística. Sendo claro que há mudanças no fenômeno social da literatura e no comportamento dos indivíduos dada a prevalência da internet e do controle computacional no dia-a-dia social, ocorreram — e com o passar do tempo, ocorrem ainda mais acentuadamente — deslocamentos conceituais quanto ao que é público e quanto ao que deve permanecer privado. Em decorrência disso, tanto a produção de microcontos como a de outros artefatos artísticos e gêneros literários experimentam soluções estéticas devedoras desse novo quadro.


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Mas, sendo como descrito nos últimos parágrafos, o que é o microconto?, como o definir?, como o descrever?, como o caracterizar?, como o distinguir dos demais gêneros e formas? Seria a internet determinante na sua gênese ou tão só um suporte privilegiado para a sua eclosão? Quais os seus precursores na literatura brasileira e na literatura universal de todos os tempos? Essa introdução historiográfica não pretende responder a essas questões, antes pretende colocá-las com clareza, para que o debate possa ser instaurado. Parece-nos que a visada externa à obra, biográfica, é importante, mas não pode ser condição sine qua non: antes de tudo, é preciso olhar para o enunciado, e ele precisa ter autonomia comunicativa e estética. Parece-nos, também, que o microconto não é uma forma literária nova. Seja no gênero narrativo ou gênero poético, as narrativas breves são constantes na Literatura Brasileira. Raul Pompéia, Carlos Drummond de Andrade, Dalton Trevisan, Manoel de Barros, Oswaldo França Júnior, Millôr Fernandes, Marçal Aquino, Ivana Arruda Leite e Marcelino Freire, são alguns dos muitos escritores brasileiros que em algum momento dedicaram-se ao microconto. Para colocar mais uma pitada, quase uma provocação, o que são diversos dos capítulos (tais como os “LXXXVI – O mistério”, “CVII – Bilhete” e “CXXXIX – De como não fui ministro d’Estado”) das Memórias póstumas1 do Bruxo do Cosme Velho se não microcontos? Entretanto, para que as respostas às candentes questões elencadas deixem de ser pessoais, especulativas e provocativas, a crítica brasileira precisa, enfim, se debruçar sobre o fugidio assombro multiforme que é o microconto literário de nossos dias.

Referencial:

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Machado de Assis, 1998, p. 117, 136 e 160; a primeira edição do romance é de 1881.


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 273 ISSN - 2176-6835 BONVICINO, Régis. O poema antifuturista de Drummond. In: Sibila, 28 abr. 2009. Disponível em: http://www.sibila.com.br/index.php/critica/486-o-poema-antifuturista-de-drummond, acesso em 28 jul. 2010. CALVINO, Italo. Seis Propostas Para o Próximo Milênio. Trad. Ivo Barroso. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 5 ed. São Paulo: Nacional, 1976. Correspondência Daniel Galera e André Conti. Blog IMS (Instituto Moreira Sales). Disponível em: <http://blogdoims.uol.com.br/correspondencia>. Acesso em: 20/11/2011. CURY, Maria Zilda Ferreira. Letras de hoje. Novas geografias narrativas. PUCRS, Porto Alegre, n4, v42, p. 717, out/dez. 2007. FREIRE, Marcelino (Org.). Os cem menores contos brasileiros do século. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004. GALERA, Daniel. “Não sei como estaria hoje sem a internet’, diz escritor Daniel Galera. Blog A Cultura na Era Digital. Disponível em: < http://culturanaeradigital.wordpress.com/2009/09/15/nao-sei-como-estaria-hojesem-a-internet-diz-escritor-daniel-galera/>. Acesso em: 27/06/2011. HOLLANDA, Heloísa Buarque de Hollanda. Matraga. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n27, v17, p. 134-148, jul/dez. 2010. LEITE, Ivana. Receita para comer o homem amado. Blog Doidivana, em 31 dez. 2009. Disponível em: <http://doidivana.wordpress.com/2009/12/31/receita-para-comer-o-homem-amado/>. Acesso em: 20/11/2011. MACHADO DE ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Ática, 1998. MORAES, Marcos Antonio de (org.). Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. São Paulo: Edusp, 2000. POMPÉIA, Raul. Canções sem metro. Org. Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; FENAME, 1982. 209 p. (Obras, v. IV). RESENDE, Beatriz. Contemporâneos: Expressões da literatura brasileira no século XXI. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2008. SIMON, Luiz Carlos Santos Simon. O estudo da crônica sob o foco da crítica contemporânea. In: GRÁCIARODRIGUES, Kelcilene; BELON, Antonio Rodrigues; RAUER [Rauer Ribeiro Rodrigues]. O universal e o regional: literatura em perspectiva 1. Campo Grande: UFMS, 2009. VILELA, Luiz. No bar. 6 ed. Rio de Janeiro: Bloch, 1968. WATT, Ian. A Ascensão do Romance. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.


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INTENSIDADE, BREVIDADE E COALESCÊNCIA: DAS VERTENTES DO CONTO, O MICROCONTO Waleska Rodrigues de Matos Oliveira Martins 1 Resumo: Atualmente, a sociedade se vê “tensionada” numa relação tempo-espaço que evidencia a rapidez dos acontecimentos, a incerteza das posições, o sujeito em metamorfose e os discursos camalotes. A economia das palavras direciona a linguagem para uma aparente simplificação dos significados. Contraditoriamente, a limpidez textual não conduz o leitor ao sentido único, e emerge o inesperado. O conto foi o gênero narrativo que mais acompanhou as inovações tecnológicas e do sujeito nos últimos vinte anos. Têm-se, hoje, contos curtos, literatwitter, etc. O microconto ainda carece de uma conceituação adequada no âmbito dos estudos literários. Nesse sentido, a proposta deste artigo é ressaltar o “microconto”, sem perder de vista o “conto curto”, como gênero que, nos dias atuais, condensa mobilidade discursiva no mesmo passo em que repensa o indivíduo em seus planos sociais, políticos e culturais. Para tanto, propõe-se, para este artigo, o estudo de três escritores: o poeta Manoel de Barros, o ficcionista Luiz Vilela e o contista Rauer, com o objetivo de traçar, no decorrer do discurso, diferenciações entre conto, conto curto e microconto. Tensão, inconformidade, surpresa, tragédia, humor, nulidade, suspensão dos limites direcionais — são esses os elementos que aparecem e explodem no ritual silencioso da leitura do microconto contemporâneo. Palavras-chave: Narrativa contemporânea; Luiz Vilela; Manoel de Barros; Rauer.

INTRODUÇÃO

Na contemporaneidade, as proposições acerca do conto encontram-se marcadas por vertentes que em muito se diferenciam das pioneiras assertivas formuladas por Edgar Allan Poe (1809-1849) e Anton Tchekhov (1860-1904). E, embora suas contribuições tenham sido substanciais — quiçá orgânicas —, outros contistas reescreveram a história do conto e puseram seus nomes nos alicerces ficcionais e na teorização da narrativa curta, tais como, por exemplo, Machado de Assis (1839-1908), Guy de Maupassant (1850-1893), Quiroga (18781937), James Joyce (1882-1941), Virgínia Woolf (1882-1941), Kafka (1883-1924), Katherine Mansfield (1888-1923), Hemingway (1898-1961), Borges (1899-1986), Cortázar (1914-1984) e Piglia (1940- ). Para o estudo das vertentes do conto na contemporaneidade, que aqui empreendemos, nos valemos de narrativas de três autores ainda em franca produção: o poeta Manoel de Barros (1916- ), o ficcionista Luiz Vilela (1942- ) e o contista Rauer (1958- ). O conto foi o gênero narrativo que mais acompanhou a evolução tecnológica e social dos últimos vinte anos. Na era da internet, da restrição do tempo e globalização do espaço, da

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Doutoranda em Estudos Literários na UNESP de Araraquara; mestre em Estudos de Linguagens pela UFMS.


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fugacidade da consciência e incompletude sócio-político-cultural-econômica, o conto, que já se tornara conto curto, comprime-se ainda mais em mini-narrativa, miniconto, microconto, literatwitter, etc. Contudo, essas e outras nomenclaturas, acerca do gênero, ainda não foram adequadamente conceituadas no âmbito dos estudos literários. Buscamos, neste artigo, diferenciações entre conto, conto curto e microconto.1 Embora haja disparidade entre as definições existentes, em especial quanto ao microconto, empreendemos esforço metodológico para refinar a terminologia, definindo diretrizes que contribuam para diferenciá-los. Na literatura, acompanhando o movimento Minimalista, cujo início se deu no princípio dos anos 60 (nos EUA) e que se baseava na construção da arte através do mínimo de recursos, a estratégia se manifestou pela economia das palavras e síntese fabular, legando-nos o conto curto; já na atualidade ganha contornos, e conquista mais adeptos, o microconto, no início como radicalização do minimalismo, posteriormente em decorrência da abreviação comunicativa imposta pelos meios cibernéticos. Textos concisos que possuem intensa significação e narratividade, e que fogem do convencional, os microcontos apresentam diálogo ininterrupto com o contemporâneo e as inovações tecnológicas. O discurso é sucinto, um recorte cirúrgico no tumultuado cotidiano do final do século XX e deste início de XXI, o que provoca inquietação no leitor e o exige na coautoria. Nesse sentido, o presente trabalho, a partir da presença marcante do microconto e do conto curto nos dias atuais, procura demonstrar a mobilidade discursiva que hoje cerca a narrativa de curta extensão. Quanto aos autores que selecionamos para nosso estudo, Manoel de Barros e Luiz Vilela já alcançaram projeção internacional. De origens geograficamente distintas, eles têm — de maneira diversa — o inusitado e a inquietação como estados que se repetem em seus discursos. Já Rauer, que conta com sete livros de publicados,2 tem se voltado para o

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Utilizamos a proposta de microconto elaborada por Karla Paniagua-Ramírez (2000) em “Propuestas para una lectura minicuentísticas de prosa poética”, publicada no El cuento en Red.

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São os seguintes os livros de Rauer já publicados: Lugares intoleráveis (1982), E foram felizes para sempre (1989), Cenas de amor e paixão (1997), Iceberg (1999), A gota d’água (1999), Ilusão & trevas (2005) e Qohelet (2006); o escritor tem anunciadas diversas outras obras, entre romances, contos, e crítica literária. Mais informações podem ser encontradas em < http://lattes.cnpq.br/0639290942591728 >, e nos diversos links de < http://rauer.rauer.sites.uol.com.br/index.html >.


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microconto, em micronarrativas igualmente inquietas e inusitadas, e é para tal faceta da sua obra que nos debruçamos neste estudo. Apesar da vasta produção dos escritores, recortamos, para exemplificar os contos curtos, “Lacraia”, da obra Memórias Inventadas: segunda infância (2004), de Barros, e “As formigas”, presente no livro Tarde da noite (1970), de Vilela. Transcrevemos abaixo essas duas narrativas. E, como exemplo de microconto, apresentamos algumas narrativas ultracurtas, inéditas em livro, de Rauer (2009). Eis os contos de Barros e Vilela: LACRAIA Manoel de Barros Um trem de ferro com vinte vagões quando descarrila, ele sozinho não se recompõe. A cabeça do trem ou seja a máquina, sendo de ferro não age. Ela fica no lugar. Porque a máquina é uma geringonça fabricada pelo homem. E não tem ser. Não tem destinação de Deus. Ela não tem alma. É máquina. Mas isso não acontece com a lacraia. Eu tive na infância uma experiência que comprova o que falo. Em criança a lacraia sempre me pareceu trem. A lacraia parece que puxava vagões. E todos os vagões da lacraia se mexiam como os vagões de trem. E ondulavam e faziam curvas como os vagões de trem. Um dia a gente teve a má idéia de descarrilar a lacraia. E fizemos essa malvadeza. Essa peraltagem. Cortamos todos os gomos da lacraia e deixamos no terreiro. Os gomos separados como os vagões da máquina. E os gomos da lacraia começaram a se mexer. O que é a natureza! Eu não estava preparado para assistir àquela coisa estranha. Os gomos da lacraia começaram a se mexer e se encostar um no outro para se emendarem. A gente, nós, os meninos, não estávamos preparados para assistir àquela coisa estranha. Pois a lacraia estava se recompondo. Um gomo da lacraia procurava o seu parceiro parece que pelo


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 277 ISSN - 2176-6835 cheiro. A gente como que reconhecia a força de Deus. A cabeça da lacraia estava na frente e esperava os outros vagões se emendarem. Depois, bem mais tarde eu escrevi esse verso: Com pedaços de mim, eu monto um ser atônito. Agora me indago se esse verso não veio da peraltagem do menino. Agora quem está atônito sou eu. (BARROS, 2004).

AS FORMIGAS Luiz Vilela Foi a coisa mais bacana a primeira vez que as formigas conversaram com ele. Foi a que escapuliu da procissão que conversou: ele estava olhando para ver aonde que ela ia, e aí ela falou para ele não contar pro padre que ela tinha escapulido ― o padre ele já tinha visto que era o formigão da frente, o maior de todos, andando posudo. Isso aconteceu numa manhã de muita chuva em que ele ficara no quentinho das cobertas, com preguiça de se levantar, virado para o outro canto observando as formigas descendo em fila na parede. Tinha um rachado ali perto por causa da chuva, era de lá que elas saíam, a casa delas. Toda manhã aquela chuva sem parar, pingando na lata velha lá fora no jardim, barulhinho gostoso que ele ficava ouvindo, enrolado no cobertor, olhando as formigas e conversando com elas, o quarto meio escuro, tudo escuro de chuva. A conversa ficava interessante quando ele lembrava de perguntar uma porção de coisas e elas também perguntavam pra ele. (Conversavam baixinho para os outros não escutarem.) Mas às vezes não lembrava nada para conversarem e ficava chato, ele acabava dormindo ― formiga tinha hora que era feito gente mesmo. O bom é que ninguém precisava gritar nem também mentir, como as pessoas estavam sempre fazendo. E também poder ficar olhando assim sem falar nada, só olhando, sem precisar falar. Gente, se tinha outra perto, logo uma tinha que falar, ninguém aguentava ficar calado: vaca amarela, pulou a janela, cagou na tigela, mexeu mexeu, quem falar primeiro come a bosta dela: logo uma falava ou ficava fazendo hum hum e ria ― ninguém aguentava. Ficar só assim olhando, tão bom que nem sabia direito se estava acordado mesmo ou sonhando, as formigas uma atrás da outra, descendo, a fila certinha. Uma tarde entrou no quarto e viu a mancha de cimento novo na parede, brutal, incompreensível. ― Pra quê que o senhor fez isso? pra quê que o senhor fez assim com minhas formigas? O pai não entendia, e o menino chorando, chorando. Então o pai deu no espalho. Mas a mãe pediu para ele ter paciência: nesse tempo de chuva as crianças ficam muito excitadas porque não podem sair à rua e não têm onde brincar. De manhã o menino acordava e olhava para a mancha de cimento na parede. Ficava olhando, até que sentia um bolo na garganta e cobria a cabeça com o cobertor. (VILELA, 1983, p. 128–129).1 1

A primeira edição do livro em que está este conto é de 1970.


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Os microcontos de Rauer serão apresentados ao longo das análises.

PARALELAS FICCIONAIS QUE SE CRUZAM: BARROS E VILELA

Os amantes da grande poesia tiveram, nas últimas décadas, o prazer de ver o poeta Manoel de Barros sair do anonimato das conchas (de caramujo-flor) e entrar para o mundo da Literatura. Para elaborar sua narrativa, o poeta das vazantes e dos corixos pantaneiros possui prazer em colher, ao rés do chão, certas palavras “já muito usadas, como as velhas prostitutas, decaídas, e arrumá-las num poema, de forma que adquiram nova virgindade” (MAYRINK, 1994). Considerado um dos maiores poetas brasileiros da atualidade, Manoel de Barros nasceu em Cuiabá (MT), no ano de 1916, e mudou-se, ainda bebê, para Corumbá (MS). Fixou-se tão bem na “cidade branca” (como Corumbá também é conhecida) que chegou a ser considerado corumbaense. O primeiro livro publicado nasceu em 1937, com o título virginal de Poemas concebidos sem pecado. Em 1942, logo depois de se formar bacharel em Direito, no Rio de Janeiro, o poeta apresenta Face imóvel. Dentre outros, nas décadas seguintes, publica Poesias (1946), Compêndio para uso dos pássaros (1961), Gramática expositiva do chão (1969), Matéria de poesia (1974), Livro de pré-coisas (1985), Retrato do artista quando coisa (1998), Livro sobre Nada (1996), O fazedor de amanhecer (2001), a trilogia Memórias inventadas: a infância (2003), Memórias inventadas: segunda infância (2004), Memórias inventadas: terceira infância (2008) e Menino do mato (2010). Recebeu diversas láureas por sua obra: o Grande Prêmio da Crítica/Literatura, concedido pela Associação Paulista de Críticos de Arte, o Prêmio Jabuti de Poesia, de 1989, pelo livro O guardador de águas, concedido pela Câmara Brasileira do Livro, e o Prêmio Nestlé. Recentemente recebeu os títulos de Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e da Universidade Católica Dom Bosco.1 Ao rés do chão, por entre corixos e lagoinhas teimosas por nascer em meio à terra 1

Informações biográficas detalhadas podem ser encontradas em < http://www.releituras.com/manoeldebarros _bio.asp >, acesso em out. 2011.


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rachada, entre cheias que se espelham no céu pantaneiro, lateja a poesia de Manoel de Barros, em linguagem que se retorce como a vegetação do cerrado: sintaxe invertida, palavras forjadas nos seus próprios refolhos, cotidiano recortado de um olho de pequenas jias. O Pantanal, além de cenário de peraltagens infantis, é fala, ser, coisa, mutação, transubstância, caminho e retorno, movimento em um único ato, cena de paixões e estática. O diretor, fragmentado em inúmeros Outros, comanda o ensaio cujo espetáculo se presencia no momento do abrir da capa. Sons e silêncios envolvem a poética de Manoel de Barros como lírios que convidam os leitores a se entregarem aos pântanos para sujar matizes no branco das garças pernetas. Luiz Vilela nasceu em Ituiutaba, em dezembro de 1942. Formou-se em Filosofia na cidade de Belo Horizonte e lançou sua primeira obra aos 24 anos. O livro de estreia tremeu com os alicerces da literatura brasileira ao receber o Prêmio Nacional de Ficção, em Brasília — o título não poderia ser outro, Tremor de terra (1967). Vilela foi premiado no I e no II Concurso Nacional de Contos, realizados no Paraná no final da década de sessenta, e, em 1974, recebeu o Prêmio Jabuti pelo livro de contos O fim de tudo, lançado

no

ano

anterior.

Traduzido para diversas línguas, o escritor tem várias de suas obras adaptadas para o cinema, o teatro e a tevê.

Luiz

Dentre

outros

Vilela

publicou

títulos, No

bar (contos, 1968), Tarde da


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noite (contos, 1970), Os novos (romance, 1971), O fim de tudo (contos, 1973), Lindas pernas (contos, 1979), O inferno é aqui mesmo (romance, 1979), Entre amigos (romance, 1983), Graça (romance, 1989), Te amo sobre todas as coisas (novela, 1994), A cabeça (contos, 2002), Bóris e Dóris (novela, 2006), e diversas antologias, sendo a mais recente Amor e outros contos (2009).1 A obra de Vilela é como um turbilhão em fúria, em meio a tempestades filosóficas e a acontecimentos ironicamente perturbadores, que fazem emergir o ser no mundo e sua incompreensão como humano. Nesse universo ficcional, a linguagem de Luiz Vilela desnuda os valores sociais, arrepia os puritanos, escancara mentiras e despedaça verdades. A ironia é o tom escolhido para as mais diversas ocasiões: seja na morte sentida, seja no estupro consentido, seja na mudança radical da vida e dos sentimentos, seja na conversa despropositada de freiras — em tudo, o fio cortante do sarcasmo perpassa os romances, novelas e contos de Vilela. Dono de uma sintaxe equilibrada e de uma atmosfera em plena queda, em constante desequilíbrio psicológico, o alvo do escritor Luiz Vilela não é o leitor, mas a consciência, a verdade e a criticidade de quem o lê. Capaz de narrar a mais leve perturbação que subjaz em singelas conversas entre amigos, Vilela expõe de maneira enviesada, mas sóbria, as verdades incomodativas mascaradas pela humanizada convivência social, em tudo sórdida e desumana. Escritores cujas paralelas geográficas os distanciam, o poeta pantaneiro e o ficcionista mineiro se encontram no plano desconcertante da ficção brasileira, nos diálogos com a contemporaneidade, nos entremeios dos sujeitos ficcionais e pessoais: Manoel de Barros e Luiz Vilela desconcertam o transcurso do cotidiano, ressaltam o imagético e potencializam o discurso narrativo como instrumento sócio-político e cultural — e é nesse quadro, e nessas pegadas, se também se instauram os microcontos de Rauer.

POR ENTRE AS FRESTAS DO CONTO Edgar Allan Poe acreditava que a brevidade e a concisão do conto levariam o leitor da short story à totalidade do discurso (MOSCOVICH, 2005). Hemingway, Cortázar e Piglia, 1

Biobibliografia completa do escritor, com fortuna crítica e diversos outros serviços, estão disponíveis no blog do GPLV – Grupo de Pesquisa Luiz Vilela, nos links disponíveis em < gpluizvilela.blogspot.com >, acesso em outubro de 2011.


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partindo dos pressupostos de Poe, propõem novas diretrizes para o gênero — tais percursos, mais tarde, serão ainda mais precisos e justos para estabelecer os alicerces discursivos do conto curto, do miniconto, do microconto, das micronarrativas com apenas uma palavra, etc. Cortázar insistia na tensão como principal elemento para a composição do conto, emprestando, assim, maior vivacidade ao texto: [...] se não possuirmos uma idéia viva do que é o conto, teremos perdido nosso tempo, pois um conto, em última instância, se desloca no plano humano em que a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se me permitem o termo; e o resultado desta batalha é o próprio conto, uma síntese viva e ao mesmo tempo uma vida sintetizada, algo como o tremor de água dentro de um cristal, a fugacidade numa permanência. (CORTÁZAR, 1993, p. 147).

Hemingway ressaltara, antes, a importância do efeito que esta tensão causaria, não na totalidade textual, mas no leitor. Sua contribuição mais significativa é a teoria do iceberg, cuja comparação metafórica apresenta um emaranhado de elementos, “submersos”, que não são evidentes, à primeira vista, na tessitura do texto. Cada elemento, cada detalhe deve exercer uma função pré-concebida pelo escritor, de maneira que cada pormenor existente no conto esteja ao serviço do efeito que se pretende. Para Hemingway, o verdadeiro valor do conto está na proeza econômica, revelando muito pouco e guardando os principais fatos, deixando-os subentendidos. Espalhadas na narrativa de maneira discreta, certas palavras seriam como que cristalizações em linhas que aprofundam o sentido, e que formam o desfecho e informam ao leitor o que está além do final, embora este ainda se apresente de maneira surpreendente. Cabe, então, ao leitor preencher as elipses, a partir de micropistas textuais. Por isso, a economia vocabular e a precisão de cada palavra na narrativa são essenciais para que o efeito tenha assegurada sua intensidade e o iceberg submerso brilhe à luz do sol. Aliado ao movimento Minimalista da década de 60, ao surto e à agitação econômica, cultural, social e política do final do século XX e início do XXI, o conceito de conto passa por necessária ampliação para acompanhar as inovações tecnológicas. E as narrativas são cada vez mais curtas, mais recortadas, mais impressivas, imprecisas e expressivas. No discurso do microconto o importante é estabelecer apenas um núcleo significativo, ou seja, não importa quem é a personagem, se homem ou mulher, se há espaço delimitado ou demasiado aberto, se


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era dia ou noite: — é o leitor que completa as cenas. Há um jogo silencioso entre a ocultação total e a revelação parcial, como percebemos em “Dantesco”, microconto de Rauer: DANTESCO Por aquele amor que os uniu e se esvai, que não perdoa se não lhe volta amor, morto cai, como um corpo morto cai. (Rauer, 2008-2011).1

Em “Dantesco”, o inferno é refletido em suaves significações e rápidas, mas profundas, marcas de nulidade. A narratividade2 se esgota em um único sentido: a inexistência/existência do sujeito. Nesse microconto, a intensidade do acontecimento, que não é posto ao leitor, provoca uma turbulência nos sentidos. Apesar da palavra “amor”, duas vezes apresentadas no discurso, demonstrar algo relativo ao idílico, ao sentimento positivo, a figurativização da morte, que invade o texto, dilui o termo “amor” e toda sua significância. A alma dilacerada se concretiza na trama ficcional no momento da convicção do amor morto, “como um corpo que cai”. O narrador, ora indiciando participação ora mostrando solidariedade contemplativa, desfigura a cotidianidade, anuncia as máscaras que caem. As vírgulas elaboram espaços que desmarcam as referências narrativas: no primeiro bloco (“Por aquele amor que os uniu e se esvai”), o autor dá continuidade a um discurso que não foi dado anteriormente, um recorte no pensamento ou no diálogo; no segundo espaço (“que não perdoa se não lhe volta amor”) abre-se a descontinuidade, ou seja, quem não perdoa? É o instante da suspensão dos sentidos positivos, do amor que não volta, que se esvai; a terceira parte (“morto cai”), breve e curta, evidencia a permanente fugacidade da vida na figura da morte; por último, como que em um golpe sem misericórdia, o narrador apresenta a união entre corpomorte-amor: “como um corpo morto cai” — e a sonoridade da palavra amor reverbera em corpo e em morte. O título, clara referência ao magistral “A divina comédia”, de Dante Alighiere, apresenta no seu cerne a máxima do livro: “Deixai toda a esperança, ó vós que entrais”. É a 1

Outros microcontos, bem como os haicais, podem ser lidos no twitter (sendo reproduzidos no facebook) do próprio autor, em: < http://twitter.com/#!/rauer_rauer >, acesso em novembro de 2011.

2

Narratividade significa, por óbvio, narrar algo, contar a passagem de uma personagem de um estado a outro, implicitamente ou explicitamente. Sem narratividade, o texto corre sempre o risco de ser uma simples descrição de cena e não um conto, conto curto ou microconto.


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ausência da esperança de algo que não mais voltará. Há, na verdade, esperança catártica de que os bons sejam recompensados. Cai por terra toda a positividade e fica apenas o silêncio da constatação. A atmosfera pesada provoca sentimento angustiante e dúbio no leitor. Não se sabe quem cai, ou o que cai. Temos apenas a certeza de que não volta. O narrador é diluído no texto e se fragmenta apenas no olhar, na exposição do acontecimento captado pela brevidade do instante de vida e morte — início e fim; o início, o título (transmutado na elocução do cair da morte), é o fecho em elipse, presentificado quando o olhar do leitor, chamado a complementar a leitura, repousa o olhar novamente no título que já lera. O “dantesco” é hipérbole da vida e da inexistência. É caminho que perfaz todo sujeito diante da dúvida de sua existência enquanto ser. E é pensando em elementos que dialogam com o leitor que o autor elenca palavras que norteiam o microconto e que permeiam os estados de espírito da personagem: “Por aquele amor que os uniu e se esvai, que não perdoa se não lhe volta amor, morto cai, como um corpo morto cai” (destaque nosso). É “aquele amor”, e não “este”, que distancia o sujeito de suas relações afetivas. A negatividade é a atmosfera escolhida. Contudo, não se pode precisar os acontecimentos anteriores e nem posteriores, sendo as molduras iniciais e finais anuladas e/ou marcadas pela tragédia. Tal procedimento suga da vida toda a profundidade que a cerca, suga a vida de toda alma que lhe animava. Tudo o mais se torna plasmação de um outro realismo. Tudo o mais, o quê? Parece-nos que, ontologicamente, o ser que se apresenta está exausto do próprio significado de ser, de sua existência sem sentido e sem norte, gratuita e vã. Há uma simetria de aliteração (forte recorrência de letras fechadas e oclusivas) que evoca a destruição interna da personagem; e, nos parece, tal destruição arrasta em seu bojo uma “morte” íntima. Há, nessa narrativa apresentada em versos que invocam de modo intertextual o poema de Dante Aleghieri, um eixo mortuário que corrobora para a síntese comunicativa e para a limpidez textual — elementos importantes para o microconto. A narrativa do “conto curto”, bem como do “microconto”, começa no meio da ação, a meio passo do clímax. Uma possível conceituação diferencial estaria na sequência causal, ou seja, no “conto curto” há mais de uma sequência de ação-reação-nova situação. Nesse sentido, as narrativas insetais de Manoel de Barros e Luiz Vilela apresentam-se em consonância com tal proposição. No texto “Lacraia” nós temos a ação dos meninos peraltas


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em “descarrilar” o inseto, a reação da lacraia em tentar se recompor, e a nova situação, ou melhor dizendo, o novo sujeito que nasce dessa experiência. Em “As formigas”, de Vilela, temos uma estrutura um pouco diferente: ação — o menino que conversa com as formigas; outra ação — o pai que fecha a fresta por onde passavam os insetos; nova situação — o desconsolo do infante diante da ação paterna. A convivência, mesmo que por um período curto, entre estes seres inusitados e a personagem ou o narrador, foram recortados do cotidiano infantil. O início da aventura dá-se sem que haja nota prévia. É o estado bruto do verbo ser: os infantes são agentes de ações diretamente inaugurais e marcantes. As molduras narrativas (elementos que sinalizam o início e o fim de um discurso) são suspensas da narrativa, de maneira que o leitor tende a preenchê-las. É o leitor que determinará, dentro de sua leitura, a cor dos cabelos, se a criança é fraca ou gordinha, se sempre acompanhou a trajetória biológica dos insetos. Em “As formigas” e em “Lacraia”, o silêncio que exala das narrativas apresenta a impossibilidade comunicativa com o mundo exterior. Esse silêncio fundador, inquietante e mútuo antecipa a necessidade do poeta Manoel de Barros e do ficcionista Luiz Vilela em percorrer a palavra não-dita, o mundo perturbador e inaugural da criança. O acontecimento que marca a infância é lançado pelos escritores de maneira indeterminada, situando o leitor num espaço quase mítico, de exemplaridade. A indeterminação temporal acontece nos seguintes trechos das narrativas: “Um dia [...]” (Barros, Lacraia, 2004), “Isso aconteceu numa manhã de muita chuva [...]” (Vilela, 1983, p. 128). Indeterminação temporal e espacial também marca o microconto de Rauer, mas em universo adulto da ontologia do ser, o que também faz a narrativa ter sua configuração de exemplaridade. A lacraia, inseto peçonhento e extremamente ágil, foi “poetizada” por Manoel de Barros no momento que lhe emprestou corpo ao “desalmado” invento humano — a máquina trem. No “conto curto”, bem como no “microconto”, a seleção vocabular é ainda mais precisa e a concisão torna-se elemento caro à narrativa curta. Para Manoel de Barros, a lacraia é o espaço imagético e particular da criança, é a parte “humanizada” de uma sociedade fria, encarrilhada nos trilhos econômicos. A comparação, aparentemente ingênua, é movida pela criticidade social. É através da metáfora ensaística do poeta que o menino experimenta da maldade humana, do inusitado, da epifania, da comunhão divinal, como verificamos nos trechos seguintes: “Um dia a gente teve a má


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idéia de descarrilar a lacraia. E fizemos essa malvadeza”; “Eu não estava preparado para assistir àquela coisa estranha”; “A gente, nós, os meninos, não estávamos preparados para assistir àquela coisa estranha”; “A gente como que reconhecia a força de Deus”. A formiga, que apresenta organização parecida com a sociedade humana, foi o inseto escolhido por Luiz Vilela. Eleita desde a célebre fábula da “cigarra cantante” para representar a alegoria do trabalho, do esforço coletivo em benefício de uma sociedade, a formiga aparece no discurso de Luiz Vilela para desordenar o sistema. A fábula que recrimina a cigarra, que passa os dias a cantar, enquanto as formigas trabalham constantemente, é — muitos já o demonstraram — uma apologia ao processo capitalista. A formiga de Vilela sai da normalidade, desestrutura e subverte o espaço natural, caminhando para o imagético infantil. É no mundo particular e silencioso da criança que a formiga, ou a metáfora do ficcionista-narrador, apresenta o acontecimento, nem palpável nem visível, apenas em silêncio fundador, aquele que diz o não-dito, como podemos evidenciar nos seguintes trechos: “Foi a coisa mais bacana a primeira vez que as formigas conversaram com ele. Foi a que escapuliu da procissão que conversou”; “formiga tinha hora que era feito gente mesmo”; “O bom é que ninguém precisava gritar nem também mentir, como as pessoas estavam sempre fazendo. E também poder ficar olhando assim sem falar nada, só olhando, sem precisar falar”. A criança, cuja visão é crítica, prefere os bichos “humanizados” à sociedade real. Se há antropomorfia em Barros e em Vilela, em Rauer constatamos fábula de movimento inverso: a dolorosa percepção da nulidade do ser. O homem vê-se diante de um doloroso fim, e os sentimentos familiares e pessoais são dilacerados pela mortalidade da existência: o outro torna-se “dantesco”, e o substantivo torna-se adjetivo que nomeia o modo pelo qual o eu-lírico, despojado do amor que sente, se situa no mundo. Se no conto o ponto de partida da narrativa está a meio passo do clímax, no microconto a sequência causal se apresenta já no próprio clímax, que fulgura como uma epifania. Mas o microconto pode ser um estado que se torna ação imprevista, denunciadora, elíptica. É o que Rauer faz em outro microconto, ao subverter a ordem natural do discurso, da lógica criada pelo pensamento do leitor, ao animalizar o conhecido “E foram felizes para sempre”:


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 286 ISSN - 2176-6835 CONTO DE FADAS Era uma vez um príncipe encantado, moço respeitador, e sua donzela, moça de puro recato. Nas núpcias, ela flutuava, feliz para sempre. Então, sentiu no peito, de cima abaixo rasgaçalhando o vestido de noiva, as mãos dele. (Rauer, 2008-2011).

Ao que parece, o tão sonhado “Conto de fadas” descortina o mundo ficcional e idílico da donzela lhe escancarando a realidade. Cortante como uma navalha, o “príncipe encantado” despedaça o prazer ingênuo das núpcias, transformadas em levitação da alma, e inverte a estrutura dos contos de fadas. A moldura final é posta no meio da narrativa — “feliz para sempre” (percebemos que o termo “feliz” está no singular, possivelmente evidenciando a felicidade unilateral da donzela, invertendo, mais uma vez, a passagem discursiva do “felizes para sempre” característico dos contos de fadas) — que recomeça de maneira inversa ao primeiro bloco do discurso. A ligação entre o estado de graça e a realidade que se instaura é abrupta, aparece através da palavra “então”, como se indicasse, na continuidade, a inauguração da cena sempre ocultada de todos os contos de fadas. Não há fim, mas um processo inacabado cujo complemento cabe ao leitor. A personagem feminina — donzela — é intensificada pelo “puro recato”. Duas palavras que configuram uma posição enaltecedora, quase divinal. Experiência similar há tanto no conto de Barros quanto no de Vilela. A ingenuidade, que marca as personagens das narrativas, é logo esgarçada: em Rauer, pelas mãos de um príncipe; em Vilela, lá pela mão paterna; em Barros, pelas próprias mãos das crianças.

IDENTIDADES: POR ENTRE AS FRESTAS DO SER

A sociedade atual é um epicentro vibrante cujas relações sustentam uma igualdade, ou nivelamento, entendida como natural. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (2007, p. 42, grifo do autor) evidencia que “a imagem de uma ‘cultura híbrida’ é um verniz ideológico sobre a extraterritoriedade, atingida ou declarada”. O hibridismo na cultura e no aspecto social está diretamente ligado à questão da “identidade heterogenia”. Contudo, é importante


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salientar a proposição de Bauman (2007, p. 43), concordando com Sartre, de que a identidade é um “projeto para toda a vida”, um construto que mescla vários elementos sociais, culturais, até mesmo econômicos e políticos, consolidando, efetivamente, um reconhecimento de nós mesmos. Os limites identitários da lacraia e das formigas são corrompidos: ora trem com alma, ora entidade sobrenatural que demonstra a força de Deus; ora inseto que se organiza como uma sociedade humana, ora rebeldia diante do biologicamente tradicional; ora como gente de verdade, ora inseto. Seres diferentes, identidades desiguais, estados que estão “entre” uma coisa e outra, como, em Barros, na lacraia que parecia trem e com a qual o menino se identifica. Já em Vilela, há alegoria, do humano e da sociedade, e a identidade como que se constrói em antropomorfia, com as formigas reverberando sentimentos e a sociedade humanos. O que se presencia, entre lacraias, formigas e crianças, é um universo imagético, um espaço outro de troca de experiências e de convívio. Não há limites estabelecidos, nem mesmo o dentro e o fora, tão somente o antes e o depois. Neste microcosmo, o isolamento dá lugar ao imaginário e à destituição da hierarquia biológica ou social. Tudo o mais se amplia, e o ser humano sente-se cada vez mais pequeno diante da imensidão divinal (“A gente como que reconhecia a força de Deus”) ou da maldade humana (“[...] e viu a mancha de cimento novo na parede, brutal, incompreensível”). A indiferença diante do universo e da expectativa que a criança gera em torno dos animais é recorrente na

Mansfield, autora do antológico “Aula de canto”, conto com diversas traduções para o português


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literatura, não só na infantil. A narrativa de Luiz Vilela parece comunicar-se com o conto de Tchekhov (2005), “O acontecimento”, no qual duas crianças ficam maravilhadas com o nascimento dos gatinhos. Planejam, sonham, criam expectativas. Contudo, um cão, Nero, devora os filhotes e destrói todo universo criado pelos infantes. Inconformados com o “acontecimento”, as crianças esperam a condenação do criminoso. De maneira insensível, a mãe os manda para o quarto. Os contos curtos de Barros e Vilela transitam livremente entre os reinos — a lacraia no animal, mineral e espiritual; e a formiga, apesar de permanecer apenas no reino animal, fica entre a categoria do “racional falante” e a categoria do “irracional”. O poeta e o ficcionista

metaforizam

a

multiplicidade

identitária,

presente

nas

discussões

da

contemporaneidade. As narrativas apresentam, diante do conciso espaço textual, uma seleção vocabular que permite ao leitor acionar inúmeras outras leituras; tudo decorre do momento sócio-cultural e do esforço de percepção que leitor e plateia dispensam ao conto como espetáculo da própria leitura. No microconto, ainda mais conciso que o conto curto, a indeterminação da personagem contribui para atmosfera de solicitude do leitor, chamado, desde o momento de leitura do título, à coautoria da narrativa. O exemplo abaixo, de Rauer, exemplifica:

FIM DE CASO Chegou em casa e confirmou: sim, terminara. Ao anúncio, sobreviveu cinquenta anos. Nunca mais sorriu. (Rauer, 2008-2011).

Há uma evidente crítica ao mundo das aparências — o início, ironicamente, está no término do relacionamento. Contudo, a personagem apresentada e outra(s) pressuposta(s) continua(m) interpretando seu(s) papel(eis) social(is). Não há nenhuma pista da sexualidade da personagem, que agora se apresenta indiferente ao mundo. Desfigurativizada em quase tudo, nesse microconto a personagem deixa de ser — em linguagem greimasiana — ator, e surge no texto como actante, em molde que parece ser característico da síntese cristalizadora absoluta que o microconto, como gênero, se impõe. Essa personagem, desvestida pois de toda e qualquer característica e atributo, apresenta-se como actante de dramas, angústias e dores, os quais enfrenta, solitário e em liberdade absoluta, confrontado com outro ser igualmente apresentado no cerne de si mesmo.


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Em “Fim de caso”, o relacionamento do suposto casal é baseado no cristal da superficialidade que esconde o desgaste e o aniquilamento dos sentimentos do(a) protagonista. A intensidade se concentra na moldura final, ou seja, na morte do ser, de sua essência. O ator emudece no ricto amargo da dor e o rosto que não sorri é máscara mortuária. Alteridades em confronto, o relacionamento humano se dá, na ficção de Rauer, como uma antropologia de inescapável sofrimento. O leitor é jogado no meio deste final de conflito conjugal e está diante do dilaceramento da alma da personagem. É neste momento de silêncio profundo que o leitor experimenta o sabor amargo da dissolução do caso. A experiência do casal é, possível e silenciosamente, um desejo contido no Outro. O “Eu” só se tem consciência, consciência de si, quando perpassado pela inapreensível experiência do Outro. Se o tempo em que vivemos hoje não é de pós-modernidade, mas de “modernidade líquida” (cf. Bauman, 2009, p. 14-18), no qual encontramos incertezas devido ao individualismo extremado e à ausência de solidariedade coletiva, com disputas, competições, enfraquecimento de sistemas de proteção social, em que o homem vive com exacerbado instinto de caçador, por meio de “uma rápida aceleração de produtos comprados e vendidos, em que a rápida eliminação de resíduos se tornou a vanguarda da indústria” (Bauman, 2009, p. 16), vemos esse nosso tempo registrado na rapidez dos microcontos de Rauer, na estupidez dos enredos encenados, na violência que vitima as personagens e na solitária crueza reiterada com que, mônadas que não se comunicam, eles padecem as suas dores. O casal se vê na superficialidade e no dilaceramento dos sentidos, cada um de seus membros incomunicável com o outro, fechados em si mesmos, mas apresentados na transparente infelicidade. A suspensão acresce na atmosfera indeterminativa do discurso: fim de qual caso? A que se deve o fim? E depois, o que acontece? O autor não nos oferece pistas do que aconteceu, mas nos mostra o ápice das ações e o desfecho trágico — trágico, qualquer que seja o fato gerador, qualquer que seja o que se confirmou: se um caso extraconjugal ou se a vida conjugal. O anúncio que entremeio a ação inicial e a consequência final, não é só o fim do caso, é o primeiro dia do resto da vida relatada, que permanece em elipse, mas pulsa, rompendo a página — ou a tela da internet — e golpeando duramente o leitor. A narrativa de faz com quinze palavras, sendo cinco verbos; é pura ação, que se dá entre a positividade do “confirmou” e a negatividade do “nunca”, sendo o primeiro polo reforçado pela palavra “sim” e o segundo pelo “mais”. O espaço “casa” se opõe a um espaço pressuposto, antecedente, externo, de onde a personagem “chega”. O terceiro verbo, central, dialoga com o título, que já anunciara o término, “Fim de caso”. Mas se termina e é fim, e tal


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é o anúncio feito, ou a constatação dada pelo espaço da casa, o externo e o interno, esses espaços físicos do ato sofrido ou da atitude tomada reverberam no sentimento do/da protagonista, pois se há vida que segue, ela segue sem alegria, totalmente disfórica, pois que a personagem nunca mais volta a sorrir, expressão que deixa entrever que havia, antes, motivos para sorrir. O universo das relações pessoais e conjugais, em Rauer, é o universo dantesco do castigo permanente, em um silencioso hui-clos sartriano vivido em vida. O já mencionado convívio de experiências e identidades plurais também acontece no campo cultural. Segundo Hutcheon (1991), há uma ampliação e um atrito nas fronteiras das artes que permitem a coexistência ou amálgama dos gêneros, dos discursos e das manifestações artísticas, assinalando, assim, para a convivência dos plurais. Os gêneros literários apresentam-se, por vezes, mesclados ou interagindo em harmonia, sem que haja uma fusão simplória, ou uma sobreposição hierárquica dos formatos textuais. Sendo assim, a fluidez indicia a passagem de um estado para o outro, de um gênero ao outro, de um discurso para o outro, de um ser que era, e que agora já não se é nem mais se sabe. O ser — na visão de Rauer — se extingue: em “Fim de caso”, o ser deixa de ser, obedece às normas, sucumbe no desejo e subsiste em anomia, se é que se pode dizer que subsiste. No entanto, outros microcontos de Rauer evidenciam a construção de diversos sujeitos, com a inauguração de outras possibilidades, de outros indivíduos. O humano construído nos microcontos de Rauer experimenta — como veremos em mais um exemplo, à frente — múltiplas sensações, condensadas em momentos de autoconhecimento, êxtase, indignação, resignação e epifania.1

GÊNEROS: POR ENTRE OS CALEIDOSCÓPIOS TEXTUAIS A atmosfera de indeterminação, presentes na obra de Barros, na de Vilela e na de Rauer, aparece tanto no aspecto identitário dos seres quanto no discursivo. Os narradores, um ensaístico (em “Lacraia”), outro diluído (em “As formigas”), e outros quase inexistentes em sua indeterminação (“Dantesco”, “Conto de fadas” e “Fim de caso”), transferem para os textos a convivência dos múltiplos e a incomunicabilidade entre os humanos. Ainda que tenhamos denominado de “contos curtos” as narrativas do poeta Manoel de Barros e do ficcionista Luiz Vilela, o gênero escolhido pelos autores comunica-se com 1

Para conhecer outros microcontos de Rauer, confira a antologia no final deste Dossiê. (Nota da Org.).


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outros gêneros textuais, tais como — entre outros — a fábula, o lírico e o científico. Os gêneros, no momento camaleões, figuram conforme a perspectiva de leitura do leitor. Sendo assim, o jogo enunciativo tende, inevitavelmente, a fazer uma re-visitação de delimitações ditas canônicas. Poderíamos encontrar, nos textos “Lacraia” e “As formigas”, características que figuram de modo pertinente no conto, ou no conto curto. Quanto ao microconto, suas bases teóricas e literárias ainda estão por ser definidas. Contudo, elencamos algumas das evidências mais constantes no que se diz do “conto curto” nas obras analisadas, assim como o que depreendemos como característico do “microconto” a partir dos exemplos de Rauer com que trabalhamos: 1)

a brevidade — as narrativas de Barros e Vilela não ultrapassam o espaço de uma lauda, e as de Rauer se circunscrevem a algumas dezenas de palavras — ou ainda a menos do que isso, como em “Homem”, que sintetiza tudo em um único sinal gráfico, naquele que deve ser o menor microconto já escrito;

2)

a seleção — há uma cuidadosa seleção dos vocábulos para que, devido à brevidade, não se perca a unidade do discurso, apresentando o intenso domínio que os autores tem sobre a linguagem. Nenhuma palavra é posta no texto sem que seu significado seja minuciosamente trabalhado em função da síntese e limpidez comunicativa;

3)

o cotidiano — a matéria discursiva predominante do “conto curto”, e que é constante ao menos nos “microcontos” estudados, é o cotidiano. Os autores fazem um recorte preciso e cirúrgico na vida, no instante de maior densidade significativa: no caso do “Lacraia”, a experiência do menino deu origem a um novo ser humano; em “As formigas”, a criança experimenta sua primeira desilusão com o mundo real; em Rauer, a ação encenada é sempre única, condensada ao limite. Temos intensa significação de valores morais e sociais cristalizados em narrativas cujos instantes representam morte e vida, circunscritas no prosaico;

4)

as molduras — as marcas cronológicas de início e fim que emolduram as narrativas são deslocadas e as narrativas começam no meio da ação, como se nos fosse oferecido um pedaço de filme cujo início não nos é bem determinado, e o fim é outra ação cortada ao meio. Apesar de possuir, aparentemente, as chamadas “molduras narrativas” (elementos que sinalizam o início e o fim de um discurso), os três escritores desnorteiam essa estrutura narrativa, colocando as possíveis “molduras iniciais” não no começo do discurso, mas no meio: “Um dia a gente teve a má idéia de descarrilar a lacraia” (BARROS, 2004); e “Isso aconteceu numa manhã de muita chuva em que ele ficara no quentinho das cobertas” (VILELA, 1983, p. 128); em Rauer, as molduras, em alguns casos, são simultaneamente início, desenvolvimento da ação e fecho, fazendo da sequência narrativa quase que uma negativa do que seja narratividade (veja-


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se, a esse propósito, o diálogo intertextual com Oswald de Andrade, quando Rauer escreve um microconto, com o título “Amor”, resumido à palavra “dor”); 5)

a coalescência — desse modo, de maneira geral, nos microcontos a ação é já o clímax e epílogo e as molduras início-epílogo são coalescentes entre si e com o todo da ação narrativizada. As bases norteadoras são delineadas de maneira tão sutil que as molduras, em todos os microcontos expostos, parecem diluir-se no enredo fabulado, dando impressão de que não há delimitação e elas se imbricam uma na outra antes mesmo de se configurarem individualizadas.

Podemos encontrar características que indiciariam a presença do gênero fábula nos dois contos curtos — “Lacraia” e “As formigas” —, tendo em vista que a principal característica deste subgênero literário é a chamada “moral da história”. Vislumbramos uma possível moral da parábola no texto de Manoel de Barros no seguinte trecho: “Com pedaços de mim, eu monto um ser atônito”. Na narrativa de Luiz Vilela, teríamos provável moral da história nesta passagem: “O bom é que ninguém precisava gritar nem também mentir, como as pessoas estavam sempre fazendo”. Todo contexto do discurso circula no universo da vida e da morte, Tanatos e Eros; parece assim haver certo equilíbrio que renova e acresce nos ensinamentos sociais e identitários, cuja presença, ainda que disfarçada, evidencia a trajetória das personagens no caminho do aprendizado e do crescimento. Nos microcontos de Rauer, o circuito também é o mesmo: a identidade do humano é questionada, o Tanatos consome o Eros, que no entanto persiste, e a cena narrativa evidencia vida-morte como um todo indissolúvel. Mas, se existe moral, ela se desloca do discurso para o narratário, que é consumido e subsumido pela contração físsil com que cada microconto explode na alma do leitor. Isso porque eclode, das micronarrativas de Rauer, uma profusão de sentimentos dúbios, complementares, cujo amálgama não equilibra, antes desafia e expõe, como verificamos no seguinte microconto: QUERIDO, Se nos encontrarmos, você terá meu corpo, não a mim, pois não mais me sou: Eu. (Rauer, 2008-2011).

Refugo e paixão tensionados pelo querer e não querer, pertencimento e submissão. Apenas a carne é oferecida ao homem, como num banquete ritualístico da antropofagia. Mais


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uma vez a nulidade absorve os sentidos, mastiga-os, devora-os de maneira fria e transforma o gênero carta em informação impessoal, intransponível na sua contraditória doçura e frialdade. A redução da personagem a apenas pronome assegura o ser como múltiplo, fragmentado em outros “eus” ficcionais ou pessoais. Uma mistura inquietante de gêneros e discursos que impede o leitor de firmar sua certeza narrativa. Nessa mistura de discursos, as narrativas se apóiam em frames discursivos, em idioletos particulares e em jargões de determinadas áreas, liquidificando não só os gêneros literários, mas também reproduzindo textualmente o vocabulário das mais diversas atividades: o microconto “Querida,” é um recado, cujo vocativo tornou-se o título, moldura inicial do gênero textual bilhete ou carta, e cuja moldura final é a assinatura. Ambas as molduras, em sua indeterminação, coloca também esta narrativa no âmbito da exemplaridade, no contexto modelar que recobre o ser humano de todos os tempos e de qualquer lugar. São dois actantes em guerra conjugal, no inferno dantesco antropológico de sofrimento perene, enquanto vida houver, das personagens de Rauer. Certo aparato cientificista do senso comum está subentendido no contexto das narrativas de Vilela e de Barros. A comparação metafórica do trem com o corpo da lacraia aponta uma analogia de cunho técnico: “Em criança a lacraia sempre me pareceu trem. A lacraia parece que puxava vagões. E todos os vagões da lacraia se mexiam como os vagões de trem. E ondulavam e faziam curvas como os vagões de trem” (BARROS, 2004, “Lacraia”). A descrição que o poeta faz da movimentação dos “gomos” da lacraia indica uma aparência de teor científico — cada um dos “gomos” da lacraia possui terminações nervosas que, se separadas, continuam a movimentação corpórea: “Os gomos da lacraia começaram a se mexer e se encostar um no outro para se emendarem”. No caso de Luiz Vilela, certo substrato sociológico emerge da organização “social” das formigas: “(...) as formigas uma atrás da outra, descendo, a fila certinha” (VILELA, 1983, p. 129). Entendida como um microcosmo de uma sociedade humana, a forma de agir das formigas segue regras estabelecidas pelo grupo social e obedece, de maneira radical, os comandos ditados pela rainha e por formigas diretamente ligadas ao poder: “[...] o padre ele já tinha visto que era o formigão da frente, o maior de todos, andando posudo” (VILELA, 1983, p. 128). Nos diversos exemplos de Rauer, percebemos uma retomada constante de autores, de obras, de gêneros literários e textuais os mais diversos: o microconto, a julgar pela amostra, é antropofágico e se vale de toda a tradição literária e cultural pré-existente para, na síntese


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mais absoluta, desvelar um referente múltiplo, caótico, plural, híbrido — líquido e em liquidificação. Ao transitar entre as linguagens e os gêneros, o poeta, o ficcionista e o microcontista quebram as perspectivas fechadas cuja conceituação se fixa na delimitação dos gêneros. Nos microcontos, os gêneros textuais e literários surgem constituindo-se no todo da narrativa, e a procura dos limites mais sintéticos de cada gênero em que esteja trabalhando parece ser um objetivo de Rauer, indo o autor do “Conto de fadas” ao recado em que o vocativo — “Querido,” — já é o título da narrativa. Além disso, “Borboletas” parece emular um sonho, e “Adivinha” é uma forma simples, conforme teorizou Jolles, enquanto “Escrever” e “Apocalipse” são, por excelência, narrativas intertextuais, com dezenas de referências que se cruzam amplificando sentidos que muitas vezes digladiam entre si, e metatextuais, discutindo o estatuto da arte e da literatura. Já as demais narrativas1 apresentam muitas outras questões, entre as quais destacamos: 1. questionam a família, que modifica rápida e radical nesses tempos que se liquidificam, liquefazem; 2. investigam o amor como petite mort ; 3. evidenciam — em textos irônicos, paródicos e experimentais — que o ser se encontra, no cerne da sua ontologia, em dissolução e dissolvimento; 4. contemplam o ser desde o momento em que ele, pela linguagem, se reconhece no mundo, e até o fim dos dias. O microconto de Rauer figura o gênesis e a assunção da inquieta modernidade, com o que antevê o fim dos tempos, à espreita como um monstro ou esfinge que, inapelável, desde já devora o homem, ser em existência nua diante de todos os tempos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora tenhamos efetivado certo esforço taxionômico no que diz respeito ao microconto, dado a carência de estudos dessa variante da narrativa curta cuja efervescência

1

O Microcontos, de Rauer, work in progress (2008-2011), é composto no momento por pouco mais de centena e meia de narrativas, a menor delas com um único caractere, e a maior — até onde nos foi dado conhecer — com 58 palavras e 339 caracteres (incluídos os espaços). Há uma narrativa que só tem o título, com uma única palavra, “Deus”, seu efeito de sentido, ambíguo e instigante, sendo dado pela página em branco e pela sequência anterior de textos, definida com cuidado milimétrico.


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ressalta na atualidade, sempre tivemos presente certa lição de que “a análise é suplemento, catalogação, enquanto a obra [literária] é [que é] literatura, vida” (Rauer, 2006, p. 300). Em uma perspectiva narrativa, os contos elaborados por Edgar Allan Poe estariam no âmbito dos chamados contos de enredo, cujos fatos se desdobram e ressaltam a intensidade dos acontecimentos, que “saltam sobre nós e nos agarram” (Pontieri, 2001, p. 95). As personagens apresentam-se de maneira incomum e em situações extraordinárias. Os sentimentos despertados no leitor se sustentam na intensidade e na unidade de impressão que, súbita e inexorávelmente, aproximam os protagonistas de um desfecho surpreendente. O denominado conto de atmosfera, explorado de forma pioneira por Tchekhov, Machado de Assis, Virgínia Woolf e Katherine Mansfield, apóia-se na tensão, no estado psicológico discursivo, para, de maneira lenta, aproximar a leitura de um desfecho que não termina na narrativa, ao continuar no imaginário do leitor. Em “Angústia”, de Tchekhov, para exemplificarmos, o cocheiro

Popatov

tenta contar a dor pela perda de seus filhos a diversos de seus

passageiros,

sendo pela

impedido pressa

desinteresse cada

um

ou de

deles,

deixando no leitor a

angústia

do

homem que conta somente com seu cavalo para, sob a neve

enregelante,

partilhar

suas

lágrimas — ou seja, nada acontece na narrativa, não há transformação, não há causa e efeito, há somente um homem e seu sofrimento, o homem e sua pobre existência. Para Piglia, tecnicamente um conto sempre entrelaça duas histórias, de maneira que só no desenlace e revelado, de modo surpreendente, a história que se construiu subjacente à primeira. Não há que se confundir essa segunda história, secreta, de Piglia, com o iceberg


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proposto por Hemingway. A tensão do conto, em Kafka, se dá justamente por ele contar “com clareza e simplicidade a história secreta”, enquanto narra “sigilosamente a história visível, até convertê-la em algo enigmático e obscuro” (Piglia, 2004, p. 92). Vimos que, nos dias atuais, a sociedade se vê confrangida, “tensionada” numa relação tempo-espaço que evidencia a rapidez dos acontecimentos, a incerteza das posições, o sujeito em metamorfose e os discursos camalotes, ou seja, discursos que flutuam sobre as águas do sentido em eterna mutação. Piglia talvez tivesse agora de considerar que as duas histórias, tanto a evidente quanto a secreta, constituem uma só torrente, ambas, de modo simultâneo, evidentes e secretas, verdadeiras e falsas, coalescentes e fractais. Têm-se, hoje, contos curtos, narrativa curta, minicontos, microcontos, literatwitter e micronarrativas que procuram condensar — conforme os microcontos de Rauer — em uma dezena de sílabas, ou em apenas uma palavra de três toques (“Amor / dor”), ou no também citado “Homem”, com um único caractere (“ ! “), ou no vazio “Deus”, toda a miserável vivência humana do século XXI, assim como a mundividência do ficcionista. São narrativas que ainda carecem de uma conceituação adequada no âmbito dos estudos literários. Apesar disso, parece-nos que o microconto, e talvez o conto curto, são os subgêneros que, nos dias atuais, melhor expressam nosso tempo quanto à mobilidade discursiva que repensa o indivíduo em seus planos sociais, políticos e culturais. Vimos, em especial, que o microconto tem amplo diálogo com a contemporaneidade, por transitar, facilmente, nas ondas instantâneas do celular, do msn e de outras redes sociais, devido sua compressão tempo-espaço. O microconto de Rauer amalgama tensão, inconformidade, surpresa, tragédia, humor, nulidade, suspensão dos limites direcionais — e são esses os elementos que aparecem e explodem no ritual silencioso da leitura do microconto contemporâneo. A brevidade, a tensão e a intensidade constituem características do conto, e desses atributos resulta a esfericidade peculiar da narrativa curta; para Cortázar (1993), o conto deve enunciar e despertar no leitor uma “idéia viva” que, paradoxalmente, flutue entre a fugacidade e a permanência. O microconto — como vimos nos exemplos de Rauer — potencializa todos esses aspectos. Na atualidade, a compressão do espaço-tempo está diretamente ligada à relação que se estabelece entre inovações tecnológicas, o ser humano e seus discursos. O microconto apresenta-se como um caldeirão de todas as possibilidades já evidenciadas no conto moderno e suas categorias narrativas. Tal diálogo com a contemporaneidade deste início de terceiro


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milênio desvela uma sociedade cuja clausura ao tempo cronológico é uma variável cada vez maior, menos racional e mais subjetiva. Capazes de caber em apenas uma linha na tela do celular, os microcontos são carregados de frequências sensoriais que despertam no leitor o instante da brevidade num curto espaço. Os elementos do microconto contemporâneo — que, como vimos nas microficções de Rauer, coalescem tensão, inconformidade, surpresa, tragédia, humor, nulidade e suspensão dos limites direcionais — aparecem de maneira condensada e explosiva, em meio ao babélico caos urbano e midiático, no ritualístico momento silencioso da leitura. Nos exemplos estudados, o conto de Barros poetiza a memória e o de Luiz Vilela, conforme a lição de Cortázar, após poucos rounds, vence a luta por nocaute; já o microconto de Rauer leva o leitor à lona, com um único e decisivo golpe, no instante mesmo em que o gongo dá início ao combate.

REFERÊNCIAS: BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: segunda infância. São Paulo: Planeta, 2004. BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. BAUMAN, Zygmunt. A utopia possível na sociedade líquida. Cult, n. 138, São Paulo, ago. 2009, p. 14-18. Entrevista a Dennis de Oliveira. CAPAVERDE, T. Intersecções possíveis: o miniconto e a série fotográfica. 2004. 100 p. Dissertação (Mestrado em Letras) — Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004. Disponível em < http://hdl. handle .net/10183/6117 >, acesso em: 24 ago. 2008. CORTÁZAR, Júlio. Alguns aspectos do conto. In: ______. Valise de cronópio. Trad. Davi Arrigucci Jr. e João Alexandre Barbosa. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1993. p. 147-163. HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago, 1991. JOLLES, André. Formas simples. São Paulo: Cultrix, 1976. MAYRINK, Geraldo. Com lama, suor e solidão. Veja, São Paulo, 5 jan. 1994, p. 96. MIGUEL, Pedro. El microrrelato: ese arte pigmeo. Revista Elmundo es. Disponível em < http://elmundolibro.elmundo.es/elmundolibro/microrrelatos/ >, acesso em: 28 set. 2008. MOSCOVICH, Cíntia. De Poe a Piglia: em busca das teorias sobre o conto e o encontro de uma gramática do silêncio. In: ______. Micronarrativas, 2005. Disponível em < http://zurdozurdo.blogspot.com/2008/01/de-poe-piglia-em-busca-das-teorias.html >, acesso em: 24 ago. 2009. PANIAGUA RAMIREZ, Karla. Propuestas para una lectura minicuentísticas de prosa poética. El cuento en Red, n. 1, México, primavera 2000. Disponível em < http://webs.uolsinectis.com.ar/rosae/breve8.htm >, acesso em: 28 set. 2008. PIGLIA, Ricardo. Formas breves. Trad. José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Cia das Letras, 2004.


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 298 ISSN - 2176-6835 PONTIERI, Regina. Formas históricas do conto: Poe e Tchekhov. In: BOSI, Viviana et alli (Orgs). Ficções: leitores e leituras. São Paulo: Ateliê, 2001. p. 91-112. RAUER [Rauer Ribeiro Rodrigues]. Faces do contos de Luiz Vilela. Araraquara, SP, 2006. 2 v. xix, 547 f. Tese (Doutorado em Estudos Literários) — FCL-Ar, Unesp. Disponível em <http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/Detalhe ObraForm.do ?selectaction.=&co_obra=91329 >, acesso em: 7 agosto 2009. RAUER. Microcontos. Work in progress (2008-2011). Volume inédito em arquivo doc. Diversos microcontos foram publicados no twitter, com reprodução no facebook. TCHÉKHOV, Anton. Angústia. In: ______. A dama do cachorrinho e outros contos. Trad. e posf. Boris Schnnaiderman. 5. ed. São Paulo: 34, 2005. p. 132-138. TCHÉKHOV, Anton. O acontecimento. In: ______. A dama do cachorrinho e outros contos. Trad. e posf. Boris Schnnaiderman. 5. ed. São Paulo: 34, 2005. p.148-154. VILELA, Luiz. As formigas. In: ______. Tarde da noite. 3. ed. São Paulo: Ática, 1983. p. 128-129.


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ENTRE FRINCHAS, A POÉTICA DO MICROCONTO BRASILEIRO

Luciene Lemos de Campos 1

RESUMO: O microconto, no âmbito dos estudos literários, carece de referencial e estudos mais aprofundados, quer no domínio da estética, quer no âmbito da poética, quer na atuação da crítica literária. A proposta estética que o microconto realiza não surge como decalque da prosa tradicional, mas como espaço intervalar, uma terceira-margem poética, um entre-lugar que desloca e anula a antiga noção de centro cultural hegemônico, de certo modo realizando a fórceps a proposta goetheana da weltliteratur. Neste trabalho comparamos microcontos de Wilson Freire, Marçal Aquino, Manoel de Barros, Samir Mesquita e Rauer com o propósito de iniciar estudo para estabelecer uma poética do microconto brasileiro contemporâneo. PALAVRAS-CHAVE: Entre-lugar; Intertextualidade; Literatura brasileira.

1

Mestre em Estudos Fronteiriços pela UFMS (2010), ingressou no Mestrado em Letras da UFMS (2012-2014). Atua na SED-MS; versão menor deste trabalho foi apresentado na Abralic, em Curitiba, em julho de 2011; lucienelemos10@yahoo.com.br.


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E

ste trabalho se volta para a explosão contemporânea do microconto no

Brasil, com centenas de autores divulgando suas criações pela internet, e um número razoável de publicações impressas. Analisamos microcontos de Wilson Freire, Marçal Aquino, Manoel de Barros, Samir Mesquita e Rauer. De Os cem menores contos brasileiros do século, selecionamos “Bala perdida”, de Wilson Freire, “Disque-Denúncia”, de Marçal Aquino, e “Amor”, de Manoel de Barros; de Samir Mesquita, da obra Dois palitos, o microconto “Coito interrompido”; e do twitter, selecionamos “Epitáfio”, do escritor mineiro Rauer. Valemo-nos de reflexões, sobre o gênero, de Zavala e Rojo, pesquisadores hispanoamericanos, uma vez que os estudos literários no Brasil ainda não produziram obra de referência sobre o microconto. O estudo de Marcelo Spalding (2008), por sua especificidade, não logra constituir uma poética da microficção. Os microcontos nos levam a refletir sobre a presença da concisão e da brevidade como necessárias para que a literatura revele de forma precisa e, às vezes, indireta as novidades deste tempo — a primeira década do terceiro milênio — cada vez mais veloz e deserto de sentimentos. A microficção brasileira se desenvolve e busca qualidade estética em meio às práticas apressadas. Além disso, uma significativa quantidade de coletâneas de formas breves e simples vem provendo as livrarias, como os chamados “livros de bolso”. Assim, em consonância com a idéia de sistema literário proposta por Antonio Candido em Formação da litera-tura brasileira, parece-nos que o gênero narrativo micro chegou ao seu


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momento macro de maturidade e estabilização enquanto estética literária, pois para ele há autores seminais, obras (impressas ou não), público leitor e — acrescentamos — um voltar de olhos das academias. É conjunto de circunstâncias favorável para que os autores explorem as numerosas possibilidades estéticas que o microconto apresenta. Percebem-se como partes comuns a essas narrativas ultracurtas: a brevidade; a intertextualidade; a metaficcão; a epifania; a precisão cirúrgica que aproxima prosa e poesia; o ficcional entrelaçado a recortes de elementos factuais; o humor;

a

polissemia; o

inusita-

do;

a

ironia;

a

ludicidade da

lingua-

gem — para citarmos algumas das

carac-

terísticas. O

micro-

conto

de

nossos dias invoca

o

Edgar Allan Poe soturno, o coloquial do dia-a-dia de Tchékhov, a rispidez no absurdo de Kafka, a epifania de Joyce, a silente, desesperada e agônica música da vida e obra de Virgínia Woolf, e assim por diante, ressumando todas as lições dos contistas paradigmáticos da história do conto. No Brasil, entre outros lançamentos, Clássicos da twitteratura brasileira, publicada em 2010, pela Suzano, em São Paulo, e Os cem


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menores contos brasileiros do século, Contos de Bolso,1 têm feito carreira, pois o acervo de microcontos está em constante expansão na internet, e surgem narrativas cada vez mais sintéticas, mais recortadas, nas quais prosa e poesia coalescem em formas breves, mínimas, curtas ou ultracurtas. No discurso dessas narrativas, parece-nos, o importante é estabelecer apenas um núcleo significativo, ou seja, não importa se a personagem seja homem ou mulher — tem-se, muitas vezes, apenas a referência de personagem, quase nunca nominada —; se há espaço delimitado ou extremamente aberto, externo ou interno; se dia ou noite; neste ou em outro século — é o leitor quem preencherá as fendas deixadas, propositadamente, pelo narrador. Desse modo, à micronarrativa não cabem as observações gráficas acerca da estrutura do conto, propostas por Massaud Moisés: “o gráfico não desenha a estrutura de uma obra, senão de todas, visto conter o seu abstrato denominador comum” (MOISÉS, 1967, p. 101). Nos microcontos, a ação se apresenta no clímax e início-epílogo são coalescentes com o todo da ação narrada. Logo, na micronarrativa, a unidade de ação condiciona, além do espaço-tempo, a decodificação de outras unidades — todas elas “preenchidas” pelo leitor. Essas unidades, porém, são delineadas de maneira tão sutil que parecem diluir-se no enredo, dando-nos impressão de que não há delimitação, que elas se imbricam antes mesmo de se configurarem individualizadas. Assim, enquanto o conto “constitui o recorte da fração decisiva e a mais importante, do prisma dramático, de uma continuidade vital em que o passado e o futuro guardam significado inferior ou nulo” (MOISÉS, 1967, p. 42), o microconto, como gênero literário, longe de se limitar a aforismos, reflete de algum modo as tensões do nosso século, posto que mimetiza a estranheza do mundo exterior, a qual converte em arte. 1

Eis a introdução ao livro: “Quando acordou, / o dinossauro ainda estava lá. / Augusto Monterroso // O mais famoso microconto do mundo, acima, tem só 37 letrinhas. Inspirado nele, resolvi desafiar cem [103] escritores brasileiros, deste século, a me enviar histórias inéditas de até cinquenta letras (sem contar título, pontuação). Eles toparam. O resultado aqui está. Se ‘conto vence por nocaute’, como dizia Cotazár, então toma lá.” (Marcelino Freire).


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O microconto brasileiro contemporâneo é uma dose da “célula tronco” do conto, da novela, da crônica, do haicai e de algumas formas simples, como, por exemplo, adivinha, chiste, caso, anedota, ditado, entre outros. Aproxima-se, através da intertextualidade, da tradição estética e, ao mesmo tempo, transgride-a quanto ao envoltório dos materiais narrativos (personagens, ação, espaço, tempo etc.). No entanto, definir microconto não é tarefa muito fácil; embora haja consenso entre os escritores e estudiosos da Literatura de que são prosas curtíssimas que se valem apenas de poucas palavras, caracteres, toques (até 140, no Twitter). Mas delimitá-lo à extensão não basta para caracterizá-lo como um gênero literário específico. A microficção brasileira busca trazer em suas frinchas dados sóciohistóricos reais, em nada falseados ou modificados, com finalidade de fazer o “jogo do texto”. É o que percebemos nesta narrativa de Wilson Freire:

BALA PERDIDA Acorda, levanta, vai ganhar a vida... (Disparos) ... passou tão rápida. (FREIRE, 2004, p. 99). Tal como a bala ou a vida, o nosso tempo é o da velocidade. Estamos sempre com muita pressa nas filas do metrô, ônibus, bancos, aeroportos, hospitais etc e, ao mesmo tempo, convivendo com a violência das mais diversas formas, em meio aos disparos de bandidos e policiais, de grupos e facções rivais que duelam nas ruas. Logo, a vida contemporânea é como a bala perdida e o cotidiano é resumido em verbos de ação, com um último, semanticamente indicador de acontecimento infausto: acordar, levantar, ganhar, passar; e a vida e o cotidiano são condensados em uma única circunstância de intensidade: “tão rápida”. Nesse microconto, o processo indiciado pelas formais verbais, em uma leitura menos criteriosa, pode ser interpretado de duas maneiras diferentes: no presente do indicativo ou na forma imperativa: acorda,


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levanta, vai. Entretanto, parece-nos que ao encerrar o que é contado, empregando a forma verbal no pretérito perfeito, o narrador informa algo que se processou no momento em que relata, embora a conclusão seja anterior ao momento do narrado. Há, assim, um tempo cronológico definido; um narrador; um espaço intervalar, marcado pelas reticências e um enredo que se mostra e se convida a ser “suturado” pelo leitor. Em consonância com André Jolles, Talvez as Formas Simples constituam a base da teoria literária e abranjam a parcela dessa crítica que se situa entre a língua como tal e as produções em que uma disposição mental encontra, como Forma artística, a sua realização única e final; sendo assim, é preciso que a lista seja completa, que a totalidade dela esgote o universo realizado por essas formas, assim como as categorias da gramática e da sintaxe constituem, em sua totalidade, o universo que se realiza na linguagem. (JOLLES, 1976, p. 146). A linguagem do microconto de Wilson Freire faz, em elipse, a narrativa da vida inteira da personagem ao se valer de verbos que descrevem uns poucos momentos. Desse modo, simboliza o todo, busca a exemplaridade e realiza com singeleza sua proposta estética. Essa proposta

A silente, desesperada e agônica música de Virgínia Woolf


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encontra nas Formas Simples o seu modelo, erigindo artefato de linguagem que tem, subjacente, a gramática e a sintaxe das concepções artísticas anteriores, incorporando ainda o desenvolvimento que tais formas experimentaram ao longo da história da literatura. Já em “Disque-Denúncia”, de Marçal Aquino, há uma parte e há um todo, com a possibilidade de que um mesmo recorte possa ser lido de maneira totalmente autônoma em relação à totalidade do texto com o qual dialoga, havendo, também, entrelaçamento entre dois enredos. O microconto de Aquino é, ao mesmo tempo, uma nova narrativa e “fragmento” que estabelece diálogo e pode ser inserido em A cabeça, do contista mineiro Luiz Vilela. Vejamos a narrativa de Marçal Aquino e a abertura do conto de Vilela: DISQUE-DENÚNCIA — Cabeça? — É. — De quem? — Não sei. O dono não tá junto. (AQUINO, 2004, p. 55). O conto de Vilela assim se inicia: [...] — pois era realmente uma cabeça, uma cabeça de gente, uma cabeça de mulher — estava ali, no chão, em plena rua, sob o sol, naquela radiosa manhã de domingo. De quem era? Quem a pusera ali? Por quê? Ninguém sabia... (VILELA, 2002, p. 125). O microconto de Aquino se adapta ao modus operandi da sociedade contemporânea com sua sensibilidade veloz e quase nula, é texto torpedo, sms, literatura de toques, mas não nega a tradição estética, tradição aqui representada pelo conto de Luiz Vilela. Quanto a isso, em sua obra Breve manual para reconocer minicuentos (1997), Violeta Rojo afirma que “nos minicontos é comum o uso da intertextualidade e, em menor medida, da metatextualidade”.


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Os textos de Vilela e de Aquino como que se complementam e constituem ferina e ácida crítica à violência crescente, à fragmentação do humano e à desumanização nos nossos dias. Há ficção e realidade reiteradas em ambos: conto e microconto. Embora se depreenda uma interlocução com o conto de Luiz Vilela — o microconto de Aquino permite comparação com a obra consagrada do contista mineiro, a partir do “fragmento” — dela se desprende quanto à estrutura. A micronarrativa de Marçal Aquino é marcada por duas interrogações diretas, as quais remetem à brevidade da conversa telefônica do “Disque-denúncia”, mas também pode remeter a personagens que, talvez, compusessem o conto “A cabeça”, de Luiz Vilela. A grandiosidade do jogo narrativo presente no microconto brasileiro contemporâneo está em sua estrutura aberta e flexível, capaz de abrigar uma colossal possibilidade de leituras acerca da convivência entre a tradição e o novo, assim como também quanto a gêneros imbricados. Por isso, o microconto nos convida a invadi-lo, a espiá-lo por todas as frinchas. A nosso ver, existe, nesses microrrelatos, um constante jogo do narrador que nos seduz ao lúdico, a decifrar novos enigmas. Isso nos leva a acreditar que, apesar do desprestígio que a microficção recebe de muitos críticos e estudiosos, não lhes cabe generalizar predicativos de “literatura menor” ou “sub-literatura”. Vejamos mais um exemplo que contradiz o nariz torcido desses críticos que confundem a multidão que brinca na internet e nas redes sociais em torno de pequenos textos literários com a legítima ascensão de um novo gênero, gênero esse que talvez seja o mais representativo dos nossos tempos. Cipoal de gêneros, silhuetas da modernidade pelas quais o homem comum e a poética se re-formulam, sumo do sumo, o microconto intitulado “Amor”, do poeta Manoel de Barros, extrai o máximo de lirismo, incendiado pela subjetividade, em um mínimo de palavras. Barros parece ter assimilado certa lição de Flaubert de que na arte não se busca o


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perfeito, o exato, mas sim o modo único pelo qual um acontecimento ou uma descrição devem ser expressos; assim o escritor faz neste microconto:

AMOR Maria, quero caber todo em você.

(BARROS, 2004, p. 54).

Ao mesmo tempo em que há um texto novo, ele é auto-intertextual, já que rememora o poema narrativo, do próprio poeta, “Sonata ao Luar”,


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publicado em Poemas Rupestres (2004), mesmo ano da publicação de Os Cem menores contos brasileiros do século: SONATA AO LUAR Sombra Boa não tinha e-mail Escreveu um bilhete: Maria me espera debaixo do ingazeiro quando a lua tiver arta. [...] Maria leu e sorriu. Quando a lua ficou arta Maria estava. E o amor se fez Sob um luar sem defeito de abril. (BARROS, 2004, p. 33). Há no microconto “Amor”, de Manoel de Barros, a essência de um lirismo, fisgado em poucas palavras, fazendo desabrochar ao leitor o que se esconde nas fendas do texto. As tramas e desfechos emergem com simplicidade, a linguagem ultrapassa o texto. Conforme nos ensina Gilberto Freyre: O que se classifique como arte, [...], sendo sempre experiência emocional varia nos estilos e no seu material, com o tempo e com o espaço. A arte, como experiência emocional, enriquece, aumenta ou intensifica a apreciação da vida pelo homem, podendo ser, mesmo entre primitivos, principalmente e até livremente lúdica. (FREYRE, 1980, p. 17). Se o microconto e o poema de Manoel de Barros estão na fímbria entre o literário e o subliterário, Gilberto Freyre define o que é arte em palavras que podem perfeitamente estar em uma descrição da ars poetica de Barros: incorporação de estilos anteriores da arte literária, experiência emocional, apreciação da vida, primitivismo e exercício lúdico. Do mesmo modo, na “onda” crescente de publicações de microtextos na internet, nem todas, ao que parece, constituem-se objetos de estudos para a literatura; muitos não se apresentam como resultado de simplicidade objetiva, de trabalho elaborado com as palavras. Ainda que


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neles haja sempre algo novo a se explorar, a maioria se restringe a aforismos ou meras construções bem humoradas. Obra inusitada, Dois palitos, de Samir Mesquita, publicada em uma caixinha de fósforos, configura peculiar exemplo de o quão vivemos uma efervescência de mudanças quanto às formas literárias e quanto à maneira de apresentá-las. Os livros hoje também são resultado de experimentações de formatos, estilos de letras, feitios gráficos, progressos técnicos, de ilustrações inovadoras e da liberdade dos seus autores para escolher como, onde e quando publicar seus escritos. Vejamos o microconto “Coito interrompido”, de Samir Mesquita: COITO INTERROMPIDO Estava quase chegando ao orgasmo Mas aí a pilha acabou. (MESQUITA, 2007). Parece-nos, existe uma evidente crítica ao mundo das relações de aparências — entre “estava quase chegando”

e

“ao

orgasmo”

há,

ironicamente, a sentença final: “Mas a pilha acabou”. O narrador não deixa evidente se o “coito” ocorre entre personagens com características humanas ou não, uma vez que poderia ser entre a personagem e um aparelho eletrônico, por exemplo. Pois o vocábulo “pilha” tanto pode significar aparelho que transforma diretamente em energia elétrica a energia liberada numa reação química como pode conotar vigor, disposição física. O narrador não deixa nenhuma pista acerca do gênero da personagem. A intensidade se concentra na moldura final, ou seja, na incompletude da ação. O leitor é jogado no meio desse final de relação sexual com um: “aí”, “acabou”. A narrativa se resume ao mínimo e cabe ao leitor responder se a pilha, bateria, o entusiasmo ou a história. Também em “Epitáfio”, de Rauer, a narrativa é enxuta. Com sete substantivos, o narrador redige seu microconto. À moda de Graciliano, reduz ao essencial as diferentes fases da vida. Em dezenove palavras, contabiliza seu microrrelato. Relaciona situações díspares à gratuidade do banal. À maneira de Machado, aborda a questão da morte como


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previsibilidade de vida e posiciona-se em perspectiva problematizadora, crítica e reflexiva acerca da humanidade e do mundo. O leitor é, de certa maneira, convocado a participar da narrativa, a sondar através das fendas; a interrogar sobre o des-crédito das ações humanas e tornar-se coautor na tessitura do texto. Eis o microconto: EPITÁFIO Sultão, gozei festas, carrões, consumo, mulheres mil. Deixo filhos às dezenas, para que acabem logo com o planeta. (RAUER, 2010). “Epitáfio” é recorte de fatos e ficção, colagens justapostas, em que o aparentemente simples acaba por polir o senso comum. Dessa micronarrativa, a arte transborda com uma força estética que denuncia a superficialidade do solene, do convencional. Abordam-se temas como a dissolução da família, o concubinato, o amor livre e toda a herança “concedida” pela sociedade capitalista à humanidade, sem, no entanto, forjar conceitos de moralidade. Esse microconto de Rauer constitui, ainda, exemplo ímpar para reflexões acerca da intertextualidade. A mediocridade humana viceja, nesse “Epitáfio”, de Rauer, em sua “vera forma”, e se apresenta despida da cautela com que a sociedade trata certos assuntos. Conforme enuncia o narrador de Machado de Assis, na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, no brevíssimo capítulo CXXV, através de exercício de metalinguagem: [...] gosto dos epitáfios; eles são, entre a gente civilizada, uma expressão daquele pio e secreto egoísmo que induz o homem a arrancar à morte um farrapo ao menos da sombra que passou. Daí vem, talvez, a tristeza inconsolável dos que sabem os seus mortos na vala comum; parece-lhes que a podridão anônima os alcança a eles mesmos. (ASSIS, 1992, p. 170).


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É a retomada do gosto por produzir a sentença final diante da vida que move o narrador protagonista de Rauer, como se ele estivesse embuído da reflexão de Brás Cubas. E ainda, o foco narrativo do “Epitáfio” de Rauer, como na obra machadiana Memórias Póstumas de Brás Cubas, apresenta-se em primeira pessoa. Entretanto, há pontos díspares quanto à narração: enquanto o narrador do “Epitáfio”, de Rauer, parece vangloriar-se dos filhos “às dezenas”, o de Machado sela suas memórias com a célebre sentença: “— Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria” (ASSIS, 1992, p. 176). Há outros aspectos comuns entre o fragmento machadiano e o fractal1 de Rauer no que tange ao discurso sucinto e à rapidez com que o narrador apresenta sua história, como se a necessidade de contar fosse sua redenção ou consagração perante seu interlocutor. O narrador do microconto “Epitáfio” atira uma pedra na vidraça da razão só para ver o resultado do feito. Com uma oração subordinada adverbial final, lança a última pá de cimento sobre o jazigo da humanidade consumista e irracional: “que acabem logo com o planeta”. Como a personagem machadiana, Brás Cubas, esse narrador também é movido pelo pessimismo e pela ironia. Com olhar à frente da sociedade, vê tudo com certo ceticismo acre, e com esse sentimento denuncia a condição humana. O narratário (talvez seja melhor dizer, o leitor) que, se quiser, intervenha e faça seus julgamentos. Consumir, comprar, ter e possuir — mais que ser e viver — são verbos conjugados nos espaços em que a felicidade é vendida em pequenas doses. Parece-nos que o narrador que constrói o seu epitáfio quer evidenciar o fato de que o homem, de modo geral, não se deu conta de que, ao nascer nessa sociedade, está morto, de que o ser humano é apenas um tijolo no próprio sepulcro e, ainda, conforme sentenciou o narrador de Machado de Assis: “O epitáfio diz tudo” (ASSIS, 1992, p. 51).

1

Zavala (2000) define fractalidade como “la idea de que un fragmento no es un detalle, sino un elemento que contiene una totalidad que merece ser descubierta y explorada por su cuenta”.


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Em Rauer, o tratamento dado ao tempo é predominantemente linear, a cronologia é marcada pelas formas verbais “gozei”, no pretérito; e “Deixo” e “acabem”, no presente. A forma verbal “acabem” remete ainda ao modo imperativo, uma ordem para que a humanidade desapareça. Tal ordem delineia uma vontade que requer brevidade, rapidez, urgência: “logo”. A ambientação, o espaço, tem um papel significativo na determinação do comportamento do narrador-personagem de “Epitáfio”: “festas, carrões e consumo”, itens geralmente associados à vida urbana, a indivíduos que dispõem de bens e capital. Nessa narrativa sintética, “Sultão” define condição social de que o narrador se mascara e torna-se a fantasia arquetípica do homem possuidor de todas as mulheres ao mesmo tempo: “mulheres mil”; além disso, representa a ânsia por estórias, ânsia do indivíduo de “Epitáfio”, mas também representa o anseio humano imemorial por narrativas. O homem que se mascara para contar estórias — e essa é a encenação do narradorprotagonista de “Epitáfio” — é como Sherazade, e pretende ir além da morte nas aventuras dos muitos filhos que deixa. Se, por um lado o narrador precisa contar o que fez antes de morrer, a fim de se eternizar e garantir sua fama — “mulheres mil”, “filhos às dezenas” —, o narratário também precisa da narrativa, é ela que o faz sentir-se parte do jogo. Em consonância com Luiz Costa Lima, Diante do texto ficcional, o leitor é forçosamente convidado a se comportar como um estrangeiro, que a todo instante se pergunta se a formação de sentido que está fazendo é adequada à leitura que está cumprindo. Só mediante esta condição, dirá Iser, a assimetria entre texto e leitor poderá dar lugar “ao campo comum de uma situação” comunicacional. (LIMA, 1979, p. 51). Ou seja, a assimetria entre o leitor e a estranheza propiciada pelo microconto em geral, e no caso com o “Epitáfio”, em particular, gera uma situação em que, a partir da alteridade, do se sentir um estranho ao


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narrado, o leitor empreende o jogo comunicacional, interagindo com o texto de microficção. Um dos aspectos que constroem a sensação de estranheza e de distanciamento em “Epitáfio” é o modo pelo qual as personagens femininas são mencionadas. Isso porque, na narrativa de Rauer, as mulheres têm uma posição bastante interessante:

1.

o substantivo comum “mulheres”, no texto, aparece posposto ao substantivo “consumo”, derivação regressiva de verbo, o que denota ação de consumir;

2.

substantivo, na narrativa, acompanhado do determinante “mil”, paradoxalmente, define-o sintaticamente, mas o indefine semanticamente, já que, trata-se de uma expressão hiperbólica.

Nesse sentido, pode-se inferir que, no interstício dessa história, subjaz a mortificação do feminino e uma aparente demonstração de profundo desprezo pela humanidade em geral. Quanto a isso, o emprego dos numerais “mil” e “dezenas” reiteram a possibilidade de que o homem, “Sultão”, seja obsessivo, e de que mantenha suas mulheres “presas” pelas correntes da prole, pois o que lhe importa é a composição da ficha contábil: “mil”, “dezenas”. É fato que, em se tratando de obra artística, a verdade literária deve sobrepor ao mundo real, mas também é necessário lembrar que, por maior que seja a autonomia da arte, ela mantém vínculos com aquele. Assim, o ponto de partida da ficção de Rauer é o mundo citadino, o tempo contemporâneo, as vicissitudes deste início de terceiro-milênio, sem transplantá-los irrefletidamente para sua narrativa como documento histórico ou sociológico. O que surpreende e é forte, nesse microconto, é a


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MARÇAL AQUINO


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capacidade de o autor capturar a problemática condição humana que a sociedade tenta ocultar:     

a indiferença pelo outro, a dissolução da família, o descaso em relação à vida, o desejo de notoriedade, a busca de afirmação e fama,

e esses flagrantes surgem em frases-relâmpagos que constrói um enredo como um “flash” de máquina fotográfica. O caráter inovador dessa narrativa não está na história propriamente dita. Um dos pontos inovadores de “Epitáfio” reside, principalmente, no encadeamento preciso dos vocábulos e na sequência veloz com que os eventos são narrados. O narrador desse microconto busca a melhor maneira de enredar o narratário: oferece a ele todas as informações para conhecer a visão de mundo de um homem que passou pela vida ao sabor dos desejos, sem deixar soltos os fios que amarram as diferentes partes do texto. Esses poucos exemplos demonstram como Rauer soube dar à particularidade dos casos banais de um narrador, aparentemente despretensioso, a universalidade temática que toda grande obra contém. Ao deixar subentendido o principal motivo da sua narrativa, esse narrador joga as cartas e envolve o leitor no seu jogo do contar. Dessa forma, revela a fraqueza humana em qualquer tempo e espaço. O resultado desse jogo textual, portanto, é uma rajada de possibilidades para a tessitura de uma micro narrativa macro, como também para novas reflexões sobre a ficção produzida na atualidade. Isso porque, ao deixar expostas as frinchas para que o leitor possa “jogar” também, “Epitáfio” abre espaço para repensar a literatura contemporânea e sua relação com o social. O leitor mergulha no jogo proposto e se vê, repentinamente, como em uma epifania negativa, devastadora, diante do nada, da negação da sociedade em que está: poucas


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palavras são capazes de destruir um modo de viver, e são palavras algo graciosas em seu impacto derruídor. Por outro lado, longe de ser uma mera repetição de idéias de textos canonizados, o microconto de Rauer acrescenta novas alternativas para os estudos desse gênero literário. Temos um narrador, que em elipse se apresenta enunciando sua morte, seu testamento e sua memória de vida para a posteridade. A vida já foi, tudo já aconteceu, o microconto é o relato de um instante entre o que já foi e o nada da morte. Sintetiza vida e morte em um átimo, que se realiza esteticamente em duas frases. Lauro Zavala, em seu estudo intitulado Fragmentos, fractales y fronteras: Género y lectura en las series de narrativa breve, comenta o seguinte acerca da narrativa contemporânea: El surgimiento (durante las primeras décadas) de los textos literários que ahora llamamos minificción es el resultado de nuevas formas de lectura y escritura literaria, y es también el anuncio de nuevas formas de leer y reescribir el mundo, pues su creación coincide con el surgimiento de una nueva sensibilidad. El reconocimiento de estas formas de escritura requiere estrategias de interpretación más flexibles que las tradicionales, es decir, estrategias que estén abiertas a incorporar las contingências de cada contexto de interpretación. (ZAVALA, 2006, p. 38). Coerente com tal proposta, e a executando, depreende-se que a intratextualidade e a intertextualidade são outras características também presentes no microrrelato de Rauer. Ao contrário do que faz supor, o microconto “Epitáfio” não se limita a retratos do quotidiano condensados em pílulas breves. Há, nessa micronarrativa, um cabedal macro de vozes dos mestres da narrativa,1 similar à que observamos em relação à presença da obra machadiana. Não se alcança a síntese e a elipse necessárias para produzir um microconto fractal, como o define Zavala, sem conhecer os

1

Mestres do conto. Entre outros: Poe, Tchékhov, Maupassant, Machado, Joyce, Kafka, Mansfield, Woolf, Borges, Hemingway, Cortázar e Vilela.


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contistas paradigmáticos da história da literatura. E, ainda, sem considerar a peculiar situação do intelectual brasileiro. De acordo com Silviano Santiago, O escritor latino-americano brinca com os signos de um outro escritor, de uma outra obra. As palavras do outro têm a particularidade de se apresentarem como objetos que fascinam seus olhos, seus dedos, e a escritura do segundo texto é em parte a história de uma experiência sensual com o signo estrangeiro. (SANTIAGO, 2000, p. 21). Nesse devorar de outras vozes, o microconto de Rauer é guiado por uma visão crítica e seletiva que fragmenta as narrativas primeiras e, em contrapartida, faz com que uma nova narrativa — fractal — surja; não como um decalque das anteriores, mas como um texto que dialoga sem, contudo, deixar de teorizar algo novo em relação à microficção. Ao se valer ampla e discretamente de textos outros, devorados em antropofagia intertextual, Rauer conduz o leitor a refletir sobre a estrutura da narrativa contemporânea do microconto e aponta para uma mudança de paradigma da tessitura e da investigação da nova prosa literária ficcional. Conforme nos ensina Wolfgang Iser, Assim o jogo do texto não é nem ganho, nem perda, mas sim um processo de transformação das posições, que dá uma presença dinâmica à ausência e alteridade da diferença. (Iser, 1979, p. 115). Eis uma hipótese muito sutil contida na narrativa de Rauer: o desvendar de uma história aparentemente simples pode provocar não só o prazer intelectual, mas também o prazer edipiano, em que o texto desnuda-se aos poucos até enovelar-se completamente e envolver, seduzir o leitor na “alteridade da diferença”. Assim, para o escritor e para o leitor, qualquer limitação de um mínimo ou máximo de palavras é descartada, o que lhes importa é o jogo que a sedução literária lhes provoca.


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Ao nível de análise de microcontos se percebe o diálogo entre textos, tal aspecto deve ser ressaltado, a fim de se compreender e explorar tais narrativas-relâmpago, entrecortadas de frinchas onde o leitor é convidado a “espiar” as várias possibilidades de leituras que se abrem, visto que a expressividade é, também, garantida pelo narratário como coautor. A narratividade, entretanto, não se esgota nesse enredar, há uma narração que se mostra por dentro de outra e se esconde por fora dela mesma: o microconto de Rauer é um mise en abyme em um jogo de espelhos ao infinito — ao menos é assim que o “Epitáfio” se apresenta. Observamos que há, no enredo do microconto como gênero, e “Epitáfio” é exemplar quanto a isso, um narrador que protagoniza a cena, mas os fatos contados não estão condicionados somente ao seu olhar, à revelação da imprecisão da vida, da construção/ desconstrução do solene e cristalizado — lembrando que, conforme Derrida, desconstrução “[é] um processo em curso com ou sem esse nome, quer se saiba ou não” (Derrida, 2001, p. 14). O narratário, ao “decifrar” os enigmas do texto, torna-se coautor, parceiro jogador. Essa “pílula ficcional” — narrativa sintética, absoluta e abrangente — despe a arte do solene e desmascara a sociedade de seu pseudo-racionalismo, compactuando com o interlocutor aquilo que foi encenado pelo narrador. Já se disse que histórias não se contam por si, precisam ser contadas por alguém, caso contrário, ainda que preexistissem ao livro, não chegariam a ter existência para o leitor. Assim, ao deixarem expostas essas frinchas, para que o leitor possa “jogar” também, as micronarrativas abrem espaço para repensar a literatura brasileira contemporânea — como vimos no microconto de Rauer — e, especialmente, sua relação com o social. Logo, longe de ser uma mera repetição de idéias de textos canonizados, decalques ou outros designativos, os microcontos emergem vorazes e, com eles, vêm à tona diversas alternativas para se estudar sua poética. A unidade narrativa da microficção representa uma fatia menor de vida, mas nela há síntese, tensão, surpresa e revelação. Isso resulta de um


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burilamento profundo, de um jogo preciso de palavras e sinais de pontuação, de uma técnica peculiar em que o autor aproxima leitura-leitor de uma história que não finaliza no âmbito do narrado. Mas essa se completa e continua em uma terceira margem, no imaginário do leitor. Somente autores cônscios da importância da arte literária, propriedade comum da humanidade, transformam — como Marçal Aquino, Manoel de Barros, Wilson Freire, Samir Mesquita e Rauer, o que demonstramos ao longo deste estudo — um mínimo de palavras em um máximo de ars poetica. A partir desses autores, com certeza, podemos estabelecer uma poética do microconto brasileiro contemporâneo, o que demanda um estudo mais amplo do que este ensaio permitia.

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Um conto conta sempre duas histórias, uma visível, outra secreta. A história secreta é a chave da forma do conto e suas variantes. Ricardo Piglia.


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 323 ISSN - 2176-6835

(seleção com 33 narrativas) © 2008 - 2011

APOCALIPSE Quando — intranquilo sono — acordou, o Verbo já o espreitava.

CARTA DE UMA AMANTE Ao amado Don Juan São inumeráveis paixões para muitos em um só. Sua multiplicidade — quem és, Don Juan? — é cantiga fria, mas em minhas entranhas você tremia. Por mim, por muitas, por nenhuma ou por você? Nossos ardores saberiam?

CONTO DE FADAS Era uma vez um príncipe encantado, moço respeitador, e sua donzela, moça de puro recato. Nas núpcias, ela flutuava, feliz para sempre. Então sentiu no peito, de cima abaixo rasgaçalhando o vestido de noiva, as mãos dele.

AMOR dor

EXPLODIU Esperançoso saudoso exausto, o soldado voltava da guerra quando pisou no explosivo.

QUEM ÉS, DON JUAN? Resposta a uma amante Sou cadáver Inescrutável em cujos braços, ilimitada nas múltiplas formas do gozo, incensavas Eros, reverenciavas Sade, sopravas — incansável, insaciável — a trombeta do Anjo Gabriel. Sou o outro que sou você mesma.


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 324 ISSN - 2176-6835

PALESTRA Depois de por meia hora ouvir o PhD pontificar nulidades, sintetizou: “Quanto mais vazia a cabeça, mais a boca fala”.

FLERTE Se o ar triste e(n)ternece, se o lábio fino enlouquece, por que o olhar não permanece?

MINAS Venho das Geraes. Sou esquivo, só, atento e ativo. Se há amor?

KAI-HAI No

poste

de

luz,

elétrico, mora o João-deBarro, seus filhotes e sua Cruz.

Demais.

HOMEM

!

QUERIDO: Se nos encontrarmos, você terá o meu corpo, não a mim, pois não mais me sou: Eu.

CRISÁLIDA

tem.po

ANTI-MIDAS

Teu amor me aninha, tua presença me enlouquece, teu silêncio me cala, tua ausência me mata.

substantivo neutro de odor feminino; sêmen que apodrece; pó; é ;

Todo ouro em que toco, perverto enlameio e pus verto, ácido e sem troco.


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 325 ISSN - 2176-6835

JOGO Como não te odiar? Pois sei que apertastes play, E evitas brincar.

CASAL TRIVIAL Quanto doce encanto abunda na ária, no canto e ócio da Cigarra!

O ASTRONAUTA Após bater o recorde de permanência solitária no espaço sideral, com 1461 dias, lhe perguntaram onde se sentia mais feliz, se na terra ou na nave estelar. Ele respondeu:“Aqui, logo depois de um voo, com minha mulher, minhas amantes, meus filhos, os amantes de minhas mulheres. Olhe como, felizes, me aguardam. Não, não há nada mais belo”.

EX-PLÊNDIDO BERÇO Sem remissão: até prova em contrário, culpados todos são.

Já Dona Formigona, que barra!, cai na tunda e no trampo se afunda.

RECADO NA GELADEIRA Ao chegar, acorde-me na sua boca, fazendo-me crescer, e então me coloque na xana, úmida e quente, até você ver estrelas, até que eu morra.

agorrantiquus Com o vulcão em chamas, no novel êxtaserótico que vibralucina, em dor e ardor ela, revogável, relembra primiçia outra, e revive, e renega, e desfalece no agorantigo, enquanto, agonizante seta, o falo fumegante em incertas, Inconsoadas grutas grita, lacrimeja e morre.

FUGA :: RETORNO A cada baldeação, sem que nada lhe seja acrescentada, a mala fica mais pesada.

BACCHEUS SATURNALIA — Tá bom... — Pode mesmo? — Fazer o quê? O tempo, escoágulo. — E aí? — Perdi o tesão. — O quê!? — Nolo caritas, ubi erat amor.

O HOMEM ladro, sem humor, em dor, furor ou calor, falso e sem pudor, é o homem, sem tirar nem pôr, da vida o humano horror.


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 326 ISSN - 2176-6835

SCRIPTOR Coração, tripas e ratio reverberam demônios do irracional.

O VERBO O

vazio

o

espreita:

louco de esperança, fita a página

ESCREVER Do Complexo de Houaiss à Sindrome de Aurélio, o TOC epifânico.

em branco.

O GÊNESIS

MICROCONTO

CONTO

Narrativa. Cristal-Vivo. Uma só visada. Um único golpe. Nocaute.

Ei-lo, elipse — do incognoscível ao Inescrutável.

MICRONARRAR

POÉTICA

ADIEU

Micronarrar

#microconto

Todo criador é irresponsável. Vide Deus.

é poesia fascinante-assustadora, jogovida :: literatura, vapor condensado em lágrima, faísca erótica sangrante no ralo da noite.

=

A ti, finório verme que róis linhas e linhas para tão pouco tutano,

narrativa mais que curta, ultracurta; mais que mínima-sintética, um raio, um flash: prosapoesianocaute

paga

o

de

tuosidade

autor tal do

te

volupnada

aplicando-se piparote em que se arroja direto ao colo de Asmodeu.


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 327 ISSN - 2176-6835

FEIJOADA Confesso. Fui eu que enfiei a faca na barriga desse porco. (Ivana Arruda Leite)


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Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS, Corumbá, MS, novembro 2011, n. 4, p. 328 ISSN - 2176-6835

NORMAS DE SUBMISSÃO 1 – Submissões à carandá – Revista do Curso de Letras do Câmpus do Pantanal – UFMS podem ser enviadas, em fluxo contínuo, para o email revistacaranda@gmail.com, devendo estar em conformidade com as normas abaixo. Alunos da graduação e do mestrado somente podem submeter artigos em coautoria com um orientador. Além de artigos teóricos, de estudos linguísticos e de análises de obras literárias, a CARANDÁ publica poemas e narrativas curtas e criações no âmbito das artes plásticas. As normas se referem aos artigos e a resenhas; as obras de criação dispõem de liberdade gráfica. 2 – O título deve ser em corpo 14, negrito, caixa alta, centralizado, na segunda linha da primeira página; após saltar uma linha, vem o(s) nome(s) do(s) autor(es), um em cada linha, em corpo 12, normal, alinhado(s) à direita, com chamada para nota de rodapé, na qual – em corpo 10 – deve(m) constar a(s) instituição(ões) a que se vincula(m), informações biobibliográficas complementares e e-mail. 3 – Os artigos científicos devem apresentar, em corpo 11, espaço simples, resumo, de cinco a oito linhas, em português, com de três a cinco palavras-chave, e versão do título, do resumo e das palavras-chave em inglês ou espanhol. 4 – Os artigos devem ter de doze a dezesseis páginas (incluídos bibliografia e, se houver, anexos e/ou apêndices), digitadas em Word, times new roman corpo 12 para o texto e subtítulos (estes, em caixa alta, à esquerda); margens de 3 cm à esquerda, 4,0 cm superior e 2,0 cm inferior e à direita; espaço simples entre as linhas; parágrafo padrão (1,25 cm); deve haver dois espaços antes dos subtítulos e um após. Dossiês de pesquisas mais amplas podem ser propostos, ficando a critério dos editores a aceitação. Resenhas de livros devem ter entre duas e cinco laudas, observados os demais critérios de formatação. Exceções serão analisadas caso a caso pelos editores. 5 – As citações com mais de três linhas devem estar em corpo 11, espaço simples, e ser diferenciadas por recuo de mais 4 cm à esquerda, havendo uma linha antes e uma após; as citações de partes de uma frase, no interior do texto, devem ser abertas e fechadas por aspas, indicando, quando for o caso, a autoria de destaques em negrito ou em itálico. 6 – A referenciação, sempre após a citação, deve seguir o padrão autor, data, página; o sobrenome do(s) autor(es) deve(m) ter somente a inicial maiúscula. Os títulos de obras citadas, no corpo do texto e nas referências, devem ser em itálico-negrito. 7 – Colocam-se as Referências ao final, contendo somente as obras citadas, em corpo 11, alinhamento à esquerda, títulos de obras em itálico-negrito e, no mais, cf. a ABNT. 8 – A responsabilidade de cada artigo, no que se refere ao teor, à formatação e à revisão do texto, é do autor. Os pareceres são emitidos sem que o parecerista tenha informação da autoria. Aos autores, não informamos pareceristas e não repassamos os pareceres. 9 – As contribuições recebidas até 10 de abril integram a edição do primeiro semestre e as recebidas até 10 de outubro integram a edição do segundo semestre. 10 – Contatos: Professora Angela Varela Brasil Pessoa, editora da Revista, pelo telefone 673234-6830. Correspondência: Curso de Letras da UFMS, Câmpus do Pantanal, UFMS – Avenida Rio Branco, 1270 – Câmpus Universitário – 79.304-020 – Corumbá, MS.


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