Revista Humboldt | Episódios do Sul | Edição 108

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Especial: Episódios do Sul 83

Patrícia Oliveira

UM ­ CAMINHO NO SUL A historiadora brasileira passeia pela ­memória da rua Treze de Maio, no bairro do Bexiga, na ­cidade de São Paulo.

Amor à rua. Esse imperturbável e indissolúvel sentimento, esmiuçado pelo poeta e jornalista João do Rio (1881–1921), tem o poder de nos unir, nivelar e agremiar. Munidos desse amor e com a força da motivação que ele nos traz, perseguiremos os paralelos entre um passeio público paulistano, sua cidade e história e, por que não, o Sul do mundo. Parto da ideia territorial básica da rua como um espaço de trânsito, permanência e convivência, que liga o ponto A ao ponto B, multifuncional do ponto de vista urbanístico, mas destaco sobretudo a potência de quem nela interage e reage no contexto urbano. A alma de uma rua está na materialidade expressa em fachadas, casarios e comércio local, como também está nos sujeitos, suas aspirações e experiências. Falamos então de viver, sobreviver, existir e resistir em um espaço socialmente construído, tão diferente daquele que é doméstico e murado, quanto também daquele da cidade inteira, mais ampla. É um terreno fértil para explorar identidades e também para identificar correspondências com outros pontos do globo, em um pensamento escalar: da rua para o bairro, do bairro para a cidade, da cidade para o país, do país para o hemisfério. A Treze de Maio, na cidade de São Paulo, é uma rua dentro de um bairro nascido entre um quilombo, inserido em uma megalópole, construída sob o suor e sangue de tantos migrantes, em um país do Sul do mundo. São camadas e mais camadas em um espaço resultado-testemunho das transformações históricas em macroescala no mundo, incidindo sobre a microescala do bairro.

SOMBRA DE PASSADO SEM REPARAÇÃO A trajetória do Sul do mundo está indelevelmente expressa em suas calçadas e externaliza toda a contradição inerente ao processo de abolição da escravatura no Brasil, que se deu de forma tardia, imposta de Norte a Sul, e que até hoje reverbera em uma sombra de passado sem reparação. Em meados do século 19, com o declínio do uso de mão de obra escravizada devido às restrições globais ao sequestro e tráfico de africanos, a chegada de imigrantes europeus impacta fortemente a região da Bela Vista, onde está localizada “a Treze”. As imposições coloniais europeias para o fim do tráfico não tinham objetivos tão nobres quanto os sustentados pela oratória. A escravidão era incompatível com os ideais liberais e capitalistas em voga e deveria ser abolida em quaisquer mercados do mundo, inclusive os do Sul. A imigração, com subsídio do Estado brasileiro, veio para repovoar o âmbito laboral, com o pano de fundo dos ideais eugenistas de embranquecimento da sociedade, além do efeito de transição suave do regime de trabalho, mas não para favorecer os novos trabalhadores recém-chegados e tampouco os ex-escravizados, mas sim a elite proprietária, que tanto retardou o término da escravidão no país. Em escala local, à imigração – que no bairro da Bela Vista e também na rua Treze de Maio tem hoje uma faceta de orgulho e identificação – somou-se o apagamento histórico e a expulsão de boa parte da população negra da região para áreas periféricas da cidade, e também a estigmatização dos fluxos migratórios internos


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