Gilberto Freyre e as aventuras do paladar

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PREFÁCIO

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Hora de comer – comer! Hora de dormir – dormir! Hora de vadiar – vadiar! Hora de trabalhar? – Pernas pro ar que ninguém é de ferro! Ascenso Ferreira

O vosso doce a todos diz: Comei-me De cheiroso, perfeito e asseado, e eu, por gosto vos dar, comi, fartei-me. Gregório de Matos

Na mesa interminável comíamos o bolo interminável e de súbito o bolo nos comeu vimo-nos mastigados, deglutidos pela boca de esponja. Carlos Drummond de Andrade

Não há mulata bonita que não seja cozinheira que não tenha os beiços grossos de lamber frigideira. Folclore nordestino

Quem jogou pela primeira vez, com pontaria louca um pouco de pirão amassado na cuia, descrevendo no ar uma elipse para levá-lo ao paladar do céu da boca? Osvaldo Orico

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Este livro faltava às cercanias de Gilberto Freyre. Ele que é um universo de sugestões pelo que disse, escreveu e fez, bem mereceu que Maria Lecticia, que também é Magalhães, que também é Monteiro no seu modo de ser pernambucanamente Cavalcanti, se ocupasse numa rotina de anos à aventura do paladar na obra freyriana. E foi com cuidados clínicos que avançou nos livros, nos artigos de jornal, em papéis novos e velhos, para conhecer e nos explicar. A autora dá-nos em abundância moderna um estudo essencial. Sou testemunha privilegiada. Vi Maria Lecticia entrincheirada na leitura para anotar e na cozinha para realizar o que ia encontrando nos textos de Freyre. Vi o seu espanto e as suas confirmações. Herdeira de lições da avó paterna, Maria José, senhora excepcionalmente matriarca da zona canavieira, e da mãe, Do Carmo, uma cerebral mulher pernambucana com sangue de políticos a correr não só nas suas veias, mas na sua altivez cívica, Maria Lecticia sabe fazer bolo Souza Leão e chambaril. E com isso insinuo o tanto que se regalaram os seus amigos naquelas mesas da avó, da mãe e da filha. Mesas fartas, enxundiosas, que só de lembrar os lábios já são lambidos. Ali ninguém ficava biqueiro, isto é, comendo pouco. Na louca corrida da vida, seu marido, o escritor mais pessoano que existe, o advogado completamente cidadão José Paulo Cavalcanti, passou-lhe a conveniência de ser detalhista, de checar para melhor precisar. O livro resultou de um trabalho minudente e de bom gosto. Maria Lecticia é pernambucana exponencial no seu gosto pelo bom gosto. Não apenas sente o que é bom gosto, mas sai atrás, vai buscá-lo onde estiver. Neste livro, a partir do mapa da nossa culinária, que poderia começar com o atualmente excomungado sarapatel de tartaruga na Amazônia, até o sacrifício cruento dos churrascos nos Pampas, nada falta que seja pertinente à comida. Estão a cozinha velha com abanos, urupema, pilão de pisar milho, guarda-comida, guarda-louça, latas de banha de porco, ralador de coco, colher de pau. A cozinha nova com azulejo do chão ao teto, o freezer, as batedeiras multivelozes, os temperos já misturados que facilitam mas perdem em sabor, o leite e os sucos de frutas em vasilhames cartonados. Estão os closets com prateleiras de inox, já sem os panos de prato bordados com flores e frutas. As referências às hortas e aos roçados e às fábricas dessas malditas barras de cereais do tipo diet, infames de ruins. Até se fala da soja e dos artefatos de ferro que chegaram com a mecanização da lavoura, aposentando enxadas,

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balaios, enxadecos, torrador de café, caçuás. Apontam-se os pratos do calendário gregoriano e palatável com filhós no Carnaval, peru no Natal, rabanadas (ou pastel de parida) no Ano-Novo, peixe de coco na Quaresma, ou a feijoada aos sábados e os cozidos aos domingos. E já não se diga que a feijoada é criação dos escravos e sim dos brancos, de acordo com a tese de Almir El-Kareh. Estou a redigir estas notas pleno da tradição que forma a minha memória gustativa. É assim que recordo a cartola, o bom prato de inhame com mel de engenho, o pirão de peixe ou o cozido. Lembro da quartinha com água bem fresca, do coco de beber água ou do coco dentado para retirá-la do depósito (dentado a fim de não ser usado para beber água), do pirão neném e da canja de galinha para quando se está enfermo, o beiju, as tapiocas de coco, aliança insuperável da aculturação da mandioca ao coco e ao sal. O cuscuz de milho, seco ou molhado com leite de coco. Os queijos de coalho e de manteiga, opostos ao queijo de Minas e aqueles outros europeus tão variados. Mauro Mota aponta em Votos e ex-votos como o povo criou uma filosofia adagial: coisa fácil é canja, sopa, sopa no mel, prato feito; complicada, abacaxi; dinheiro é milho; bajulador, corta-jaca; lisonja é papa; gabolice, goma; tipo indeciso é banana. Quem passa dificuldade “come da banda podre” ou “do pão que o diabo amassou”; de duas perdidas pelo egoísmo de conquistá-las ao mesmo tempo, “nem mel nem cabaço”. Ao falar das vantagens: “está com a faca e o queijo”; “quem nunca come mel, quando come se lambuza”. Para dar imagem frutiforme ao homem silencioso recorre-se ao “calado que só um coco”. Uma bela comemoração é o “caju-amigo”. Os bordões de advertência são muito repetidos: “dou-lhe um doce se ficar calado”; ou “fique pra lá, a conversa ainda não chegou na cozinha”. Aliás, Austregésilo de Athayde confessou: “Cada um de nós tem uma aventura de cajueiro a contar aos outros e às vezes com um pouco de amor”. Ao que Assis Chateaubriand completaria: “Tenho um cajueiro dentro do coração”. “Com açúcar, com afeto/ Fiz seu doce predileto/ Pra você parar em casa/ Qual o quê”, cantou Chico Buarque. Pois foi com açúcar e com afeto que Gilberto Freyre enriqueceu os seus livros, sempre usando o açúcar como sociologia, economia, história íntima. Maria Lecticia nada deixou passar, nem mesmo aquele palpite infeliz de Freyre ao sugerir se mudasse o nome do Brasil para uma dulcificação qualquer.

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Em Pernambuco não se resiste a um bolo de rolo, de boleira prendada, nem a uma cartola do centenário restaurante Leite. Todo mundo se envolve nesse saboreio, daquele jeito que Nélida Piñon viu assim: “A boa comida me mobiliza, torna-me mais gentil, amorosa, galante. É uma celebração de humanidade”. As compoteiras do bom e clássico Baccarat são irresistíveis, não só como continente mas pelo que nelas são os conteúdos. Já se foi o tempo em que as famílias se saudavam enviando as compoteiras com doce de mamão, ou doce de laranja, ou doce de caju. Mas tudo isso é saudade de dar água na boca. A açucarocracia marcou a obra freyriana de forma significativa, o que esta pesquisa de Maria Lecticia revela em sua completude humanística; ele mesmo ensinou “cada pé de cana, um pé de gente”, como um chamar de atenção para os desfavores de quem os cultivava. Por isso, ligas camponesas, Incra, bolsa família e tudo o mais que se sabe ou se ouviu falar apareceu no meio rural. Gente subalimentada essa que fez a lavoura canavieira do Nordeste. Josué de Castro e Nelson Chaves que o digam. Gente que viu o açúcar dar e tirar, vir da botica à cozinha, ser adorado e demonizado em glicose, colesterol e obesidade. Açúcar lindo a se cristalizar nas frutas que ficavam expostas ao sol em cima do telhado, sobre folhas de papel grosso, de embrulho. Comi muita banana assim, tratada por minha mãe. Uma delícia. As boas cozinheiras de forno e fogão sempre foram as boas doceiras de que falou Freyre. Os cozinheiros, também, inclusive o célebre mestre Dudu que seduziu muita gente levada ao seu restaurante por Gilberto Freyre. Doceira famosa foi aquela que Oliveira Lima – o quixote gordo – levou para cuidar dele nos Estados Unidos. Doceiras famosas as que fazem no Recife, ainda hoje como se fossem ourives, a massa tenra bem enroladinha na goiabada do apoteótico bolo de rolo. Bolo esse que introduzi na mesa do chá de toda quinta-feira na Academia Brasileira. Quando falta, há quem, mesmo não pernambucano, reclame insistentemente. Mas se foram detectadas insuficiências no cardápio dos lavradores da cana-de-açúcar, mais num passado recente do que mesmo hoje em dia, nem sempre o homem do interior passa mal. Pesquisa de Eurico Ribeiro diz o contrário dos pescadores de alguma Amazônia, sobretudo em Maués, onde o que comem lhes dá longevidade em passar bem. As cozinheiras especiais, mães e avós em particular, aparecem neste livro, retiradas das páginas de Freyre. E são muitas. São elas que compuseram,

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ostensiva ou reservadamente, livros como os de Câmara Cascudo, Jamile Japin, Eduardo Frieiro, Silva Melo, Nunes Pereira, todos a cuidar da alimentação do brasileiro. Cozinheiras esporádicas mas famosas lá no mundo inteiro, diz Evânio Alves e exemplifica com Marilyn Monroe, Ava Gardner, Bidu Sayão, Gertrude Stein, Maria Callas. Eu, pelo gosto de acrescentar experiências pessoais, aponto as distintas brasileiras Juracy – viúva do romancista Herberto Sales, Marly – viúva do poeta Mauro Mota, Aila – cozinheira do pintor Calazans Neto, Janice – casada com o escritor Cláudio Leal, Zélia Gattai Amado, Marly Sarney, Ana Reis – comentarista de tudo que é bom e bonito na imprensa do Rio de Janeiro. Bem, são muitas, muitas mesmo. Sem esquecer, de jeito algum, a autora Maria Lecticia com astuciosa criatividade ou zelosa tradição em muitos dos seus pratos. Quando escreveu livro admirável sobre a cozinha pernambucana, imaginei, mas nunca lhe disse, que Gilberto Freyre um dia viria a ser objeto das suas pesquisas assim como Eça de Queiroz teve da parte de Dario de Castro Alves e Jorge Amado, de Paloma Amado, só para ficar em exemplos eurotropicais. Não deu outra coisa. Alinham-se essas aventuras do paladar aos livros de Osvaldo Orico, Ana Rita Suassuna, Houaiss, Rosa Belbrazzo, Suzana Herculano, Erbelta, Crumpacker; às narrativas de Cláudio de Souza sobre as cerimônias do chá; ao que disse João do Rio das casas de chopp, Moacyr Scliar do restaurante tunisino e Erico Veríssimo no oferecimento do guisado de carne em Olhai os lírios do campo. Gilberto Freyre era um anfitrião perfeito. A mesa farta e o seu cuidado em que, além do conhaque de pitanga, tão festejado – não por mim –, dos pirões de peixe ou de galinha, do bolo com sorvete, do vinho trazido da adega escondida, nada faltasse ao seu convidado. Provei do peru do Natal várias vezes. Inesquecível como era atencioso, gentil, acolhedor. Sabia que a culinária estava ligada à cultura e à natureza. Até nessas horas ele ensinava, como quando me disse: “Se vai a Portugal, veja o Mosteiro da Batalha e sinta como as pedras parecem de carne”. Até nisso se fartava e talvez hoje sugerisse a Maria Lecticia, diante das conversas do seu marido, jurista ilustríssimo, à mesa do jantar, dizer com Ribeiro Couto:

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Nesta mesa em que se consomem Iguarias da casa farta Não se fala em Direitos do Homem Nem princípios da Magna Carta.

Marcos Vinicios Vilaça, praia da Boa Viagem, Recife, dezembro 2012.

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