AGNES MARTIN - friendship

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A G N E S MARTIN

História da Arte II - AUH 310 G I O VA N N A N A O M M I O YA M A n° Usp 10751459 Profa: Renata Martin Monitores: Carolina A. K o k e t u e L u i s F. C . N u n e s



SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

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QUEM É AGNES MARTIN

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FRIENDSHIP

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minimalismo

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expressionismo abstrato

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CONCLUSÃO

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CONCLUSÃO

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INTRODUÇÃO

O quadro Friendship, pintado por Agnes Martin em 1963, guarda muitas experiências tanto para o visitante do Museum of Modern Art (MoMA), onde a obra se encontra, quanto da própria artista. Em razão do efeito da malha, feita de cortes horizontais e verticais sobre as folhas de ouro, sensações e significados não são captados de forma instantânea. A tela exige a presença humana, aquela capaz de enxergar o que os olhos não veem. A partir dos traços ortogonais, a abstração do quadro alcança a subjetividade do espectador, campo no qual a “Amizade” (tradução do nome do quadro) habita. Como Gompertz afirma, “‘Friendship’ (1963) é uma primeira incursão na sua busca por fazer nossos sentimentos visíveis” (2020).


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QUEM É AGNES MARTIN

Agnes Bernice Martin nasceu em Saskatchewan, uma cidade rural do Canadá, em 22 de Março de 1912 (RÉGIMBAL, p. 3, 2016), no mesmo ano que Jackson Pollock - mais tarde um dos mais reconhecidos pintores do Expressionismo Abstrato. Pertencente a uma família de descendentes presbiterianos escoceses, a terceira filha dentre os quatro nascidos aparentemente não teve uma infância fácil. Seu pai Malcolm Martin morreu quando a futura artista tinha apenas dois anos e sua mãe, segundo Martin, rejeitava-a. “Ela me odiava, Deus, como ela me odiava. Ela mal podia olhar pra mim ou falar comigo.”¹ (tradução própria, RÉGIMBAL, p. 5, 2016)

Fig. 1: Agnes Martin segurando o gato com seus irmãos Maribel, Malcolm Jr. e Ronald, anos 1920, Coleção do Martin Family Archive. Fotógrafo desconhecido. Disponível em: <https://www.aci-iac.ca/ art-books/agnes-martin>. Acesso em 2020.

¹ “She hated me, God how she hated me. She couldn’t bear to look at me or speak to me.”


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Na juventude, Martin estudou na King George Secondary School onde treinou natação com o reconhecido técnico canadense Percy Norman (1904–1957). Em 1928, passou no teste para a Olimpíada Canadense, mas não conseguiu pagar para comparecer nos jogos de Amsterdam. Quatro anos mais tarde, tentou novamente participar da competição, mas chegou em quarto lugar no estilo livre feminino de 440 jardas (400 metros), não se classificando para as Olimpíadas de Los Angeles (RÉGIMBAL, p. 6, 2016). Em 1932, mudou-se para os Estados Unidos visando se tornar professora (HARRIS, 2016), obtendo o certificado de pedagogia (teaching certificate) em 1937. Em 1941, morou em Nova York a fim de se inscrever no curso de bacharelado da Columbia University (RÉGIMBAL, p. 7, 2016). Durante esse período, teve aulas de produção de marionetes, desenho de letras, desenho de figuras e desenho e pintura incluídas na grade do curso (RÉGIMBAL, p. 7, 2016), além de, segundo a historiadora de arte Christina Bryan Rosenberger, provavelmente ter contato com as exposições de Arshile Gorky (1904–1948), Adolph Gottlieb (1903–1974), e Joan Miró (1893–1983) (RÉGIMBAL, p. 7, 2016). Foi em Nova York que Martin teve o primeiro contato com a arte moderna e começou a considerar a carreira como artista. “Eu pensei, se você pudesse ser uma pintora e se sustentar”, ela disse mais tarde, “então eu gostaria de ser uma pintora. É quando eu comecei a pintar” ² (tradução própria, RÉGIMBAL, p. 8, 2016).

Buscando uma formação direcionada às artes, Martin se matriculou no mestrado de belas artes na University of New Mexico em Albuquerque, Novo México, instalando-se na cidade de 1946 a 1951. Em 1951, Martin entrou na Teachers College at Columbia University em Nova York para conseguir o título de mestre em arte moderna (RÉGIMBAL, p. 9, 2016).

² It was in New York that Martin was first exposed to modern art and began considering a career as an artist. “I thought, if you could possibly be a painter and make a living,” she later said, “then I would like to be a painter. That’s when I started painting.”


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Durante esse período, conheceu as filosofias orientais e o Expressionismo Abstrato, um movimento, naquela época, em ascensão em Nova York (RÉGIMBAL, p. 9, 2016). Coincidindo com o momento que estava na cidade, foram realizadas exposições de Jackson Pollock (1912–1956) e Ad Reinhardt (1913–1967), renomados artistas do Expressionismo Abstrato. Fora nesse momento que Martin começou a pintar formas mais abstratas (RÉGIMBAL, p. 9, 2016). Vale ressaltar que, desde o período na Columbia University, Martin desenvolvia suas habilidades como pintora, embora poucos trabalhos dessa época tenham sobrado. A artista costumava queimar os trabalhos quando não conseguia reproduzir sua inspiração (POGREBIN, 2016). Conseguido o diploma, foi para as planícies desérticas do Taos, no Novo México, onde se dedicou às formas mais abstratas e orgânicas (HARRIS, 2016). Os trabalhos dessa época chamaram a atenção de Betty Parsons respeitada galerista nova-iorquina, quem convidou a artista a morar em Nova York em 1957 (HARRIS, 2016). Na cidade cosmopolita, Martin viveu e trabalhou em Coenties Slip, uma rua no Baixo Manhattan (HARRIS, 2016) onde moravam jovens artistas muitos dos quais gays, como Jasper Johns, Robert Rauschenberg, Robert Indiana e Ellsworth Kelly (LAING, 2015). A própria Martin era lésbica, embora não fosse publicamente declarada e mantivesse seus relacionamentos amorosos de forma bastante discreta (RÉGIMBAL, 2016, p.14). Tal grupo se empenhava em conquistar espaço dentro dos já bem estabelecidos expressionistas abstratos, um meio artístico dos anos 50 e 60 considerado masculino e machista (LAING, 2015). Rodeada por esses artistas, a pintora viveu um período propício para experimentar as geométricas pinturas abstratas: os pontos organizados de forma regular, os quadrados, os triângulos, a paleta. Aos poucos, Martin ia ganhando o característico padrão regular pelo qual foi reconhecida posteriormente (LAING, 2015).


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Fig.2: MARTIN, Agner. [sem título]. 1946. Pintura, aquarela, 37,5 x 52,4 cm, coleção particular, Califórnia. Disponível em: <https://www.aci-iac.ca/art-books/agnes-martin/style-and-technique>. Acesso em 2021.

Legendas das imagens ao lado Fig. 3: (dir) MARTIN, Agner. [sem título]. 1952. Pintura, aquarela e tinta sobre papel, 29,9 x 45,3 cm, MoMA, NY (RÉGIMBAL, p. 10, 2016). Fig. 4: (esq) Fotografia tirada pelo Mildred Tolbert de Agnes Martin no seu estúdio, 1955 (RÉGIMBAL, p. 11, 2016. Fig. 5:(cen) MARTIN, Agner. [Dancer No]. 1956. Pintura, óleo sobre tela,121.9 x 182.9 cm ,Collection of Stanley D. Heckman, New York (RÉGIMBAL, p. 67, 2016).


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Conseguido o diploma, foi para as planícies desérticas do Taos, no Novo México, onde se dedicou às formas mais abstratas e orgânicas (HARRIS, 2016). Os trabalhos dessa época chamaram a atenção de Betty Parsons respeitada galerista nova-iorquina, quem convidou a artista a morar em Nova York em 1957 (HARRIS, 2016). Na cidade cosmopolita, Martin viveu e trabalhou em Coenties Slip, uma rua no Baixo Manhattan (HARRIS, 2016) onde moravam jovens artistas muitos dos quais gays, como Jasper Johns, Robert Rauschenberg, Robert Indiana e Ellsworth Kelly (LAING, 2015). A própria Martin era lésbica, embora não fosse publicamente declarada e mantivesse seus relacionamentos amorosos de forma bastante discreta (RÉGIMBAL, 2016, p.14). Tal grupo se empenhava em conquistar espaço dentro dos já bem estabelecidos expressionistas abstratos, um meio artístico dos anos 50 e 60 considerado masculino e machista (LAING, 2015). Rodeada por esses artistas, a pintora viveu um período propício para experimentar as geométricas pinturas abstratas: os pontos organizados de forma regular, os quadrados, os triângulos, a paleta. Aos poucos, Martin ia ganhando o característico padrão regular pelo qual foi reconhecida posteriormente (LAING, 2015).

Fig. 6: No terraço do estúdio de Agnes Martin, Coenties Slip, Nova York, 1958. Da esquerda para direita: Delphine Seyrig, Duncan Youngerman, Robert

Indiana,

Ellsworth

Kelly,

Jack

Youngerman e Agnes Martin. Fotografia de Hans Namuth. Disponível em: <https://meighanmaley. com/2018/08/01/of-and-off-the-grid/>. Acesso em 2020.


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Além disso, o desenvolvimento da pintura acompanhou seus difíceis problemas pessoais. Quando morava em Coenties Slip, foi hospitalizada diversas vezes em consequência das alucinações auditivas, da depressão e da transe catatônica. Naquela época, Martin foi diagnosticada com esquizofrenia paranoica (MALEY; VIA, 2018). Em 1967, no auge de sua carreira, decidiu se afastar do mundo da arte, o qual a pressionava. Além disso, outros problemas a assolavam: a perda de sua casa por um

Fig. 7: Agnes Martin no seu estúdio, Coenties Slip, Nova York, 1996. Fotografia de Diane Arbus. Disponível em: <https://meighanmaley.com/2018/08/01/of-and-offthe-grid/>. Acesso em 2020.


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empreendimento, a morte súbita do amigo Ad Reinhardt, o fim do relacionamento com a escultora grega Chryssa e o aumento das dificuldades para com sua doença mental motivaram o retornou para Taos e o início de um período de isolamento (HARRIS, 2016). As vozes, também, estavam de acordo. “Eu não poderia mais ficar, então tive que ir embora, entende,” ela explicou décadas depois. “ Eu deixei Nova York porque todo dia eu de repente sentia que queria morrer e isso estava conectado com a pintura. Demorou muitos anos para descobrir que a causa era o sobrecarregado senso de responsabilidade ” ³ (tradução própria, LAING, 2015).

Após oito meses na estrada, Martin alugou uma terra em Cuba, vila do Novo México,onde construiu uma moradia de quarto único a partir de blocos de adobe moldados por ela própria (LAING, 2015), além de uma cabana de madeira (log cabin) com as árvores que ela própria havia cortado. Tudo “sem eletricidade, telefone, vizinhos, não havia nem um abrigo para ela se mudar” (tradução própria, LAING, 2015). Quando voltou a pintar em 1974, as delicadas grelhas de grafite, marcas das obras da artista, ganharam outro aspecto (HARRIS, 2016). As paletas mais quentes passaram a compor seu trabalho, uma referência a árida paisagem desértica de Taos, onde morou e passou o resto de sua vida (HARRIS, 2016). Com a idade mais avançada, diminuiu o tamanho dos quadros para 1,5 x 1,5m a fim de conseguir mudá-los de lugar sozinha. Aos 80 anos, Martin se mudou para uma comunidade de aposentados (retirement community) em Taos, mas ia todos os dias para seu estúdio (MALEY; VIA, 2018). A artista ganhara um Mercedes branco de sua amiga Arne Glimcher com o qual fazia as viagens de ida e volta (MALEY; VIA, 2018). Essa mesma amiga acompanhou seus últimos momentos de vida com 92 anos, em 2004 (MALEY; VIA, 2018).

³ The voices, too, were in agreement. “I could no longer stay, so I had to leave, you see,” she explained decades later. “I left New York because every day I suddenly felt I wanted to die and it was connected with painting. It took me several years to find out that the cause was an overdeveloped sense of responsibility.” ⁴ No electricity, no phone, no neighbours, there was not even a shelter to move into.


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Fig. 8: Último trabalho de Agnes Martin. MARTIN, Agnes. [sem título]. 2004. Desenho, tinta sobre papel , 8.89 x 6.985 cm, Peter Blum Gallery, NY. Disponível em: < https://brooklynrail.org/2008/03/artseen/homework >. Acesso em 2021.


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FRIENDSHIP (1963)

Agnes Martin estava em Nova York a convite da galerista Betty Parsons em 1963, ano em que Friendship foi produzido. Naquela época, a canadense vivia na rua Coenties Slip, no Baixo Manhattan, em meio a prédios abandonados e jovens artistas americanos envolvidos com os movimentos da cidade cosmopolita (LAING, 2015). Segundo Gompertz (2020), apesar das péssimas condições do estúdio no qual morava, Martin se sentia bem na companhia de tais artistas. Nesse ambiente descontraído e apoiada pela Parsons, Martin passou por um período de experimentação e rigorosa disciplina (LAING, 2015). Aos poucos as geometrias abstratas e as repetições meticulosamente organizadas foram ganhando consistência, de modo que seu trabalho começou a ser associado ao Minimalismo, embora ela se identificasse com o Expressionismo Abstrato (LAING, 2015). Ambos os movimentos emergiram fortemente em Nova York entre os anos 50 e 60, quando, no período do pós-guerra, os Estados Unidos (EUA) se tornaram uma potência mundial e passaram a ser um pólo artístico (MALEY; VIA, 2018). A seguir, discute-se as características e motivações da pintora que as classifica ora como parte do Minimalismo ora como do Expressionismo Abstrato, na tentativa não de encaixá-la em uma determinada categoria, mas de ampliar as interpretações do quadro Friendship se utilizando das reflexões de cada movimento.


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Fig. 9: MARTIN, Agnes. [Friendship]. 1963. Pintura, folha de ouro incisa e gesso sobre tela , 190.5 x 190.5 cm, MoMA, NY. Disponível em: <https://www.moma.org/collection/works/79842?>. Acesso em 2020.


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minimalismo

Nesse contexto de pujança cultural, os EUA viviam um período marcado por vários movimentos de contracultura e expressões artísticas, sendo uma delas o Minimalismo (Minimalismo, Enciclopédia Itaú). Representantes dessa corrente, como Frank Stella, Donald Judd, Sol LeWitt, propunham uma arte que quebrava paradigmas. Enquanto as gerações anteriores ou mesmo o Expressionismo Abstrato, contemporâneo aos minimalistas, concentravam seus esforços na representação de paisagens, retratos e objetos bem como na expressão de sentimentos e impressões, a minimal art pretendia discutir a materialidade da obra, ou seja, seus aspectos físicos sem interpretações para além disso. Nas palavras de Stella, “o que você vê é o que você vê” ⁵ (tradução própria, Minimalism, Tate). Em razão de tais premissas, o local na qual os trabalhos desse movimento se encontravam assumia papel fundamental. O observador interagia com a obra a partir das variáveis da sala de exposição, como as dimensões e a iluminação, colocando o espaço não mais como agente neutro, mas como parte integrante da experiência do espectador com o objeto de arte (Minimalismo, 2015). Esse aspecto é perceptível nos grids de Agnes Martin. Em 1960, a artista expôs a pintura White Flower, a primeira obra de linhas verticais e horizontais sobre uma tela quadrada de 182.9 cm, características as quais, mais tarde, tornaram-se sua marca (RÉGIMBAL, p. 33, 2016). O quadro consiste em traços ortogonais brancos sobre o fundo escuro formando uma delicada malha. Ao longe, os detalhes garantem textura ao plano. É possível perceber também uma margem em torno do que parece um miolo levemente mais preenchido. Portanto, respeitada certa distância, a obra revela timidamente uma organização racional e precisa. Conforme o observador se aproxima, compreende-se que as retas possuem pequenas irregularidades. São feitas a mão. O centro, antes pouco nítido, transparece os quatro traços de tinta em cada retângulo da trama. Assim, em razão da sutileza dos traços, a descoberta do quadro depende do tamanho do espaço para contemplação, interferindo diretamente nas percepções do visitante.

⁵ ‘What you see is what you see’


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Fig. 10: MARTIN, Agnes. [White Flower]. 1960. Pintura, óleo sobre tela, 182,9 x 182,9 cm, Museu Guggenheim, NY. Disponível em: <https://www.guggenheim.org/artwork/2803>. Acesso em 2020.


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Os trabalhos posteriores ao quadro acima permaneceram com os grids, apresentando variações por meio de traços, bordas, faixas, pontos e linhas descontínuas (RÉGIMBAL, p. 34, 2016). Entretanto, tais formas foram suprimidas em detrimento da valorização da malha. Friendship expõe esse lado mais maduro da artista (THE art channel, 2015). Da mesma forma como White Flower, Friendship não se revela espontaneamente. À primeira vista, distante da tela, observa-se um plano quadrado, excepcionalmente de 190.5 cm, e dourado. Esta atrai grande atenção. É uma cor que não está no espectro de cores. Seu aspecto metálico garante brilho. A luz refletida se torna dourada. A folha de ouro que confere esse aspecto se encontra sobre a camada de gesso e do óleo avermelhado, que preparam a superfície para receber o material. As interpretações do porquê a artista escolheu tal recurso para produzir Friendship será trabalhado na parte do Expressionismo Abstrato. Aqui se destaca o protagonismo da folha de ouro. Não há mais nada sobre a superfície. Tal aspecto se aproxima das ideias minimalistas no que tange a valorização da materialidade, isto é, a cor, a forma e a superfície são vistas como uma unidade, o que Judd chama de singles ou wholeness (FERREIRA; COTRIM, p. 97, 2006). Portanto, a partir do quadro, é como se a artista tivesse reservado um espaço específico para enaltecer a substância - sua espessura, cor, brilho, textura.

Fig. 11: Exposição Collection 1940s-1970s (Coleção dos anos 1940 e 1970, tradução própria) na galeria Touching the void (Tocando o vazio, tradução própria) onde aparece a pintura Friendship. Fotografia de Jonathan Muzikar. Disponível em: <https://www.moma.org/collection/works/79842?installation_ image_index=0>. Acesso em 2021.


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Entretanto, ao se aproximar do quadro, tais impressões são questionadas. Um grid se apresenta, mas de forma incomum em relação aos outros trabalhos da artista. As delicadas linhas, geralmente traçadas com o grafite, nesse quadro, são formadas por cortes verticais e horizontais na folha de ouro, em um processo de cisão do material. Como consequência, as camadas de baixo ganham espaço, fazendo com que as folhas de ouro se apresentem como um revestimento que esconde as bases da pintura. Portanto, embora a materialidade ainda seja uma característica marcante do quadro, a questão do wholeness, conceito firmado pelos minimalistas, perde força quando a combinação de materiais não tem a finalidade de ressaltar seus aspectos inerentes.

Fig. 12: MARTIN, Agnes. [Friendship]. 1963. Detalhes da pintura, folha de ouro incisa e gesso sobre tela , 190.5 x 190.5 cm, MoMA, NY. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/entertainment-arts-52900476>. Acesso em 2020.


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Ainda se utilizando das reflexões dos minimalistas para compreender Friendship, Judd no texto “Objetos Específicos”, considerado o “manifesto teórico do minimalismo” (FERREIRA; COTRIM, p. 97, 2006), afirma que os artistas dessa geração pós-guerra produziam uma arte que não era nem pintura nem escultura. Constituíam-se do que chamou de trabalhos tridimensionais. Em outras palavras, é a argumentação das “coisas em si, que só remetem a si mesmas” (FERREIRA; COTRIM, p. 97, 2006) levada para a reflexão da função do quadro na pintura desses novos movimentos. Os elementos dentro do retângulo são amplos e simples e correspondem intimamente ao retângulo. As formas [shapes] e a superfície são apenas aquelas que podem ocorrer plausivelmente dentro de ou sobre um plano retangular. (FERREIRA; COTRIM, p. 98, 2006)

O “retângulo” mencionado na citação corresponde ao formato do quadro, não mais um mero suporte da arte. Seu shape atua como elemento ativo da composição da pintura, norteando o que surgirá sobre ele. Seguindo essa lógica, interpreta-se o grid de Friendship como unidades do quadrado, pois as larguras e alturas dos retângulos são divisíveis por 190.5cm, as dimensões da tela. Assim, conforme o que Judd defende, a pintura de Martin perde seu caráter bidimensional e entra no “espaço real” (FERREIRA; COTRIM, p. 97, 2006), uma vez que o próprio quadro é parte integrante da obra.


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expressionismo abstrato

O Expressionismo Abstrato surgiu em reação às crises do pós Segunda Guerra Mundial. Os ideais social-democratas de fraternidade e de sujeito universal preconizados pelo movimento moderno, bem como o enaltecimento da evolução tecnológica pelas vanguardas artísticas europeias eram crenças que anunciavam o promissor futuro da humanidade. Tais questões, entretanto, caíram na desilusão após o conflito. Nas palavras de Adorno: “Escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossível escrever poemas” (1998, p.26).A palavra “poema” representa o lado poético e sensível do ser humano usado anteriormente à guerra para exaltar a “razão e a crença no conhecimento como força de civilização” (SILVA, 2013, p.71). Entretanto tais concepções são deterioradas com a imagem de Auschwitz, nome do maior complexo de campos de concentração e de exterminação da Alemanha nazista e, portanto, metonímia da catástrofe causada pelos próprios elementos considerados previamente o orgulho da humanidade (SILVA, 2013, p.71). Portanto, as pessoas se encontravam em um estado de desesperança, já que as apostas do pré-guerra haviam sido refutadas de forma desastrosa. Esse contexto de instabilidade interna reverberou no mundo artístico por meio da abordagem de temas que envolviam a subjetividade do homem, seu estado emocional e suas impressões. Os estudos sobre psicologia de Carl Jung e o existencialismo de Paul Sartre, além de mitos primitivos e artes arcaicas foram usados de inspiração pelos expressionistas abstratos, como Jackson Pollock (1912 1956), Mark Rothko (1903 - 1970), Adolph Gottlieb (1903 - 1974), Willem de Kooning (1904 - 1997), Isamu Noguchi (1904 - 1988) e Ad Reinhardt (1913 - 1967) (STELLA, 2004), muitos dos quais norte-americanos. Após a Segunda Guerra-Mundial, os EUA se tornaram a “nova potência mundial e centro artístico emergente” (Expressionismo Abstrato, Enciclopédia Itaú), fazendo com que a Europa perdesse sua hegemonia no


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campo da arte e dando espaço para o país estadunidense. Assim, o Expressionismo Abstrato se tornou o primeiro movimento artístico dos EUA a obter reconhecimento internacional. Um dos precursores do Expressionismo Abstrato nos Estados Unidos era Betty Parsons. Galerista da Betty Parsons Gallery, uma das mais prestigiadas de Nova York, Parsons realizou exposições com obras de Jackson Pollock, Barnett Newman, Mark Rothko e Clifford Still - os quais chamava de os “quatro cavaleiros do apocalipse” (WOLF) - dentre outros grandes nomes do movimento. Ao mesmo tempo que promoveu esse grupo, considerado um meio machista de homens brancos heterossexuais, Parsons deu espaço para expressionistas abstratos que não se encaixavam nesse padrão (Artspace, 2017).

Fig. 13: Retrato de Betty Parsons. Disponível em: <https://www.alisonjacquesgallery. com/artists/201-betty-parsons/overview/>. Acesso em 2021.

⁶ She was also one of the first American gallerists to represent women, African-American, Latin American, and Asian artists, such as Agnes Martin, Louise Nevelson, Thomas Sills, José Bernal, Roberto Matta, and Kenzo Okada. “In terms of my galleries, I never thought about whether the artist was a male or a female,” she said in a 1977 interview. “I always thought: ‘Are they good or not good?’


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Ela era uma das primeiras galeristas americanas a representar artistas mulheres, americanos descendentes de negros, latinos e asiáticos, como Agnes Martin, Louis Nevelson, Thomas Sills, José Bernal, Roberto Matta, e Kenzo Okada. “Em relação à minha galeria, eu nunca pensei sobre se o artista era homem ou mulher,” ela disse em uma entrevista de 1977. “Eu sempre pensava: ‘Eles são bons ou não?’’’ (tradução própria, GOTTHARDT, 2017)

Ad Reinhardt também teve o suporte de Betty Parsons para expor suas obras. Ele e Martin eram amigos que provavelmente se conheceram em Taos, em 1951 (RÉGIMBAL, 2016, p. 14). Ambos pactuavam com as filosofias orientais, tendo Reinhardt inclusive viajado para os países da Ásia à procura da literatura Hinduísta, Budista e Cristã (COTTER, 2013), enquanto Martin, além dos dois últimos, interessavase pelo Taoísmo e pelas ideias americanas transcendentais (HARRIS, 2016). Régimbal cita uma das falas da artista sobre sua relação com tais concepções: “O que eu mais me interesso são os antigos chineses como Lao Tse e eu faço citações da Bíblia porque é tão poético, apesar de não ser cristã.” Ideias Taoístas sobre não ego e humildade podem ser lidas no seu trabalho e ter influenciado de forma particular na sua escrita. ⁷ (tradução própria, RÉGIMBAL, 2016, p.10)

Seguindo os princípios dessas crenças, os dois artistas buscavam a expressão de uma autêntica pureza dos seus estados emocionais (COTTER, 2013). Ao nomear o quadro de The Tree (1964), por exemplo, Martin não pretendia reproduzir a imagem de uma árvore, nem o quadro apresenta qualquer sinal de algo parecido (RÉGIMBAL, 2016, p. 35). Assim como em Friendship, a obra é basicamente preenchida por um grid, forma na qual sua arte melhor manifestava as sensações.

⁷ “What I’m most interested in are the ancient Chinese like Lao Tse and I quote from the Bible because it’s so poetic, though I’m not a Christian.” Taoist ideas of egolessness and humility can be read in her work and particularly influenced her writing.


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A primeira vez que eu fiz um grid, eu me peguei pensando na inocência das árvores… e depois esse grid veio na minha mente e eu pensei que ele representasse inocência, e eu ainda penso, e então eu pintei isso e fiquei satisfeita. ⁸ (tradução própria, RÉGIMBAL, 2016, p.36)

A citação explicita as reflexões que a artista tivera antes da feitura da obra. As linhas ortogonais parecem inspirar a pintora, que não tem o impulso imediato de confeccioná-las. Percebe-se um certo amadurecimento das ideias antes de sua concretização. Tal fato é confirmado a partir dos relatos sobre o processo criativo de Martin.

Fig. 14: Agnes Martin sentada no seu estúdio no Taos, Novo México, 1999. Fotografia de Annie Leibovitz. Disponível em: <https://venycuentame.home.blog/2019/04/21/annie-leibovitz/>. Acesso em 2021.

⁸ “When I first made a grid I happened to be thinking of the innocence of trees. . . and then this grid came into my mind and I thought it represented innocence, and I still do, and so I painted it and then I was satisfied.”


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Annie Leibovitz, autora da fotografia acima, explica a imagem citando a frase da pintora: “Eu me sento aqui e espero ser inspirada’’ (tradução própria, TRACY, 2013). Em outras palavras, o ato de sentar de Agnes Martin carrega outra dimensão. Não corresponde ao antônimo de movimento, isto é, a um ato inerte, estagnado. Refere-se ao estado de espírito em que o corpo parado dá espaço para a mente refletir, entrar em conexão com seu interior. Dessa forma, a artista podia ficar semanas sentada meditando até que uma imagem completamente formada surgisse na sua mente (MALEY; VIA, 2018). Somente depois disso, a pintora planejava sua execução. Aos mínimos detalhes, Martin inclusive fazia cálculos matemáticos (RÉGIMBAL, 2016, p. 69).

Fig. 15: Fotografia dos cálculos de Agnes Martin da Exposição MoMA NYC. Disponível em: <https://www.instagram. com/p/B1g_u5OpZ0r/>. Acesso em 2021.


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Em relação à execução da obra, a artista seguia a rigorosidade. Era fundamental para que realizasse exatamente o que havia concebido em mente e o como isso seria feito. O vídeo do Moma How to paint like Agnes Martin – with Corey D’Augustine | IN THE STUDIO (2017) mostra, por meio da feitura de um quadro, como era o processo artístico da pintora. Em dado momento da gravação, D’Augustine usa o pincel para fazer os traços de dentro dos retângulos do grid. Cada risco na tela era feito com a quantidade certa de tinta, repetindo precisamente os mesmos movimentos. Um traço feito da esquerda para a direita com um lado do pincel, o seguinte feito da mesma forma, porém com o lado oposto. O artista do vídeo afirma que Martin estabelecia um padrão de ações que deveria não somente ser obedecido, mas também gerar resultados semelhantes. Caso essa sequência de traços semelhantes e movimentos repetitivos fossem alterados, o quadro seria descartado e o processo, recomeçado. Seu lado autocrítico era tamanho que há relatos da própria pintora, no começo de sua carreira, sobre, todo fim de ano, queimar alguns dos seus trabalhos (POGREBIN, 2016). Esse processo contrasta bastante com a forma como Pollock, um dos cânones do Expressionismo Abstrato, produzia suas obras. Enquanto Martin utilizava instrumentos que lhe garantiam precisão, como a régua T, o barbante para as guias e o grafite (RÉGIMBAL, 2016, p. 69), além do longo planejamento; o pintor americano deixava fluir sua inspiração durante a feitura do quadro. O artista pintava por meio do dripping, na qual se pingava e lançava as tintas sobre a tela formando desenhos amorfos (MoMA, 2019). Assim, o trabalho registrava os movimentos da tinta ao chegar na tela: as direções, as gotas, a acomodação sobre o quadro, um método mais descomedido em relação à Martin. Em razão dessas divergências dentro do próprio movimento, o Expressionismo Abstrato apresenta duas vertentes: os artistas do action painting e os do colour


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field painting (Abstract Expressionism, Tate). O primeiro tem como principais representantes os já mencionados Pollock e de Kooning, pintores cuja expressão pictórica retoma o estado emocional que originou a ação do dripping. Para romper em definitivo com o dualismo ideação-realização - ou, se se quiser, entre interioridade e exterioridade -, Pollock precisa em primeiro lugar bloquear o sujeito como fluxo de expressão, fazer com que esta passagem seja intransponível. E isso ele consegue ao se converter, pela ação, em pura exterioridade. (NAVES, 2007, p. 258)

Fig. 16: POLLOCK, Jackson. [One: Number 31]. 1950. Pintura, óleo e esmalte sobre tela, 269,5 x 530,8 cm, MoMA, NY. Disponível em: <https://www.moma.org/calendar/galleries/5117>. Acesso em 2020.


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Fig. 17: REINHARDT, Ad. [Abstract Painting]. 1960-61. Pintura, óleo sobre tela, 152,4 x 152,4 cm, MoMA, NY. Disponível em: <https://www.moma.org/collection/works/79982?artist_id=4856&page=1&sov_referrer=artist>. Acesso em 2021.


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Já o segundo, os colour field painting, é formado por artistas como Rothko, Newman, Still e Reinhardt, cujas obras possuem uma maior sutileza na composição das cores. Em parte, isso se deve às ideias religiosas e místicas que o grupo tinha interesse (Abstract Expressionism, Tate). A influências dessas concepções transcendentais também explica o caráter mais silencioso e introspectivo em comparação aos actions paintings. Muitas das suas pinturas convidam o observador a sentar e contemplar (Abstract Expressionism, Tate), aspectos que convergem em grande medida com a maioria dos trabalhos de Martin. Friendship é emblemático nesse sentido meditativo. Quando o grid é revelado, evidencia-se o que os designers gráficos afirmam ser um “princípio organizador” (SAMARA, 2007, p. 11), uma ordem que estruturará uma composição. A construção dessas malhas, segundo Samara É um princípio com raízes nas sociedades mais antigas do planeta. Levar uma vida com algum tipo de sentido - e criar uma ordem compreensível para esse sentido - é uma das atividades que nos diferencia dos animais (2007, p. 9)

Portanto, as linhas ortogonais do quadro despertam certa serenidade, pois correspondem a uma das disposições da natureza humana. Além disso, a organização da obra possui uma lógica claramente acessível, sem mascarar nenhuma percepção. É como se a tela fosse exposta na sua forma mais franca, visto que o raciocínio compositivo geralmente se apresenta de forma subliminar, escondida, mas aqui é quem ganha protagonismo. Apesar da organização impecável dos traços, o olhar mais atento sobre as faixas dos retângulos identifica leves imperfeições. Alguns cortes são mais falhados, outros ligeiramente mais inclinados. A monotonia das finas folhas de ouro às vezes é quebrada pelas manchas de vermelho de uma das demãos. São detalhes que garantem personalidade ao quadro. “Nossos olhos e mentes são intrigados pela constante brincadeira entre a percepção (perfeição) e a realidade (imperfeição), uma resolvendo a outra como um acorde musical” (tradução própria, GOMPERTZ, 2020).


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Fig. 18: MARTIN, Agnes. [Friendship]. 1963. Detalhes da pintura, folha de ouro incisa e gesso sobre tela , 190.5 x 190.5 cm, MoMA, NY. Disponível em: <https://www.bbc.com/news/entertainment-arts-52900476>. Acesso em 2020.

As dicotomias também podem ser interpretadas como uma aproximação do quadro à condição humana de imperfeição. A obra de arte, frequentemente colocada como um objeto exímio e inalcançável, apresenta suas falhas, características inerentes ao homem. Tal ideia é reforçada quando se aborda a questão das folhas de ouro. Segundo o vídeo Friendship, 1963 | IN THE STUDIO: POSTWAR ABSTRACT PAINTING (MoMA, 2019), Martin retomou uma técnica que remonta os quadros da Renascença. O material foi muito utilizado na época pela Igreja, pois o dourado remetia à luz celestial e ao Espírito Santo, aspectos do mundo divino (FIGES, 2019). Portanto, ao


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apresentar erros, acidentes do processo de produção, talvez a pintora pretendesse engrandecer a Amizade (nome do quadro) através do ouro sem deixar de incluir seus aspectos ruidosos, a dimensão humana. Considerando que as folhas de ouro não são um material barato, principalmente para uma artista como Martin que começava a alavancar sua carreira nos anos 60 (Friendship, 1963| IN THE STUDIO, MoMA, 2019), a escolha pela técnica para materializar a Amizade reforça o significado simbólico da relação afetiva. Isso leva ao questionamento sobre o que teria inspirado a pintora a produzir Friendship. Na época em que esta foi concebida, Martin entrava no mundo artístico do Expressionismo Abstrato, um meio mais conservador dos anos 50 e 60, como já abordado previamente. Porém, a região de Coenties Slip era a morada de outros jovens artistas que criavam um ambiente mais acolhedor e seguro para a canadense (MALEY; VIA, 2018). Mesmo sendo uma personalidade solitária, o período em que viveu em Nova York foi acompanhado por laços interpessoais significativos, como com a artista Lenore Tawney e a escultora grega Chryssa, mulheres que foram suas parceiras amorosas; bem como com Reinhardt, colega de galeria pelo qual Martin tinha grande respeito. Cabe destacar que o contexto biográfico da obra é apenas uma pequena consideração do que poderia ter motivado a pintora a produzir o quadro. Martin tinha como principal objetivo dos seus trabalhos a transmissão de sentimentos que fossem universais (PRINCENTHAL, 2019). eles [os trabalhos de Martin] não envolviam ideias, nem certamente emoções pessoais ou elementos biográficos. Ela se opunha veementemente às leituras críticas, a ponto de cancelar uma retrospectiva prestigiosa no Whitney Museum em 1980 por eles insistirem na produção de um catálogo. As pinturas eram a coisa: as pinturas e as respostas sublimes que engendravam no observador. ⁹(tradução própria, LAING, 2015)

A citação evidencia a posição contrária da artista sobre interpretações individuais dos seus quadros. Estas não poderiam representar o verdadeiro sentido

⁹ they did not embrace ideas, and certainly not personal emotions or biographical elements. She was passionately opposed to critical readings, going so far as to cancel a prestigious retrospective at the Whitney Museum in 1980 because they insisted on a catalogue. The paintings were the thing: the paintings and the sublime responses they engendered in the viewer.


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do seu trabalho, já que Martin almejava justamente o oposto, isto é, fazer uma arte que transcendesse “as condições particulares de uma vida individual” (tradução própria, PRINCENTHAL, 2019). É por isso que “alegria, beleza, inocência e felicidade” (RÉGIMBAL, 2016, p. 71) eram os assuntos mais explorados pela artista. Eram emoções que considerava serem compartilhadas por todos (RÉGIMBAL, 2016, p. 61). Portanto, Friendship provavelmente foi concebido nessa busca de Martin por compreender o que a relação afetiva despertava no ser humano como sujeito universal. Além disso, o período em Coenties Slip não foi um momento fácil para a pintora. É nessa época que Martin foi diagnosticada com esquizofrenia paranóica, uma condição que a fizera perder o controle de si por diversas vezes, tendo inclusive recebido terapia de choque (LAING, 2015). A artista também ouvia vozes que controlavam muitas das suas decisões, embora não dissessem o que pintar (MALEY; VIA, 2018). Segundo a biografia de Princethal, “as imagens que vinham através das inspirações eram tão definidas e articuladas que se supõe uma relação entre visões e vozes: ela ouvia e via coisas que os outros não conseguiam” ¹⁰ (tradução própria, Laing, 2015). A fim de lidar melhor com a situação, na qual a aterrorizava, Martin buscou nas ideias Taoístas e Budistas uma maneira de entender seu eu e manter a mente vazia (MALEY; VIA, 2018). Martin relatou que diferenciar as inspirações das vozes importunas exigia certa concentração. Era necessário prestar atenção no que a mente dizia para conseguir se distanciar dos pensamentos inúteis (PRINCETHAL, 2019). Por outro lado, a inspiração vinha por meio de um “relaxamento controlado”, quando a mente renuncia seu lado intelectual abrindo espaço para as ideias (PRINCETHAL, 2019). Apesar da discriminação entre um e outro, ambos eram tratados como terceiras pessoas, muitas vezes, autoritárias (PRINCETHAL, 2019). A canadense interpretava as

¹⁰ the images that came to her through inspirations were fixed and articulate enough to suggest a relationship between visions and voices: she heard and saw things that others didn’t.”


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inspirações como ordens a serem cumpridas obrigatoriamente. “Enquanto você tem escolha, isso não é inspiração” (tradução própria, PRINCETHAL, 2019) Eram elas que faziam Martin ser uma pessoa metódica e perfeccionista. Provavelmente por essa razão que a artista descartava tantos trabalhos.

Fig. 19: Observador diante do quadro Friendship (1963). Fotógrafo desconhecido. Disponível em: < https:// br.pinterest.com/pin/351632683410147383/>. Acesso em 2021.



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CONCLUSÃO Os quadros de Agnes Martin precisam ser degustados sem pressa. Não basta observar somente suas cores, suas texturas, sua materialidade, como fazem os minimalistas. É preciso sentar, experimentar e digeri-los com calma. O quadro Friendship especialmente parece se revelar com rapidez, pois a cor dourada radiante logo exibe seu potencial. Entretanto, as linhas e os ritmos se revelam pouco a pouco, seja por meio da visão, seja por meio da sensação, demonstrando que a obra busca transcender a matéria, almejo mais ligado aos expressionistas abstratos. De fato, os trabalhos da pintora possuem características que a aproximam do Movimento Minimalista. Os grids de Martin voltam a atenção do observador para o espaço onde este se encontra, de modo que o quadro é pensado como parte do ambiente de exposição. Dessa forma, os materiais que compõem o objeto artístico desempenham papel fundamental para a reflexão, visto que tensionam as relações com os elementos e as condições do seu entorno. As percepções das linhas ortogonais, por exemplo, alteram-se conforme se tem maior ou menor distância da obra, o que só será possível se o tamanho do cômodo permitir ou se não houver obstáculos. Os traços também terão outra nitidez dependendo da iluminação. Como são muito delicados, seus detalhes mudam conforme a quantidade de luz e a sua posição. Entretanto, ao compreender as motivações de Martin quanto ao fazer artístico, percebe-se que suas obras vão além do tipo de substância escolhida. A canadense se empenhava em compreender as emoções humanas na sua forma mais universal. Combinando o objetivo com seu lado perfeccionista, é possível concluir que Friendship foi fielmente produzido segundo o que havia concebido em mente: os cortes sobre as folhas de ouro, as manchas do óleo vermelho, a imperfeição das linhas, todos aspectos que ela acreditava retomarem a natureza do homem. Dessa forma, a obra escolhida pelo estudo carrega valores de ambos os movimentos, mas apresenta uma inclinação para os expressionistas abstratos, cujo campo da subjetividade é onde se consegue de fato ver o quadro. É por essa razão que


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Friendship pode ser caracterizado como uma obra calorosa, simpática, pacífica, pois a cor dourada, as falhas e a regularidade das formas tiveram o propósito de despertar experiências e emoções. Tendo isso em vista, é curioso saber que Martin foi diagnosticada com esquizofrenia paranóica. Suas obras meticulosamente confeccionadas exigem um nível de domínio que contrastam com a falta de controle da sua mente em razão do transtorno mental. Entretanto, tal aparente oposição se esvai quando se entende que as inspirações para seus trabalhos provieram justamente da forma como a artista lidou com a sua condição. A paciência bem como a meditação possivelmente eram concepções que tirara das ideias transcendentais, os quais lhe ajudaram a conviver com as vozes da sua cabeça e a conseguir respostas para seus trabalhos artísticos. Portanto, Agnes Martin assim como suas obras exigem uma compreensão degustativa. A pintora viveu intensos conflitos internos que aparentemente pouco condizem com seus trabalhos artísticos. As vozes e inspirações bem como seu lado racional povoavam a mente da pintora em uma confusão de pensamentos. De maneira diametralmente oposta, a organização evidente dos seus quadros expressa o pleno controle mental e da técnica. Ambas as facetas se fundem quando se entende a busca de Martin pela compreensão das emoções universais. É possível que as dificuldades decorrentes do seu problema mental possam ter garantido a Martin uma sensibilidade maior para com os sentimentos. Assim, suas obras revelam gradativamente os detalhes e as sensações da mesma forma como encontrou seu caminho para o equilíbrio, através da potência de se estar sentado.


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Fig. 20: Agnes Martin, 2004. Fotógrafo desconhecido. Disponível em: <https://meighanmaley.com/2018/08/01/of-andoff-the-grid/>. Acesso em 2020.



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