O Estudo e o Tratamento da Loucura [Revista História Catarina]

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Foto: zenklub.com.br/ Divulgação.

Gil Karlos Ferri

O ESTUDO E O TRATAMENTO DA

LOUCURA ANÁLISES E PROPOSTAS MÉDICAS DE ATENÇÃO AO DOENTE MENTAL NO SÉCULO XIX

N

o século XIX a Medicina ocupou-se em realizar estudos para tentar entender as doenças mentais a partir de observações e apontamentos sobre as causas e possíveis tratamentos para a chamada “loucura”. Entre os estudos realizados para compreender as doenças mentais destaca-se o Tratado Médico-filosófico sobre a Alienação, publicado, em 1801, pelo médico francês Philippe Pinel.

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O tratado de Pinel apresenta constatações baseadas em pesquisas com doentes mentais. Nas suas observações, ele procurou compreender as causas das doenças mentais e as melhores formas de tratamento para elas. Porém, vale lembrar que, naquele período, a sociedade estava fortemente ligada aos preceitos morais e reguladores da ordem social. Assim sendo, Pinel escreveu em seu Tratado que as causas das doenças mentais estariam relacionadas à má educação do doente. De qualquer forma, recomendar a observação clínica sistemática foi a grande contribuição de Pinel para a medicina psiquiátrica, pois introduziu um método para o diagnóstico das doenças mentais que, até então, eram tratadas sem rigor ético-científico. Depois de Philippe Pinel, em 1816, o médico psiquiátrico francês Jean-Étienne Esquirol classificou a loucura em cinco gêneros: lypemania (delírio ou paixão triste sobre algo); monomania (delírio ou paixão alegre sobre algo); mania (delírio sobre todo tipo de objeto, e excitação); demência (perda da razão); e idiotia ou imbecilidade (má formação dos órgãos de raciocínio e do pensamento).

As pesquisas do século XIX levaram em conta os fatores físicos e a experiência de vida do paciente para identificar a doença mental e saber como proceder no seu tratamento.

Com base nesta classificação, as pesquisas do século XIX levaram em conta os fatores físicos e a experiência de vida do paciente para identificar a doença e saber como proceder no seu tratamento. Ana-

O doente mental como objeto de estudo. Ilustração: Marcelo F. da Trindade.


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lisando o pensamento da época podemos notar o interesse em conduzir os doentes mentais ao possível raciocínio considerado normal, e, assim, a doutrina de Pinel visava corrigir as anomalias mentais por meio do encorajamento, e/ou da repressão do doente, com o objetivo de (re)inseri-lo na sociedade. No início do século XIX começou a ser traçado um novo roteiro para o acompanhamento dos doentes mentais. Começava a surgir na Europa, a partir dos estudos de Phillipe Pinel, a compreensão da necessidade de mais humanização no tratamento desses doentes. Essa nova abordagem influenciou o tratamento dispensado aos alienados, no Brasil. Com a coroação de Dom Pedro II, o qual governou o Brasil durante o Segundo Reinado, iniciado em 1840, com a coroação, e terminado em 1889, com a proclamação da República, iniciou-se um processo que visava positivar e dar destaque à imagem do Brasil no cenário internacional. Esse processo previa melhorias em vários setores, sobretudo nas áreas sanitá-

rias e de Saúde Pública, alcançando, consequentemente, as formas de tratamento para as doenças mentais. É importante destacar que, até então, o tema das doenças mentais era um tabu, e até o início do século XIX os doentes eram atendidos nas chamadas “Casas de Misericórdia”, instituições mantidas pela Igreja Católica. Os problemas de superlotação, maus tratos e falta de higiene eram crônicos, e isso foi levado ao conhecimento do Imperador pelos membros da Comissão de Salubridade Geral da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro. Diante dos fatos, o governo imperial aprovou projetos para construção de “asilos destinados aos loucos”, e, em 1852, foi inaugurado o primeiro hospício do país, na cidade do Rio de Janeiro. Esse hospício, denominado Hospício Pedro II, representou um marco no tratamento das doenças mentais no Brasil, principalmente em virtude da utilização de critérios medicinais e atenção criteriosa aos pacientes. A partir desse período outros hospícios foram abertos no país, porém, geralmente em lugares afastados, estrategicamente escolhidos para garantir o isolamento. Hospício Pedro II. Rio de Janeiro/RJ. 1859. Acervo: Arquivo Nacional.


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Com base em um tratamento de correção educativa, os hospícios acabaram ganhando um caráter pedagógico. Uma vez que o doente poderia não chegar à cura, esses processos reparadores tentavam educar ou tentar conter os ímpetos e os distúrbios dos doentes. Isso porque a doença, segundo Pinel e seus discípulos, requeria um tratamento moral. Uma das primeiras medidas para tratar o doente era o isolamento de seu círculo de convívio social. Segundo os especialistas, acreditava-se que os relacionamentos dos alienados poderiam potencializar o aparecimento das desordens mentais através da irritação. Esse argumento foi usado como forma de proteger o doente e, sobretudo, proteger seus familiares. Outro argumento para o isolamento destacava que o hospício seria a instância máxima de intervenção na busca da cura do doente mental. Apenas em um hospício se poderia sistematizar e gerir os cuidados dispensados a esses indivíduos. Entretanto, na prática, esse isolamento dependia de aspectos socioeconômicos: doentes oriundos de famílias mais ricas não seriam obrigados a se isolar dos parentes, e o tratamento poderia ser feito em suas casas. Uma vez isolado, o doente teria de passar por classificações em setores, como as de separação por sexo e classes sociais. Os pacientes de primeira classe ficavam em quartos individuais, os de segunda classe em quartos destinados a dois doentes, e os demais, de terceira classe, dividiam espaços nos quais chegava a haver mais de dez pessoas. Essa divisão estava relacionada com a renda e classe social dos doentes. Havia também outras formas de separação dos pacientes, como aquelas que procuravam separar os “agitados” dos “calmos”, os “tranquilos limpos” dos “agitados sujos”, os que “manifestavam males contagiosos” dos “sãos”... e assim por diante. Outro

Em 1852 foi inaugurado o primeiro hospício do país, na cidade do Rio de Janeiro. Denominado ‘Hospício Pedro II’, representou um marco no tratamento das doenças mentais no Brasil,


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aspecto dos hospícios era o cuidado contínuo com a vigilância, o que demonstra a preocupação das instituições com as manifestações de distúrbios dos alienados. Nos hospícios também era preciso preencher o tempo dos doentes. Para isso, o trabalho entrou como solução-chave para disciplinar os corpos e as mentes dos pacientes. Nas oficinas internas os alienados se ocupavam de trabalhos como carpintaria, jardinagem, tapeçaria, bordado, alfaiataria e fabricação de móveis. Era conveniente também para o hospício esse regime de atividade, pois além da questão “corretiva disciplinar” também era uma forma de ajudar na manutenção do estabelecimento com a venda de produtos manufaturados. Neste aspecto também é importante lembrar que novamente ocorriam classificações de acordo com a situação socioeconômica do doente. Os indivíduos oriundos de famílias pobres trabalhavam em serviços braçais e forçados, enquanto os pacientes provenientes de famílias ricas ficavam com atividades mais leves, relacionadas à Cultura e à Arte. No hospício havia regulamentações em relação aos tratamentos. Estatutos eram elaborados com a finalidade de estabelecer normas na conduta dos funcionários. Entre essas determinações, recomendava-se que métodos mais rígidos, entre eles emprego do uso de camisa-de-força e

mergulhos forçados, por exemplo, só poderiam ser aplicados por facultativos ou médicos ou na presença destes. A preocupação era que essas formas mais extremas, então em uso, para a repressão das crises pudessem intervir negativamente no tratamento dos indivíduos internados. Em virtude das limitações da própria Psiquiatria, à época, o hospício como entidade restauradora acaba não atendendo às expectativas de cura que a sociedade demandava. A relação entre o anseio social e a falta de resultados significativos tornou o processo de cura, nessas instituições, “questionável” e, consequentemente, também questionável o real valor destas Instituições. Contra os hospícios argumentava-se que seus tratamentos eram traumáticos, falíveis e com resultados inexpressíveis.


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Também se criticava a falta de uma medicação que pudesse sanar ou atenuar as alterações mentais dos doentes sem deixá-los extremamente dopados ou dependentes. A ineficácia dessas instituições ficou evidente diante do aumento dos internados. Uma vez que os alienados são internados e acabam ali permanecendo por vários anos, ou até morrerem, o número de “altas” é muito menor que o de entradas para tratamento. Além dos problemas já apontados, em muitos casos ocorria um processo nocivo dentro das próprias Instituições: faltava harmonia entre seus gestores. No Hospício Pedro II, por exemplo, ocorriam conflitos entre as instituições médicas (científicas) e as administrativas (religiosas), que brigavam por espaços e poder. Esses embates acabavam gerando um péssimo ambiente de trabalho em um quadro que, dentro de tais instituições, já é crítico por excelência. Ao longo dos anos, a Instituição que poderia servir adequadamente para tratar os doentes mentais, no país, acabou por representar um depósito de gente. Diante de sua inoperância terapêutica e seus raros resultados, esses primeiros hospitais psiquiátricos foram sendo usados para receber indivíduos marginalizados pela sociedade ou pela própria família. O que era para ser unidade de tratamento e de cura acabou se transformando no retrato de uma sociedade que despreza e isola seu semelhante enfermo. HC

As perguntas desta seção constituem apenas sugestões para professores e alunos.

01) Quando a Medicina passou a realizar estudos para entender as doenças mentais? 02) Que Estudo teve destaque, na época, quando foi feito e por quem? 03) Qual a grande contribuição de Pinel para a Medicina Psiquiátrica da Época? 04) Quem foi Esquirol e o que ele fez? 05) A que a doutrina de Pinel visava e com qual objetivo? 06) Onde os doentes eram tratados, o que ocorria nessas Instituições e o que foi inaugurado em 1852? 07) O que você sabe sobre o uso do isolamento para tratar os doentes mentais? 08) Cite algumas formas de separação dos doentes e de que dependia essa separação. 09) O tempo dos doentes devia ser preenchido com trabalho. Como se escolhia quem fazia esta ou aquela atividade? 10) Que argumentos eram usados contra os hospícios? 11) O que os hospícios deveriam ser e em que se transformaram? PARTICIPE!

whatsapp HC: (49) 9 9816.6172

Gil Karlos Ferri é Professor Universitário, Historiador Ambiental e Coordenador do case História & Vitivinicultura. Para saber mais • DUARTE JÚNIOR, João Francisco. A política da loucura: a antipsiquiatria. Campinas: Papirus, 1987. • • ORNELLAS, Cleuza Panisset. O paciente excluído. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1997. • • PESSOTI, Eduardo. O Medo e a Loucura. Rio de Janeiro: Editora 34, Assoc. Nova Fronteira, 1995. • • PESSOTTI, Isaias. A loucura segundo a psiquiatria do século XIX. Rio de Janeiro: 34, 1995. • • RABELO, Míriam Cristina. Experiências de Doenças e Narrativa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999. • • Revista História Catarina. Ed. 51. Editora Leão Baio. Lages. Santa Catarina. 2013.


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O ESTUDO E O TRATAMENTO DA LOUCURA ANÁLISES E PROPOSTAS MÉDICAS DE ATENÇÃO AO DOENTE MENTAL NO SÉCULO XIX.


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Ilustração: Marcelo F. da Trindade Texto: Marcelo F. da Trindade / Gil K. Ferri Edição: Gil K. Ferri

Referências • DUARTE JÚNIOR. João Francisco. A política da loucura: a antipsiquiatria. Campinas, SP: Papirus, 1897. • ORNELLAS, Cleusa Panisset. O paciente excluído. Rio de Janeiro: Editora Revan, 1997. • PESSOTI, Eduardo. O medo e a loucura. Rio de Janeiro: Editora 34 Assoc. a Nova Fronteira, 1995. • PESSOTI, Isaias. A loucura segundo a Psiquiatria do século XIX. Rio de Janeiro: 34, 1995. • RABELO, Miriam Cristina. Experiencias de doenças e narrativa. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999.

Respostas Desafios HC (pág. 66): 1 – Leonardo Da Vinci. 2 – São José/SC. 3 – Uva. 4 – Pequeno Príncipe


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