Corpo Sem Título

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Corpo Sem Título. São Paulo, 2021. Por Gabrielle Godoy, Gil Porto Pyrata, Inaiara Gonçalves, Priscila Ferraz e Ghustavo Muniz. Publicação produzida coletivamente, a partir da pesquisa “uma escrita a partir do corpo”, proposta por Gil Porto Pyrata nas orientações artísticas do Programa Vocacional, na linguagem de Literatura, na região Norte 1.

A partir da pergunta “como ação e escrita tem potência em (se) relacionar?” e da proposta de uma escrita a partir do corpo, organizou-se uma possibilidade: a escrita pensando a produção de uma zine caseira. Nos encontramos para pensar coletivamente, em movimento de escrita, sobre tempo, sobre corpo, sobre narrativa, sobre presença. Contar aqui sobre o que foi produzido enquanto material não pode ser mais do que apenas uma das possíveis transcrições do que foram - e ainda é e será - o movimento desses encontros. As pesquisas individuais e coletivas, produzindo diferentes materiais, conversaram ao longo das orientações, enquanto linguagens que se alimentam, escrita e performance, conectando referências e experiências com o corpo. O registro desses tempos experiências está aqui.




Palavra

Sem título Figura Paterna (anti) Herói No gesto de bordar palavra, materializo ausências Tatuagem de tamanhos desmedidos Sou tecido, me construí Em minha colcha de retalhos, me abraço



Nunca vou esquecer de quando vi a foto do meu avô materno pela primeira vez, porque foi ali que reconheci minha aparência como bonita, eu sou como ele, que é como minha mãe, que era como a mãe que veio fugida do sul francês, provavelmente. Percebe como cada um têm uma história de anos luz que leva em todos os seus traços, grandes ou pequenos? Quando eu olho para meu rosto a primeira coisa que vejo são as maçãs dele, não só pelo tamanho e vermelhidão, que tomam a maior parte de todas as minhas selfies. Mas pelas sardas, porque elas contam a minha história. Quando eu era bem pequena, eu sempre admirei as princesas da disney, queria ser loira, de olhos claros, rosto fino e foi assim que escolhi também meus primeiros amores, pela aparência, pelo que

Eu costumava ter medo de tomar sol para que minhas sardas não aumentassem. Hoje é um dos melhores prazeres da minha vida, o sol me guia em todas as minhas aventuras e quando ele brilha na minha direção, eu tenho certeza de que está cuidando de mim e me dando mais uma marca de história, uma marca que carrego e meus filhos carregarão em forma de sardas bochechudas.

eu queria ser. Até que resolvi fazer uma viagem de autoconhecimento, visitar a história da minha família, fazer um exame de DNA para descobrir minhas origens e, assim, fui conhecendo cada vez mais a alegria

Por

de ter belas maçãs sardentas, autenticando cada vez mais a

Gabrielle

história que corre pelas minhas veias.

Godoy



PART I - Quando a primavera floresce, as cores voltam a colorir o

Não existe coragem sem o medo, porque é o medo que motiva,

dia, junto com a sensação de paz, de inovação, de novos amores

que faz sentir. É como ter um orgasmo, agir quando se tem

que virão.

medo, quebra as correntes que a mente mesmo impõe. O medo significa que o agir é importante, é ação, é

O calor da estação traz o colo do peito amostra e esse ano um ar de esperança pelo resquício que conhecia da vida cotidiana.

movimento, é prazer! O mesmo prazer que dá quando os cinco sentidos são

Quero voltar a respirar a liberdade de viver histórias e

aguçados, provocados e revividos.

conhecer pessoas de forma inusitada.

Prazer é muito mais do que sexo, aliás, o orgasmo é consequência de uma série de sensações, de entrega e,

Felicidade é acordar e ver um Ipê amarelo na caminhada todas as manhãs. Os budistas dizem que é um sinal de sorte, eu acredito neles porque me libera endorfina, dopamina e todas as sensações da adrenalina que é viver.

principalmente, conexão. Prazer é sentir cada detalhe, cada passo e compasso de se estar viva! Descobri o prazer da adrenalina, da paixão, a paixão narcisista e

Costumava ter medo, medo de viver, medo de sentir, medo de me

a idealista, que nos faz sofrer por não suprir nossas próprias

machucar, medo de ser feliz, até que pude ressignificar o medo.

expectativas.

Hoje o vejo como uma energia louca que passa por todo o meu

Porque sempre me apaixonei pelo que desejei que o outro fosse

corpo, uma adrenalina que me faz dar o primeiro passo de

e não pelo que ele é de verdade.

coragem todos os dias.


PART II - Exatamente pelo medo de descobrir que quando a

Dizer o que sente por alguém, mesmo que em um desabafo

paixão tivesse fim, eu seria ressignificada.

narcisista, é alívio, é afeto, é amor, é mostrar que você me

Pessoas têm defeitos, carícias e transformações constantes,

importa.

talvez o maior desafio da vida adulta, seja ter paixão por

A arte vem da dor, do aprendizado, da falta, do sofrimento e

todas as versões de uma mesma pessoa, inclusive por nós

quando ela vem do coração, encanta a multidão e cria conexão.

mesmos,

É sobre escrever e dançar sobre perspectivas particulares de

No fim somos todos seres humanos procurando nos encaixar em

vida.

algo que dê significado em viver todos os dias.

É sobre ter prazer

Amor, paixão e, principalmente, conexão são raros!

É sobre amor, apoio, afeto, paixão e ter orgulho de quem se é hoje, de ser o protagonista da própria história

Mas sem eles… Qual o significado de viver? Me acostumei a não chorar, segurava o choro dentro do peito, como um segredo absoluto, que ninguém tinha acesso, muito menos eu mesma.

É sobre enxergar o lado mais bonito da vida Ver beleza no por do sol Nas palavras desse texto que senti com o coração Desde que saí para caminhar pela manhã, no primeiro dia de primavera e vi ali o Ipê amarelo, mais belo que já havia visto.

A vida é uma constante de aprendizado infinita!

E pude entender que a beleza está na vida!


Por Gabrielle Godoy


Sem Título Ahhh a Primavera… já é, já está! Cadê? cuidado! vai passar! eu não sei bem qual devia ser a sensação de entrar na primavera, de viver o equinócio negócio esse de nome estranho mas que eu lembro que tem a ver com mais sol. Mais tempo de sol, mais sol no tempo ou o tempo todo sol? Hoje amanheceu chovendo garoa fina da cidade da garoa ainda que eu esteja quase afuera do perímetro sempre às margens, seja São Paulo, seja Buenos Aires; sempre um trem pra chegar, ao acaso, sempre a esperar a primavera chegou com chuva porque não poderia melhorar?

Mede o medo “que dá medo do medo que dá” Mas e alguém dá medo? Em algum momento alguém chegou pra você e te entregou medo? Como se o medo fosse algo que desse pra medir Medo e medida são sempre tão pessoais… Minhas medidas várias vezes vêm do medo que é meu e não entrego a mais ninguém! Dá até medo pensar em compartilhar O que a ti dá medo? Pode ser a mesma coisa que a mim dará mas pode ser outra coisa, sem pé nem cabeça quais medidas? quais seus medos? Quem mede isso tudo, afinal? Juiz do fazer, quem será? O Juri popular des.medidas



Deixei-me ir precisei tantas vezes andar caminhar na vida e não voltar Deixa eu me deixo e não me queixo do que eu quero agora Por mim já é mais que hora viver e rir ir e vir não voltar chorar só se for de rir Nessa melodia me embalo sou dança me harmonizo me em.canto e comigo consigo deixar-me ir ainda mais além transgredir

sem procurar no meio um fim necessário é só o movimento movida batida embalo no que é belo e passa no passageiro que sou desse ainda trem cheio de vagões conectados pelo meu chacoalhar deixei-me rir deixei a mim e fui atrás do que ainda nem era mas que poderia ser e agora de novo o abandono me abandono e sou eu quem segue no ir e vir do que pode ou não ser será? Serei... SerEiU


a diferença o entre tempo desses tempos da madrugada mal dormida desses entre meios entre dor entre prazer amarga a boca um pouco pensamentos são brisas de saudade sempre pensei que poderia ser escrito com L como sal saldade de salgada que a boca fica da sede que dá do gosto de querer mais me dá gosto querer mais TLBG+ Quando acordar vou olhar pro relógio e pensar: - será que foi sonho? ou brisa densa dessa madrugada imensa?

em meio a muros e muros e muros muitos e cinzas pintaria em tudo cores arco-íris mas não me sobrou tanta tinta então me pinto sinto e sou tela e praia mar e onda eu sou e me faço arco-íris arroboboy deixo-me ir e já não... soul jazz já não estou já fui.




sem título I Cartografia do corpo. Mapa que sobre a tela tenta encontrar algum lugar. Mãos. Mexem e encostam um vazio esquisito, não conseguem segurar algo mas ao mesmo tempo já seguraram tanta coisa. Mesmo ali, naquele vácuo virtual contam segredos que eu sequer saberia descrever. Marcas mapeiam os dedos, linhas que não são de hoje se entrecruzam. Encruzilhada. Qual mão quero? Qual caminho? Engraçado, às vezes paro e temo escrever uma frase. Talvez porque me ensinaram que com as palavras eu deveria sempre fazer escolhas certeiras. Mas quem disse que elas não podem ser corpo vivo no papel? Minha mão direita movimenta e dança mas assumo que hoje tive vontade de escrever com a boca. Inserir levemente uma caneta em algum canto dos dentes que me permitisse experimentar os desenhos possíveis da tinta dançando sem tanta pressão. Imagina só! Escrever sobre minhas mãos usando a boca. Quem foi que delimitou meu mapa? Instaurou fronteiras. Danço ao Sul. Faço barricadas com minha língua de fogo. Espumo raiva. Respiro fundo enquanto meus seios fulguram prazeres palpáveis em palavras.


* A cartografia corpórea segue sendo descoberta. Há um certo caos quando deixo que essas tantas partes que me mantém em pé vivam. É como se nelas estivessem encurralados os medos e desatenções comigo mesma. A verdade é que hoje eu não queria escrever. Até queria… Mas como nunca sei o que irá surgir temo que ________ Hiato. Há um cubículo minúsculo em minhas vértebras e uma voz rouca que não sai. Na última semana meu corpo precisou aguentar tantas palavras externas direcionadas a ele que é como se elas tivessem impregnado os ligamentos. Descasco cartilagens internas para ver o que restou de mim… É possível que olhares ansiosos alheios nos roubem? Resgato o que levaram. Resgato minhas palavras e meus brinquedos. Em especial aquela meia cheia de grãos cujas minhas mãos fizeram, tocaram e convidaram a brincar. Uma das vozes dizia: - Isso aí é peteca de pobre! Penso que talvez essas palavras roubaram minhas mãos. Por isso, hoje não sei bem escrever.


sem título II Com as palmas das mãos toco outros corpos passagens pulverizo dores apalpo-me. Permaneço minha. Vejo nas palmas das mãos esses tantos traços — marcas de um tempo que tentam me arrancar: essas linhas que dizem ser possível ler, mas que por si só são palavras. Caminhos das encruzilhadas poéticas próprias. Cigana que sou, abro o tempo com as próprias mãos. Essas, que às vezes, de tanto trabalhar, sucumbiram. Hoje, sei que não são só minhas. São as mãos de minha avó, mãe, irmã. São as mãos de um passado que muitas vezes não encontra lugar. Pois então, preciso costurar espaços para que caiba. Teço. Fio por fio. Gota por gota. Teço nas águas salgadas até que um grande (ainda não encontrei a palavra) dissolva aquilo que ainda dói. Líquidos escorrem. Volto incólume. Danço. Rodopio. Converso com o tempo em pensamento.



ainda sem título Um quase jogo-de-forca, um liga-pontos que ainda irei bordar. Palavras ausências. Que corpalavra ocuparia a forca? Como desenhar uma palavra ligando seus pontos? Sem título. • Não haveria palavra melhor que essa para dizer o indizível . Sem palavra. Não-lugar. Parda, disseram. Na •infância• forçosamente me amarrotaram com tecidos embranquecidos... Costuraram meus •olhos• contra minha vontade para que eu visse tudo o mais claro possível. Embranquecimento compulsório dessa pele corpa miscigenada. Até que: •desvio• Recolhi minha •boca• e pude, pela primeira vez, gritar: Sou sem título, mas sei do •vermelho• escorrido de minhas ancestrais. Ainda não sei muito bem diante de tanta •assimetria• ••••••• ••• •• •




É na pausa onde ela consegue andar... Ou melhor, caminhar pelas suas memórias doces e vivências apodrecidas. Ela nunca coube. Não coube no papel de filha, não cabe no papel de mãe, no de ser mulher. Ela não coube ao responder, ainda criança, o que ela iria ser quando crescer. – Não sei, respondeu com amargor nas palavras. Não saber é a maior prova de amor às possibilidades dela mesma. Falar em amor é lembrar que ela também não cabe em amar, e, portanto, não sabendo o que é o amor, desfruta da impossibilidade de trancá-lo. Ela não cabe no sabor artificial que esperam encontrar nela. Ontem foi como hoje, pensou. Ela não cabe ao tempo, ou o tempo não cabe à ela? Encaixar-se em si mesma não é uma opção, ninguém tem o livro de receitas do ser. Ela está cansada de cozinhar e nunca provar, pois o sabor não cabe a ela. E sem saber o que lhe cabe ela vestiu uma roupa três números maiores, ainda assim não coube, inversamente. Nada a coube, e por nada caber, há a possibilidade de construir qualquer coisa. Então construiu. Construiu a si mesma. E a partir de agora sabe que tudo a ela cabe. _24/07


Há forças que nunca conseguiremos superar apenas podemos com elas dançar Utilizá-las como impulso Não repulsa Pois mesmo que tentemos com todas as forças de nosso corpo e pretensão de nossas vontades Jamais a superaremos Estamos colados Somos intrínsecos Dela somos produto não projeto Pois até onde não há Ela se faz presente pela ausência O descolar não é físico É figurado Tudo é pertencente a ela como o todo à nossa volta E mesmo que, no plano das ideias tentemos jamais poderemos nos desestruturar dessa força genética Força que gravita nossas instâncias mundanas e quânticas O pensamento voa… Mas o que é voar além da tentativa de superação da gravidade? Ele é dança Apenas podemos dançar Então O pensamento também dança

_02/10


Não há nada como as flores Extensão da força vital Quantas delas desabrocharam hoje? Em quais mãos os seus espinhos tocaram? Todas elas Ainda que hoje murchem e caiam ao chão São belas Mesmo aquelas de homenagem enterradas Pois não há nada como as flores Que de pétala em pétala Florescem únicas a cada olhar Seja como for seja flor .


Temer não nos tira a força Força essa que só se faz após temer Tremendo atingimos a vibração da completude A realização da realidade é composta de medos De costas andamos, mas ainda andamos Através de todo e qualquer Medo Mesmo que doa soa .


Esta canção que lhe escrevo é de tinta, papel e lágrimas Não espere de mim boniteza nesses versos rápidos e esparsos Todo sentimento que um dia houve foi soprado, sem gerar nenhum som Os acordes que tu tocas, não me tocarão não mais os quero Vou sem rima, descompensado e por vezes desalinhado Sem nenhum tom Para cantar em letras tortas Tudo daquela música que jamais cantei pra ti canção de mim

.


O vento na mesma medida apaga o fogo da dor e alimenta a chama da alma Ele seca as lágrimas frias e faz lacrimejar alegrias O vento é potência de liberdade É movimento das massas É recipiente de memórias O vento canta O vento ama O vento chora O vento implora O vento grita O vento alinha Resfria O vento voa O vento viu Que você sumiu .


Estou bem Sim é verdade Eu Tô ɯǝq E eu tô Exceto aquelas pequenas coisas que não merecem essa página Pois aqui registro: O que penso O que sou Como estou E mesmo que um dia ou outro esteja opɐɹıʌ Poso revirar Escrever ɹǝzɐɟǝɹ ɐçǝqɐɔ ɐʇuod ǝp ɯǝq noʇsǝ Bem melhor do que já fui Mas não melhor do que serei ıǝɹǝs ǝ

_22/09


Tenho biografias sem títulos

Bicho da seda

Alinhadas ao âmago de meus gestos

Bicho de agulha

Sou impresso em vermelho tecido

Bicha de retalhos

Costurado no diâmetro assimetricamente

De si própria material

Documentos dos olhos meus

Operária de suas subjetividades

Recobertos olham:

Poetisa de memórias

Violência em ponto zigzag

E de capas sem título

Costura desviada Tesoura afiada Bicha autoritária Gênero composto em alinhar Com margem à dúvida Bastidores cíclicos na boca gritam Ah! Que alegria ser Bicha! _20/10




Sebastian Bach Quando eu era pequena possuía um pequeno caldeirão numa gaveta, tratava-se de uma pequena panela que minha avó havia me dado, era de ferro, pesada, eu colocava plantas nela e fingia curar quando minha mãe estava triste, o que era frequente. Sempre fui imaginativa, e por vezes solitária, cresci dentro de portões, vigiada e observada a todo custo, a melhor aluna da sala, a mais talentosa, a que sofria de enxaquecas quando não conseguia performar direito. Tudo em mim gritava adulto, os amigos dos meus pais elogiavam, “ essa garota nem parece a idade que tem”. Eu sorria internamente, achava os adultos bobos por esperarem algo diferente de mim. Mas a minha gavetinha não tinha só o caldeirão, eu guardava pedras, receitas, livros, cadernos e escritas. Guardava lembranças e revistas. Gostava de desenhar, mas o que eu sabia mesmo era cuidar.


Nunca soube se o cuidado nasceu comigo ou cresceu em mim, coisas que a gente acha que cresceram na verdade estão ali desde sempre. Cuidado é uma palavra perigosa para mim, vem de cuidar, mas também vem de precaução, de medo, de cautela. Sendo a criança- adulto que eu era, era necessário ter cuidado. Penso que minha gaveta fornecia um lugar diferente de tudo isso, era minha epifania, meu estado de controle das coisas, meu lugar onde eu não precisava ser racional, não precisava ter lógica, ou pelo menos nenhuma que os outros interferissem. Ainda mantenho essa tradição, guardo dentro de casas novas as velhas introspecções, e dentro de mim a minha liberdade, olho para o cuidado diferente, e assim a minha gaveta teve que crescer e expandir para a vida.


Oração Mariana olhou cabisbaixa, era a primeira vez que rezava em todos aqueles anos. Não sabia muito sobre rezar, ou sobre Deus, mas sabia que se sentia sufocada, queria desabafar. Quando olhou para suas mãos elas estavam enrugadas, sua pele parecia fina, quase transparente, quando as juntou viu que eram mãos de velha. Se surpreendeu. Deus, dizia sua mãe, costumava agir de maneiras indecifráveis. Quantos anos se passara desde que reparara nas condições de suas próprias mãos? A verdade é que para Mariana a vida se tornara igual, todo dia acorda, trabalha, dorme, cria os filhos, casa, rotina, cotidiano. A rotina era segura, dizia seu marido Mariana se sentia sozinha como num barco à deriva. Teria segurança a fragilidade da repetição? Mariana achava que não, era tudo ilusório.


Seus joelhos doíam de ficar naquela posição, ajoelhada perto da cama, voltando as raízes da sua mãe, da sua avó. Contou a si mesma que aquilo podia ser algo com o qual se relacionar, aquilo era seguro de verdade, era sua história que estava ali. Sua avó usava véu na igreja, da época que missa era em latim. Mariana riu, quantos anos se passaram desde então? Chorou com Deus naquele momento, lembrava de sua avó brigando com sua mãe pelas contas, lembrava de seu irmão chorando e dela segurando o choro para acalmá-lo. Contou a Deus sobre isso, sobre saudade, sobre sentido, sobre tristeza, sobre ela. Conversou com a parte de Deus que cabia nela e com isso conseguiu se entender melhor. Mariana cresceu tentando ser assim, se encaixando nos sentidos que os outros davam para a vida, caçando propósitos. Depois de todos aqueles anos, vendo seus olhos já cansados no espelho, entendeu que sua história é como deveria ser, os ciclos se repetindo e o sentido sendo dado, a história contada de seu coração. Talvez fosse sobre isso sua oração.



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