Revista 101

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EDITORIAL

Não acertamos o alvo - e está tudo bem. Afinal, também não foi nele em que miramos. Na 101ª edição da Gazeta Vargas, não queremos saber como xs gevenianxs pensam, não nos interessa a orientação política nem sexual que possuem e pouco nos importa quem elxs são de fato. Desta vez, desligamos os holofotes e deixamos o autoconhecimento como um exercício ao leitor. A revista que você gevenianx tem em mãos é sobre tudo que há ao seu entorno. É sobre o contexto político, social, econômico e cultural do qual você faz parte, sobre as músicas que você ouve e os jogos universitários que você frequenta. Queremos que esta revista seja mais uma das inúmeras fontes disponíveis para se informar e formar opinião sobre aqueles assuntos que não poderiam ser mais próximos à sua realidade. Redatores e repórteres escrevem sobre o que acontece no mundo e na FGV e alunxs não-membrxs da Gazeta Vargas complementam com o que faltou: seja por meio do Espaço Aberto ou por meio de parcerias, como foi com a Atlética, a Consultoria Júnior de Economia e a Liga de Gestão Esportiva. Mas não seria possível atingir tanto sem uma equipe tão envolvida e comprometida como a nossa, fato que só percebemos quando tentamos fazer reuniões de área e falhamos - sempre contávamos com a contribuição de membros de outras áreas e de ex-membros (os tão queridos Victor Coutinho e Giuliana Paro). A revista 101 contém uma amostra do que está à nossa volta. Esperamos que a leitura também os envolva! Carolina Zweig Diretora-Presidente Victória Rieser Editora-Chefe

Hey (Red Hot Chili Peppers) Procurando a trilha sonora perfeita para a leitura? Temos uma sugestão! Ouça a playlist da Revista 101 da Gazeta Vargas no Spotify!

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SUMÁRIO

apoio:

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EXPEDIENTE

EXPEDIENTE diretores

Carolina Zweig

Victória Rieser

Fernanda Sabino

Alice Rodrigues

Diretora-Presidente

Editora-Chefe

Diretora de R.H.

Diretora de Artes

André Nogueira

Camila Crespin

Gabriel Magalhães

Igor Negrão

Marketing

Relações Externas

Projetos

Marketing

institucional

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redação

Camila Merino

Felipe Takehara

Isabella Grimaldi

Laura Kirsztajn

Redatora

Redator

Redatora

Redatora

Luiza Castelo

Giovana Ibrahim

Yara Miranda

Redatora

Revisão de Textos

Revisão de Textos

Carolina Harada

Catarina An Lu

Thais Cardoso

Núcleo de Artes

Núcleo de Artes

Núcleo de Artes

equipe de arte

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DESPEDIDA

DAS COISAS QUE ACABAM MAS NÃO TERMINAM Por Giuliana Paro e Victor Coutinho

Take On Me (A-ha)

Giuliana Paro Ex-Presidente da Gazeta Vargas

Victor Coutinho Ex-Editor Chefe

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As coisas mudam, os tempos mudam, tudo muda. E agora a Gazeta Vargas está mudando um pouquinho mais. Depois de um ano ocupando os cargos de Diretora Presidente e de Editor-chefe dessa entidade, nosso ciclo se encerra e agora estamos saindo para deixá-la nas competentes mãos de nossas incríveis sucessoras: Carolina Zweig e Victória Rieser. Para nós, a saída traz consigo uma mistura de sentimentos: é um pouco de tristeza de abrir mão de um projeto tão fantástico como a Gazeta; um pouco de orgulho de ver tudo que pudemos conquistar nesse último ano; e, por que não, um pouco de alívio também, de saber que podemos confiar em quem fica para continuar recriando, adaptando, aprimorando e desenvolvendo nossa tão amada Gazeta. Queremos aproveitar esse mesmo clima para divagar um pouco sobre ciclos que chegam a um fim. Assim como a nossa estadia na Gazeta passou e agora é hora de novas mentes ocuparem nossos cargos, o mesmo processo acontece o tempo todo, em todos os aspectos de nossas existências. Pessoas fazem um bocado de coisas que, eventualmente, acabam. Essas coisas podem depois recomeçar, seja para as mesmas pessoas, seja para novas que entram em seu lugar, e a roda do mundo segue impassível. É um ciclo vicioso. E somos nós que decidimos qual o vício deste ciclo. Dentro da Gazeta, aprendemos que essa continuidade é constantemente composta por - surpreendam-se - erros. É difícil aceitar as próprias imperfeições e muito mais difícil prometer falhar diante de toda uma carreira - seja ela profissional, pessoal, familiar. É por isso que fazemos uma reflexão aqui sobre tudo que começa e acaba; sobre tudo o que aprendemos do começo ao fim, da largada até a última volta.


A começar, podemos falar da vida. E para além de algo tão amplo, podemos falar dos pequenos pedaços que vamos conquistando pelo caminho. Todos eles constroem quem somos e quem queremos ser. Sempre almejamos algo, sempre estamos em busca de uma nova forma de vida, de sermos aquilo que tanto admiramos em nossos ídolos, pais, avós, irmãos. E o pior? Nunca paramos para pensar se erraremos. Apenas falhamos - porque é humano - e logo pensamos que o fim está próximo. Que a derrota nos conquistou. Que a volta não existe mais. Que a vitória jamais estará perante os nossos olhos. E ainda ficamos aterrorizados com o fato de sabermos que tudo tem um fim e que talvez - nesse ponto final - teremos mais falhado do que superado os obstáculos. Logo, chegamos à conclusão de que temos medo do fim. Mesmo sabendo que Renato Russo estava mais que certo em dizer que o infinito é realmente um dos deuses mais lindos. Muito fica no passado e algumas coisas não são como eram antes. O que não representa o quanto temos medo do fim, mas sim do quanto temos medo de sermos esquecidos, de esquecermos as coisas, de não termos lembranças suficientes. Afinal, é quase impossível acreditar no dito que um adeus é sempre um até logo. Nossos projetos, hobbies, interesses, relações. Nossa vida. Uma hora acaba. E é duro mesmo, mas existe uma faceta disso que não pode ser esquecida: aquilo que fica. Depois do fim, há um novo começo, o que parece um enorme clichê - talvez de fato seja mesmo -, mas não deixa de ser verdade sob um certo ponto de vista. E a simples razão para isso é que, no decorrer de nossas vivências, influenciamos e somos influenciados por outras pessoas. Aprendemos com nossas experiências coisas que podem ser levadas para nossa vida. A Gazeta Vargas foi exatamente isso para nós dois. Uma

revista estudantil que sobrevive graças ao amor que alguns alunos têm pela escrita, pela leitura. Em meio ao cenário brasileiro onde os meio de comunicação são constantemente desvalorizados, tivemos a coragem de assumir a revista de uma das escolas mais renomadas da América Latina mesmo ela não chamando muito atenção dentro do cenário GVniano. Mas é fato: ela é uma maneira incrível de conectar todos os alunos à leitura, à discussão constante, à troca de ideias para além da política polêmica. E agora que chegamos ao fim deste ciclo, nos deparamos com aquilo que aprendemos. Falhamos muitas vezes; e como falhamos! Mas tudo bem, porque agora temos a oportunidade de escrever este texto para todos os alunos, professores e funcionários desta fundação para garantir que o que a Gazeta representa jamais terminará, jamais terá um fim. Não somente porque temos duas incríveis sucessoras, mas também porque esse novo ciclo não começa do zero. Tem coisa que fica. Um pouquinho de nós - e de todos que vieram antes - ficou na Gazeta e um pouquinho dela também ficou na gente. Qual a grande lição? Que erramos um monte de vezes? Bom, isso não deixa de ser inerente ao ser humano. Mas o importante mesmo é que adicionamos o nosso tijolinho nessa construção contínua, nesse refúgio artístico e literário que a Gazeta se esforça para preservar dentro da FGV. Afinal, essa é a beleza dos ciclos: não é necessário demolir as paredes levantadas para que novos trabalhadores continuem a construir. Obrigada e obrigado, Gazeta. E boa sorte!

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POLÍTICA E SOCIEDADE

UMA TENTATIVA DE APOLITIZAR A MÍDIA E A PROBLEMÁTICA DELA INERENTE ONDE OCORRE, DE FATO, A DISTORÇÃO DAS INFORMAÇÕES?

We Don’t Believe What’s on TV (Twenty One Pilots)

Por Camila Merino Do primórdio histórico por nós conhecido, a espécie do hommo sapiens sempre buscou, de alguma maneira, registrar a passagem do tempo. De pinturas rupestres ao alfabeto pré-instituído pelos fenícios, o homem traça, mesmo que no papiro, uma alternativa à comunicação por linguagem oral e assim consolida, desde a era das cavernas, o meio de obtenção de informação mais intrínseco à sociedade contemporânea. Com a invenção da imprensa, Johann Gutenberg revolucionou não só a época do Renascimento, ao passo que instigou a difusão de ideias e formação de opinião por toda civilização, mas também o desenvolvimento da maior parte da movimentação social conseguinte. Diante desse inerente lado comunicativo do homem, a mídia surge na tentativa de promovê-lo, efetivando diálogos e exposições que estimulam, como resposta, a vida em comunidade. Juntamente aos desdobramentos consequentes do uso intenso e assíduo da internet, não devemos esquecer que esta proporcionou a amplitude, em números, da quantidade de pessoas usufruindo das notícias antes pertencentes apenas à parcela seleta da população que podia adquirir o papel dos jornais e das revistas. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística retrata, em dados, essa questão no Brasil: cerca de 116 milhões de pessoas, conferido em quase 65% da população, como exposto pelo censo realizado há dois anos, em 2016. Mundialmente falando, a internet teve potencial para aproximar os territórios por mares distanciados; hoje, em apenas um clique, já é possível saber sobre o nascimento mais recente da família real inglesa sem ao menos ter que esperar uma carta da Rainha. Com tamanha facilidade de pesquisa atrelada à existência de inúmeras plataformas online que abrem espaço para comentários, as redes sociais emergem

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como o principal método por isso responsável, ao permitir a criação de perfis e garantir que neles você possa ser quem quiser. À frente ao supracitado, é nítido que globalização decorrente do avanço tecnológico é a mãe das crianças criadas sob mudanças constantes, o que as afoga num mar de atualizações. De acordo com a visão Baumaniana, tal quantia de conhecimento proporcionado em uma única tacada caracteriza uma pós-modernidade fluída, na qual a sordidez das relações se desvanece, enquanto os vínculos humanos são demasiadamente frágeis e o homem passa a supervalorizar o próprio “eu”, remetendo, novamente, à questão do ser na rede social. Em uma sociedade que o egoísmo é fomentado e o aplauso é o objetivo final, a pretensão do textão do Facebook é deturpada: o famigerado “no que você está pensando” ao topo da página inicial passa a ser um veículo que anda em função do ego. Além dele, o Twitter, ao limitar a transmissão da mensagem em tamanho, colabora, unido ao Instagram, para tornar o conteúdo mais fútil e “rápido”. Assim, os ideais contidos nesses dispositivos passam a girar em torno do convencimento do outro e da auto-afirmação, sem que seja requerida uma responsabilidade para com o conteúdo que é transmitido. A problemática disso, no entanto, não se dá somente a respeito de textos vazios e superficiais, e sim acerca do fato de que esse tipo de texto é o atualmente considerado, por muitos, fonte legítima de informação. Seguindo o exemplo anteriormente mencionado, a mídia acaba corrompida pelos discursos falaciosos de pseudo-cientistas de diversas áreas do conhecimento e o caráter de parte do “jornalismo” moderno é resultado de um sistema de produção voltado para o consumo. O capitalismo, por visar o lucro e preferir quantidade à qualidade, é a imagem mais


clara do que venho tentando dizer: diante de uma sociedade que clama pelo espetáculo, o saber por si só é deixado de lado em prol da masturbação intelectual vigente nos meios de comunicação. Ademais, a fragilidade argumentativa decorrente do uso de fontes tendenciosas é reflexo desse aspecto quantitativo como um sintoma do sistema: há tanta opinião condensada e pifiamente estruturada que o semancol, necessário para distinguir o que é consistente do que não é, só deixa de existir, fato consumado que alimenta a formação das fake news, como será apresentado mais adiante. Temos, assim, o “caráter vazio” de uma massa mal informada, a qual fora objeto de pesquisa em recortes de períodos de campanha eleitoral. Um bom exemplo é o retratado pela simbologia que a mídia teve durante o mais recente período de campanha eleitoral nos Estados Unidos: Donald Trump, agora presidente dos Estados Unidos, teve a consolidação de sua imagem política pautada no uso (indistinto, assim digamos) dos meios de comunicação. Diversas pesquisas apontam que o uso das redes sociais na campanha foi fundamental para a projeção de uma figura capacitada para suprir as demandas populacionais, a qual andava cada vez mais pelos caminhos do conservadorismo. Nesse contexto, o comportamento do eleitor foi moldado de acordo com a influência que os meios comunicativos tiveram; a disseminação de conteúdo duvidoso – e por vezes, falso - tomou grande proporção com o auxílio dos algoritmos do Facebook, que ampliam a visibilidade dos supracitados textões pseudointelectuais. Atrelada ao crescimento dessa onda conservadora, a mídia teve seu papel como essencial na propagação das informações enviesadas que tanto adaptaram-se ao estilo de vida norte-americano – afinal,

era esse o tipo de mudança pela qual a população clamava. Diante disso, o debate sobre a carga política do proclamado pelos nossos meios informativos deve ter sua devida relevância no panorama da sociedade contemporânea. Isso, sobretudo, porque há um enfoque que coloca a politização como o maior dos problemas quando, na verdade, a (nossa) capacidade de verificar a imparcialidade dos meios de obtenção de informação está defasada. A carga do discurso proclamado por jornais ou por redes sociais não pode deixar de ser política – ou “ideológica”, como a tamanha crítica proferida pelo bolsonarismo; o ser humano é político e dessa máxima dificilmente fugiremos. O que deve ser repensado, portanto, é a atribuição da voz (que damos) a elementos pouco ponderados e verossímeis, ainda mais quando tratar-se de verificar a qualidade das fontes informativas.

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POLÍTICA E SOCIEDADE

POUCOS SEGUNDOS BASTAM City of Angels (Miguel)

Por Isabella Grimaldi Hiroshima, Teerã, Kabul, Raqqa, Gaza. Todos nomes de cidades que foram arruinadas por guerras, ataques e bombas. Desde 1914 a história prova que uma cidade pode ser completamente destruída em questão de segundos. Tais segundos contam o tempo que uma bomba demora para explodir. Em uma mísera fração de tempo, tudo e todos que determinado povo conhece pode virar pó e cinzas. É triste como uma destruição tão grave acontece tão rápido e só o que basta é a sede pelo poder ou por um território ou por armas ou no pior dos casos, só o que basta é a intolerância religiosa. A história mostra que pequenos desejos e ideologias extremistas levam o homem a cometer grandes desastres, tirando filhos de seus pais, o povo de sua nação, a esperança e ingenuidade das crianças. Neste ponto, a história de cada uma das pessoas que foi vítima deste tipo de tragédia entra em conflito com a ficção. A ficção dos livros, filmes e séries quase sempre fala que as cidades são destruídas por seres mágicos e irreais, como faz a afamada série Game of Thrones. A grande questão é: você não precisa de dragões para destruir uma cidade. Os recentes e não tão recentes acontecimentos na Síria, na Palestina, na Nigéria, no Afeganistão, no Japão, no Irã mostram que nada além de po-

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der é necessário para tirar a vida de uma cidade. Na realidade, os dragões são os próprios homens. Os dragões foram os EUA ao jogarem a bomba em Hiroshima em 1945, os dragões foram os iraquianos ao atacarem o Teerã, os dragões são e sempre serão os homens. Um grande problema é que a história marca todos os desastres que acontecem, mas as pessoas esquecem. As pessoas se lembram da Primeira e Segunda Guerras Mundiais, mas ninguém se lembra dos ataques que acontecem quase todos os dias na Síria, na Palestina, do caos que o Boko Haram vem causando na Nigéria. À medida que esses casos perdem a importância para o mundo, por não estarem localizados em potências mundiais, o desastre se dispersa no ar, nada é feito a respeito e nada impede que aconteça de novo, todo dia, toda hora, sem punições. Os dragões são, portanto, os homens que atacam e os que não divulgam a tragédia que acontece do outro lado do mundo. Em resumo, você não precisa de dragões para destruir uma cidade, mas de homens cegos pelo poder, de homens que acobertam a destruição e de alguns segundos. Poucos segundos para uma bomba eclodir.


PANDAS E CORES Alan’s Psychodelic Breakfast (Pink Floyd)

Por Felipe Takehara O intenso desempenho exigido pela Fundação produz, por vezes, uma situação um bocado contraditória, na qual eu me encontro frequentemente, para não dizer sempre: a medida em que cresce a quantidade de atividades exigidas, aumenta-se igualmente, senão em maior grau, a vontade de procrastinar. Deve haver algum estudo por aí que demonstre como isso se concebe e talvez conclua sustentado a tese da qual os discentes têm razão: há tarefa demais. Eu, geralmente, gasto meu preciosíssimo tempo procrastinando no YouTube: assisto a entrevistas, aulas, conferências, rádios, canais de filosofia - mas gosto sobretudo daqueles que incorporam a disseminação de conhecimento ao entretenimento nos seus vídeos - e há canais que fazem isso de maneira muito cativante. Ardilosamente, procrastino internalizando a desculpa de que o que estou fazendo agregará à minha instrução de algum modo, ainda que não necessariamente contribua de modo positivo para meu desempenho acadêmico. Reconheço: por vezes, sacrifico-o. Outro dia, assisti a um vídeo muito interessante. Era do canal MinuteEarth, que produz vídeos educativos sobre meio ambiente e biologia, mas também sobre vários outros assuntos. Ele faz uma proposição polêmica: devemos deixar que os pandas sejam extintos? O tema trabalhado neste vídeo é um pouco da racionalidade que opera nas ações empregadas na conservação de animais que correm risco de extinção. Há, implicitamente, a proposição de que talvez haja mais paixão do que razão no momento em que se delibera sobre o tempo e os recursos despendidos nessas ações. Os animais mais “bonitinhos”, por assim dizer, seriam os preferidos a receber mais recursos, enquanto que aqueles de aparência “pouco amigável” estariam com o pires na mão. Daí a polêmica com os pandas: esses felpudos já nos custaram montanhas de recursos e o resultado das ações não são lá verdadeiramente satisfatórios; provoca-se, então, sugerindo que uma abordagem semelhante a das UTIs seria mais eficiente se o objetivo fosse maximizar a utilização dos recursos e ao mesmo tempo produzir o resultado que melhor impacte o ecossistema como um todo - e não uma espécie em particular. Priorizar as espécies que de fato são vitais seria mais interessante do que sucumbir à fofura de um urso bonachão. Boa parte das entidades de conservação estão dedicadas principalmente a uma espécie em particular (ex. pandas, ursos polares, gorilas, elefantes) que, apesar de carismática e encantadora, pode não ser comparativamente vital para seu ecossistema e acabar ofuscando outras espécies menos atrativas, porém mais importantes. Recentemente, foi publicado um estu-

do que demonstrava que os pandas são “espécies guarda-chuva” (umbrella species), isto é, ao protegê-lo, outras espécies são automaticamente também protegidas. O debate é polêmico e, por enquanto, ponto para os pandas. O canal Vsauce é uma salada de assuntos curiosos. O formato direto permite ao seu criador, Michael Stevens, guiar o espectador através de um raciocínio a princípio pouco intuitivo, estranho, mas ao final sempre fascinante. O primeiro vídeo que assisti aborda uma série de questões: da percepção de cores, vai a qualia, crianças, primatas e teoria da mente. A cor de um objeto é determinada pela frequência da onda que ele reflete. A mensuração das diferentes frequências pode ser observada objetivamente, isso é claro. Contudo, o que se questiona é a possibilidade de se verificar empiricamente a representação mental que um indivíduo experimenta ao observar determinada frequência, isto é, determinada cor. Talvez nunca será possível saber, por exemplo, se a minha experiência ao observar a cor vermelha de um objeto é exatamente a mesma que a sua, e isso inclusive faz parte do título do vídeo (“Is Your Red The Same as My Red?”). Talvez a representação que ocorre em nossas mentes seja de experiências de fato distintas, mas que ao longo do processo educativo, aprendemos a chamar ambas de “vermelho”. Há outros canais também que frequento. O Philosophy Overdose possui amplo material de qualidade sobre filosofia; TED-Ed e Kurzgesagt – In a Nutshell trabalham temas muito variados e combinam brilhantemente animação digital com informação; os canais da Fundação Fernando Henrique Cardoso e da Academia Brasileira de Letras disponibilizam suas conferências e seminários, sempre tratando de temas atuais e com convidados de categoria. Dá até gosto de procrastinar.

Vídeos citados no texto: Deveríamos deixar os pandas serem extintos? (Minute Earth)

Is Your Red The Same as My Red? (VSauce)

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ECONOMIA

GREEN BRICK ROAD O QUE VEM DEPOIS DO DÓLAR?

Rich Friends (Portugal, The Man) Em 1900, foi publicado O Maravilhoso Mágico de Oz, que ficou conhecido por ser simultaneamente o primeiro conto de fadas americano e uma manifestação sobre a política monetária da época. Passagens como Dorothy caminhando com seus sapatos - que eram prateados na versão original - sobre estrada de tijolos dourados seriam uma defesa à introdução da prata para substituir o lastro em ouro, uma vez que este metal estaria escasso e sob o controle de grandes indústrias. Desde então, o dinheiro passou por outras transformações dignas de produção literária – e agora parecemos estar à iminência de mais uma mudança histórica. Desta vez, seria necessária uma história de ficção científica para retratar o surgimento da Libra, uma criptomoeda lastreada em ativos. O dólar americano não é mais lastreado em ouro desde 1971. Até então, muitos países tinham reservas em dólares americanos porque sabiam que poderiam trocá-los a uma taxa fixa em qualquer momento. Temia-se que a retirada dos EUA do padrão ouro levasse os países a se desfazerem dos seus dólares, mas para a maioria dos países isso não aconteceu. Até hoje, a moeda americana ainda possui a maior reserva do mundo e nenhuma criptomoeda se propôs a quebrar essa hegemonia. É neste contexto que surge a Libra, uma criptomoeda para substituir a moeda do dia a dia. A Libra surge de um projeto do Facebook mas administrado pela Associação Libra, uma organização sem fins lucrativos composta por 28 membros e sediada em Genebra, Suíça. A partir de 2020, com o lançamento oficial da moeda, o Facebook deixaria de ser protagonista desse projeto e

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Por Carolina Zweig 100 empresas fazeriam parte desta associação. O objetivo é criar um meio de pagamento que minimize o tempo e custo de transações e não dependa de tantos intermediários, visando atingir principalmente os unbanked e underbanked. Atualmente, 31% da população mundial não têm uma conta bancária (chamados de unbanked) e muitos têm mas não são ativos em seu uso (underbanked). Essas pessoas muitas vezes afirmam não ter recursos suficientes ou que os bancos sejam distantes de suas casas, com taxas altas e imprevisíveis ou exigindo documentação que eles não possuem. O projeto da Libra visa aumentar então o acesso a serviços financeiros. Em um contexto em que cada vez mais pessoas tem acesso a celulares e a internet, este projeto criaria uma infraestrutura financeira digital: os usuários teriam um aplicativo de carteira virtual, permitindo que se envie dinheiro por mensagem a custo zero ou baixo. Há ainda outras aplicações interessantes para a Libra: imigrantes poderiam mandar dinheiro para familiares em outros países sem enfrentar as tarifas proibitivas das transações internacionais. Habitantes de países que sofrem de hiperinflação poderiam proteger o valor de sua riqueza por meio desta criptomoeda. Pessoas de países desenvolvidos poderiam ainda utilizar essa moeda para micropagamentos de forma fácil, barata e rápida. No entanto, há de se considerar as potenciais consequências desta mudança. Se cidadãos de países em desenvolvimento escolherem manter sua renda em Libra, o poder da autoridade local poderia ser enfraquecido - o que, talvez, não seria tão ruim em regimes antidemocráticos. Países com moedas fracas também


teriam ainda mais dificuldade para sair de períodos de crise, uma vez que a população poderia optar por utilizar essa moeda digital. Atualmente, nenhuma criptomoeda é confiável e estável o suficiente para a institucionalização do seu uso. Ao ter sua oferta administrada puramente por algoritmos, moedas digitais como Bitcoin atraíram investidores e entusiastas por causa de sua alta volatilidade. Seus impactos como meios de pagamento foram bastante limitados. Em contraste com outras moedas digitais, a Libra deverá ter baixa volatilidade (uma vez que é lastreada em centenas de verdadeiros ativos como títulos do tesouro americano), trazendo o benefício de aumentar a transparência e diminuir os custos de transações cotidianas. Há uma série de questões que devem ser resolvidas para uma implementação de sucesso da Libra. Uma das maiores preocupações é em relação à privacidade. O Facebook tem acesso às informações de 2.4 bilhões de pessoas e já teve sua imagem suja uma vez por vazar dados de seus usuários. Seria necessário que se assegurasse a separação dos dados pessoais e financeiros dos usuários como um sistema antifraude para gerar confiança da população. Outro risco é o monopólio dos bancos centrais existentes, que controlam importantes variáveis macroeconômicas dos seus países ou regiões (como é o caso do Euro) e não estariam facilmente dispostos a ceder este poder. Se a introdução desta moeda prejudicar a capacidade dos bancos centrais de policiar o sistema financeiro ou operar políticas monetárias no geral, o uso da Libra pode ser apaziguado logo na data de seu lançamento. A ideia é que a própria Associação Libra cumpra a função de um banco central, de modo que esta criptomoeda não seja totalmente descentralizada. Mesmo que seja eficiente, esta concentração de poder financeiro em um grupo autodeterminado de grandes empresas é, por si só, uma fonte de preocupação. Nenhum grande banco comercial se envolveu ainda com esta moeda e dificilmente irá se envolver enquanto não se garantir a inexistência de brechas para fenômenos como a lavagem de dinheiro, financiamento de terrorismo, evasão fiscal ou tráfico. Também não é conhecido quanto do negócio destes bancos comerciais está ameaçado pelo projeto. Mas sabe-se que o conglomerado da Associação Libra tem vantagem em relação aos bancos comerciais já existentes por causa do enorme alcance da rede social que facilitaria a implementação desta infraestrutura

digital. Empresas como Google, Amazon e Facebook conseguem processar transações a custos menores e se mostraram muito capazes de criar novos serviços digitais de sucesso. Entre os desafios que essa ideia traz para nossa sociedade, estão ainda os que serão enfrentados pelos reguladores mundiais. Cabe a eles tomar decisões que assegurem a proteção dos consumidores, dos investidores e do mercado competitivo. As mudanças tecnológicas podem ocorrer de maneira muito mais veloz que a resposta destes agentes, principalmente para perguntas que já estão em pauta: Quem vai liderar a Associação Libra? Qual vai ser o nível de controle da Associação sobre a moeda? É difícil dizer como vai ser o mundo caso a Libra se consolide de fato, mas provavelmente esse seria o fim dos bancos como nós os conhecemos. Cartões de crédito e débito cairiam no desuso e o câmbio seria praticamente automático. As consequências nas economias dos países podem ser enormes, colocando em xeque questões de tributação e dívida pública. A própria educação financeira provavelmente terá que se modernizar e expandir para se adequar a uma moeda mais inclusiva. Entretanto, uma vez que o caminho da moeda digital comece a ser trilhado, não terão sapatinhos brilhantes que resolvam estes desafios.

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ECONOMIA

REFORMA DA PREVIDÊNCIA O FUTURO DO PAÍS OU O PAÍS DO FUTURO?

Este artigo é uma colaboração da Consultoria Júnior de Economia para a 101ª edição da Gazeta Vargas e foi produzido por Gabriel Locci (4º semestre de Direito) e Leon Viscome Eliezer (4º semestre de Economia).

The Rain Song (Led Zeppelin) Nos últimos meses, dificilmente algum assunto esteve mais em pauta do que a Reforma da Previdência. A proposta, considerada o carro-chefe do governo para a economia neste primeiro momento, é tudo menos inesperada, visto que algum tipo de Reforma foi abordado pelos presidenciáveis relevantes de qualquer espectro político durante as eleições. O tema, porém, já é discutido há muito mais tempo. No governo FHC, a idade mínima não foi aprovada no Congresso por um voto; Dilma, em seu segundo mandato, não conseguiu aprovar uma reforma completa, mas criou a regra 85/95, que combina idade e tempo de contribuição; Temer, em meio à perda de poder político, também não foi capaz de reformar nosso sistema Previdenciário. Por isso, antes de analisar os detalhes da reforma de Guedes, é necessário entender o problema fiscal e Previdenciário que dá à reforma um caráter de urgência. A Previdência brasileira funciona num regime que chamamos de repartição: a contribuição feita hoje é destinada ao pagamento das aposentadorias atuais e, no futuro, a aposentadoria do atual contribuinte dependerá das contribuições feitas pelos mais jovens. É diferente do sistema de capitalização, em que cada um poupa dinheiro para a própria aposentadoria – sistema esse que existe no Chile, na Suécia, em alguns segmentos do funcionalismo público brasileiro e era parte da proposta original de Paulo Guedes. O sistema de repartição é profundamente afetado pelas mudanças na pirâmide etária: o rápido envelhecimento populacional brasileiro (6x mais rápido que na França, por exemplo) levou a uma mudança na pirâmide etária, capturada pela razão de dependência de idosos. Ou seja: se, em 1980, existiam 13 brasileiros economicamente ativos para cada idoso, em 2018 esse número era 7,7 e a projeção é que chegue a 2,2 em 2060, segundo o IBGE. Se há mais aposentados e menos trabalhadores, há cada vez menos dinheiro para o pagamento de aposentadorias. Por isso, o problema Previdenciário brasileiro se torna um problema fiscal: quando as atuais contribuições para a seguridade social não são suficientes para o pagamento das aposentadorias (ou seja, há um déficit na Previdência), o governo deve cobrir o restante com dinheiro dos impostos. O argumento por trás da Reforma da Previdência, portanto, é que o padrão de gastos do governo brasileiro com a Previdência é incompatível com o envelhecimento populacional. Segundo o Banco Mundial, em 2014, o 14 Gazeta Vargas • Edição 101

Brasil tinha 7,4% da população idosa e gastou 11% do PIB com a Previdência; o Japão, em comparação, tinha mais de 25% da população idosa e gastou apenas 10% de seu PIB com a Previdência. Se o Brasil obedecesse a regra média dos países, esse número deveria ser cerca de 3,6% do PIB – mais próximo da Colômbia, por exemplo. No Brasil, o déficit Previdenciário tomou proporções extraordinárias: em 2014, era de aproximadamente R$150bi, enquanto em 2018 chegou a R$269bi, e as projeções oficiais são de crescimento acelerado do déficit para os próximos anos. Repare que esses valores representam um fluxo, ou seja, foram R$269bi apenas em 2018. Isso significa que mesmo se o governo fosse capaz de obter uma receita extraordinária no mesmo valor (como, por exemplo, com a cobrança de dívidas), o problema persistiria nos anos seguintes. O peso crescente do gasto Previdenciário sobre o orçamento da União (cerca de 57% em 2018, segundo o Portal da Transparência) exige que o governo poupe recursos com setores importantes da sociedade para sustentar o insustentável. Além disso, o déficit primário é causado principalmente pelo déficit Previdenciário, contribuindo para o crescimento acelerado da dívida pública. Sem a Reforma da Previdência, a dívida atingiria níveis alarmantes, aumentando o risco para que um investidor financie o governo – exigindo, portanto, juros astronômicos, que levariam a um crescimento ainda maior da dívida pública, que logo se tornaria insolvente. Nesse cenário, o Estado não teria alternativa senão financiar-se através da emissão de moeda, levando a um cenário de inflação acelerada e estagnação do crescimento. A crise que assolou a Grécia é um exemplo ideal dos perigos de sustentar uma Previdência insustentável - mas, no nosso caso, enfrentaríamos uma crise de dimensões gregas com a tímida renda de um brasileiro. Analisando os dados trazidos, portanto, verifica-se que a Reforma da Previdência é completamente necessária para a sustentabilidade fiscal do país e a economia de 1 trilhão de reais nos próximos 10 anos deve ser o piso para que o Brasil não se torne uma Grécia gigante. Porém, o debate sobre a questão Previdenciária acabou sendo contaminado pela ideologia e não pela racionalidade econômica. Quem assistiu aos debates entre o atual ministro da Economia, Paulo Guedes, e os deputados na CCJ verificou tal fenômeno.


FOTO: ADRIANO MACHADO - REUTERS

Provar a necessidade da reforma não é difícil, porém combater as mentiras proferidas é uma tarefa árdua e somente quem tem compromisso com uma agenda republicana para o Brasil faz isso. Um bom exemplo é a deputada Tábata Amaral que, independentemente de sua agremiação partidária e a sua relação com o governo, atestou que a política não é um mero instrumento de negociação entre os partidos, mas sim que os integrantes do Poder Legislativo têm um compromisso com o seu país. E ela, com muita coragem e galhardia, se posicionou contra seu partido e assegurou seu compromisso com uma boa proposta para o país, independentemente de quem a desenhou. Sua agremiação baseava-se em premissas falsas para se posicionar a respeito da reforma. Ciro Gomes, ex-candidato à Presidência da República e integrante do partido de Tabata, vem defendendo pontos controversos. Segundo Ciro, sendo essa argumentação a orientação de quase toda a oposição à Nova Previdência, 83% do impacto da reforma viria de quem ganha até 2 mil reais. Isso para o balcão político é incisivo pois, supostamente, a reforma seria contra os mais pobres. Porém, como citou Alexandre Schwartsman, verifica-se que essa afirmação deixa de lado que, hoje, há cerca de 30 milhões de segurados na Previdência para trabalhadores do setor privado (RGPS) contra 1,1 milhão no caso do funcionalismo (RPPS). E esse fardo cairia proporcionalmente muito mais no RPPS, uma vez que esses trabalhadores já têm uma aposentadoria média 6 vezes maior do que a registrada no RGPS. A proposta aprovada em 1º turno onera em mais da metade da economia aqueles que estariam na escala maior de renda e, então, fica a questão: até que ponto é verdade que a Reforma da Previdência é contra os mais pobres? Nós acreditamos que ela combaterá a grande influência do lobby do funcionalismo no sistema Previdenciário e que os partidos oposicionistas da reforma estão direta ou indiretamente apoiando sua manutenção. Outro ponto extremamente controvertido declamado por diversos setores contrários à reforma é de que, supostamente, a Nova Previdência faria com que os mais pobres não se aposentassem. A “conta de padeiro” é muito simples: idade mínima mais tempo de contribuição de 40 anos fariam com que as pessoas se aposentassem aos 73 anos, pelo menos. Como vimos anteriormente, isso é uma mentira com perna curta. Verificando os dados, fator que deve orientar as políticas públicas - e não a opinião pessoal ou algum ideário irrealista de um ideólogo -, os trabalhadores mais pobres já se aposentam por idade nesse país. A reforma apenas institui legalmente aquilo que já era uma realidade: mulheres se aposentarão aos 62 anos e não aos 60, e os homens

seguirão se aposentando aos 65 anos. Por fim, se coloca a inconstitucionalidade da proposta. É inegável que o Brasil passou por um processo de expansão contínua e insustentável do gasto público. E, como dito pelo ministro Guedes na Expert XP: “O excesso de gastos públicos causou todas as disfunções financeiras que o Brasil atravessou, degenerou a democracia e estagnou a economia brasileira”. Com isso, estamos passando por um momento de transição em relação ao período da Constituição de 1988. Esse documento assegura uma perspectiva social-democrata para o país e, especificamente para a Previdência, apregoa a ideia do princípio da solidariedade e o sistema de repartição é a sua materialização: a mão de obra atual custeará quem está se aposentando hoje e aqueles que estão custeando o sistema no presente esperam ser custeados no futuro. Porém, o que está acontecendo é uma queimada dos recursos contemporaneamente pelo sistema e sem expectativa de que eles serão repostos no futuro. Essa perspectiva faria sentido na época dos nossos pais, onde a razão de dependência era de 14 jovens para o custeio de um idoso. Atualmente, existem 7,7 jovens para um idoso e espera-se que nos próximos 30 ou 40 anos a relação seja próxima a 2 jovens por idoso. Portanto, verifica-se empiricamente que a reforma não está contra o princípio. O grande problema do Brasil, do ponto de vista jurídico, já fazendo outra crítica que caberia a outro texto, é achar que um princípio é equivalente a uma regra. Se a estrutura Previdenciária não mudar, ela irá explodir e nós nos tornaremos insolventes amanhã, independentemente do que está escrito na Constituição. Concluindo, a mudança do sistema Previdenciário é urgente, necessária e, acima de tudo, condição sine qua non para a retomada da confiança dos investidores no Brasil e, consequentemente, para a criação de mais empregos, frente o altíssimo nível desemprego que assola o país. O alívio fiscal é importante para que o Brasil se recupere da crise e para que os gastos do governo sigam sua função principal, como investir em infraestrutura, estimular crescimento e prover serviços públicos de qualidade. Contudo, apesar de estabilizar a dívida pública e estimular a economia no curto prazo, é necessário alertar que a Reforma da Previdência não ataca barreiras ao crescimento de longo prazo, como o protecionismo, o hostil ambiente de negócios ou o “custo Brasil”. Alicerçadas a ela, estão as reformas microeconômicas que iniciam esse processo, como a Tributária e as reformas administrativas inseridas na MP 881, também conhecida como MP da Liberdade Econômica. Esperamos que elas tenham o mesmo sucesso que a Reforma da Previdência, pois assim teremos boas perspectivas de longo prazo para o país.

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CRIMINALIZAÇÃO E DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO Play God (Ani DiFranco) Sally’s Pigeons (Cyndi Lauper)

por Laura Kirsztajn A interrupção da gravidez não é uma prática recente ou que possa ser tratada de maneira homogênea na história da humanidade. Por isso que, quando nos propomos a pensar sobre o aborto, precisamos desde o princípio realizar diversos recortes na sua análise. É exatamente isso o que será feito neste texto. Antes de tudo, pretendo falar sobre manifestações jurídicas ou feitas por autoridades como o Papa e o Conselho Federal de Medicina, e não sobre práticas informais que permitiam ou viabilizavam o aborto em determinado território. O assunto é a criminalização ou a descriminalização da interrupção da gravidez, e não as diversas questões morais, religiosas e científicas que envolvem esse tema e que já foram exaustivamente tratadas em outros textos, por autoras e autores. Apesar de ser algo frequentemente discutido no meio político e jurídico, parece que pouco sabemos sobre a sua evolução histórica e como isso é tratado em outros países. Ainda, como não se trata de um texto apenas para juristas, tem-se o desafio de fugir do juridiquês e abraçar termos menos inacessíveis. A pesquisa feita para este texto não foi exaustiva e com certeza é limitada, afinal, as fontes a que temos mais acesso geralmente observam a realidade de países ocidentais, preferencialmente aqueles que são desenvolvidos e ricos. A proposta é justamente elucidar alguns pontos que parecem pouco conhecidos sobre o que significou a questão do aborto global e historicamente. Como o objetivo é abordar a história de alguns países com maior profundidade, optou-se por recortar a pesquisa disponibilizada nesse texto, de modo que os demais países serão apresentados em outras publicações da Gazeta. Conforme o Center for Reproductive Rights, 66 países no mundo proíbem o aborto, com a exceção da situação de risco à vida da mulher; 58 países abrem exceção para preservar a saúde da mulher e 13 países permitem o aborto por razões socioeconômicas ou para preservar a saúde da mulher. Em termos de população mundial, 40% das pessoas no mundo vivem em países em

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que o aborto é legal; 26% em países em que ele é proibido, exceto se a mulher correr risco de vida; 21% em que ele é permitido por razões socioeconômicas ou para a preservação da saúde da mulher; e 13% em que ele é proibido, exceto para preservar a saúde da mulher. Diante disso, dou início à viagem temporal e mundial sobre a interrupção da gravidez. República Romana: uma questão de propriedade Apesar de a interrupção da gravidez ter sido uma prática muito frequente durante a República Romana, esse ato era considerado imoral, passando a ser criminalizado através da Lei Cornélia. Por meio dessa lei, a mulher casada que praticasse o aborto seria punida com a pena de morte e pessoa terceira que o fizesse poderia ser condenada com pena de morte ou ter sua pena abrandada caso a gestante não tivesse falecido em razão do procedimento. A criminalização, nesse contexto, baseava-se no fato de que a interrupção da gravidez era uma ofensa ao direito do marido à “prole esperada”, ou seja, não se tratava de uma defesa à “vida”. Sendo a mulher propriedade do marido, o feto fazia parte das “entranhas maternas”, de modo que era pertencente ao homem. Por outro lado, as prostitutas, por não serem casadas, podiam realizar o aborto livremente, pois não haveria um marido a ser prejudicado. Igreja Católica: uma oposição recente O Concílio de Viena, convocado pelo Papa Clemente V, foi o décimo quinto concílio ecumênico da Igreja Católica, realizado em 16 de outubro de 1311 e 6 de maio de 1312. Foi nessa ocasião em que a Igreja oficializou seu posicionamento de que a realização do aborto nas primeiras semanas após a concepção não significaria assassinato, algo que estaria de acordo com aquilo defendido por Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Anteriormente, apesar de não ser algo amplamente aceito em razão de


Uma das principais defensoras dessa legalização foi Alexandra Kollontai, revolucionária bolchevique e diplomata da URSS, que criou o Genotdel, departamento do Partido Comunista responsável por organizar questões relativas às mulheres, como o desenvolvimento de creches, escolas e lavanderias, bem como a captação e conscientização das mulheres quanto às opressões de gênero e classe às quais eram submetidas interpretações feitas a partir de passagens bíblicas, não havia um posicionamento da autoridade da Igreja Católica, e sim manifestações dispersas pela comunidade. Santo Agostinho, que viveu de 354 a 430 depois de Cristo, considerava que o embrião passa a ser alma após o quadragésimo dia posterior à concepção, ou seja, após estar completamente formado e ser um feto. São Tomás de Aquino (1225-1274) defendia que a alma não é infundida antes da formação do corpo, de modo que a alma humana estaria constituída junto da forma humana, algo que um embrião nas primeiras semanas da gravidez não possuiria. Assim, os primeiros movimentos do feto dariam início à animação que significaria os primeiros sinais de vida visíveis. Essa visão era contestada por teólogos baseados em Tertuliano (século III) e Santo Alberto Magno (século XIII), que defendiam que o ser humano existe desde o momento da fecundação, tese essa que seria incorporada posteriormente. A posição da Igreja em relação ao aborto foi alterada somente em 1869, pela encíclica Apostolicae Sedis, quando o Papa Pio IX afirmou que os embriões possuem uma alma desde o momento da concepção. Isso se deu a partir da alegação de cientistas da época que, utilizando-se dos primeiros microscópios, enxergaram no esperma o que acreditavam ser pequenos humanos (homúnculos). Com isso, o posicionamento oficial da Igreja de interpretar o aborto como equivalente ao homicídio pode ser considerado algo recente. No entanto, segundo pesquisadores, a decisão do Papa foi política: Pio IX precisava de proteção das tropas de Napoleão III em meio aos conflitos da unificação da Itália naquele período. O imperador francês enfrentava problemas em razão da baixa natalidade, que era prejudicial aos planos de industrialização e, por isso, fez-se importante declarar que a alma humana era incorporada na concepção, o que teve como troca o auxílio dado pela França para o papa retomar sua posição no Vaticano, conforme aponta Rebecca Grompers (participante da Women on Waves, organização pró-legalização do aborto), cuja ideia é corroborada por William F. Loomis em seu livro Life as It Is. Rússia e União Soviética: o primeiro país a legalizar o aborto Durante o reinado do czar Alexis Romanov, a punição pelo crime de aborto era a morte, atenuando-se a pena no reinado de Pedro I, com exílio e trabalho forçado. Mesmo nesse cenário, vários grupos de médicos e parteiras questionavam essa criminalização, alegando o perigo da clandestinidade. Em 1920, após a Revolução Russa, a União Soviética (URSS) se tornou o primeiro país do mundo a legalizar o aborto. Isso não veio do nada: os bolcheviques trouxeram várias mudan-

ças legislativas que atacariam os cernes da legislação anterior à revolução, como foi o caso do Novo Código da Família, de 1926, que previu a extinção do casamento religioso obrigatório e a possibilidade do divórcio da maneira menos burocrática possível, com garantia de pensões à pessoa economicamente mais desfavorecida do casal. Uma das principais defensoras dessa legalização foi Alexandra Kollontai, revolucionária bolchevique e diplomata da URSS, que criou o Genotdel, departamento do Partido Comunista responsável por organizar questões relativas às mulheres, como o desenvolvimento de creches, escolas e lavanderias, bem como a captação e conscientização das mulheres quanto às opressões de gênero e classe às quais eram submetidas. A criação de escolas e lavanderias, por exemplo, tinha o propósito de transferir ao Estado as obrigações econômico-sociais que eram impostas às mulheres, permitindo a sua alfabetização e o aumento da sua participação política. Kollontai, por meio do Genotdel, também criou em 1920 uma revista chamada Kommunistka, que debatia a exploração de mulheres de classe mais baixa e abordava temas como aborto, sexualidade, casamento, divórcio, amor livre, maternidade e libertação feminina. Em seu texto O Trabalho Feminino no Desenvolvimento da Economia (1921), Kollontai afirma: “[...] Em 20 de novembro de 1920, a república operária sancionou uma lei que abolia as punições atreladas ao aborto. [...]. Por que, então, estabelecemos que o aborto não é mais uma infração penal? A hipocrisia e a intolerância são opostas à política proletária. O aborto é um problema ligado à questão da maternidade e, do mesmo modo, tem origem na posição insegura ocupada pelas mulheres [...] O aborto existe e prospera em toda parte, e nenhuma lei ou medida punitiva foi capaz de eliminá-lo. Sempre há um modo de burlar a lei. Porém, as “soluções” clandestinas apenas debilitam as mulheres; elas se tornam um peso sobre o governo operário, e a força de trabalho é reduzida. Quando realizado em condições médicas adequadas, o aborto é menos prejudicial e perigoso, e a mulher pode voltar ao trabalho mais rapidamente. O poder soviético entende que a necessidade do aborto somente desaparecerá, por um lado, quando a Rússia tiver uma rede ampla e bem desenvolvida de instituições de educação social e de proteção da maternidade, e, por outro, quando as mulheres compreenderem que dar à luz é uma obrigação social. O poder soviético, portanto, permitiu que o aborto seja realizado livremente e em condições clínicas.” Assim, para que uma mulher realizasse a interrupção da gravidez, bastaria comparecer ante um gabinete de tipo ministerial para solicitar o procedimento, que deveria ser realizado em hospitais públicos como garantia de condições assépticas para a Gazeta Vargas • Edição 101 17


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sua realização. Além disso, esse pedido era feito diante do escritório estatal, pois havia um estabelecimento de prioridades que levavam em conta a classe e a vulnerabilidade da pessoa. Entretanto, em 2011, restringiu-se o aborto legal até a décima segunda semana de gestação e até vinte e duas semanas se a gravidez foi resultante de estupro ou em razão de necessidade médica, o que permite que o procedimento seja realizado em qualquer fase da gestação. Ainda, há um período de espera de dois a sete dias antes do procedimento, para que a mulher possa reconsiderar a sua decisão. O médico pode recusar-se a realizar a interrupção da gravidez, com exceção de casos de aborto por necessidade médica. Tal legislação vem sendo fortemente questionada pelas forças conservadoras russas, especialmente a partir de debates que visam a remover a cobertura dada pelo sistema de saúde nacional ao procedimento. Europa e Estados Unidos: da criminalização à legalização Foi somente após a Revolução Francesa que o aborto passou a ser condenado legalmente de forma mais ampla entre os países de maioria cristã. Em 1803, a Inglaterra passou a punir o aborto de maneira severa e o mesmo foi feito na França em 1804, com o Código Napoleônico, que serviu de modelo para os demais países europeus. Estados Unidos Nos Estados Unidos, a competência legislativa quanto ao aborto é estadual, de modo que cada Estado tem a autonomia para decidir como esse tema será regulado. Assim, em 1828, no estado de Nova Iorque, deu-se a regulamentação e criminalização do aborto, que anteriormente não tinha leis proibindo a sua prática no país. Segundo historiadores, nesse contexto, a proibição se dava em razão de uma tutela à saúde da gestante, pois o aborto era um procedimento muito arriscado e fatal. Aqui, acreditava-se que, existindo tecnologia capaz de realizar a interrupção da gravidez sem tanto risco, ele seria admissível. Em 1967, no estado do Colorado, foi feita a primeira lei permissiva do aborto e, entre 1967 e 1970, cerca de metade dos

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estados do país legalizaram o procedimento, com o requisito de que a gestação estivesse em torno do seu primeiro trimestre. No ano de 1973, após a decisão da Suprema Corte no caso Roe versus Wade, decidiu-se que, em razão do direito à liberdade, a gestante poderia realizar o aborto até que o feto fosse viável (que seria até o primeiro trimestre da gestação). Em resposta a essa decisão, vários estados optaram por criar leis que restringissem o acesso ao aborto e há enorme pressão conservadora para que esse precedente seja abandonado. Várias das leis que restringem o aborto foram levadas à Corte, com algumas delas sendo mantidas pelo tribunal. França O aborto foi legalizado na França em 1975, permitindo-se que a mulher realize o procedimento até as doze semanas de gestação se esta não tiver razões sociais ou econômicas para ser mãe. Caso a gestante seja menor de 18 anos, é preciso ter consentimento do representante legal. Entre vários requisitos, exige-se um período de oito dias de ponderação a respeito da decisão, bem como o aconselhamento da mulher. Após as doze semanas de gestação, o aborto é apenas permitido em caso de risco de vida, saúde física da mulher ou risco de malformação do feto, exigindo-se nessa última hipótese a certificação escrita de dois médicos. Portugal Portugal foi um dos últimos países europeus a legalizarem o aborto e, em razão disso, existia um fluxo migratório de gestantes portuguesas para países vizinhos que permitiam a realização do procedimento. Tendo em vista essa situação, foi realizado referendo em 2007 (houve referendo semelhante e com o mesmo resultado em 1998), prevalecendo o “sim”. Mesmo o resultado não sendo vinculante, o aborto foi legalizado até a décima semana de gestação, tanto no sistema público de saúde quanto em estabelecimentos privados autorizados. Conforme a Lei nº 16 de 2007, requer-se um período mínimo de reflexão de três dias, com a garantia de acompanha-


mento psicológico e técnico de serviço social, bem como a gestante deve ser informada “das condições de efetuação, no caso concreto, da eventual interrupção voluntária da gravidez e suas consequências para a saúde da mulher” e das condições de apoio estatal dadas à prossecução da gravidez e da maternidade, com encaminhamento para consulta de planejamento familiar. No caso de estupro, o aborto passa a ser permitido até as dezesseis semanas de gestação, sem requisito de queixa policial comprovando-o e, na hipótese de malformação do feto, a interrupção é permitida até as vinte e quatro semanas. Independentemente da fase da gestação, o aborto é permitido quando há risco de vida ou de lesão grave ou irreversível para o corpo ou saúde física ou psíquica da gestante, assim como na hipótese de fetos inviáveis. Ademais, mulheres que tenham realizado o procedimento voluntário ou que tenham sofrido um aborto espontâneo têm direito à licença por no mínimo 14 dias e no máximo 30 dias. Reino Unido O aborto passou a ser legalizado no Reino Unido em 1967, podendo o procedimento ser realizado por profissionais no Sistema Nacional de Saúde, legalização essa que não inclui a Irlanda do Norte, a qual permite o aborto somente em caso de risco para a vida da gestante. A maior restrição na Irlanda do Norte já foi questionada em 2018 pela Comissão de Direitos Humanos Norte-Irlandesa, que alegou incompatibilidade com a Convenção Europeia de Direitos Humanos, mas a Suprema Corte do Reino Unido negou a incompatibilidade. Um dos principais argumentos é que a gestante norte-irlandesa pode viajar para outras regiões do Reino Unido para realizar o procedimento caso deseje. Alemanha Durante a Alemanha de Weimar, em 1926, foram amenizadas as punições à prática do aborto, que foi descriminalizado, passando a ser uma infração. No entanto, com a ascensão do nazismo, em 1933, o aborto voltou a ser crime, abrindo-se exceções em caso de defeitos congênitos, quando o feto não era viável ou para a consecução dos objetivos eugenistas nazistas, permitindo-se o aborto (e também a esterilização) para judeus e ciganos, por exemplo. A Alemanha Oriental legalizou o aborto em 1972, enquanto a Ocidental o fez em 1976. Em 1995, com a Alemanha já reunificada, as quatro hipóteses de descriminalização foram o estupro, o risco para a saúde da mulher, grave malformação do feto e “indicação social”, ou seja, a interrupção da gravidez até a décima segunda semana quando houvesse risco de provocar “estado de necessidade” para a gestante. No último caso, o Tribunal Constitucional Federal determinou a sua inconstitucionalidade parcial em 1996. Atualmente, o aborto é legal até as doze semanas de gestação após a requisição pela gestante de aconselhamento médico, ou em razão de estupro. Após as doze semanas, o aborto é permitido por razões médicas, como saúde mental e condições sociais adversas. Irlanda A proibição do aborto na Irlanda veio por meio de Emenda Constitucional de 1983, que garante a proteção da vida desde a concepção. No entanto, em razão da criminalização, um caso chegou à Suprema Corte (General versus X), referente a uma adolescente de 14 anos que engravidou após ser estuprada pelo pai de uma colega. Por meio de laudo psicológico, demonstrou-se que a menina poderia suicidar-se caso continuasse a gravidez, de

modo que a Corte autorizou que o aborto fosse realizado na Inglaterra, onde a prática é legalizada. No ano de 1992, foram promulgadas emendas constitucionais que permitiram que a gestante tivesse o direito de viajar para realizar a interrupção da gravidez em países nos quais o procedimento fosse legal, bem como obter informações sobre o aborto. Após referendo em 26 de maio de 2018, os irlandeses votaram pela revogação da proibição constitucional do aborto (prevista em emenda). Assim, 68% dos votos foram favoráveis à legalização e, assim, o país permite o aborto até as doze semanas de gestação sob qualquer hipótese. Malta Malta é o único país na Europa a proibir o aborto em todas as circunstâncias, sendo um crime que pode resultar em pena de prisão. O país tem 400 mil habitantes e 90% da sua população é católica. O jornal britânico BBC afirma existir um “paradoxo de Malta”: o mesmo país que proíbe o aborto, teve aprovado pelo parlamento o casamento entre pessoas do mesmo sexo (2017), o que mostraria uma mudança progressista e a manutenção de um pensamento conservador. E o Brasil? O aborto foi criminalizado pela primeira vez em 1830 pelo Código Criminal do Império, enquanto conduta praticada por terceiro (logo, sem menção à gestante que pratica o aborto), fazendo parte dos crimes contra a segurança e a vida (arts. 199 e 200). Somente com o Código Penal da República, de 1890, que se passou a criminalizar a gestante que praticasse a interrupção da gravidez, além de prever a pena agravada para o caso de seu falecimento. O Código Penal vigente, de 1940, feito em meio à Era Vargas, especificou o aborto em sua parte especial como um dos “crimes contra a pessoa”, sendo “crime contra a vida” (arts. 124, 125, 126, 127). O artigo 128 traz as hipóteses de exclusão da ilicitude: gravidez resultante de estupro e risco à vida da gestante. A terceira hipótese surgiu por meio de decisão de 2004 do Supremo Tribunal Federal: a anencefalia do feto (Habeas Corpus 84.025). No ano de 2004 foi julgado o Habeas Corpus 84.025, que fora impetrado no STF após o pedido de alvará para a realização do aborto de feto anencéfalo ser negado pelo Superior Tribunal de Justiça. No entanto, o processo perdeu objeto no STF, pois o parto ocorreu antes de seu julgamento. Ainda assim, o Ministro Relator Joaquim Barbosa decidiu que a continuidade da gestação de um feto que morreria após o parto viola o direito da gestante à liberdade (autodeterminação), além de gerar a ela angústia e desespero. Já a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, julgada em 2012, pediu a declaração de inconstitucionalidade da criminalização do aborto em caso de anencefalia, de modo que o STF, por meio de interpretação conforme à Constituição, considerou atípico o aborto nesse caso, ou seja, é uma situação que não se configura como crime. Em primeiro lugar, foi trazida a laicidade do Estado, que afasta o uso de crenças religiosas na tomada de decisões jurídicas. Ainda, seria desproporcional a tutela de direitos de um embrião sem expectativa de vida em detrimento dos direitos da mulher, levando em conta sua saúde mental, que é exposta ao sofrimento. No caso da gestação de fetos anencéfalos, há maior risco para a saúde física e psíquica da gesGazeta Vargas • Edição 101 19


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Em 2017, o STF recebeu ação (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442) que questiona a recepção pela Constituição de 1988 dos artigos 124 e 126 do Código Penal, que instituem a proibição da interrupção voluntária da gravidez, o que resultaria, a partir da argumentação do autor da ação (Partido Socialismo e Liberdade), na descriminalização do aborto voluntário até a décima segunda semana de gestação, argumentando que a criminalização fere direitos constitucionais das gestantes, como os direitos à cidadania, dignidade, vida, igualdade, liberdade, não discriminação, não receber tortura ou tratamento desumano, degradante ou cruel à saúde e ao planejamento familiar tante, contrapondo-se esse fato às hipóteses de aborto legal por estupro e risco à vida da gestante, que comportam esse mesmo propósito de evitar danos à mulher. Por fim, o feto anencéfalo não tem proteção jurídica por não possuir atividade cerebral, tendo em vista a Lei 9.343 de 1997 (relativa ao transplante de órgãos e tecidos) e a Resolução 1.752 de 1997 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que definem o fim da vida a partir da morte encefálica. No Habeas Corpus 124.306, discutiu-se a constitucionalidade da norma que pune o procedimento da interrupção da gravidez realizada por médicos a pedido da gestante, tratando-se de pedido de soltura dos médicos que foram denunciados por crime de aborto e formação de quadrilha para a realização desse procedimento. Julgado em 2017, a Primeira Turma do STF considerou inconstitucional a criminalização do aborto voluntário. Dentre os argumentos adotados, sustentou-se a necessidade de se respeitar a integridade física e psíquica da gestante e o direito à igualdade da mulher que, por meio da criminalização, recebe um ônus que os homens não receberiam. Ainda, a criminalização seria contrária aos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, o que inclui fazer suas escolhas existenciais. A proibição teria um papel discriminatório, atingindo especialmente as mulheres pobres que não têm acesso a médicos particulares e que não podem procurar o sistema público justamente em razão da criminalização, o que as leva a abortos clandestinos que resultam em lesões graves e óbitos. Por fim, o princípio da proporcionalidade não estaria sendo respeitado com a criminalização, uma vez que tal princípio é composto pelos subprincípios da adequação, necessidade e proporcionalidade estrito senso, e a medida não é adequada, porque não reduz o número de abortos (ausência de efeito preventivo), não é necessária, pois o Estado tem meios mais eficazes e menos lesivos para essa redução (como a educação sexual, o acesso a métodos contraceptivos, o amparo à mulher que quer engravidar, mas não tem condições socioeconômicas para tanto) e não é proporcional, porque gera custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) maiores que os benefícios. Em 2017, o STF recebeu ação (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442) que questiona a recepção pela Constituição de 1988 dos artigos 124 e 126 do Código Penal, que instituem a proibição da interrupção voluntária da

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gravidez, o que resultaria, a partir da argumentação do autor da ação (Partido Socialismo e Liberdade), na descriminalização do aborto voluntário até a décima segunda semana de gestação, argumentando que a criminalização fere direitos constitucionais das gestantes, como os direitos à cidadania, dignidade, vida, igualdade, liberdade, não discriminação, não receber tortura ou tratamento desumano, degradante ou cruel à saúde e ao planejamento familiar. Tal ação está sob a relatoria da ministra Rosa Weber e aguarda julgamento. O CFM, órgão que regula a atividade profissional dos médicos no Brasil, pronunciou-se favorável ao direito de interrupção da gravidez até o terceiro mês de gravidez. As causas excludentes de ilicitude, como o estupro, a anencefalia, o risco de morte, bem como até os três meses de gestação, foram votadas pelos conselhos regionais de medicina de 27 estados brasileiros e pelo CFM, com a representação de aproximadamente 400 mil médicos, sendo aprovadas por maioria. Segundo o presidente da CFM na época, Roberto Luiz d’Avila, os conselhos de medicina declararam-se favoráveis à autonomia da mulher e do médico nas hipóteses retratadas, não ao aborto, levando em conta que os abortos clandestinos têm forte impacto sobre a saúde pública. Ainda, as complicações geradas pelo aborto clandestino são a terceira causa de ocupação de leitos obstétricos no país, representando uma grande causa da mortalidade materna no país. Acabou por aqui? Claro que não! Nos próximos meses serão publicados textos explicando a história do aborto na América Latina, África, Ásia, Oceania e alguns detalhes sobre o contexto no resto da Europa! Nessa parte, haverá várias situações impressionantes para quem ainda não entrou em contato com o contexto político e cultural diverso dessas regiões, que conseguem surpreender justamente por estarmos tão habituados com a visão norte-americana e centro-europeia.


REPASSE GV - D.A. Money (Pink Floyd) No último semestre diversas variáveis envolveram o tradicional andamento das atividades do Diretório Acadêmico. Entre elas; a suposta participação da FGV Rio em esquema de corrupção, o repasse da GV para entidades, além da mais tensa eleição acadêmica dos últimos tempos. Sendo assim, a Gazeta entrou em contato com a gestão ELO para sanar as maiores dúvidas em relação a como funciona e o que ocorreu com o dinheiro que o DA recebe da Fundação. O Repasse da GV para o Diretório Acadêmico funcionava – em um passado próximo – de modo que 1% da receita da EAESP era destinado e dividido entre DA (0.4%) e Atlética (0.6%). A diferença desses valores variava de acordo com o custo fixo de cada entidade, visto que a infraestrutura da GV não suporta atividades desportivas. Em valores absolutos, isso representa R$24.925,86 reais mensais e por parte da EESP, R$1.749,00. Até então, não existia nenhum contrato formal firmado e a prestação de contas mensal enviada à controladoria não era detalhada. Entretanto, na própria página do DA, existe um vídeo explicativo sobre a divisão de contas dentro do Diretório Acadêmico para que preserve-se a transparência ao alunato. Já faz um tempo que a GV vem realizando uma série de padronizações em relação a todas as burocracias, principalmente em relação às prestações de contas. Pela faculdade ser uma Fundação – e isso incluí e parte, principalmente, da FGV Rio – existe a iniciativa de uma prestação de contas para o Ministério Público de uma forma muito mais minuciosa. Nesse sentido, todas as contas da FGV São Paulo devem ser repassadas para a FGV Rio, para que ela preste-as ao MP. Anualmente, os recursos que a FGV fornece para o Diretório Acadêmico e para a Atlética, somados, chegavam a um pouco mais de 1 milhão de reais. A transferência de recursos no valor de R$24.925,86 não cai desde Janeiro desse ano, porém, houve um esforço tanto da coordenação, quanto da controladoria, para conversar com a GV Rio de modo a reduzir o rombo causado pelo corte repentino do repasse. Por conta do processo de padronização explicado anteriormente, os acordos com essas entidades foram revistos e um novo contrato foi formulado para oficializar o repasse. As duas principais medidas que englobam esses contratos referem-se ao 1º andar – que era cedido pela FGV como um comodato

por Victória Rieser sem custos ao DA por um tempo indeterminado – e ao repasse. O comodato do 1º andar foi substituído por um termo de cessão de uso, o que prejudicou a receita do Diretório Acadêmico, tendo em vista que os aluguéis do Rock Café e do Tesouro Laser – em média R$9.424,00 mensais – serão destinados à própria Fundação de agora em diante. Em relação ao repasse em si, ele deixou de ser o que representava 1% da receita da EAESP e passou a ser um valor fixo ainda maior do que o dinheiro recebido anteriormente. Agora, o Diretório Acadêmico vai receber mensalmente R$28.350,00 além da pequena quantia fornecida pela EESP. Este contrato tem validade de três anos e tem a possibilidade de ser renegociado todo final de ano. Com essa reforma, o DA terá de elaborar um planejamento do orçamento semestral e a cada mês deverá mostrar o seu realizado para a Fundação – o que abre margem para pleitear valores ainda maiores dependendo da flexibilidade da FGV São Paulo e da FGV Rio. Vale ressaltar a importância que essa formalidade tem para a segurança do caixa da Atlética e do DA, tendo em vista que da forma anterior o repasse não era formalmente acordado, então, se um dia o repasse fosse cancelado, não haveria possibilidade de contestamento. A gestão ELO preferiu lidar com essa situação pelo caminho institucional e da forma mais diplomática possível. Houve um trabalho intenso de diálogo com todos os stakeholders da GV para entender a melhor forma de negociação. Diversas reuniões foram realizadas para que se chegasse a uma contraproposta final, baseada principalmente no argumento do valor perdido dos dois aluguéis. Entretanto, sem sucesso e flexibilidade referente à FGV Rio. Por fim, o DA gostaria de ressaltar e agradecer a relação intensa de extrema parceria com a Coordenação, a Controladoria, a Direção da FGV e a Atlética. Que acompanharam de perto todo esse processo e com paciência tiveram grande poder de intervenção no acordo com a FGV Rio. A gestão ELO se coloca a disposição para quaisquer dúvidas e diz que os últimos pontos desse trâmite já estão sendo arrumados pela gestão Verso. Tudo parte de um trade-off em que abre-se mão de um pouco da eficiência da organização para uma segurança maior na prestação de contas.

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ESPORTES

PARA QUEM FICA O LEGADO? Este artigo é uma colaboração da Liga de Gestão Esportiva para a 101ª edição da Gazeta Vargas e foi produzido por Elisa Machado (2º semestre de Direito) e Guilherme Kiel (4º semestre de Direito). Jogadeira (Cacau feat. Gabi Kivitz) A Copa do Mundo Feminina de 2019 foi a “Copa das Copas”. Jogadoras, dirigentes, jornalistas e torcedores consideraram essa como a Grande Copa do futebol feminino. A edição foi um grande passo para o desenvolvimento da modalidade e contou com diversos momentos históricos para o futebol. Dentro de campo tivemos Marta se tornando a maior artilheira de todas as copas, tanto masculina quanto feminina; a seleção dos EUA tetracampeã; comemorações simbólicas, além de partidas e gols históricos. Contamos, fora de campo, com momentos memoráveis para o esporte: recordes de audiência, grande público, cobertura midiática como nunca vista e uma grande festa da torcida. Por fim, observou-se, um rol de patrocinadores, investimentos e ações promovidas por empresas e agências que em muito contribuíram para tornar essa copa grandiosa. Os números comprovam o destaque desta edição. O jogo entre Brasil x França, válido pelas oitavas de final, obteve a maior audiência da história do futebol feminino: 59 milhões de telespectadores em todo o mundo acompanharam a vitória da seleção francesa, dentre esses, 35 milhões de brasileiros. Na França a abertura da copa atingiu 11 milhões de pessoas - triplicando o número da última edição. Nos EUA, a final deste ano superou em 20% os telespectadores da última final da Copa masculina, entre França x Croácia: 14,3 milhões de americanos acompanharam a vitória da seleção comandada por Alex Morgan e Megan Rapinoe, enquanto 11,3 milhões acompanharam o título dos comandados por Griezmann e Mbappé. Outro grande fator que contribuiu para o destaque desta Copa foi a visibilidade gerada quanto ao torneio no mundo todo. No Brasil houve uma cobertura como nunca vista de jornais, sites e canais. A Band TV e a Rede Globo foram responsáveis pela transmissão de alguns jogos na TV aberta, enquanto os canais Sportv transmitiram boa parte da Copa do Mundo na TV fechada. Essa visibilidade gerou uma maior procura de marcas a investirem na modalidade, gerando propagandas, ativações e patrocínios memoráveis às seleções femininas, tais como: Adidas e Nike, principais fornecedoras das seleções que criaram uniformes exclusivos às jogadoras, que antes tinham de jogar com os mesmos uniformes das seleções masculinas; 22 Gazeta Vargas • Edição 101

o banco alemão Commerzbank fez uma campanha histórica de igualdade de gênero utilizando-se de frases marcantes direcionadas aos alemães, como “Nós jogamos por um país que nem sabe os nossos nomes” e “Não precisamos ter bolas, mas saber como usá-las”; a Adidas igualou o valor pago às seleções que patrocina pelas bonificações de premiação; dentre muitas outras iniciativas em todo o globo, corroborando para o discurso de que esta edição foi um sucesso e um grande passo à modalidade. Discurso que é reiterado pelo presidente da Fifa, Gianni Infantino, que considerou o ano de 2019 como um marco para a modalidade. Após o mundial, em entrevista coletiva, o dirigente disse empolgado - “Antes de falar do futuro, vamos falar um pouco do presente. Essa Copa foi fenomenal, emocionante e fantástica. A melhor Copa Feminina de todos os tempos. Temos um antes e um depois da Copa de 2019.” Além do discurso animador, Infantino aproveitou para apresentar cinco propostas importantes para o futuro do futebol feminino. A primeira é a criação de um mundial de clubes feminino jogado todo ano entre os melhores clubes de cada continente. Além disso, a criação de uma Liga Mundial Feminina, uma liga com diferentes níveis para ser jogada o ano todo. Já em relação a Copa do Mundo, o presidente propôs aumentar para 32 no número de seleções e dobrar a premiação do torneio. Por fim, propôs também que a FIFA dobrasse o investimento no esporte através de suas reservas financeiras. Os números, as marcas e as impressões são memoráveis, otimistas e indicam uma mudança de olhar em relação ao futebol feminino, em que - finalmente - há um abraço à modalidade e um afastamento em relação ao machismo atrelado ao esporte. No entanto, os altos investimentos, a grande audiência e a festa feita na Copa se mostram rasos quando analisada a degradante situação da modalidade ao redor do mundo, principalmente no Brasil, tido como “o país do futebol”. Resta o questionamento: para quem fica o legado da Copa? A Seleção recebeu apoio no período pré-copa. Guaraná, Brahma, Itaú, Nike, entre outras companhias cumpriram seu papel colocando como rostos das propagandas jogadoras da equipe feminina do Brasil, de modo a cativar o interesse do público para com a Copa do Mundo. No entanto, o futebol não sobrevive apenas com incentivo propagandístico. Tornar os rostos das jogadoras conhecidos é importante, como bem


incentivou a propaganda do banco Itaú, para que o público busque informações sobre as atletas e conheça o time em campo. No entanto, o dinheiro que é gerado através das propagandas para a CBF, deve ser revertido como investimento para o futebol feminino, caso contrário é apenas uma maneira de gerar lucro de forma oportunista, sem qualquer preocupação verdadeira com o desenvolvimento da modalidade. Recentemente, dois casos relacionados ao futebol feminino viralizaram na internet. O primeiro ocorreu em Recife, com a promissora equipe do Sport. Em 2018, o time feminino do Sport Club do Recife foi campeão invicto da Taça Nordeste, bicampeão pernambucano e 6º lugar na primeira divisão nacional. No mesmo ano, o clube passou por problemas financeiros acumulando uma dívida de R$100 milhões, optando, como meio de diminuir a dívida, por encerrar o departamento feminino de futebol, ocasionando numa multa aplicada pela CBF. Em 2019, após a sanção, o time montou uma nova equipe feminina às pressas, o que gerou resultados desastrosos: nas treze partidas disputadas até agora pela série A1 do Campeonato Brasileiro, o time acumulou treze derrotas e 50 gols sofridos, ficando em último lugar e acabou rebaixado ainda com rodadas de antecedência. Os infelizes resultados escancararam o desapreço da instituição em relação à equipe feminina: elenco montado com descaso, apenas para não ser punido; ausência de horários para treino e condições degradantes no centro de treinamento; escassez de materiais básicos e inexistência de salário fixo. A situação vivida pelo Sport, de descaso com as equipes femininas, não pode ser limitada por problemas financeiros ou resultados negativos em campo - até porque, inúmeros times masculinos do Brasil possuem resultados negativos e não vivenciam situações como as descritas acima. O segundo caso que viralizou recentemente ocorreu com a equipe feminina do Santos Futebol Clube, líder da série A1, treinado pela ex-técnica da Seleção brasileira, Emily Lima, e considerado um dos melhores times do futebol feminino atualmente. O Santos apresenta grandes vantagens em relação a outras equipes da modalidade, entre elas: alto investimento financeiro, treinos frequentes, apoio da torcida e equipe e centro de treinamento estruturado. Todavia, mesmo um dos grandes times do esporte não foi poupado do descaso da CBF para com o futebol feminino. Em julho deste ano, poucos dias após o encerramento da Copa do Mundo Feminina, a equipe santista foi obrigada a dormir no saguão de seu hotel em Manaus,

pois a empresa terceirizada pela CBF reservou um voo para as jogadoras incompatível com a reserva de hotel realizada, deixando as jogadoras sem local adequado para dormir. A denúncia foi realizada pela treinadora da equipe, que aproveitou para expor outros descasos da CBF, mesmo em tempos de revolução no esporte. As situações vividas pelo Sport Club do Recife e pelo Santos Futebol Clube são parte do cotidiano de jogadoras, técnicas e mulheres no geral envolvidas com o futebol feminino. Marcos de audiência, patrocínios milionários e propagandas televisivas são muito importantes, é claro, e motivo de orgulho pois indicam uma evolução social e permitem o aperfeiçoamento do desenvolvimento da modalidade. Contudo, o esporte só sobrevive caso o lucro obtido com a propaganda tenha seu devido direcionamento, permitindo investimento efetivo em centros de treinamento, uma boa gestão, um time forte e competitivo, equipe médica, um melhor direcionamento de investimentos, entre outros fatores essenciais, afinal, não é só de elenco que vive um time, o futebol requer muito mais. Afinal, resta a pergunta: para quem fica o legado da Copa do Mundo? O legado reside no aprendizado. Está nas medidas a serem tomadas, de agora em diante, a fim de evitar situações de descaso com a modalidade; em propagandas frequentes e cativar o público, para que a audiência não se torne periódica - afinal, times masculinos não possuem atenção apenas de quatro em quatro anos, logo, porque os times femininos devem esperar para ter a devida notoriedade? Precisamos de mais propagandas de incentivo a base, como feito pela Nike na série “Dream”, permitindo que meninas se reconheçam no esporte. O incentivo ao futebol feminino desde a infância, como ocorre por exemplo nos Estados Unidos, criando um time de base, assim as futuras jogadoras são treinadas desde novas e os frutos deste treinamento serão colhidos futuramente. O desenvolvimento do futebol feminino não exige pressa, exige inclusão, exige reconhecimento. Hoje, no Brasil, alguns times mostram que o modelo de investimento em base não é um delírio. Times como Flamengo e Fluminense adotam gestões no modelo estado-unidense, investem nas categorias sub12 pensando a longo prazo, não na vitória imediata. O legado da Copa existe na afirmação da cultura do futebol feminino, afinal, o Brasil é o “país do futebol”, não o país do futebol masculino.

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ESPORTES

A GV NO ECONOMÍADAS

Criado em 1991, o Economíadas é uma competição esportiva rodeada por festas que reúne principalmente os alunos dos cursos de Economia e Administração, levando-os rumo ao interior do Estado, que é onde o evento costuma ocorrer. A estruturação do Econo, como é carinhosamente chamado por aqueles que o conhecem, é feita pela Liga das Associações Atléticas Acadêmicas de Ciências Econômicas (LAACE), mas também em grande parte pelas Associações Atléticas Acadêmicas (AAAs), que são organizações estudantis representativas dos alunos, fundadas com o intuito de promover o esporte no meio universitário. Elas fornecem os meios para que os times possam treinar, bem como a supervisão de técnicos para acompanhar esses times, fomentando assim a ação social por meio do esporte, vendendo produtos para aqueles que querem torcer estampando sua atlética no corpo e, claro, organizando também eventos de integração entre os alunos, como trotes solidários e festas. Atualmente, a AAAGV possui equipes de atletismo, basquete, futebol de campo, futsal, handebol, jiu jitsu, judô, natação, rugby, tênis de campo e de mesa, voleibol e xadrez. Contando com categorias femininas, masculinas e mistas, totaliza-se um total de 19 modalidades nas quais qualquer GVniano, GVniana ou GVnianx pode se engajar para competir no Economíadas. Embora a AAAGV participe de outros campeonatos ao longo do ano, como o Novo Desporto Universitário (NDU) e o Intercalouros, a grande estrela esportiva e festiva do calendário GVniano é o Economíadas. Todas as modalidades citadas participam da competição, com exceção do atletismo. A tradicional disputa é normalmente integrada pelas atléticas da FGV (incluindo não apenas os alunos de Administração e Economia, como também os alunos de Direito), Economia Mackenzie, FEA-PUC, FEA-USP, FECAP, ESPM, Insper (incluindo os alunos dos cursos de engenharia) e PUC-Campinas. Na última edição, a FEA-USP não participou e jogou o InterUSP, competição cuja data é conflitante com o Econo, assim como o fez a PUC-Campinas, que participou do Economíadas Caipira. A competição costuma levar mais de 6 mil pessoas à cidade sede todo ano contando com todas as faculdades somadas, além de atrair os universitários, festeiros e amantes do esporte da cidade sede e seus arredores em todas suas edições. Além da competição, a festa também atrai os torcedores, atletas e atleticanos. O Economíadas pela AAAGV se inicia com a cervejada de recepção na noite de chegada à cidade sede, poucas horas antes dos primeiros jogos começarem a acontecer. A tarde, normalmente das 14h às

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We Can’t Stop (Miley Cyrus)

por Thais Cardoso e Fernanda Sabino 22h, temos as tendas, que são as festas apenas com os alunos da GV e pessoas que adquiriram seu ingresso junto à Atlética. No período noturno, há normalmente duas festas organizadas pela LAACE, com todas as atléticas juntas e grandes atrações. Na noite entre as duas festas da Liga, há a famosa Giabólica, festa apenas de música eletrônica que, neste ano, contou com a presença da Atlética Insper. Em 2017, depois de 27 anos, a Fundação finalmente ganhou seu tão sonhado troféu, depois que a AAAFGV conquistou seu primeiro título geral no campeonato. Há diferenças entre ir ao Econo sendo atleta, da administração da atlética, parte da bateria ou torcedor. Porém, quando a GV ganha, a felicidade é a mesma dentre os quatro tipos de gvnianos. Um dos momentos mais marcantes da edição de 2019 do Economíadas, no entanto, veio antes até mesmo dos jogos começarem. No dia 9 de junho de 2019, por meio de uma postagem no grupo de Facebook FGV - Sem Censura feita por uma atleta do time de natação, foram levantadas as questões de que a prova de 100 metros medley abrange apenas atletas masculinos, além do sexismo presente na decisão de manter o cenário desse jeito, mesmo havendo mulheres interessadas em competir na prova. Importante ressaltar que o texto postado foi elaborado em conjunto por todas as atletas do time de natação e teve como base o texto lido por uma integrante da AAAGV na reunião em conjunto com as demais atléticas, tendo sido essa reunião realizada antes da postagem. A prova em voga é a única dentro da natação com 100 metros, sendo as demais provas de 50 metros. Os principais questionamentos acerca da questão foram referentes aos motivos da não existência da prova para mulheres e se eles teriam origem em um machismo escrachado. Segundo o texto postado, foi na reunião feita com a LAACE em conjunto com as outras atléticas que a pauta foi tratada como uma vantagem para as equipes que possuem atletas que treinam nesta modalidade, uma vez que não são todas as atléticas que possuem atletas mulheres que se preparam, tendo em vista a prova


dos 100 metros medley. Tal argumento, no entanto, não prospera, já que, como levantado no texto que expôs o problema, não é uma questão de criar desvantagens ou vantagens, e sim de inclusão e igualdade. Em um primeiro momento, a AAAGV também foi contrária à expansão da modalidade às atletas mulheres, mesmo tendo ela sido a responsável por levar a questão à LAACE e, consequentemente, às demais atléticas. Em seu posicionamento oficial, a AAAGV levanta que falou com os Diretores de Modalidade (DMs) da natação e confessa que errou ao passar para estes que a prova feminina seria aceita desde que condicionada à demanda de que um mesmo atleta possa nadar em mais de duas provas. Isso ocasionou a negação dos DMs quanto à aprovação da pauta, fazendo com que o voto da AAAGV frente às outras atléticas fosse contrário também. A Atlética GV também levantou o fato de que qualquer mudança no regulamento exige maioria absoluta e, mesmo com o voto positivo da GV, outras atléticas já haviam votado contra a pauta. A AAAGV levou a pauta novamente para uma reunião posterior das atléticas, tentando trazer uma maior reflexão sobre o tema, mas foi levantado que já não caberia mais a adoção da mudança do regulamento para o Economíadas 2019, tendo em vista a proximidade aos jogos. A AAAGV coloca que apoia a pauta de representatividade trazida pela equipe e comprometeu-se a levar a questão como primordial nas próximas competições nas quais a GV fizer parte. É importante colocar que a pauta foi fruto de grande articulação não apenas das mulheres da natação, como também do time todo, que abraçou a causa e fez barulho antes, durante e depois do Economíadas. Houve também apoio da torcida, dos times de outras modalidades, de integrantes da atlética e até de alunos e alunas de outras faculdades, ressaltando aqui a participação das mulheres da ESPM, que não apenas mostraram seu apoio via redes sociais, como também através dos protestos durante a prova masculina dos 100 metros medley em Bauru. Algumas curiosidades sobre a GV e o Economíadas: A Atlética existe desde 1954 como parte do DAGV, sendo fundada oficialmente em 1987, durante a gestão de Eduardo Quilici. As eleições do DAGV e da AAAGV eram conjuntas. Esse quadro mudou na chapa do DAGV, presidida por Rodrigo Loures, hoje declarado persona non grata pela entidade, e Quilici. Em 1988, a GV foi para seu primeiro torneio fora de São Paulo: o GV-Bauru, contra o Instituto Toledo de Ensino. Entre 1989 e 1990, houve a primeira edição do GV-FEA USP, em São Paulo. O Jacaré nasceu como símbolo da Atlética em 1989, sendo divulgado por meio do jornal da AAAGV, o Terceiro Tempo.

O Economíadas surgiu em 1991, tendo sido fundado pelas AAA da EAESP-FGV, FEA-USP e FEA-Mackenzie, entidades que fundaram a LAACE, que até hoje é responsável por organizar o evento. A Giabólica, uma das festas mais famosas do Economíadas, nasceu em São Paulo e foi levada aos jogos apenas em 2004. A AAAGV irá participar da Taça Universitária de São Carlos (TUSCA), o maior torneio universitário do país. Para a TUSCA, a Atlética expandiu suas modalidades competitivas, que agora incluem atletismo e as novidades baseball, softball e cheerleading. A AAAGV escolhe lemas para definir o espírito da GV na competição em cada ano. Abaixo estão os lemas dos últimos 10 anos: 2019 - A Guerra nunca acaba; 2018 - Só quem viveu sabe; 2017 - Respeita nossa história; 2016 - O grito dessa cidade sou eu; 2015 - Juntos nessa guerra; 2014 - Imagina no econo; 2013 - Duas cores, uma paixão; 2012 - Amor preto e amarelo; 2011 - Acima de todos, somos GV; 2010 - Ele está chegando; 2009 - Orgulho em ser GV; Por fim, gostaria de agradecer Gabriel Fedele (atual presidente da AAAGV), Helena Secaf (atleta da equipe de natação e uma das arquitetas das ações relacionadas ao movimento Cadê os 100m medley) e Pedro Henrique Rossi (da gestão de 2017 da AAAGV) por terem contribuído na construção do artigo dando informações essenciais.

Para conferir todos os resultados por modalidade, acesse nossa página no Facebook: facebook.com/GazetaVargas Gazeta Vargas • Edição 101 25


REPORTAGEM

REPÓRTERES DA GAZETA A partir do segundo semestre de 2019, a Gazeta Vargas conta com uma equipe de repórteres na Redação! Eles são responsáveis por escrever sobre palestras, debates, polêmicas, jogos, festas e outros eventos relacionados à GV. Nesta edição, nossa equipe reporta sobre uma fraude envolvendo a EESP. Confira!

O ANO QUE A EESP (QUASE) FOI ÀS ELEIÇÕES DA UNE Another Brick In The Wall (Pink Floyd) No final de semana do dia 13 de julho de 2019, ocorreu mais uma edição do Congresso da União Nacional dos Estudantes (CONUNE), em que seis chapas concorreram à presidência da entidade. Iago Montalvão, aluno de Economia da USP e candidato da chapa “Tsunami da Educação” foi eleito presidente com 70,92% dos votos válidos, cargo que deve exercer até 2021. Essa chapa é formada por vários movimentos, como o “Canto da Esperança” e “Universidade Resistência”, que foram criados no período pré-eleições por coletivos como a União da Juventude Socialista e Levante Popular da Juventude, respectivamente. A maioria dos movimentos se dissolve depois das eleições, pois servem para emparelhar coletivos com pautas comuns. Os eleitores no CONUNE são delegados escolhidos para representar instituições de ensino superior. Faculdades que possuem DCE (Diretório Central dos Estudantes) têm o direito de enviar delegados definidos pelo DCE, e as que não possuem, criam uma comissão (eleita por estudantes) que designa 10 delegados dessa faculdade, podendo assim votar nas eleições. Caso a EESP quisesse participar do evento, entraria no segundo grupo. Em maio deste ano, um aluno da EAESP comentou que tinha achado legal que a EESP iria participar do CONUNE este ano - fato que era novidade para os alunos da EESP. No Quinto Andar, os alunos da EESP ficaram surpresos ao verificar que de fato a Escola possuía 10 nomes inscritos - porém a maioria desco26 Gazeta Vargas • Edição 101

nhecidos- para representá-la no site da CONUNE. A EESP não tem DCE, então seria necessária uma comissão para a escolha dos delegados – porém, não se manifestou ninguém que soubesse ou se responsabilizasse por uma comissão ou inscrição. Iniciou-se então uma pesquisa mais aprofundada sobre o assunto. Havia no site uma planilha com os dados dos delegados inscritos, mais especificamente o Nome, Curso, RG/Matrícula, Telefone e E-mail. Conferiu-se que nenhum dos delegados inscritos pela EESP está matriculado nela, mas a maioria dos nomes pertenciam a pessoas que têm alguma relação com a GV (ex-alunos de graduação, MBA etc). Na planilha, todos estavam registrados com o mesmo número de telefone e mesmo e-mail: universidaderesistencia.sp@gmail.com. Isso poderia sugerir uma relação entre a comissão falsa e o Universidade Resistência, movimento criado pelo Levante Popular da Juventude e que mais tarde compôs a chapa Tsunami da Educação. Ao fazer uma raspagem dos dados, foram encontradas uma coluna e uma linha que estavam ocultas na planilha dos inscritos: a coluna extra indica se o delegado é, ou não, responsável pela inscrição dos demais delegados da sua faculdade, e a linha extra contém as informações do delegado responsável. Assim, foi encontrado um delegado supostamente responsável pela inscrição daqueles nomes que supostamente seriam delegados da Escola de Economia de São Paulo da FGV. Por meio


de pesquisas nas redes sociais e sites acadêmicos, esse nome pertence a um estudante e ex-diretor de DCE da USP, militante ativo do Levante e participativo na UNE pelo menos desde 2016. No Facebook, utiliza (ainda) filtro e foto de capa do movimento “Universidade Resistência”. Ainda na base de dados com os inscritos para o CONUNE, foram encontradas outras 6 faculdades pelas quais este delegado seria responsável: Centro Universitário Salesiano de São Paulo, Centro Universitário IBTA, Faculdade de Biblioteconomia e Ciência da Informação, Faculdade de Educação e Tecnologia Iracema e Faculdade Cultura Inglesa. É bastante comum que alguns delegados assumam a responsabilidade por duas faculdades simultaneamente, mas este constitui um dos dois pontos fora da curva da planilha. O delegado mencionado acima era responsável pela inscrição de 7 faculdades em São Paulo quando filtrado por telefone e e-mail, ou 12 quando filtrado apenas por e-mail. O segundo ponto fora da curva é um delegado responsável pela inscrição de 24 faculdades em São Paulo. Ambos nomes estão registrados no site com o mesmo endereço de e-mail, universidaderesistencia.sp@gmail.com. No entanto, esses não são casos isolados, uma vez que 10 endereços de e-mails estão atrelados aos responsáveis por aproximadamente 26% das inscrições do país. Essas informações chamam a atenção, mas não constituem necessariamente um problema. Porém, a insuficiente - se é que houve alguma - verificação da identidade e matrícula dos delegados parece ser uma falha no burocrático sistema eleitoral. A fraude identificada na comissão da EESP foi denunciada ainda em maio, e o delegado responsável foi contatado pelo telefone da planilha para informar a denúncia, porém não houve resposta. A comissão falsa foi impugnada. Até o momento, não foi investigado se esse é o caso das outras 6 faculdades sob a responsabilidade desse nome ou das outras 12 sob a responsabilidade do outro nome (mas mesmo e-mail). Há no Brasil delegados que concentram a responsabilidade pela inscrição de 113, 74, 59 e 52 universidades diferentes, e o mesmo pode em teoria acontecer com algumas delas. Porém… O militante do movimento em questão foi denunciado e não foram encontradas publicações em suas redes sociais sobre ter continuado participando do CONUNE. Já o movimento Universidade Resistência provavelmente não foi dissolvido, já que um coletivo como o Levante não pode ter participação em uma chapa como o “Tsunami da Educação” por outro meio que não seja um movimento. A coexistência de coletivos, movimentos e chapas no período pré-eleições parece haver per-

mitido que uma infração de um não tenha prejudicado a atividade política do outro (mesmo que representem essencialmente um mesmo grupo de pessoas). Portanto, a denúncia não teve efeito nenhum na imagem e legitimidade do grupo que se beneficiaria da fraude. Resultado das eleições da UNE A chapa Tsunami da Educação obteve o maior número de votos (4053, representando 70,92% dos votos válidos), seguida pelas chapas Oposição unificada para derrotar o governo Bolsonaro (1228 votos, 21,49% dos votos válidos), Socialistas (234 votos, 4,09% dos votos válidos) e UNE para tempos de guerra (200 votos, 3,5% dos votos válidos). As outras duas chapas, São eles ou nós: que os capitalistas paguem pela crise e Juventude que batalha se retiraram das eleições. Apenas 12 votos foram brancos ou nulos, enquanto o número total de delegados inscritos foi 8013. A Gazeta Vargas não se responsabiliza pelos dados apresentados no texto, que é uma síntese das informações coletadas por terceiros. A(s) fonte(s) preferiu(preferiram) não ser identificada(s).

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CULTURA

CHEGA DE SAUDADE JOÃO GILBERTO E O NASCIMENTO DA BOSSA NOVA

Chega de Saudade (João Gilberto) Após seu falecimento no dia 6 de julho deste ano, João Gilberto foi homenageado ao redor do globo. Artistas brasileiros e estrangeiros fizeram suas homenagens pelas redes sociais e obituários foram publicados em jornais internacionais como The New York Times, The Guardian, El País, entre outros. Mas afinal, o que faz de João Gilberto uma figura tão importante na história da música? O que faz de sua música tão revolucionária a ponto de ser chamado pelo The New York Times de “arquiteto da Bossa Nova”? Ou reconhecido como um dos maiores músicos da história brasileira? Isso para não falar das homenagens e prêmios recebidos na Europa, Estados Unidos, México e Japão. Tendo estourado no começo da década de 60, a Bossa Nova projetava um Brasil moderno e confiante, disposto a ser feliz. A música de João Gilberto, que até hoje embala os ambientes mais elegantes e despojados do mundo todo, tem muito pouco a ver com o Brasil de hoje. Nascido na Bahia em 1931, o artista revolucionou a música brasileira ao inventar uma batida completamente nova, que “simplificava o Samba e deixava espaço para harmonias ultramodernas”. João Gilberto redefiniu a relação entre voz e violão, cantando mais baixo e sem vibrato, criando seu próprio tempo e igualando a importância da voz à do instrumento, complementando um com o outro. Mudou inclusive a forma de gravar música ao fazê-lo com dois microfones, um para a voz e um para o violão, justamente para que a harmonia entre ambos fosse ouvida com mais clareza. Essa batida capturou a atenção de Tom Jobim que, no final da década de 50, já era um artista bem estabelecido. Essa influência rapidamente deu à música Chega de Saudades, de Tom e Vinícius, uma nova dimensão. A faixa fazia parte do LP Canções de Amor, lançado em 1958 e que posteriormente seria celebrado como o disco que “inaugurou a Bossa Nova”. A partir daí, o resto é história. A canção não apenas inspi-

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Por Luiza Castelo Vieira rou toda uma geração de jovens, como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento, entre outros a seguirem a carreira musical, como também catapultou João Gilberto para o sucesso. No começo da década de 60, suas músicas chegaram aos Estados Unidos e, em 1962, ele realizou seu primeiro show no Carnegie Hall, ao lado de Tom Jobim e outros artistas brasileiros. Dentre os três mil espectadores que lotaram o teatro, estavam Tony Bennett, Miles Davis, Peggy Lee e outros nomes de peso da música americana. O sucesso foi absoluto e, em 1963, João gravou o famoso álbum Getz/Gilberto, ao lado de Stan Getz, Astrud Gilberto, Tom Jobim, Milton Banana e Tião Neto. O disco não apenas foi um sucesso absoluto de vendas e crítica, como rendeu a João Gilberto nove indicações ao Grammy e quatro vitórias, inclusive na categoria de Melhor Álbum do Ano, prêmio até então inédito para artistas brasileiros. O sucesso internacional só cresceu e, em 2003, durante sua primeira turnê no Japão, Gilberto foi ovacionado pela plateia por vinte e cinco minutos ininterruptos, experiência que só seria superada em sua segunda turnê pelo país, quando o artista recebeu uma salva de aplausos que durou trinta e oito minutos. A explosão da Bossa Nova no Japão foi algo como não se via em décadas, colocando seus discos entre os mais vendidos do país, inspirando homenagens e regravações por parte de artistas nacionais, além de outros prêmios. Com sua morte, a importância de João Gilberto foi ouvida e cantada em dezenas de idiomas ao redor do mundo. Fora do tom, apenas a manifestação do presidente Jair Bolsonaro. Ao ser notificado da morte do artista, limitou-se a dizer: “Era uma pessoa conhecida. Nossos sentimentos à família, tá ok?”. O ato, além de ser desrespeitoso, demonstra grande ignorância e contrasta profundamente com a homenagem prestada pelo Presidente pouco tempo antes ao músico MC Reaça, que compunha jingles agressivos a favor do Presidente. Em um momento em que as atitudes do governo brasileiro têm causado grande constrangimento no mundo todo, a lembrança e o respeito ao legado de João Gilberto vêm quase que como um respiro de alívio, atualmente uma das raras ocasiões na qual se pode ter orgulho de algo nosso. É quase impossível mensurar o legado de João Gilberto, mas a frase de Caetano Veloso ao terminar seu show no teatro grego de Taormina, após a sua morte, talvez seja uma boa síntese: “sem ele, nenhum de nós estaria aqui”.


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“ABSORVENDO O TABU” UMA PROBLEMATIZAÇÃO NECESSÁRIA ACERCA DA MENSTRUAÇÃO Morada (Cidrais) Anônimo Ganhador da categoria “Melhor Documentário de Curta Duração” no Oscar de 2019, o filme “Absorvendo o Tabu” (original: “Period. End of Sentence”) aborda a questão da menstruação na sociedade indiana que ainda hoje permanece sendo um grande tabu. Filmado em uma cidade rural da Índia, ele apresenta a realidade de diversas mulheres e suas dificuldades acerca desse processo tão natural do corpo humano. O documentário mostra como tanto as mulheres quanto os homens têm receio e vergonha de falar sobre esse assunto. As meninas, quando perguntadas sobre menstruação e absorventes, escondem o rosto e dão risadas constrangidas. Os meninos, com incerteza, exprimem que é uma doença que afeta apenas as mulheres ou que não sabem o que é. Essa falta de conhecimento sobre o que é verdadeiramente a menstruação deriva do tabu e de antigas crenças sobre o assunto. No período menstrual, as mulheres são proibidas de realizarem atividades básicas como sentar junto com a família na mesa de jantar, cozinhar, tocar em alimentos e até mesmo entrar em templos religiosos. A justificativa apresentada é que nesse período as mulheres são consideradas sujas, elas estão passando por um processo de purificação em que todas as coisas ruins estão saindo de dentro delas, por isso o receio de contaminação. Esse incômodo em conversar sobre menstruação gera uma insegurança perante a saúde e as condições das meninas, não se limitando apenas às classes mais baixas da população, as classes mais altas também sofrem com o silêncio e desinformação do assunto. A maior parte não tem condições de comprar produtos sanitários, sendo assim, utilizam os primeiros panos que encontram em suas casas, folhas de árvores, roupas velhas ou até mesmo jornais, sem a devida higiene para prevenção de infecções e doenças: menos de 10% da população indiana utiliza absorventes higiênicos. Para as que têm condições de comprar produtos sanitários, há uma hesitação e uma apreensão já que os absorventes não estão expostos em prateleiras nas lojas, deve-se pedir para algum vendedor e há a preocupação para que sejam embalados com vários jornais em volta para que as outras pessoas não vejam o que está na sacola. Outras mulheres até mesmo deixam de comprar por vergonha dos homens que estão em volta na loja.

Ademais, isso afeta a vida das mulheres também no âmbito social: estima-se que cerca de 1 a cada 5 meninas deixam a escola por conta da menstruação e 93% das meninas perdem de 1 a 2 dias de aula todo mês por conta da menstruação, principalmente por conta da dor e desconforto, e por medo de manchar as roupas. A maioria também relata que não conseguia se trocar com tanta frequência já que 40% das escolas não têm banheiros separados por gênero e teriam que ir em lugares muito longe, sendo assim, acabavam nem comparecendo nas aulas. Dessa forma, o filme retrata o processo transformador de implementação de uma máquina que produz absorventes biodegradáveis, produzidos pelas próprias mulheres da região. Isso modifica a realidade dessas pessoas, uma vez que possibilita a oportunidade de uso de absorventes e também cria uma independência financeira por parte delas. A maioria relata que nunca tinha trabalhado antes e muito menos utilizado um absorvente. Isso criou um empoderamento feminino na região com a conscientização acerca da importância de destabulizar esse assunto e da disseminação de informações. Em uma entrevista ao The Refinery 29, a diretora do filme apresenta que um dos pontos principais que ela mais ouviu no decorrer das filmagens foi que quando uma menina atinge a puberdade e começa a menstruar, ela se aflora em uma mulher e depois começa a ser alvo de assédios sexuais e estupros. Dessa forma, o que os pais tentam fazer é deixar em sigilo absoluto para que quando a filha menstruar ninguém descubra e depois tentam casá-la o mais rápido possível, a qual eles acreditam ser a opção mais segura. “Absorvendo o Tabu” é um documentário importantíssimo e necessário já que esse assunto ainda é tratado de forma preconceituosa como algo vergonhoso e nojento em grande parte das sociedades, não se limitando ao foco do filme, a Índia. A diretora Rayka Zehtabchi conseguiu tratar do tema de forma leve e interessante, trazendo o debate da importância dessa temática a público. Ao receber o Oscar no início de 2019, declarou: “Eu não estou chorando porque estou menstruada ou algo do tipo. Eu não consigo acreditar que um filme sobre menstruação acabou de ganhar um Oscar!”.

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CULTURA

2 CONCURSO DE FOTOGRAFIA - 2019 o

Após o grande sucesso de sua 1a edição, a Gazeta trouxe novamente o Concurso de Fotografia. A ganhadora é a aluna do 7o semestre de Administração Pública, Paula Andrea. Abaixo ela apresenta uma descrição sobre a foto, um depoimento de Julia Miranda sobre sua filha, Luna, retratada na foto. Parabéns, Paula!

Julia Miranda Macedo. 20 anos. Estudante de Administração Pública na FGV. Mãe. Luna Valentina Macedo Souza. 2 anos e 8 meses. Amante de maquiagem. Filha. “A primeira coisa que eu penso pra me apresentar é ‘Meu nome é Julia e eu tenho uma filha’. É automático. (...) Eu engravidei com 17, no meu segundo ano, na época da ETEC, no Ensino Médio. (...) Minha relação com o pai dela foi uma coisa muito complicada. Não é à toa que não estamos mais juntos. Eu lembro de uma vez que teve um aniversário de uma amiga na minha faculdade, levei ela, e foi num sítio. (...) A gente voltou tarde eu fiquei super preocupada porque eu perdi a fraldinha que ela dorme (...) no meio do caminho. (...) Ela não queria dormir e queria comer, e aí fui até a casa do meu namorado, e fiz a mamadeira pra ela.(...) Depois a gente passou uma hora e meia procurando algum lugar que vendesse uma fraldinha de pano, e a gente não tava encontrando. (...) Eu comecei a ficar desesperada. Porque eu tinha que levar ela pra casa do pai, ela não tinha como dormir comigo naquela noite. Ela não parava de chorar (...) Ele tava me mandando milhões de mensagens de ‘cadê você?’. (...) Fui pro ponto do ônibus com ela e fiquei 40 minutos esperando e o ônibus não veio, e isso já tinha passado das 11 da noite. (...) Quando eu fui procurar meu bilhete único eu tinha deixado na casa do meu namorado, em pleno domingo assim. (...) Ela não parava de chorar, e eu comecei a entrar em pânico de pensar em como meu ex (o pai) reagiria por tar ficando tão tarde e ela ainda tar comigo. Eu chorava na rua, aí teve uma vez que respirei e parei e falei pra ela: ‘Luna, nós somos um time e eu preciso que você me ajude, preciso que você pare de chorar porque a mamãe te promete que a gente já ta chegando, e a gente já vai pra sua casa e você vai ver o seu papai. (...) Olha pra mamãe: não chora, que a mamãe não vai chorar’ E ai ela ficou soluçando, mas parou de chorar. Isso ela tinha uns 2 anos e meio. Foi um momento que me marcou (...) em que eu reparei que ela realmente me escuta. (...) Que nós somos um time.”

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EDIÇÃO 101 agosto de 2019

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