
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
7ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central da Comarca de Porto Alegre
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AÇÃO POPULAR Nº 5129883-76.2025.8.21.0001/RS
AUTOR: MATHEUS PEREIRA GOMES
ADVOGADO(A): DANIEL SEVERO SCHIITES (OAB RS113866)
RÉU: ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL
RÉU: EDUARDO FIGUEIREDO CAVALHEIRO LEITE
DESPACHO/DECISÃO
Trata-se de ação popular proposta por MATHEUS PEREIRA GOMESem face de ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL e de EDUARDO FIGUEIREDO CAVALHEIRO LEITE, todos qualificados nos autos do processo em epígrafe, pela qual pretende a exclusão definitiva do documentário “Todos Nós por Todos Nós” e de seu trailer em todas as plataformas digitais, redes sociais, canais institucionais, emissoras públicas ou privadas, sites governamentais ou vinculados à gestão estadual, bem como a proibição definitiva da sua exibição pública ou privada; e a condenação de EDUARDO FIGUEIREDO CAVALHEIRO LEITE ao ressarcimento das importâncias indevidamente gastas a tal título pelo Estado do Rio Grande do Sul.
Relatou que, no final de abril de 2025, o Governo do Estado do Rio Grande do Sul, por meio de sua Secretaria de Comunicação (Secom), lançou e passou a divulgar amplamente um documentário intitulado “Todos Nós por Todos Nós”, cuja proposta seria retratar as enchentes que assolaram o Estado em 2024, bem como o processo de reconstrução subsequente. Narrou que a primeira exibição pública ocorreu em 29 de abril de 2025, na Cinemateca Paulo Amorim, com divulgação nos canais institucionais do Poder Executivo estadual. Contou que, embora apresentado como material de caráter institucional e informativo, o conteúdo do documentário, financiado integralmente com recursos públicos, revelou finalidade diversa daquela exigida pela legalidade administrativa, pois a peça tem nítido caráter de promoção pessoal do atual Governador do Estado, Eduardo Leite, cuja figura ocupa posição de protagonismo em grande parte da narrativa visual e textual. Informou que, conforme levantamento técnico, o Governador aparece em tela por 9 minutos e 2 segundos, em um total de 42 minutos e 14 segundos de duração, o que corresponde a 21,83% do tempo total da obra. Indicou que há presença quantitativa e qualitativamente destacada, em cenas construídas para valorizar sua atuação pessoal diante da tragédia.
Mencionou que a produção audiovisual dá especial relevo à imagem do Chefe do Executivo com cenas em que aparece envergando colete da Defesa Civil, acolhendo vítimas, liderando equipes e fazendo pronunciamentos. Ressaltou que o trailer do documentário, veiculado em salas de cinema do Estado, acentua ainda mais essa centralidade: em peça com menos de dois minutos, o Governador aparece por aproximadamente 37 segundos. Relatou que há aparições do vice-governador e de secretários de Estado, mas todos em função de coadjuvantes, sendo que a obra gira em torno da figura do Governador, alçado à condição de símbolo da resposta pública à tragédia. Indicou que as ações institucionais são apresentadas de forma subordinada à sua presença pessoal, compondo uma narrativa com traços marcadamente eleitorais. Registrou que o próprio Governador já declarou
publicamente sua condição de pré-candidato à Presidência da República nas eleições de 2026, de tal forma que a veiculação da peça em salas de cinema, redes sociais, portais oficiais e outros meios, inclusive fora dos limites territoriais do Estado, demonstra o evidente propósito de ampliação nacional de sua imagem pessoal, com nítida finalidade político-eleitoral. Pontuou que o referido documentário tem como título o slogan de campanha eleitoral, em 2022, do então candidato ao governo estadual, Eduardo Leite, “Todos Nós por Todos Nós”, demonstrando identificação direta entre a obra publicitária de governo e as aspirações pessoais do atual mandatário do Palácio Piratini.
Sustentou que a publicidade institucional deve, por força do art. 37, §1º da Constituição Federal, ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, sendo vedada qualquer forma de promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos. Advogou que o material impugnado serve, em essência, à construção midiática de uma figura pública em contexto pré-eleitoral, utilizando-se da estrutura do Estado para fins privados e eleitorais. Argumentou que, em vez de prestar contas à sociedade ou promover o acesso à informação de interesse coletivo, a propaganda serve à construção de uma narrativa centrada no chefe do Executivo, projetando sua imagem como gestor eficaz e líder carismático. Defendeu que ocorreu a apropriação da máquina pública — e dos recursos públicos — para alimentar um projeto pessoal de poder, o que configura nítida ilegalidade. Invocou os artigos 37, §1º, da CRFB e 19, §1º, da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul.
Postulou liminarmente a concessão de tutela de urgência para determinar: a imediata retirada do ar do documentário “Todos Nós por Todos Nós” e de seu trailer em todas as plataformas digitais, redes sociais, canais institucionais, emissoras públicas ou privadas, sites governamentais ou vinculados à gestão estadual; a suspensão da exibição pública ou privada do documentário e do trailer, inclusive em salas de cinema, eventos oficiais e demais meios de divulgação institucional, sob pena de multa diária a ser fixada por este juízo; que o Estado do Rio Grande do Sul apresente nos autos, no prazo máximo de 10 (dez) dias, cópia integral de todos os contratos firmados para a produção, divulgação e veiculação do documentário e do trailer “Todos Nós por Todos Nós”; e que o Estado informe detalhadamente o montante de recursos públicos já empenhados e os previstos para serem ainda empenhados para a realização, divulgação e manutenção da campanha publicitária ora questionada.
Anexou documentos (evento 1, PROC2 a evento 1, OUT28).
É o relatório. Passo a decidir.
Prescreve o artigo 5º, inciso LXXIII, da Constituição da República que "qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência"
Em regulamentação a este direito-garantia instrumental, a Lei nº 4.717/65 foi recepcionada com a indicação, em seu artigo 1º, de que "[q]ualquer cidadão será parte legítima para pleitear a anulação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados, dos Municípios, de entidades autárquicas, de sociedades de economia mista (Constituição, art. 141, § 38), de sociedades mútuas de seguro nas quais a União represente os segurados ausentes, de empresas públicas, de serviços sociais autônomos, de instituições ou fundações para cuja criação ou custeio o tesouro público haja concorrido ou concorra com mais de cinqüenta por cento do patrimônio ou da receita ânua, de empresas incorporadas ao patrimônio da União, do Distrito Federal, dos Estados e dos Municípios, e de quaisquer pessoas jurídicas ou entidades subvencionadas pelos cofres públicos."
Para definir o que seria patrimônio público, o §1º do artigo 1º da referida Lei prevê que "[c]onsideram-se patrimônio público para os fins referidos neste artigo, os bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico."
Sobre o tema, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no julgamento do ARE 824781, submetido à sistemática da repercussão geral, firmou posição de que "[n]ão é condição para o cabimento da ação popular a demonstração de prejuízo material aos cofres públicos, dado que o art. 5º, inciso LXXIII, da Constituição Federal estabelece que qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular e impugnar, ainda que separadamente, ato lesivo ao patrimônio material, moral, cultural ou histórico do Estado ou de entidade de que ele participe." (ARE 824781 RG, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 27-08-2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-203 DIVULG 08-10-2015 PUBLIC 09-10-2015)
No mesmo sentido, a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça assentou entendimento de que "a Ação Popular é cabível quando violados os princípios da Administração Pública (art. 37 da CF/1988), como a moralidade administrativa, ainda que inexistente o dano material ao patrimônio público. A lesão tanto pode ser efetiva quanto legalmente presumida, visto que a Lei 4.717/1965 estabelece casos de presunção de lesividade (art. 4º), para os quais basta a prova da prática do ato naquelas circunstâncias para considerá-lo lesivo e nulo de pleno direito." (EREsp n. 1.192.563/SP, relator Ministro Benedito Gonçalves, relator para acórdão Ministro Herman Benjamin, Primeira Seção, julgado em 27/2/2019, DJe de 1/8/2019.)
Relativamente à legitimidade dos vereadores, o Supremo Tribunal Federal, no exame do Tema nº 832/STF, assentou a tese de que "o parlamentar, na condição de cidadão, pode exercer plenamente seu direito fundamental de acesso a informações de interesse pessoal ou coletivo, nos termos do art. 5º, inciso XXXIII, da CF e das normas de regência desse direito." (RE 865401, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 25-042018, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL - MÉRITO DJe-223 DIVULG 18-10-2018 PUBLIC 19-10-2018)
Pois bem. A parte autora é eleitora segundo documento acostado a demonstrar sua legitimidade (evento 1, TELEITOR4) e o patrimônio publico, passível de ser protegido por este remédio constitucional, abarca a preservação dos princípios regentes da Administração Pública.
Ante o microssistema processual coletivo, composto pela Lei nº 4.717/65, pela Lei nº 7.347/85 e demais legislações extravagantes, a análise de liminar passa pelo artigo 5º, §4º, da Lei nº 4.717/65 que prescreve que "[n]a defesa do patrimônio público caberá a suspensão liminar do ato lesivo impugnado" e pelo artigo 12 da Lei nº 7.347/85 que dispõe que "[p]oderá o juiz conceder mandado liminar, com ou sem justificação prévia, em decisão sujeita a agravo."
Dada a subsidiariedade do Código de Processo Civil, cabe cominar a disciplina das tutelas provisórias vigente. Nesse norte, segundo prescreve o artigo 300, caput e § 3º, do CPC, "[a] tutela de urgência será concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo", salvo "quando houver perigo de irreversibilidade dos efeitos da decisão."
No caso em voga, o perigo de dano e o risco ao resultado útil do processo decorrem da manutenção do documentário e do seu trailer de maneira pública a toda a coletividade, cujo número de visualizações na Plataforma YouTube só tende a aumentar dia após dia, hora após hora, minuto a minuto e até de segundo a segundo.
Por outro giro, a despeito dos argumentos robustos deduzidos pela parte autora, não se visualiza a probabilidade do direito alegado apto a determinar, ao menos nessa etapa processual em sede de cognição sumária, as determinações contidas nos itens a.1 e a.2. dos pedidos formulados na petição inicial. Explica-se.
O artigo 37, caput, da Constituição da República encartou os princípios gerais da Administração Pública: a legalidade, a impessoalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência.
Guiado por esses princípios, o artigo 37, §1º, da Carta Magna prescreve que " [a] publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos."
No âmbito do Estado do Rio Grande do Sul, igual previsão normativa se faz presente na Constituição Estadual. O seu artigo 19, caput, dispõe que "[a] administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes do Estado e dos municípios, visando à promoção do bem público e à prestação de serviços à comunidade e aos indivíduos que a compõem, observará os princípios da legalidade, da moralidade, da impessoalidade, da publicidade, da legitimidade, da participação, da razoabilidade, da economicidade, da motivação, da transparência e o seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 79, de 23/07/20)"
Nessa senda, o artigo 19, §1º, da Constituição Estadual estabelece que " [a] publicidade dos atos, programas, obras e serviços, e as campanhas dos órgãos e entidades da administração pública, ainda que não custeadas diretamente por esta, deverão ter caráter educativo, informativo ou de orientação social, nelas não podendo constar símbolos, expressões, nomes, “slogans” ideológicos político-partidários ou imagens que caracterizem promoção pessoal de autoridade ou de servidores públicos. (Redação dada pela Emenda Constitucional n.º 26, de 30/06/99)"
Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal assentou a orientação de que [o] caput e o parágrafo 1º do artigo 37 da Constituição Federal impedem que haja qualquer tipo de identificação entre a publicidade e os titulares dos cargos alcançando os partidos políticos a que pertençam. O rigor do dispositivo constitucional que assegura o princípio da impessoalidade vincula a publicidade ao caráter educativo, informativo ou de orientação social é incompatível com a menção de nomes, símbolos ou imagens, aí incluídos slogans, que caracterizem promoção pessoal ou de servidores públicos. A possibilidade de vinculação do conteúdo da divulgação com o partido político a que pertença o titular do cargo público mancha o princípio da impessoalidade e desnatura o caráter educativo, informativo ou de orientação que constam do comando posto pelo constituinte dos oitenta. (AP 432, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 10-10-2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-213 DIVULG 29-10-2014 PUBLIC 30-10-2014; RE 191668, Relator(a): MENEZES DIREITO, Primeira Turma, julgado em 15-04-2008, DJe-097 DIVULG 29-05-2008 PUBLIC 30-052008 EMENT VOL-02321-02 PP-00268 RTJ VOL-00206-01 PP-00400 RT v. 97, n. 876, 2008, p. 128-131 LEXSTF v. 30, n. 359, 2008, p. 226-231 RJTJRS v. 47, n. 286, 2012, p. 3337; e RE 631448 AgR, Relator(a): ROBERTO BARROSO, Primeira Turma, julgado em 2406-2014, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-159 DIVULG 18-08-2014 PUBLIC 19-082014)
Em suma, "[s]egundo se extrai do art. 37, § 1º, da Constituição Federal, é vedada a publicidade institucional que caracterize promoção pessoal de agente público." (ARE 1483670 AgR, Relator(a): ALEXANDRE DE MORAES, Primeira Turma, julgado em 27-05-2024, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 03-06-2024 PUBLIC 04-06-2024)
Cabe ressaltar, ainda, que, com o advento da Lei nº 14.230/2021, foi introduzido tipo específico de ato de improbidade administrativa ao artigo 11, inciso XII, da Lei nº 8.429/92, nos seguintes termos:
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública a ação ou omissão dolosa que viole os deveres de honestidade, de imparcialidade e de legalidade, caracterizada por uma das seguintes condutas:
[...]
XII - praticar, no âmbito da administração pública e com recursos do erário, ato de publicidade que contrarie o disposto no § 1º do art. 37 da Constituição Federal, de forma a promover inequívoco enaltecimento do agente público e personalização de atos, de programas, de obras, de serviços ou de campanhas dos órgãos públicos. (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021)
Definidas essas balizas, deveras, do exame do conteúdo do arquivo audiovisual referente ao trailer e ao documentário "Todos Nós por Todos Nós" relativo à tragédia que assolou o Estado do Rio Grande do Sul em abril-maio/2024, percebe-se uma participação veemente e de destaque da parte ré, na qualidade de Governador, seja na narração dos eventos de acordo com cada "episódio" da tragédia em consonância com as imagens/fotografias em murais disponibilizados na Exposição Alusiva à Enchente de 2024 no Palácio Piratini, seja em momentos de inauguração de obras (escolas, etc.). Pela pertinência, sem prejuízo de outros momentos do documentário, evidenciam-se os seguintes trechos que realçam essa participação do Governador:
a) Minutos 2:09-02:51, 7:32-7:50, 13:07-13:15, 13:43-13:51: 14:05-14:25; 14:34-14:37; 18:14-18:44; 18:57-19:20; 19:52-20:13; 22:20-23:06; 26:34-26:48; 31:0631:29; 37:02-38:00; 38:31-39:27; 39:56-40:29 - Narração do Governador na Exposição Alusiva à Enchente de 2024 no Palácio Piratini de acordo com cada imagem e etapa;
b) Minutos 6:20-6:33 e 21:10-21:20 - Entrevista para TvGlobo ao jornalista William Bonner;
c) Minutos 7:03-7:25 - Aprovação do Plano Rio Grande;
d) Minutos 12:10-12:25 - Entrega de módulos habitacionais nos Municípios de Encantado, de Estrela, de Cruzeiro do Sul, de Porto Alegre e de Eldorado do Sul;
e) Minutos 14:26-14:33 - Solidariedade ao dono do restaurante Casa do Peixe no Município de Arroio do Meio;
f) Minutos 22:28-22:42 - Abraço solidário a uma idosa desabrigada que estava acolhida em um dos abrigos localizados no Município de Porto Alegre;
g) Minutos 25:30-22:50 - Discurso na ExpoInter 2024;
h) Minutos 27:25-30:11 - Comparecimento do Governador ao Instituto Estadual de Educação Paulo Freire em São Sebastião do Caí para prestar um alento às diretoras da escola e se comprometer a recuperar a estrutura da escola; e para a Abertura do Ano Letivo da Rede Estadual na referida escola;
i) Minutos 32:38-32:44 - Reinauguração do Aeroporto Internacional Salgado Filho em Porto Alegre/RS; e
j) Minutos 33:54-34:28 - Agendas em Brasília com o Governo Federal e com o Poder Legislativo na busca de soluções para auxiliar o Estado na reconstrução.
Ademais, como bem salientado pela parte autora, o título do Documentário reproduz o slogan da Campanha Eleitoral do Governador nas Eleições de 2022 (evento 1, NOT_PROP5), expressão esta que é cunhada pelo próprio Governador em um trecho do documentário (Minuto 18:26-18:31).
Em suma, é inegável o destaque conferido ao Governador no curso do documentário como um narrador que conduz o público à cada etapa do processo decorrente da Enchente de 2024, desde o salvamento das pessoas e famílias até a listagem e abordagem de todas as medidas adotadas e voltadas a reconstruir o Estado. Sem dúvidas também que há cenas que focam nos impactos das imagens e nos sentimentos experimentados pelo Governador no curso da sua narração dos eventos.
Esses aspectos, contudo, não configuram promoção pessoal para fins de violação do princípio da impessoalidade encartado no artigo 37, caput, e densificado no seu §1º e pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.
A um, porque o documentário em si consiste em uma obra audiovisual não seriada ou seriada organizada em temporada única ou em múltiplas temporadas, que atenda a um dos seguintes critérios: ser produzida sem roteiro a partir de estratégias de abordagem da realidade, ou ser produzida a partir de roteiro e cuja trama/montagem seja organizada de forma discursiva por meio de narração, texto escrito ou depoimentos de personagens reais, a teor do artigo 7º, XXXIII, da Instrução Normativa ANCINE nº 100/2012.
Portanto, a atuação do Governador como este narrador do documentário é inerente à sua posição como Chefe do Poder Executivo, em especial da Secretaria de Comunicação, e Chefe do Estado-membro, isto é, um agente público que tem o munus público de prestar contas de todas as atividades administrativas exercidas pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul para enfrentar todos os problemas multifatoriais decorrentes desse evento climático extraordinário. Cabe recordar que o vínculo de tais agentes públicos com o Estado é de natureza política, visto que "o que os qualifica para o exercício das correspondentes funções não é a habilitação profissional, a aptidão técnica, mas a qualidade de cidadãos, membros da civitas e, por isto, candidatos possíveis à condução dos destinos da Sociedade." (ADI 4174, Relator(a): LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 04-10-2019, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-226 DIVULG 16-10-2019 PUBLIC 17-10-2019)
A dois, porque, na mesma linha do papel como narrador do Governador, os Secretários de cada pasta e Diretores prestaram depoimento no curso do documentário em sintonia com a exigência normativa, em nenhum momento com a finalidade de promover-se pessoalmente ou destacar as suas qualidades; em verdade, o que se infere de cada relato ou fala é o exercício de típica atividade de accountability para a população;
A este propósito, sintetizam-se algumas das medidas apresentadas pelos agentes públicos: resgates de civis; entrega de 362 moradias temporárias em sete Municípios; implantação do Centro Administrativo de Contingência e do Comitê Científico de Adaptação e Resiliência Climática; viagem ao Reino dos Países-Baixos para conhecer os principais projetos do programa "Room for the River" voltado a lidar com as enchentes e as adaptações climáticas; abrigos e prestação de cuidados aos animais resgatados; auxílio-financeiro às famílias atingidas por meio dos Programas Volta por Cima, Aluguel Social, Estadia Solidária, Auxílio-Abrigamento, Projeto CuidarTchê 60+ e Partiu-Futuro-Reconstrução; concentração de arrecadação de doações de PIX no SOSEnchentesRS; implantação de Núcleo de Combate a Fake News durante a calamidade pública; financiamento e consultorias a microempreendedores individuais; Programa Invest RS e South Summit Brazil voltados à captação de investimentos no RS; reestruturação da Escola Instituto Estadual de Educação Paulo Freire em São Sebastião do Caí; implantação do mecanismo do Agiliza voltado a agilizar o repasse extra às escolas para permitir a retomada das aulas de modo mais célere;
reconstrução de rodovias; dados de investimento na reconstrução de casas e de rodovias e demais áreas; e diálogo interinstitucional com o Governo Federal para busca de soluções para que o Estado tivesse capacidade para fazer frente à calamidade.
A três, porque, dentro do ponto acima deduzido, o documentário esclarece no início, no curso e ao final do documentário, que o objetivo, além de relembrar da tragédia, foi apresentar o que se concretizou a partir do Plano Rio Grande, instituído pela Lei Estadual nº 16.134/2024, cujo slogan foi, de fato, igual ao da campanha eleitoral do Governador. Porém, a dedução de que o uso desse slogan possui cunho eleitoral para efeito de prospectar eleitores em busca do concretizar o projeto político e pessoal do Governador de concorrer ao cargo de Presidente da República nas Eleições de 2026 se desvela mera conjectura (ainda que seja de conhecimento público e fato notório esse seu projeto pessoal, diga-se de passagem). O que, de fato, visualiza-se é a sintetização em uma expressão do que representou o empenho da população gaúcha no enfrentamento a esta calamidade que assolou todo o Estado e, no máximo, a concretização do que se prometeu à população gaúcha no período eleitoral que antecedeu seu segundo mandato.
A quatro, porque, ao longo do documentário, malgrado voltada a destacar a atuação do Governador e de toda a sua equipe de secretários, há a participação no documentário, ainda que de passagem, dos Ministros de Estado do Governo Federal (Fernando Haddad, Marina Silva, Walter Goes, etc.), do então Excelentíssimo Senhor Ministro-Chefe da Secretaria Extraordinária da Presidência da República de Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul, Deputado Federal Paulo Pimenta, do então Excelentíssimo Presidente do Congresso Nacional e do Senado da República Senador Rodrigo Pacheco e do Excelentíssimo Senhor Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva quando foram obtidas soluções do Governo Federal para auxiliar o Estado durante e após o evento climático. Ora, se o escopo fosse a promoção pessoal do Governador, seria salutar, prudente e até inteligente destacar o papel de agentes políticos, inclusive de oposição? Por óbvio que não.
A cinco, porque, embora não se negue o tempo do documentário e do seu trailer em que ou o Governador aparece ou relata algum fato (21,83% do tempo total da obra), tal como os trechos acima destacados, a obra audiovisual não pode ser interpretada em tiras, e sim em seu conjunto, justamente para se identificar a sua finalidade e o contexto das cenas.
No caso, considerar esses trechos de maneira isolada e a obra como uma promoção pessoal é deixar ao relento o âmago da obra audiovisual que trouxe ao público: os episódios de salvamento das pessoas com a participação de voluntários, de bombeiros e demais agentes públicos, o acolhimento de pessoas desabrigadas em Centros Humanitários, o fornecimento de novos documentos nas Centrais da Cidadania a pessoas desassistidas que perderam todos os seus documentos, a construção e entrega de módulos habitacionais nos Municípios de Encantado, de Estrela, de Cruzeiro do Sul, de Porto Alegre e de Eldorado do Sul; os relatos das pessoas desabrigadas; os relatos de situações emergenciais de saúde no meio da tragédia (transporte de bebê do Município de Teutônia/RS para UTI no Município de Porto Alegre/RS e transporte de medula óssea para transplante); os relatos da reconstrução de comércios e restaurantes nas localidades atingidas, tal como a Casa do Peixe no Município de Arroio do Meio/RS; os relatos de turistas em visita ao Rio Grande do Sul; e os relatos das mães e das diretoras de escola com a retomada da rotina escolar.
Por conseguinte, ainda que haja passagens do documentário que destacam a posição do Governador e da sua equipe de secretários, o documentário é dotado de caráter eminentemente institucional e informativo, seja de retratação da realidade vivenciada pela população gaúcha durante as enchentes, seja de prestação de contas de todas as atividades administrativas desempenhadas pelos agentes públicos em busca do soerguimento do Estado após este evento imprevisível e extraordinário ("act of God") que só se aproxima de evento parecido ocorrido em Porto Alegre em 1941.
Em situações semelhantes, o Eg. Tribunal de Justiça rechaçou a violação ao princípio da impessoalidade na publicidade, como se haure dos julgados abaixo:
AÇÃO POPULAR. PROPAGANDA. PUBLICIDADE. PROGRAMA TERRA GAÚCHA. PRONUNCIAMENTO. GOVERNADOR. VEICULAÇÃO. PROMOÇÃO PESSOAL LITISCONSÓRCIO. ART. 509 DO CPC. 1. Não é nula a sentença sucinta. A nulidade somente alcança decisões destituídas de motivação, e não as de fundamentação concisa. 2. Na democracia, a publicidade das ações do governo tem por finalidade dar visibilidade e transparência ao exercício do poder. Não se confunde com a propaganda ou marketing político e eleitoral dos partidos políticos e dos candidatos. 3. A propaganda ou marketing político e eleitoral têm por escopo difundir ideias e capitalizar votos. Em tal estratégia, os partidos políticos e seus candidatos podem valer-se de impressos, símbolos, imagens, bandeiras, logotipos, slogans e jingles e, inclusive, criar uma marca. Encerrado o processo eleitoral, ao assumir o poder, é vedado ao governante fazer propaganda ou marketing político às expensas do erário para fins de promoção pessoal e de seu partido. Tal importaria apropriação da máquina pública para fins privados em violação aos princípios da impessoalidade, moralidade e isonomia. 4. A comunicação governamental de atos, programas, obras, serviços e campanhas, que assegura a transparência do exercício do poder, somente pode ter caráter educativo, informativo ou de orientação social e não pode servir de promoção pessoal de autoridades e servidores públicos. Art. 37, § 1º, da CR. 5. A veiculação da publicidade denominada de TERRA GAÚCHA que noticiou a realização de obras, campanhas, programas e serviços patrocinada pelo erário, no primeiro semestre de 1997 não serviu de promoção pessoal dos Réus (Governador e três Secretários do Estado). É que, não obstante o caráter jornalístico emprestado na apresentação das atividades governamentais, o uso de slogans (Boas notícias para o Rio Grande - Estado de Todos) e das rápidas aparições dos agentes públicos, preponderou a publicidade em favor da gestão do Executivo como um todo, cujo exercício era compartilhado por vários partidos políticos, o que afasta o caráter de promoção pessoal de apenas alguns dos agentes públicos. Decisão que deve ser estendida ao litisconsorte cujo recurso não foi conhecido por deserto, forte no art. 509 do Código de Processo Civil. 6. O pronunciamento oficial do Governador do Estado, dias antes da realização de assembleia geral dos professores estaduais para deliberar sobre a decretação de greve, no qual é realizado histórico dos movimentos paredistas e da evolução dos vencimentos da categoria, não se constitui em promoção pessoal do agente público, mas ato legítimo de condução dos assuntos do Governo, para esclarecer a população e demover os integrantes do magistério de realizar mais uma greve no Estado. 7. Configura ato de promoção pessoal do Governador a repetida veiculação, na mídia, durante vários dias, de programa de entrevista encomendada pelo Poder Público para noticiar a assinatura de contrato no exterior com o Banco Mundial. É que a reprodução durante um período revela a intenção de promover o agente público, extrapolando o caráter informativo. Recurso de GERMANO MOSTARDEIRO BONOW não conhecido. Recursos de IARA SILVIA LUCAS WORTMANN, CEZAR AUGUSTO SCHIRMER e ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL providos. Recurso de ANTONIO BRITTO FILHO provido em parte.(Apelação Cível, Nº 70055556799, Vigésima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Julgado em: 24-10-2013).
APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO PÚBLICO NÃO ESPECIFICADO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PLEITO RESSARCITÓRIO. EX-PREFEITO DE BENTO GONÇALVES. ARTIGO 9º, INCISO XII, E ARTIGO 11, CAPUT, DA LEI Nº 8.429/92. ENCARTE INSTITUCIONAL “BENTO MAIS FELIZ”. ART. 37, CAPUT, E §1º, DA CF/88. CARÁTER MERAMENTE INFORMATIVO DAS PUBLICAÇÕES. AUSÊNCIA DE CUNHO DE PROMOÇÃO PESSOAL. ELEMENTO SUBJETIVO DOLOSO NÃO RECONHECIDO. 1. Habilitação da sucessão e prosseguimento da ação, ante o pleito ressarcitório contido na ação. 2. A análise do ato apontado como de improbidade impõe a abordagem da existência do elemento subjetivo na conduta do agente público, ante a inexistência de possibilidade de se inferir a responsabilidade objetiva. 3. Para a configuração das práticas previstas nos artigos 9 e 11 da Lei nº 8.429/92 exige-se a demonstração da conduta dolosa, que não restou evidenciada, na espécie. 4. O acervo probatório constante dos autos não permite concluir que das propagandas institucionais promovidas sob o título “Bento Mais Feliz”, no período de junho de 2011 a junho de 2012, tenha ocorrido ofensa ao princípio da impessoalidade, previsto no art. 37, caput, da CF/88, ou mesmo ao §1º, da mesma base legal, a caracterizar a autopromoção do agente político demandado. 5. Ausência de demonstração de dolo para a configuração da conduta apontada como ímproba. Precedentes do STJ e desta Corte. 6. Não se verifica identidade entre a marca utilizada na campanha eleitoral pelo réu e o logotipo aposto nos encartes como marca da administração, sobretudo, para fins de implicar a intenção de propaganda de cunho pessoal ou de associação direta ao partido político do
demandado. 7. Sentença de improcedência na origem mantida. APELAÇÃO DESPROVIDA. (Apelação Cível, Nº 70067192336, Quarta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Antônio Vinícius Amaro da Silveira, Julgado em: 29-05-2019)
Ao fim e ao cabo, não cabe deferir a medida liminar de imediata retirada do ar do documentário “Todos Nós por Todos Nós” e de seu trailer em todas as plataformas digitais, redes sociais, canais institucionais, emissoras públicas ou privadas, sites governamentais ou vinculados à gestão estadual; e de suspensão da exibição pública ou privada do documentário e do trailer, inclusive em salas de cinema, eventos oficiais e demais meios de divulgação institucional.
Nada obstante, forte no artigo 7º, inciso I, alínea "b", da Lei nº 4.717/65, até para fins de comprovação do direito alegado pela parte autora, revela-se idônea a determinação para que o Estado do Rio Grande do Sul apresente nos autos cópia integral de todos os contratos firmados para a produção, divulgação e veiculação do documentário e do trailer “Todos Nós por Todos Nós”; e informe detalhadamente o montante de recursos públicos já empenhados e os previstos para serem ainda empenhados para a realização, divulgação e manutenção da campanha publicitária ora questionada.
Ante o exposto, defiro parcialmente a medida liminar exclusivamente para determinar a intimação do Estado do Rio Grande do Sul para acostar cópia integral de todos os contratos firmados para a produção, a divulgação e a veiculação do documentário e do trailer “Todos Nós por Todos Nós”; e informar detalhadamente o montante de recursos públicos já empenhados e os previstos para serem ainda empenhados para a realização, a divulgação e a manutenção da campanha publicitária ora questionada, acompanhada de documentação, tudo no prazo de 20 dias.
Intimem-se as partes e notofique-se o Estado para apresentar a documentação.
Intime-se, ainda, o Ministério Público desta decisão (art. 7º, I, Lei nº 4.717/65).
Comunique-se esta decisão a todos os Excelentíssimos Senhores Juízes de Direito das Varas de Fazenda Pública da Comarca de Porto Alegre/RS para fins de averiguar eventual prevenção (arts. 5º, §3º, da Lei nº 4.717/65 e 2º, parágrafo único, da Lei nº 7.347/85). Serve cópia desta decisão como ofício para tal desiderato.
Citem-se as partes rés para, querendo, apresentar contestação no prazo de 20 dias, a teor do artigo 7º, IV, da Lei nº 4.717/65.
Com a resposta, intime(m)-se a(s) parte(s) autora(s) para, querendo, no prazo de 15 dias, oferecer réplica à contestação se houver alegação de fato impeditivo, extintivo ou modificativo do direito (art. 350 CPC), arguição de alguma das matérias enumeradas no artigo 337 do CPC (art. 351 do CPC) ou apresentação de documento(s) (art. 437 CPC).
Logo após, intimem-se as partes para, querendo, especificar e justificar as provas que pretendem produzir, no prazo comum de 5 dias, sob pena de preclusão, consoante orientação firmada pelo STJ (AgInt no AgInt no AREsp 1737707/SP, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 30/08/2021, DJe 02/09/2021; e AREsp 1397825/GO, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/06/2020, DJe 18/06/2020).
No caso de perícia, digam a especialidade.
Pretendendo depoimento pessoal, devem referir a finalidade.
Caso haja intenção de produzir prova oral, deverão apresentar o rol de testemunhas, no prazo de 5 dias, para adequado controle de pauta. As partes devem observar o limite de três testemunhas, conforme art. 357, § 6º, do CPC/2015, devendo qualificar testemunha (art. 450, do CPC/2015), bem como informar sobre qual fato que a prova incidirá, sob pena de desistência.
O silêncio será interpretado como falta de interesse na complementação probatória, a ensejar o julgamento conforme o estado em que se encontra o processo.
Havendo requerimento de provas, venham conclusos para prolação de decisão de organização e de saneamento do processo, a teor do artigo 357 do CPC.
Se requerido por ambas as partes o julgamento antecipado do mérito (art. 355 CPC), intimem-se as partes para apresentar memoriais no prazo comum de 20 dias (art. 7º, V, Lei nº 4.717/65).
Apresentada ou não as alegações finais, intime-se o Ministério Público para exarar parecer final.
Apresentadas ou não as manifestações e/ou o parecer, venham os autos conclusos para julgamento.
Documento assinado eletronicamente por THIAGO NOTARI BERTONCELLO, Juiz Substituto, em 19/05/2025, às 10:03:11, conforme art. 1º, III, "b", da Lei 11.419/2006. A autenticidade do documento pode ser conferida no site https://eproc1g.tjrs.jus.br/eproc/externo_controlador.php?acao=consulta_autenticidade_documentos, informando o código verificador 10082770091v34 e o código CRC 50a6a17d.
5129883-76.2025.8.21.0001
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