ARMANDA PASSOS Retrato texto de Pedro Flor Novembro / Dezembro 2017
SÃOMAMEDE GALERIA DE ARTE
Imitatio, Decorum e Dissimulatio: Retratos de Armanda Passos PEDRO FLOR Universidade Aberta Instituto de Histรณria da Arte / NOVA -FCSH
A resolução do dilema sentido por um retratista, que sempre hesita entre a imitação e o decoro no momento de criar, foi incessantemente perseguida durante a longa História do Retrato no Ocidente ou no dizer de Jean-Jacques Courtine e Claudine Haroche, a História do Rosto. Para a questão da imitação, o artista valeu-se amiúde do próprio virtuosismo e da capacidade (inata?) que detinha em “tirar polo natural”, para utilizar a expressão de Francisco de Holanda. Por seu turno, o problema do decoro ultrapassou-se através do emprego intencional de alegorias e de objectos polissémicos. Todavia, faltava ao artista a aplicação de uma estratégia que lhe assegurasse o sucesso na arte de retratar, ou um modo eficaz de exprimir/ocultar as emoções e sobretudo nos casos em que os modelos revelavam disparidades físicas e/ou psíquicas, isto é, elementos fora do cânone. Daí socorrer-se da dissimulatio que obrigava o autor a sacrificar quer a fidelidade, quer o tão apetecível verismo e, por conseguinte, a optar antes por exibir os atributos éticos e morais que um retratado deveria perpetuamente encarnar. A tríade latina enunciada no título deste pequeno texto condensa as principais características do retrato enquanto género artístico e está presente nos retratos de Armanda Passos: estes são peças eivadas de concessões, tanto da artista como dos retratados. A viagem pelas formas da arte da imitação, do decoro e da dissimulação em Armanda Passos leva-nos a destinos longínquos. Desde logo, num discurso visual inteligível de coloridos vibrantes com certos reflexos metálicos, a supremacia da figura feminina de carnações volumosas, a fazer lembrar as ancestrais Vénus de Lespugue, Brassempouy e Willendorf ou a feição autocrática das Korai, é dominante em toda a produção pictórica e gráfica, de que a presente exposição bem exemplifica, na sequência de outras elaboradas no passado. Talvez Armanda Passos tenha querido fazer dos retratos, agora expostos, uma verdadeira galeria De mulieribus claris (em oposição às mais frequentes De viris illustribus de matriz clássica), ensaiada por Boccaccio no último quartel do século XIV, ou tão-somente uma mostra de faces biográficas de mulheres mitológicas, extravagantes ou de importância histórica.
Além disso, os caminhos trilhados pelo fantástico e o imaginário, em consonância com a exploração do subconsciente e da dimensão onírica (do sonho memorável ou do pesadelo terrífico), tão ao gosto de Bosch ou Dalí, revelam-se através de rostos em corpos antropozoomórficos e não raramente em anamorfose, lembrando-nos que as identidades são por natureza mutáveis. O proveito que se retira na análise das peças exibidas, sem descurar todo o lastro retratístico deixado pela pintora ao longo da sua rica e já vasta carreira, leva-nos à ciência do desenho e à mestria do uso do mesmo no tocante à representação de rostos, semblantes e gestos. A pesquisa e o percurso no campo do retrato não constituem novidade na expressão de Armanda Passos. O Bloco de Desenhos ESBAP ou o notável Retrato de Ricardina na Casa de Camilo (S. Miguel de Ceide) testemunharam os inegáveis méritos gráficos e colorísticos de uma pintora que sempre concede o privilégio à mulher de constituir o eixo estrutural da sua criação artística, nunca esquecendo a presença do bestiário, como bem notou Luís de Moura Sobral. O desenho é fácil e espontâneo mas sempre decidido: os contornos a preto bem definidos e firmes constituem marca indelével da qualidade da invenção. A escolha de Ricardina como mote de um retrato não a julgamos inocente, se atendermos ao facto de ser uma personagem de charneira na afirmação do papel da mulher na sociedade portuguesa oitocentista. Acresce ainda que o retrato é fulcral para o desenlace daquela novela camiliana e por consequência um objecto apetecível para ser representado e utilizado para tal imposição de estatuto social. O retrato assume o papel, por assim dizer, de veículo de afirmação e de elogio do indivíduo, parafraseando Todorov. Aliada a essa centralidade da figura feminina como modelo preferencial, notamos na obra de Armanda Passos a segurança do traço que nunca se enerva e que sublinha volumes e texturas. A sensualidade emprestada às figuras por Toulouse-Lautrec; a firmeza e volúpia conseguidas por Schiele e, paradoxalmente ou não, a linguagem gráfica de Possoz e o ânimo lírico de Ofélia Marques são sensações que associamos
à mundividência da nossa pintora. Por vezes, o intimismo de Sara Afonso e os olhares interpelativos de Eloy podem talvez ser detectados na modelação inventada pela artista. Em suma, em todos estes autores pressentimos a primordialidade do feminino, quer nos retratos de mulheres ousadas e envolventes, quer nos de adolescentes sonhadoras e ingénuas, quer ainda nos auto-retratos plenos de introspecção, ocorrendo o mesmo no imaginário de Armanda Passos. O retrato é tema que não escapa ao pintor. A única frase atribuída em vida a Rembrandt dizia isso mesmo. É assunto que se encontra intimamente ligado à génese da arte de pintar (ou de representar). Assim nos assegurou desde cedo Plínio. Aconteceu com Butades de Corinto e com Apeles, míticos fundadores de um género que perpassou gerações de artistas (pintores, escultores, desenhadores, gravadores, barristas e outros afins). O retrato é sempre ars memoriae. Lembremonos que Hans Belting recupera o pensamento de Gregório Magno, o qual defendia que a pintura, tal como a escrita, induz a lembrança. O retrato assume particular relevância como elemento de preservação da aparência durante a vida e depois da morte. Neste sentido, ele substitui o modelo e supre a ausência do mesmo. Mas o retrato também é retórica política e ostensiva do poder, como ensinamento às gerações presentes e futuras. Quintiliano e Alberti demonstraram nos seus escritos que retratar implica comemoração e é símbolo de presença ou desenho da presença segundo Artur Ramos. O que mais surpreende na retratística de Armanda Passos é, entre outras, a capacidade de explorar a categoria dos apelidados cripto-retratos. Imagens inspiradas (ou porventura baseadas) na vida real que servem de molde e modelo figurativos, potenciando o acto da dissimolatio mas ganhando na tarefa da (re)criação. Os retratos (nem sempre bustos) são fronteiros ou de meio-rosto mas preferencialmente terçados. Como na retratística antiga, Armanda Passos acrescenta ao modelo representado vários sinais e atributos que pretendem talvez acentuar a condição social. Os chapéus ornamentados com motivos zoomórficos substituem assim os antigos hennins
borgonheses de Campin e Petrus Christus ou as coifas e crespinas de Holbein e Hilliard. Depois, as jóias reluzentes compõem a figura. Por último, o colorido profundo, onde não falta o fluorescente sintético, domina o traje envergado pela retratada. Antes eram os brocados e os veludos lavrados das cotas e opas que sobressaíam dos quadros de Memling ou Bronzino. Agora, maquinofacturados, são os tecidos com pinturas e estampas que dominam a composição, ao ponto de serem por vezes o único elemento colorístico em toda a obra. A assiduidade da figuração animal (a acolitar a modelo) parece citar a De humana physiognomonia (1586) de Della Porta, onde se estabelece que o conhecimento do carácter humano pode ser alcançado através da análise e interpretação dos traços do rosto, das dimensões do crânio e dos detalhes fisionómicos. Estes, se apresentarem semelhanças com animais, podem significar que o íntimo do retratado possui justamente as características (qualidades e defeitos) deles mesmos.Testelin ou Hogarth foram outros no passado que exploraram tais paralelismos visuais que só adensam de significado intrínseco, na actualidade, a retratística de Armanda Passos. Neste contexto, estou (quase) certo de que Os macacos retratistas de Von Sandrart são figurações que divertiriam a pintora nas horas vagas. É o mundo às avessas (e do absurdo) que tanto seduz a obra da artista. É a associação entre retratos e animais que está presente na mostra. Num espaço diferenciado e específico, para utilizar a expressão de Prado Coelho (2004), a retratística da exposição alterna entre cenários neutros (brancos luminosos em vez dos negros espessos de Van Eyck e Géricault ou as cambiantes imprecisas de Hals e Hockney) e décors listados de intenso ritmo colorido vibrante e avivado com dourados metálicos que intensificam o timbre da peça, verdadeiro reforço da assinatura da artista que marca sempre presença como instrumento legitimador. Todos os retratos, de silhueta bojuda e de rosto intemporal, buscam porém um ideal (a emancipação feminina?) e parecem ser imagens de condições ou puros ícones de uma nova ordem social e matriarcal. Alteram entre os cenários
íntimos e os espaços de convívio de maior exposição. O olhar terno e reflexivo, por vezes céptico, domina a expressão dos rostos, emprestando-lhes quase sempre melancolia. A graça e o naturalismo destas obras estão antes bem patentes na alegria das cores e nas figuras idealizadas, por vezes atormentadas, com poses convencionais mas sem acusarem a mania dos espelhos e, por conseguinte, optando pela estratégia da justaposição de máscaras e rebelando-se contra a ideia da arte como imitação numa liberdade criativa que chega a ser intrigante. Citando Sylvie Deswarte (2012), “se Armanda se olhar no espelho como o louco de Sebastian Brandt, é para ver a riqueza sem fim da Criação do Mundo, os casais de animais da Arca de Noé, a pomba branca com ramo verde no bico do fim do Dilúvio.”
Breve nota bibliográfica
O sentimento de satisfação e de interrogação assalta o observador que contempla os retratos de Armanda Passos. Tal comprova que o modelo é um simples acidente e que, por ser pintado com sentimento, trata-se antes de um retrato da artista que se confessa nas próprias figuras e não da representação da modelo que escolheu. As figurações eleitas (verdadeiros arquétipos) são imagens minuciosas, poderosas e desconcertantes numa mistura de impressões e sensações inscritas no subconsciente, em permanente diálogo com a imaginação, também ela inventiva, do observador.
NANCY, Jean-Luc, Il ritratto e il suo sguardo, Milano, Rafaello Cortina Editore, 2002.
BELTING, Hans, Likeness and Presence - A History of the Image before the Era of Art, Chicago, The University Chicago Press, 1994. COELHO, Eduardo Prado, “Mulheres do começo do Mundo”, in Armanda Passos Óleos e Guaches, Catálogo da Exposição, São Mamede - Galeria de Arte, 2004. COURTINE, Jean-Jacques e HAROCHE, Claudine, História do Rosto, Lisboa, Teorema, 1988. DESWARTE-ROSA, Sylvie, “Os sonhos acordados de Armanda Passos”, in Armanda Passos - Óleos de pequenos formatos, Catálogo da Exposição, São Mamede - Galeria de Arte, 2012. FLOR, Pedro, A Arte do Retrato em Portugal nos séculos XV e XVI, Lisboa, Assírio & Alvim, 2010. FRANÇA, José-Augusto, O Retrato na Arte Portuguesa, Lisboa, Livros Horizonte, 1981. RAMOS, Artur, Retrato - o desenho da presença, Lisboa, Campo da Comunicação, 2010. SOBRAL, Luís de Moura, “Armanda Passos: um bestiário ao espelho”, in Armanda Passos - Uma retrospectiva, Catálogo da Exposição, Centenário da Universidade do Porto, Casa Andresen / Jardim Botânico do Porto, 2011, pp. 19-26. TODOROV, Tzvetan, Éloge de l’Individu, Paris, Adam Biro, 2000.
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