Caminhos de Memórias - Introdução e Família Almeida

CAMINHOS DE MEMÓRIAS Memorial da Trajetória Escolar e Familiar

CAMINHOS DE MEMÓRIAS

Curadoria Geral, Edição e Revisão: Gabryella de Almeida Sousa Disciplina EDU 221 História da Educação II Professora Tamires Souto Silva

UFV Viçosa, Minas Gerais Graduação em Pedagogia (2º Sem) Matrícula 114465

Foto dos irmãos: Rute, Denyse, Noemi e Daniel da Família Almeida

Introdução 06

Carta ao leitor

A Família Almeida Virgínia

10 12

Deraldino

14

Noemi

20

Hélio

22

Israel

26

Denyse

34

Cristiane

36

Gabryella

A Família Sousa 46

Raimunda

48

Laiane

56

Miguel

60

Liliane

64

Giovana

65

Laura

68

Ozamir, Fabiana e Isadora

A Família Atanásio

ÍNDICE

72

Leandro

74

Letícia

75

Julia

76

Rosana

80

Roseli e Artur

Conclusão

CARTA AO LEIT Caro leitor, confesso que sou uma grande fã de contar e de ouvir boas histórias. Desde criança sou o tipo de pessoa que prefere passar horas lendo livros no sofá, e também, a que espera ansiosamente para nas férias, ir a casa dos parentes e escutá-los contar os seus relatos. Existem elementos fascinantes na escuta de uma boa história — dentre eles, os meus preferidos são os queixos caídos, os suspiros e as lágrimas de emoção. Um memorial é uma ótima ferramenta para a contação de histórias. Ele exige reflexão, análise e conclusão da sua própria trajetória, por isso, não podia estar mais feliz em dividir com você, um pedaço das memórias da minha família.

Destaco que essa atividade, além das motivações pessoais, é de grande importância para a minha trajetória acadêmica e para esta Universidade. Conhecer e reconhecer a história dos meus familiares, e trazê-las para esse ambiente, faz com que tudo que foi estudado pela

disciplina

de

História

da

Educação

seja

corporificado. Nós precisamos entender como a escola e toda a sua bagagem histórica impactou,

e ainda a

impacta, a vida de pessoas reais; e como nós, os futuros professores, precisamos ter contato com essas histórias que vão além das nossas próprias experiências, para a construção do nosso caráter profissional. Eu sempre tive

OR vontade de contar a história da minha família. O

que frequentou, entre outros. Por fim, deixava alguns

conceito de família é uma coisa muito particular e

dias para pensarem sobre as suas trajetórias, com

quando essa palavra é mencionada, cada um produz

base em perguntas sobre como foi cada período e se

uma imagem no seu imaginário que tem um

houveram casos que os marcaram.

significado importante e que é exclusivamente seu.

Quando eu penso em família, eu penso em toda a minha família. Pra mim é impossível pensar somente em mãe, pai e irmãos, porque os meus tios, minhas tias, meus primos, meus avós, também são a minha família. Por isso, neste memorial, resolvi englobar todos, inclusive a família do meu padrasto, que mesmo não sendo de sangue, os considero parte do meu elo.

Ao iniciar esse trabalho, eu entrei em contato com aproximadamente 50 familiares. E só me dei conta do quanto o conceito de família pra mim é amplo quando já tinha mandado mensagem para todos. O que eu posso dizer? Eu sou mesmo exagerada. Entrei em contato por Whatsapp, Instagram e telefone com cada um deles e fiz um modelo de três mensagens.

No primeiro modelo, explicava o objetivo do trabalho e os convidava a participar; aos que aceitavam, eu enviava a segunda mensagem, pedindo que me

Eu deixei bem claro que as perguntas que eu pontuei eram somente para dar um direcionamento para a reflexão e deixei todos a vontade para destacarem os pontos que considerassem mais importantes. A minha avó materna, por exemplo, resolveu apresentar o seu processo de escolarização por meio da influência do seu pai e de como isso impactou na sua infância. Já as minhas tias, possuem memórias vívidas de cada período e com diversas histórias marcantes dos contextos

de

socialização

na

escola.

Eu

fiquei

extremamente comovida com o comprometimento de todos para me entregar tudo com riqueza de detalhes.

O meu avô foi o primeiro a me enviar um documento (sim, um documento, formatado e digitado), com nomes de professores, histórias, datas, tudo no maior capricho! Claro que alguns familiares não aceitaram participar, outros não não mandaram a tempo, mas consegui coletar 24 histórias e estou muito orgulhosa pela chance de contá-las.

mandassem suas informações formais, como: Nome,

Querido leitor, eu desejo que você aproveite,

Ano de ascimento, Escolarização, Lista de Instituições

saboreie e se emocione com cada página. Abraços!

FAMÍLIA ALMEIDA

VIRGÍNIA (Avó)

A minha avó materna se chama Virgínia Maria de Almeida, ela nasceu em Dezembro de 1953 (69 anos) no Estado de São Paulo, onde mora até hoje. A minha avó é uma mulher forte, gentil, polida e extremamente trabalhadora. Assim como eu, ela adora contar histórias, então é incomum que muitos da família, e até de fora dela, já tenham escutado diversos relatos da sua infância, além das suas histórias sobrenaturais e de milagres. Ele se casou com o meu avô, Deraldino de Jesus Almeida, teve 7 filhos e hoje é vovó coruja de muitos netos — e diga-se de passagem, eu sou a mais bajulada, porque fui a primeira.

Mas infelizmente, a infância e o processo de escolarização da minha avó foi muito triste. Ela conseguiu estudar até a 4ª série na Escola Primária SESI (Número 328) , mas precisou sair da escola porque o seu pai não deixou que ela continuasse; então, ela passou a trabalhar mais para ajudar em casa. O seu pai foi o grande agente das suas histórias mais tristes de infância, as quais ela possui marcas até hoje.

“Eu fui uma criança que apanhava tanto em casa, como na escola.

Na escola eu apanhava porque não entrava nada na minha cabeça, fiquei 4 anos no primeiro ano, não conseguia fazer o “A”. Foi muito difícil pra mim fazer o “A”. Fui uma criança muito sofrida, não tive infância, todo dia apanhava, meu pai dava paulada na minha cabeça. Sofri muito. Na escola quando estava estudando tabuada, e não entrava na cabeça, a professora colocava de joelho no milho de castigo.

O tempo foi passando e arranjaram um emprego pra mim. Eu era criança, me colocaram pra trabalhar em casa de família, eu dormia lá e não via nem o cheiro do dinheiro. Até a patroa falava: Nem fui no banco ainda e seu pai já veio atrás do dinheiro.”

“Quando eu não estava trabalhando, eu ajudava

Vem cá negrona, vem aqui, você lembra quantas latas

meu pai a raspar o taco.

Quando ele vinha com

de leite eu gastei com você quando você era

aquelas máquinas gigantescas, eram muito pesadas

pequena? Então vem cá apanhar. E me dava paulada.”

e eu não conseguia usar e ele me dava socos e pontapés e falava que eu era muito fraca. Ele

Por meio das suas histórias, é possível já observarmos

maltratava só as meninas, os meninos não, eles

os aspectos mais importantes do seu processo de

eram bem tratados. Um dia que eu saí do serviço, teve uma batida de caminhão, pegou três pessoas: eu, uma criança e uma mulher. O caminhão entrou na calçada onde estávamos esperando o ônibus. Aí naquele hospital Cristo Rei na Celso Garcia, eu alembro, foi ocorrência daqui e ali e conclusão: demorou tanto pra nos liberarem que os policiais foram levando cada um pra casa. Deu alta pra mim e eu cheguei 3 horas da manhã em casa, mas tava todo

mundo

já

em

casa

comentando:

Essa

vagabunda, acho que não tá trabalhando coisa nenhuma, uma hora dessas ainda não chegou em casa. 3 horas da manhã o policial bateu palma, minha mãe atendeu, era eu que tava com o braço enfaixado.”

“Então tive uma infância muito ruim, não fui igual as outras crianças que brincava, que eram levadas pra brincar, aquela coisa toda. E quando a gente falava assim — O papai vem vindo aí — Todo

escolarização.

Primeiro,

que

ele

ocorreu

entre

meados da década de 1960, no período ditatorial que foi marcado pelo Autoritarismo, Tecnicismo e pelas Ideologias Ocultas. Isso fica evidente nos seus relatos sobre a maneira rígida, tradicional e autoritária que a escola tratava os alunos e pela ausência do brincar.

Além disso, destaca-se a repetição do primeiro ano 4 vezes por conta da dificuldade em fazer as letras do alfabeto.

Nesse

período,

o

primeiro

ano

era

considerado “o ano da alfabetização”, por isso era extremamente comum a reprovação e a evasão escolar logo no Fundamental I (Chamado de Primário na época). Porque com a preponderância da escolha dos

métodos

sintéticos

na

alfabetização,

principalmente do método Alfabético ou Soletração, o foco era na memorização do alfabeto mas no pouco no entendimento do sistema de escrita — o que dificulta ainda mais a aprendizagem de uma criança que sofria abusos físicos e psicológicos em casa.

mundo corria e se escondia, porque ele batia na

Mesmo possuindo uma trajetória tão triste, minha

gente todo dia. A gente não aprontava, todo dia ele

avó nunca deixou de levar um sorriso no rosto. Ela

arranjava um motivo pra bater. Teve um dia que ele

cuidou de mim e jamais me deixou desamparada.

chegou em casa e não tinha motivo, e ele me falou:

Foto de uma escola SESI nos anos 60

Deraldino e Virgínia em 2019

DERA Deraldino de Jesus Almeida, nascido em Novembro de 1953 (70 anos) é o meu avô. Um voraz e curioso leitor. Sempre que eu tinha dúvidas sobre qualquer assunto, não hesitava em tirar um livro da sua enorme estante e me explicar detalhes sobre aquele tema. O meu avô apesar de ser um homem culto, é também muito engraçado e possui sempre um tom jovial. A sua trajetória escolar é marcada por dificuldades, mas acima de tudo, por determinação e resiliência. Hoje o meu avô reside na cidade de São Paulo, mas tudo começou na sua cidade natal: Itabuna, na Bahia.

“Quando eu criança estudei em uma casa na Fazenda

a pé e corria para a escola Mobral e a professora me

Corujão ou Boqueirão, professora Maria de Iezo, essa

aceitava, ela estava ciente da minha situação. De

fazenda ficava entre três montanhas, o livro era o ABC.

Itabuna mudei para o interior de São Paulo, aí eu não

a minha família, nós morávamos no vale, no Sopé

estudava só trabalhava, por cerca de três anos. Voltei

dessas montanhas, na Bahia. Depois nós mudamos

a estudar no Mobral em São Paulo, no Bairro da Água

para Arraial, também na Bahia. Estudei na escola

Rasa em uma igreja católica, depois passei a estudar

municipal, a Professora era Debora Rodrigues de Souza

na Mooca no Colégio Sta. Catarina na Rua da Mooca.

e nas datas comemorativas tinham desfiles, eu

Trabalhava em construção civil como ajudante de

marchava, era muito legal. Era os meus primeiros

pedreiro, não tinha nenhum diploma, certificado.

passos na escola. Estudei um livro chamado cartilha e

Trabalhei de vigilante de 1977-1982, estudava em um

depois meu primeiro livro Bons Amiguinhos.

colégio na praça do Correio. Colégio Washington. Eu

Mudei para Itabuna com minha família, estudei no

saia do trabalho na Rua Bento Freitas e as 19:30

Mobral, não muito tempo, precisava trabalhar, muitas

entrava na escola, fazia o primeiro grau e segundo

vezes eu passava a semana toda trabalhando fora,

grau ao mesmo tempo, hoje fundamental e médio, já

sexta-feira eu saia mais cedo percorria 18 Kms

tinha mais de 21 anos por isso era possível.

LDINO

(Avô)

Mas ainda continuava sem nenhum diploma, em 1982

O processo escolar do meu avô também ocorreu no

surgiu a oportunidade para trabalhar no INPS, ATUAL

período da Ditadura Militar, isso fica evidente

INSS, precisava da quarta série e eu não tinha, fui à

quando ele cita o Mobral (Movimento Brasileiro de

Praça da República no Colégio Caetano de Campos e

Alfabetização) que foi criado nesse regime em 1970

pedi que me desse uma prova a nível da quarta série,

com o objetivo de oferecer cursos de alfabetização

para eu não perder a vaga. Eles me encaminharam para

para jovens e adultos. Do ponto de vista do seu

um colégio na Bela Vista e fiz a prova para o mercado de

processo de alfabetização, é notável que apesar do

trabalho, peguei o certificado e levei na previdência e fui

seu esforço e das suas diversas tentativas, essa

admitido em 01/07/1982 e continuei estudando, concluí

etapa se estendeu para além do previsto. Ele não

o primeiro grau e o segundo grau, atual ensino

cita dificuldades de aprendizagem, pelo contrário,

fundamental e ensino médio. “

fica evidente o seu extremo interesse pela leitura.

Isso nos faz enxergar os impactos dos métodos de alfabetização da época e das ferramentas utilizadas, em destaque as famosas cartilhas de ABC, que eram extremamente artificiais e limitantes.

Porém, apesar das dificuldades e de ter vindo sozinho

para

São

Paulo,

o

meu

avô

com

persistência deu continuidade ao seu processo escolar, concluiu o ensino fundamental, o ensino médio e possui um extenso currículo de cursos profissionalizantes. Pouco tempo depois da ida a São Paulo, ele conheceu a minha avó com quem se casou e construiu uma grande família.

Declaração de prova de escolaridade

NOEMI (Tia) Noemi

de

Almeida

Domingos,

nascida

em

Dezembro de 1986 (36 anos) em São Paulo, é a quarta filha dos meus avós maternos, portanto, a minha

tia.

Hoje

ela

reside

em

Ferraz

de

Vasconcelos, SP, e particularmente, é uma das minhas grandes inspirações como profissional e como ser humano. O processo de escolarização da minha tia ocorreu em meados dos anos 90 e 2000, período conhecido como A Nova República — fase pós ditadura militar que se estende até os dias atuais,

marcado

perspectiva

na

pela

grande

Educação

mudança

Nacional

e

de pelo

surgimento de diversas Políticas Educacionais.

Apesar do desenvolvimento que veio com A Nova República, é impossível não mencionar que o primeiro passo para entender a História do Brasil é termos em mente que quase todos os avanços políticos nos setores educacionais e sociais não foram feitos a partir da “boa vontade” dos governantes. Muitos foram baseados em pressão pública

ou

resultaram

interesses na

implícitos,

reversão

de

assim,

não

desigualdades

estruturais, por isso, demandou e ainda demanda um

esforço

exponencial

dos

alunos

para

alcançarem o sucesso escolar. Esse aspecto fica evidente na história da minha tia e dos demais familiares que serão apresentados a partir daqui nesta seção.

Noemi em 2023

“Eu amava a pré-escola, pra mim as lições eram muito fáceis,

Relatos da pré escola

eu lembro de aprender o alfabeto, mas o que eu mais gostava eram as brincadeiras, tinha um parquinho maravilhoso e na minha visão de criança o escorredor e a balança eram enormes rsrs, os maiores já vi na minha vida. Tinha também uma sala de brinquedos, eu lembro que cada menina pegava uma boneca e uma banheira para dar banho nas bonecas e além disso, tinha a hora de dormir que eu gostava bastante”

“Quando eu estava na pré-escola, eu imaginava como seria ir para o fundamental, essa escola Achiles, ficava perto da minha pré-escola, então eu ficava imaginando e a própria

Relatos do fundamental

professora falava que nós iríamos para o Achiles no ano seguinte. O Achiles era considerada uma das melhores escolas da região, mas eu passei por momentos difíceis nela, foi aqui que eu conheci o racismo e comecei a perceber como

(EMEF Des. Achiles de Oliveira

as pessoas me tratavam diferente, inclusive as professoras,

Ribeiro/Pública e EMEF Senador Lino

que sempre escolhiam para ser ajudante da sala alguma

de Mattos/Pública)

garota branca dos cabelos claros. E era nítido o quanto as outras meninas eram tratadas com meiguice, enquanto as negras tinham um tratamento mais frio, mas isso era o de menos, o que me fazia sofrer eram os xingamentos e humilhações dos colegas de classe.

Cheguei a falar algumas vezes para os meus pais que não queria ir para escola, porque não aguentava. Os alunos me chamavam de Bob Marley e Gabriel Pensador, por causa das tranças que a minha mãe fazia no meu cabelo, eles não estavam me elogiando, me chamavam assim de forma depreciativa e eu odiava e chorava. Acredito que é por isso que até hoje eu não faço tranças no meu cabelo, eu até acho bonito em outras pessoas, mas não faço em mim. Eu queria muito voltar para a pré-escola, era tudo mais fácil e divertido.

A nossa família não tinha muitas condições financeiras, nesta época muitas pessoas já tinham televisão e nós não, mas em um dado momento meu pai comprou uma televisão e o primeiro programa que estava passando era Castelo Rá-tim-bum, desde então viramos fã do programa e da TV Cultura. Nessa época estava passando Chiquititas na TV e era muito legal, eu e as minhas poucas amigas amávamos e sabíamos todas as danças rsrsrs”

“Um trauma que passei..

expectativa que alguém ia chamar a gente para assistir,

foi quando passou o filme Titanic, a escola ia passar

que meus pais pagaram para mim e para meu irmão Boaz

o filme no pátio e teria que pagar, meus pais não

ir ao SESC, porém eles ficaram com medo de deixar a

tinham dinheiro e mesmo assim me enviaram para

gente entrar na piscina e não autorizaram. Nem para

escola naquele dia. Os alunos que não tinham

estar frio naquele dia, mas pelo contrário, o sol estava

dinheiro para pagar, os professores deixaram

extremamente escaldante, muito quente com céu azul e

sozinhos na sala, ficamos todas as horas do filme

nós 2 do vendo as crianças nadando na piscina pela

sem supervisão e sem ter nada pra fazer, apenas na

grade, foi terrível.

mas isso não aconteceu. Outro trauma foi um passeio

Noemi no período do ensino fundamental I

Agora que tenho filho, sempre procuro pagar todos os passeios que a escola faz e se não pago, não envio ele para escola. A própria escola cancela as aulas em dia de passeio ou atividade exclusiva.

No fim da quinta série, tivemos que mudar de casa, o local onde a gente morava era terreno da prefeitura e todos os moradores foram realocados para apartamentos. De São Matheus nos mudamos para São Miguel Paulista, como já era novembro, nossos pais nos levavam de ônibus todos os dias para escola para concluir o ano letivo. No ano seguinte ingressamos na escola Senador Lino de Mattos, a escola foi feita para as crianças do conjunto habitacional que a gente morava. Eu e meus irmãos participamos da inauguração da escola, assim como o primeiro dia de aula dela.

Nesta escola, o racismo ficou mais intenso e para piorar o ensino não era tão bom quanto na outra escola, lembro da professora de inglês escrever algumas coisas na lousa pra gente copiar e depois ficar lendo revista na sala até acabar o horário da aula. Além disso, esse conjunto habitacional abriga pessoas de diferentes favelas de São Paulo, foi um choque e na escola tinha 2 gangues, as dos mais velhos e a dos maiores, era terrível. “

Noemi e sua irmã Rute na Páscoa

Noemi em evento na escola

“Um dia um menino perguntou “cadê aquela sua irmã Pepê e Neném?”, fazendo referência a uma dupla de irmãs da mesma etnia que minha, e que faziam sucesso naquela época. Essa frase que ele disse foi tão simples, mas como as pessoas só colocavam apelido em mim ou me chamavam pelo nome de artistas, de forma grosseira e depreciativa e não aguentei e descarreguei nele todos os anos de sofrimento, chutei ele e gritei e fomos parar na diretoria, eu expliquei a situação e que desde sempre sofria racismo. O mais frustrante foi ouvir da direção e professores que tudo era coisa da minha cabeça (me emocionei ao escrever essa parte). É claro que existem algumas boas lembranças, mas o sofrimento acaba sendo bem marcante.”

“Eu estava saindo da escola Senador Lino de Mattos e entrando para o

ensino

médio

na

escola

Condessa

Filomena

Matarazzo,

considerada uma das melhores escolas públicas de São Paulo, ficando a frente até de escolas particulares. O Filomena tinha uma gestão que parecia com uma faculdade, os alunos tinham mais

Relatos ensino médio

liberdade, mas tinham que arcar com as consequências. Nesta escola eu tive que dar um gás, pois tive um choque em relação ao aprendizado, eu não estava no nível dos outros alunos, mas consegui me adaptar. Foi nesta escola que eu conheci o racismo mais velado/camuflado. Quando as pessoas são maiores elas percebem que não podem ficar humilhando as outras e distribuindo demonstrações de racismo, então muitas até te tratam bem, mas te excluem.”

“O que eu mais me arrependo é de não ter tentando entrar na faculdade antes. A minha vida era a igreja e eu não pensava muito em crescimento profissional.

Um ano antes de entrar na faculdade eu estava trabalhando em Barueri e lá conheci uma pessoa que também era da igreja, porém com a mente mais aberta

Relatos graduação e pós graduação (Universidade Anhembi

para questões profissionais e educacionais, ela que abriu os meus olhos para a importância do estudo e a importância do trabalho em equipe. A partir daí eu

Morumbi/Particular-Bolsa e

comecei a procurar uma faculdade para fazer, mas eu

FCE/Particular e SENAC/Particular)

tinha um filho pequeno e meu marido e eu não tínhamos condições de pagar uma faculdade, então comecei a procurar por bolsas de estudos, não lembro quanto tempo fiquei nessa busca, mas foi bastante tempo.

Depois de muito procurar eu achei um concurso cultural da Universidade Anhembi Morumbi.

Fui a campeã do curso, lembro que falei pro meu irmão Boaz participar e ele até se inscreveu, enviou uma frase, mas não fez o vestibular e disse que esses concursos eram uma “furada”, ainda bem que eu não desisti, concorri com mais de 1000 pessoas e ganhei e ainda fui entrevistada por um repórter da faculdade que publicou uma matéria sobre mim na página da universidade.

Para aprimorar meus conhecimentos na área de treinamento eu queria muito fazer pósgraduação de psicologia organizacional, mas era muito caro, então optei por pedagogia empresarial que está muito bem relacionado com treinamento. As aulas onlines não eram muito boas, apenas apostila e prova, sem aprofundamento, mas mergulhei no conteúdo, já as aulas presenciais eram excelentes e ricas em conteúdo. Era um encontro presencial por mês. A outra pós foi totalmente online e foi uma das melhores coisas que eu já fiz, foi aqui que de fato eu aprendi e consegui aplicar 80% do que aprendi no meu trabalho, foi a partir dessa pós que eu comecei a transformar e a melhorar a minha área de treinamento.

Boaz

Rute Denyse

Daniel

Noemi cantando na igreja com seus irmãos

Fica evidente nos relatos o quanto o processo de socialização escolar da minha tia foi traumático, e como o racismo esteve presente em toda a sua trajetória — no tratamento pelos alunos e pelo próprio corpo docente das escolas. Atualmente, a minha tia, junto ao seu marido, busca conscientizar de forma crítica o meu primo e acompanha minuciosamente a sua escolarização, para que ele tenha o apoio, a força e as oportunidades que ela não teve. A sua trajetória é inspiradora e hoje ela é Analista de Treinamento Sênior e especialista em Educação Corporativa na sede do jornal O Estado de S. Paulo (Estadão)

HÉLIO

(Tio | Esposo da Noemi) Em meados de 2006, minha tia conheceu o seu atual marido Hélio Marcelino Domingos, nascido em Junho de 1976 (47 anos) na cidade de São Paulo, e desde então, suas histórias se entrelaçaram. O meu tio Hélio também é uma pessoa muito bem quista pela família e possui um humor espontâneo. Atencioso, cuidadoso e bem humorado, ele narra o seu processo de escolarização com muita sinceridade e destaca que foi nesse período que ficaram visíveis os seus primeiros traços de personalidade.

“No fundamental, eu estudei na EMEF Olavo de Fontoura (escola pública). Eu era muito bagunceiro, colocava apelido em todo mundo e gostava de ficar no fundo da sala dando risada. Só levava as coisas a sério quando o professor chamava a atenção e me dava reguada.

Lembro da professora Alda, um dia eu joguei uma flechinha que colou na testa dela e ela sentou e chorou. Tinha um professor chamado Deosdete, a gente chamava ele de Deus Negro.

A gente tinha medo da loira do banheiro, e ninguém ia no banheiro, só na hora do recreio.

Uma vez uma menina foi no banheiro e a inspetora queria pegar os meninos que ficavam tentando entrar no banheiro das meninas, essa inspetora era loira e ficou escondida no banheiro, quando uma menina entrou ela passou mal e desmaiou pensando que era a loira do banheiro. A hora que eu mais gostava era do recreio e de ir embora rsrs.

Teve um dia que a minha mãe ganhou uma calça de laicra feminina, mas eu não sabia que era de mulher, então eu coloquei e fui pra escola, eu cheguei atrasado e quando entrei na sala todo mundo disse “olha o Helio de calça de laicra”, eu não via a hora de ir embora. A sala toda começou a cantar “calça de laicra, bonita e sensual, talvez não seja a solução do seu problema”. Me zoaram muito esse dia, mas eu também zoava muito eles. “

“As minhas irmãs diziam que eu era terrível e eu realmente era, aprontava muito.”

Hélio

“No ensino médio, na E.E. Princesa Isabel (escola

O processo de escolarização do meu tio ocorreu em

pública), eu fui bem nos primeiros 2 meses, depois

meados dos anos 80 e 90, bem no início da Nova

conheci o samba, aí eu nem entrava na escola, só ficava

República. Podemos observar que no início da sua

tocando samba e jogando baralho e truco. Só quando

escolarização, as reguadas ainda eram usadas para

estava perto de terminar eu dava um gás, sempre fui

reverter o fenômeno da indisciplina. Entretanto, toda

assim. Peguei amizade com a diretora depois que fui

a trajetória escolar dele nos faz refletir sobre o

expulso da sala, no primeiro dia de aula, eu fiz uma

quanto

brincadeira e todo mundo gostou, menos a professora.

principalmente, o quanto o fenômeno da indisciplina

Chegando na diretoria, levei a maior bronca da vida e

não deve ser ignorado mas também não precisa ser

por ela ser preta ela me chamou de neguinho rsrs. Ela

entendido como um grande desvio do aluno. Muitas

disse: “Escuta aqui neguinho, se você pensa que veio pra

escolas

minha escola para ficar bagunçando, você está muito

extrapolada, como algo que precisa ser combatido

enganado”, depois disso eu me comportei, mas depois

com rigidez e que transparece um problema com o

passou um tempo e eu voltei a aprontar. Eu tinha 5

aluno ou com a sua família. Entretanto, a negação à

minutos da aula de uma professora para fazer stand-up na aula para todo mundo rir, a professora falava que eu deveria ter outra profissão com a comédia, pois nessa época eu já trabalhava como auxiliar de escritório, em uma empresa de contabilidade. Depois de um tempo, encontrei a diretora na praia e ela era mãe de 2 amigos meus que tocavam samba comigo, nós demos muita risada da época da escola. Posteriormente fui convidado para tocar em eventos da escola.”

esses

métodos

compreendem

a

eram

falhos,

indisciplina

de

mas

forma

indisciplina e o desejo de homogeneização dos alunos transparece uma visão distorcida da realidade. O meu tio permanece sendo essa pessoa engraçada, ele não perdeu a sua essência. Ainda bem!

Senão, o que seria de nós sem a sua presença nas festas de família?

ISRA Em 2009 nasceu o meu primo, Israel de Almeida Domingos (14 anos), filho da minha tia Noemi e do meu tio Hélio. O Israel mora em Ferraz de Vasconcelos (SP) junto aos seus pais. O processo de escolarização do Israel ainda está em andamento, ele está cursando o Fundamental II no Colégio Negreiros (particular). Em 2010, ele já começou a frequentar a creche no CEI Indir Arca do Saber (pública), mas chegou a ficar apenas 5 meses porque quando entrou ficou muito doente — pegou conjuntivite, gripe e até mesmo teve que tomar uma injeção muito dolorida por 5 dias consecutivos. Depois disso, a sua mãe saiu do emprego e tirou o Israel da creche para cuidar dele em casa.

Os primeiros passos na pré escola...

“Foi muito legal essa fase, eu lembro dos meus amigos, eu lembro do acampadentro, que eu dormi na escola. Também teve um dia que teve MC Donald's na escola, eu ganhei um Minion.

Teve um passeio que a gente foi para o teatro. Na escola tinha uma piscina, e de vez em quando tinha o dia da piscina, mas eu lembro especificamente de um dia que eu fiquei com muito medo de entrar água, porque era funda, eu estava com um professor que estava ajudando a mergulhar, mas mesmo assim eu tive muito medo.”

AEL

(Primo) Fundamental

Colégio Drummond de Andrade/Particular (2016) “Eu fiquei apenas um ano nesse colégio. Eu lembro de um dia que teve waffles na escola, foi muito bom. Eu lembro dos campeonatos de Judô, da Olimpíada que teve que eu dancei, na verdade não me lembro muito bem desta Olimpíada, mas a minha mãe disse que eu dancei muito bem rsrs. Eu lembro de uma cena engraçada em que eu não comi meu lanche e tive que ficar um pouco mais no intervalo, aí apareceu uma barata e a tia da limpeza estava tentando matar e todo mundo saiu correndo, eu junto com um amigo fugimos para a nossa sala. Esse colégio ficava longe da minha casa, mas perto da casa dos meus avós. Eu ia com meu pai até a casa dos meus avós, ficava um pouco lá de depois a perua escolar me pegava, meu vovô me levava até a perua, na volta a perua me deixava na casa dos meus avós e mais tarde a minha mãe ia me buscar.”

Fundamental

Colégio Negreiros/Particular (Atual) “Entrei no 2º ano nesse Colégio. Eu fiquei muito triste por ter saído do Colégio Drummond, mas ficou muito caro para meus pais pagarem. Do 2º ao 4º ano eu era excluído da turma dos meninos, então eu ficava com as meninas. No meio do 4º ano, meus pais me tiraram do período da tarde e me colocaram no período da manhã, por causa do emprego deles e como eu era novo na sala, eu fiquei mais ou menos excluído, porque achei outro colega que tinha pessoas que não gostavam dele, pois ele era muito arteiro.

Nós ficamos próximos neste ano, nos anos seguintes, eu fiz amizades com outras pessoas. Os passeios e as feiras culturais são bem legais.”

No

Colégio

Negreiros,

Israel

fez

aulas

extracurriculares de Futebol e Robótica. Além disso, estudou Inglês na Wizard por 1 ano e participa do Bombeiro Mirim.

Na Wizard foi uma experiência boa. Lá eu tinha amigos. Eu aprendi um pouco do inglês. Tinha vários eventos em inglês, nós tivemos dia de fazer cookies,

halloween,

dia

das

crianças

e

comemoração do dia das mães. E no Bombeiro Mirim, eu aprendi a manobra para desengasgar alguém, técnica de ressuscitar, primeiros socorros e curativos. Também aprendi comandos dos bombeiros e fiz amizades.

O Israel é o único da família Almeida que teve quase todo o seu processo de escolarização em escolas particulares. A minha tia Noemi e o meu tio Hélio são pais atentos e dedicados, que acompanham os seus avanços e suas dificuldades, são ativos nas reuniões e ajudam o Israel nas atividades para casa. O meu primo é amável, esperto, brincalhão e possui um interesse especial em

tudo

tecnologia.

Israel com seus pais: Noemi e Hélio

que

envolve

cinema,

televisão

e

DENYSE (Tia)

Denyse de Almeida, nascida em Abril de 1989 (34 anos) é a filha caçula dos meus avós. Ela nasceu em São Paulo, onde reside atualmente. O processo de escolarização da minha tia foi um período muito difícil da sua vida, na verdade, toda a sua infância foi. Hoje ela é uma baixinha séria, com cara de brava, com um ar de sempre estar ocupada, mas possui um coração enorme, doce e sensível. Durante a minha infância, ela foi a tia que mais me buscou na escola e que cuidou de mim nas tardes que eu passava na casa dos meus avós. Por terem idades semelhantes, as escolas e o período que estudou são iguais aos da minha tia Noemi. Ela lembra com detalhes todas as histórias que te marcaram e destaca que não gostou do seu período escolar.

“Quando éramos crianças em São Mateus, depois da escola, íamos no OZEM. O OZEM era um clube para pobres, foi criado a partir da necessidade de acolher crianças da comunidade depois da escola, para que os pais pudessem trabalhar melhor. As crianças faziam atividades, oficinas, jogos, brincadeiras. Até passeios

Eu não gostava da época da escola, estou aqui tentando me lembrar de alguma coisa boa mas..

tinham. Era um local público, para as pessoas de baixa renda que não tinham como tomar conta dos filhos, aí os pais colocavam as crianças no OZEM. Nessa época que íamos no OZEM, o bairro todo ia pra lá e depois quando a gente se mudou para são miguel, os pais colocaram a gente em outro local para frequentar depois da escola. Era a guarda mirim, era um clubinho, aprendi algumas coisas lá de exército, às vezes iam caras fardados. Foi entre o 5º e 6º ano que íamos pra guarda mirim. Lá tinham atividades, mas eram pra crianças maiores, não eram joguinhos de criança pequena, era um tratamento diferente, era um pouco mais rígido por ser do exército. Aí aprendemos a bater continência, eram essas coisas, tinham passeios também. Era uma coisa bem comunitária mesmo, pra crianças da comunidade local.

era uma época difícil, por conta do racismo, principalmente vindo dos meninos da escola, as meninas eram até mais boazinhas, mas dos meninos eu sofria muito bullying. E tinha a questão de eu não conseguir absorver as matérias. Era muito difícil de entender o que o professor estava passando, principalmente em matemática. Todas as professoras reclamavam da mesma coisa de mim, independente da série em que eu estava, falavam que eu era muito distraída. Mas mesmo quando eu tentava focar em cada palavra do professor, eu não entendia, eu não conseguia entender, poucas coisas eu conseguia absorver, era muito difícil o que o professor estava passando.”

“Uma coisa que eu sempre fui desde criança

é preocupada.

Mesmo quando eu era criança eu estava sempre

chorar e se desesperar, falando que a roupa dela

preocupada, sempre com medo, hoje eu sei que era

sujou, que a mãe dela ia bater nela. Nisso, muitas

ansiedade, eu sempre fui ansiosa. O que as

crianças foram vendo ela chorando, e foram

psicólogas me falaram depois é que crianças

chegando perto ouvindo ela contar o que aconteceu

ansiosas costumam fazer xixi na cama, e eu fiz xixi

e foi muito rápido, foi juntando muitas crianças,

na cama até a adolescência, eu mijei na cama por

muita gente vindo brigar comigo, me julgando

muito tempo. E não só na cama, eu fazia xixi na

porque eu tinha feito a menina sujar a roupa dela. E

escola também, na roupa, acho que já cheguei a

na minha visão eu lembro que foi muita criança,

fazer cocô na roupa.

pareceu que veio a escola toda me olhando com cara raivosa e brigando comigo.

Mas eu lembro que as professoras me trocavam de roupa ou me mandavam de volta pra casa, isso

Eu não sei, eu acho que era porque era uma menina

acontecia

tinha

branca e delicada e eu negra, prejudiquei ela de

medo/vergonha de pedir para ir no banheiro, eu

alguma forma, e as pessoas já não gostavam muito

ficava segurando e uma hora mijava na roupa. No

da gente que era negra e eu com uma menina

fundamental I isso acontecia muito, mas lembro

branquinha lá do lado chorando. Nisso foi chegando

que uma vez no fundamental II aconteceu também,

muita criança e eu fui ficando desesperada, com

nessa vez as nossas vizinhas já sabiam que eu

medo,

mijava, aí falaram que eu tinha a bexiga solta. Os

pressionando, me xingando.

muito.

Eu

acho

que

eu

com

todos

em

cima

de

mim,

me

pobres já chegam diagnosticando o que você tem né? Aí tudo já concluíam que eu tinha a

Eu não esqueço disso até hoje, me emociono,

bexiga solta. Uma das inspetoras foi lá na sala

agora estou até com vontade de chorar.

falar que não era pra rirem de mim, que era um problema que eu tinha na bexiga.

Uma coisa que me marcou também em relação às matérias é que eu lembro uma vez que estávamos

Eu não sei, mas eu sentia vontade de fazer xixi e

fazendo

um

trabalho

de

matemática,

várias

quando eu me dava conta, eu tinha me distraído e

continhas e a professora falou que podia fazer

já tinha feito na roupa, era uma coisa do nada, era

consultando a tabuada. Eu não sei, eu tinha

rápido demais.

dificuldade pra entender o que as pessoas no geral falavam e eu tava fazendo as continhas e tava

Uma época que me marcou na escola, foi no

fazendo

a

tabuada

a

mão,

eu

não

estava

primeiro ou segundo ano do fundamental, eu

consultando a tabela porque eu não entendi o que a

lembro até hoje, me deixou muito apavorada. Eu

professora falou, que podia consultar. E até os

estava com uma amiguinha minha e ela era até

alunos falavam “olha, ela tá fazendo na mão, não ta

padrãozinha, era uma das poucas que andava

consultando” e a professora disse “Deixa ela! se ela

comigo, ela era branca, cabelo liso preto.

quer fazer assim, se errar..” mas eu não tinha

Ela tava comendo um danone, e ia dividir comigo, e

entendido, era algo simples, mas eu não entendi o

eu não sei se na época eu fiquei tão emocionada

processo e fiquei fazendo a mão. E todos me

com isso, mas eu acabei esbarrando nela e caiu o

julgando, falando que eu tava fazendo errado, mas

danone na roupa dela. E nessa ela começou a

foi um mal entendido.”

Camadas de

INCOMPREENSÃO “A minha mãe sempre me dava cadernetas para os professores anotarem, colocarem avisos. Eu lembro da minha mãe me explicando que era pra eu entregar para o professor a caderneta, pra ele fazer anotação, mas na hora vinham diversas dúvidas na minha cabeça, não fazia sentido pra mim.. Anotação? Anotação de que? Por que eu tenho que entregar? Vinham dúvidas, eu não entendia e não entregava para os professores, eu não entendia como funcionava esse processo e por anos quando os professores precisavam mandar bilhetes e recados, eles escreviam no caderno e a minha mãe brigava comigo porque eu não entregava a caderneta. Mas eu não conseguia entender a função da caderneta. Só depois de anos eu entendi pra que servia.

Nenhum professor gostava de mim, eles me achavam preguiçosa, porque eu me distraía muito, então eles achavam que eu não tinha interesse. Mas uma professora, a do terceiro ano, eu não me lembro o nome mas ela era loira do cabelo curto, ela gostava de mim. Ela me tratava super bem, ela me elogiava, elogiava o meu cabelo, ela me dava roupa, ficava feliz quando eu conseguia ir em passeios, porque nem sempre os meus pais tinham condição de pagar. E apesar de eu ter dificuldades, ela não me desprezava como as outras professoras, com ela eu me sentia acolhida. Não lembro o nome, só lembro que ela era loira.”

Denyse | hoje “Essa professora quando estávamos nos mudando no fim daquele ano, ela chegou em mim e perguntou se eu ia sentir saudades deles na escola, e eu fui bem sincera e disse ’não’. Eu não tinha lembranças boas da escola, era racismo, preconceito, só essa professora me tratava bem.”

“Como eu não conseguia copiar as matérias, uma vez teve uma reunião e os professores falaram muito mal de mim pro meu pai, e ele ’resolveu’ a situação me dando uma grande surra. Depois dessa surra, eu fiquei mais alerta, não me distraia tanto, a professora passava matéria e eu copiava tudo o mais rápido possível. Eu completava as lições, para os professores eu melhorei, mas na verdade, eu só virei uma grande copiadora. Foi a única coisa que melhorou, eu continuei sem entender as matérias, o que a surra me ajudou foi a ficar alerta pra copiar coisas. Os professores falavam: ‘nossa.. não sei o que o seu pai fez, mas funcionou, você está escrevendo as matérias!’ Mas eu só estava copiando mais rápido, se me perguntassem o que eu estava escrevendo, eu não saberia dizer.”

Mais uma vez, podemos notar os impactos do racismo vindo de toda comunidade escolar — dos alunos, professores e demais funcionários — na vida de uma pessoa e como isso pode impactála por muitos anos após. Além disso, o sistema escolar foi extremamente falho com a minha tia no que diz respeito ao seu processo de aprendizagem. Ela possuía diversas dificuldades para compreender os comandos na escola e em casa, e ao invés de encaminharem o seu caso ou aplicarem outras técnicas para facilitar a sua aquisição de conhecimento, a escola a repreendia e negligenciava.

Como o seu processo escolar ocorreu em meados dos anos 90 e 2000, é visível que nessa época já começaram a surgir iniciativas públicas e populares para melhorar o acesso à cultura, como no caso do OZEM - Centro Comunitário e Recreativo, criado em 1985.

Ela cursou o ensino fundamental na EMPG José Lins do Rego do primeiro ao terceiro ano, na EMEF Senador Lino de Mattos do quarto ao oitavo ano e o ensino médio na E.E. Condessa Filomena Matarazzo, todas escolas públicas, além de possuir diversos cursos profissionalizantes.

CRISTIANE (Mãe)

A minha querida mãe, Cristiane de Almeida Atanásio, nasceu e mora em São Paulo. Ela tem 46 anos e é professora e psicopedagoga. Sempre polida e objetiva, ela narra o seu processo escolar a partir de poucas histórias, mas destaca com muito carinho e atenção o seu processo acadêmico.

De 1985 a 1993 ela estudou na escola pública EMPG Desembargador Achilles de Oliveira Ribeiro e cursou o ensino médio integrado ao técnico em Contabilidade na E.E.P.S.G Infante Dom Henrique.

“Desde a educação infantil eu admirava muito as professoras, achava todas bonitas e elegantes, no fundamental continuou essa admiração. Eu ganhei um curso de poesia uma vez, gostava muito de recitar e também gostava de brincar de bambolê, me chamavam de rainha do bambolê. O que me marcou negativamente foi o bullying que eu sofri porque usava óculos e também a minha reprovação no 6º ano.”

Cristiane

“No ensino médio eu queria muito fazer contabilidade.

Prestei um vestibulinho e passei em 14º lugar..

Na faculdade eu não tinha condições de pagar, até tentei uma de graduação de matemática mas não deu certo, depois eu consegui uma bolsa na pedagogia. Eu fui mais pela bolsa, mas aí me encantei pelo curso e decidi seguir carreira nessa área.”

Ao mesmo tempo que cursava a faculdade, a minha mãe trabalhava e me criava. Ela me deixava na casa dos meus avós pela manhã e voltava à noite para me buscar. Nesse meio tempo que ficávamos juntas, ela tentava entender como estavam as minhas notas, se eu estava com alguma dificuldade na escola e me ensinava tudo que podia naquele curto espaço de tempo. Teve um período que ela estudava até em fins de semana para conseguir passar em um concurso público. E hoje a minha mãe possui dois cargos públicos, um na Prefeitura Municipal de São Paulo, e outro, na de Franco da Rocha, além de um currículo impressionante com três pós graduações em Psicopedagogia, Alfabetização e Letramento e Contação de Histórias.

GABRYELLA Eu, Gabryella de Almeida Sousa, nasci em Maio de 2002...

Gabryella com 13 anos na Ocupação Cultural em Ermelino Mattarazzo (SP)

Fui a primeira filha e a primeira neta de ambas as famílias. Eu nasci em São Paulo, mas hoje moro em Viçosa (Minas Gerais) onde curso o segundo semestre de Pedagogia.

Eu lembro de algumas coisas da creche e da pré escola. A minha mãe precisou continuar trabalhando mesmo depois de me ter, o meu pai não ajudava nas despesas de casa e era irresponsável para cuidar de mim, então ela me deixava na casa dos meus avós das 6h da manhã até a noite. Eu lembro que desde essa cabelo, ele é crespo e minha família fazia

Eu fiz o fundamental I e II na mesma escola

trancinhas em mim e me vestiam com as

a EMEF Senador Lino de Mattos, foram 9 anos

roupas do uniforme da escola mesmo.

lá. As minhas tias estudaram nessa escola, elas

época eu tinha muito problema com o meu

estavam no dia da inauguração. Na época delas,

Eu me sentia feia. O meu sonho era ter um

era uma escola nova que tinha sido criada para

cabelo longo, preto e liso e ir pra escola de

agrupar

saia e botinha. Eu tinha uma melhor amiga, o

habitacional, mas na minha época, o Lino de

nome dela era Maria Eduarda, e meus tios

Mattos já era uma das melhores escolas

caçoam até hoje por conta disso porque eu só

públicas da região, minha mãe me colocou lá

falava dessa menina. Eu a admirava demais,

sem nenhuma dúvida de que eu seria bem

ela ia sempre muito bem arrumada pra escola, tinha o cabelo liso e com franjinha e todos gostavam dela. Eu tinha dificuldades em eventos

que

precisava

dançar,

porque

nenhum menino queria dançar comigo e todos queriam dançar com a Maria Eduarda.

O que lembro dessa época também, é que fui alfabetizada pela minha mãe, que estava cursando pedagogia na época, e por uma

as

crianças

daquele

conjunto

tratada, e eu fui mesmo.

Por se tratar de uma escola pública, não conseguia promover para nós um ensino de máxima qualidade no quesito de conteúdos, mas a gestão da escola era ótima e eles nos incentivavam a desenvolver o nosso lado artístico e crítico. Toda data comemorativa tinha eventos e eles também nos levavam para vários passeios. Como não tinha verba, nós íamos a pé mesmo aos passeios, podia demorar o tempo

amiga das minhas tias que chamava Márcia.

que fosse até o local, eles levavam. Nenhum

Ela gostava de me ensinar as letras, de me

passeio pago, todos gratuitos. Hoje, estudando

incentivar a ler, e depois de uns anos, ela se

Pedagogia, eu consigo ver o quanto esses

formou como professora também. Eu já entrei

professores eram criativos, eles faziam de tudo

no primeiro ano do fundamental alfabetizada

para garantir o nosso acesso à cultura.

e sabendo fazer letra de forma e letra cursiva.

Gabryella no Sarau dos Mesquiteiros em 2016

“Eu entendi que eu tinha o direito de me posicionar política e artisticamente, falar como eu me sentia e que a minha voz era importante.”

Eu poderia listar aqui todos os professores que foram bons pra mim, e foram muitos, mas destacarei um deles: o professor Rodrigo Ciríaco. Ele era meu professor de história, eu estava com 12 ou 13 anos, eu era esperta mas eu ainda era muito passiva e conservadora, fazia as coisas e reproduzia falas sem saber o porquê estava fazendo, eu só seguia a manada. E um dia, esse professor interrompeu a aula dele de história, levou os alunos para a quadra e propôs que fizéssemos um sarau de poesia marginal periférica. Foi algo muito diferente, todos se animaram, desse sarau foram desenvolvidas oficinas, projetos, bolsas, concursos literários, eventos com microfone aberto, tudo voltado para o teatro e para a literatura marginal. Esse professor expandiu esse projeto, a minha escola foi uma grande apoiadora do seu trabalho, e hoje, ele se mantém ainda com os saraus e dando

cursos

de

formação

continuada

para

outros

professores. Depois de participar dos saraus, de visitar escolas das periferias de São Paulo, de conhecer autores, rappers, artistas de rua, eu mudei. Eu tirei os óculos do senso comum e passei a enxergar o mundo de forma crítica.

Eu entendi que eu tinha o direito de ter acesso à cultura, à educação, que eu tinha sim o direito de me posicionar política e artisticamente, falar como eu me sentia, que a minha voz era importante e que eu faria o máximo para atravessar barreiras, as barreiras físicas e sociais. E desde então eu luto por isso.

O ensino médio Com essa minha mudança de perspectiva e com o apoio da minha mãe, eu comecei a estudar para fazer um ensino médio em uma escola que não fosse as do meu bairro. E

Agradecimentos e reflexões

assim, em 2017, eu entrei no Instituto Federal de São Paulo (Campus São Paulo). Infelizmente todo o meu ensino médio no IFSP foi muito triste,

eu

fiquei

extremamente

frustrada

Eu sou muito grata à minha família por todo o

nas

apoio ao longo do meu processo de escolarização.

matérias, eu tinha um déficit em vários

Sou grata a minha mãe, por incentivar a minha

conteúdos básicos e eu estava convivendo com

leitura desde pequena. Às minhas tias por me

muitas

escolas

levarem e buscarem da escola e por irem em todos

condições

os meus eventos e comemorações. Ao meu tio

financeiras muito superiores às minhas. Eu

Daniel que me ajudava nas lições de casa. Aos

não me identificava com o técnico que eu

meus avós por todo suporte e ajuda financeira. Ao

estava fazendo, o curso era extremamente

meu padrasto que me levava até o Instituto Federal

focado em programação e os professores

todas as manhãs. E por cada um que fez vaquinha

eram super rígidos, tinham currículos extensos

pra que eu conseguisse comprar os meus móveis

mas uma didática péssima. Também passei

quando vim para Viçosa cursar Pedagogia. Sem

por uma crise de Ansiedade Social, passei a ter

essa rede de amor, nada seria possível. Apesar dos

mais dificuldades para fazer amigos. Com

altos e baixos, eu gosto do meu processo de

muito custo, fui até o fim, consegui me formar

escolarização. Os pilares da minha personalidade

e sei que apesar de todas as dificuldades, o

foram construídos pela escola, pela arte e pelos

IFSP me deixou mais forte de certa maneira,

profissionais

incríveis

mais cascuda, eu conheci o lado ruim de

conhecer.

espero

muitas coisas.

acadêmico, aquela criticidade que cresceu na Gaby

porque

eu

tinha

pessoas

particulares

e

muita

dificuldade

que

vieram

que

tinham

de

Eu

que

tive

muito

do

o

prazer meu

de

futuro

de 13 anos continua latente em mim, eu ainda quero ultrapassar barreiras, mas assim como os meus professores, quero ajudar muitas pessoas a ultrapassarem também. Não é mais daquele velho discurso do “eu consegui, você consegue também!” nós sabemos que as condições não são iguais para todos, mas eu quero usar do que eu aprendi para despertar pessoas, tirá-las da alienação para enxergarem que existem as barreiras, que existem sim injustiças e que elas têm o direito de adentrar lugares que jamais imaginaram ser possível.

EM MEMÓRIA Laurine de Sousa Silva

Nascida em Agosto de 1992 na cidade de São Paulo, Laurine foi uma mulher forte, doce, uma excelente profissional e uma mãe dedicada de 3 lindos filhos. Ela não está mais aqui para nos contar sobre o seu processo de escolarização, mas o seu apoio e o seu amor permanecerá para sempre em nossa memória. Ela foi uma grande incentivadora do meu progresso e dos meus primos, ela acreditou em nós e nos amou até o fim da sua curta vida. Quando vim para Viçosa, ela fez questão de me ajudar financeiramente e me ligar para saber como estavam os meus primeiros dias na faculdade. Desde Abril deste ano, deixa eternas saudades. Te amaremos para sempre, tia Lau.

CAMINHOS DE MEMÓRIAS Memorial da Trajetória Escolar e Familiar