O RIO É NÓIZ

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FICHA CATALOGRÁFICA R341d

Resende, Camilla Victória Oliveira Da chuva ao mar: águas que embalam o Hip Hop. / Camilla Victória Oliveira Resende. - 2020.

95 p. : il. Trabalho de conclusão de curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo – Centro Universitário das Faculdades Associadas de Ensino, São João da Boa Vista, 2020. Orientação: Prof. Dra. Ana Cristina Salviato Silva.

1. Hip Hop. 2. Cultura. 3. Jornalismo cultural. 4. Cultura urbana. I. Resende, Camilla Victória Oliveira. II. Título. CDU 070.448

©2020. O rio é nóiz: Afluentes mineiros no mar do Hip Hop; Todos os direitos reservados a autora.

Projeto gráfico e diagramação: Gabriel Saraiva

Ilustrações: Freepik.com

Um livro reportagem desenvolvido e apresentado como projeto de conclusão de curso para a obtenção do título de bacharel em Jornalismo no Centro Universitário, UNIFAE.


SUMÁRIO 11. 15. 29. 41. 49. 69. 91. 95.

A chuva Sede Nascente Percursos Navegação Fonte Reflexo Sobre a autora



Vamos juntar, formar nosso plano, pleno, pra tomar a cena Alterar o que eles chamam de sina, longe dos pino, livre das pena O Leão de Judá caminha comigo, no meio da bagunça hedionda Aprendi que o legado é eterno, então seja o mar, não a onda.

[...] Michel Dias Costa (Rashid)/ Dada Yute / Skeeter



Professora Eu quero falar de Hip Hop no meu Trabalho de Conclusão de Curso. Tentei disfarçar a surpresa. Camilla não tinha “cara” de Hip Hop; não tinha “fala” de Hip Hop; não tinha “ginga” de Hip Hop. Deve ser fogo de palha, pensei. No ano seguinte, lá estava a Camilla, desta vez na condição de orientanda, determinada a fazer seu livro-reportagem para falar do Hip Hop em sua cidade natal. Qual? A mineiríssima Poços de Caldas. Assim, o que eu achei que pudesse ser fogo, era, na verdade, uma torrente de desejos, sonhos e talento...muito talento. A enxurrada de ideias que me trazia, arrastou-me para longe da minha zona de conforto cultural e intelectual, levando-me a lugares até então desconhecidos. E tinha mais: seguindo seu impulso poético e jornalístico, a autora deste livro resolveu que queria fazer uma narrativa pautada nas águas – ela mesma explicará a vocês nas próximas páginas. E assim, Camilla foi me conduzindo para o centro deste rio largo, extenso e caudaloso que é a cultura Hip Hop. A Pandemia nos jogou para o centro de um denso nevoeiro, mas aos poucos, com remadas fortes e certeiras, o horizonte reapareceu e Camilla me apontou para além dos estereótipos e preconceitos que ofuscaram meus olhos. Sim! O Hip Hop inundou de cultura nova e fresca a centenária Poços de Caldas, transbordando pelo Brasil e pelo mundo histórias de vida, de esperança, de empoderamento e empolgantes expedições. Camilla tem coração do Hip Hop.

BOA LEITURA!



ESSE LIVRO EU DEDICO Aos meus pais, Everaldo e Filomena, que se repartiram em incontáveis avos para sonhar meu sonho com afinco de seus próprios. Ao Vinícius, cujas mãos seguraram as minhas para celebrar as conquistas e suportar os pesares durante todos os momentos compartilhados. Às minhas amigas e familiares que formaram uma rede de mulheres fortes, sempre prontas para oferecer amparo. A professora doutora Ana Cristina, que com paciência e sabedoria soube orientar até os momentos mais ansiosos. A todos os entrevistados que confiaram aos meus ouvidos essas belas histórias. Obrigada!.


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A CHUVA

Antes de fluir imponente desbravando os solos, o rio foi só nascente. E antes da nascente, ainda, foi só chuva. Depois disso tudo é o mar. Transpõe pedras, toca flores, dá de beber aos bichos, recebe de novo a chuva. Atiram-lhe lixo, arrasta o plástico, vê a vida, chora a morte, às vezes seca, outras transborda… e sempre chega ao mar. No mar, o doce se mistura ao sal e vêm as ondas. Cada onda, singular, levando a força das histórias dos lugares que passou, faz parte de um todo gigante. E precisa saber que faz. Com a mesma fluidez que a natureza escreve a história das águas, outras histórias também são escritas. Nas culturas, cada elemento se junta como a chuva que enche os rios, como os rios que chegam ao mar. No Hip Hop, a primeira garoa caiu em solo americano. Era por volta de 1970, o capitalismo devorava a muitos pela selva de pedra nos Estados Unidos. A caçada que enriquece uns, deixa outros às margens, às miseráveis margens. Sem dinheiro, o que chovia no Bronx, bairro de Nova Iorque, era preconceito racial e desigualdade econômica. Houve também uma chuva de problemas políticos. A construção de uma rodovia fez com que setenta famílias ficassem desabrigadas, em sua maioria negros e porto-riquenhos que, como água de chuva, formaram a nascente de indignação. Durante a Guerra do Vietnã, grande parte dos soldados enviados para o combate viviam nesses locais e tinham origem negra ou latina. Com tudo isso, a indignação formou um rio que ganhava força. Os moradores do Bronx sabiam que precisavam se movimentar contra os problemas. E se movimentaram. Para contestar essa situação, dançarinos CAMILLA RESENDE

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de rua imitavam os movimentos dos soldados baleados ou, ainda, as hélices dos helicópteros que eram utilizados na guerra. A arte começou pelo protesto, e o rio do Hip Hop começou a seguir seu curso. O nome foi dado pelo DJ África Bambaataa, inspirado na dança que consiste em saltar - hop, mexendo os quadris - hip. Como nos rios e nas culturas, outros elementos foram se juntando: o DJ, o Rap - ritmo e poesia -, o Break e o Grafitti. Assim, o Hip Hop cresceu com a água de todas essas expressões culturais e se fez mar; banhou o mundo todo. E onde chega, a chuva cai de novo, nasce outro rio, com outras histórias, outras pedras e outras flores desaguando novamente no mar. No Brasil, o Hip Hop chegou na década de 1980 fazendo sucesso principalmente nas periferias. Primeiro nas de São Paulo, depois chegou ao interior. Em Poços de Caldas, no Sul de Minas Gerais, terra de águas sulfurosas, a garoa da cultura encontrou as fontes vulcânicas primeiro com a dança. Depois, todos os elementos se misturaram, evoluíram e evoluem até hoje. No começo, a dança reunia grupos pequenos; depois, ganhou o país e mundo em concursos pela internet ou pela televisão. A música já teve microfone improvisado no quarto e caixa de som emprestada, levada na remada do skate para as batalhas de rap. Depois, equipamentos profissionais, show internacional, batalha com boa estrutura no centro, aula de improviso no bairro. Teve spray mal pintando as paredes e, depois, artes e artes enfeitando muros - e também este livro, ilustrado com recortes das artes espalhadas por Poços de Caldas. Para narrar a história que segue, as entrevistas foram como mergulhos nos trechos desse rio, todos diferentes entre si, mas parte de um mesmo afluente, que se salga no final. 12 O RIO É NÓIZ


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SEDE

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coisas que são, ao mesmo tempo, grandiosas e simples. Por exemplo, a água. Molda paisagens por onde correm os rios e, num simples escorrer pelo vidro de um copo, mata a sede de qualquer ser humano. Nos mares, pinta um planeta inteiro de azul e no corpo dos homens compõe a pequenina lágrima que escorre pelas mais indizíveis emoções. Assim também é a cultura Hip Hop. Da mesma maneira que movimenta corpos dançantes ao redor de todo o mundo, arrepia os pelos do bailarino que sobe ao palco, da primeira à última vez. É por acreditar na beleza do que é singelo e enorme simultaneamente que a jornalista que se forma no decorrer destas páginas busca traçar na pureza do contar de histórias, a grandiosidade de registrar parte de uma história tão importante como a do Hip Hop em Poços de Caldas. A admiração pela arte motivou a também molhar os pés nestas águas e fazer, ainda, com que outras pessoas se sintam igualmente desejosas de desfrutar dos banhos nas ondas do Hip Hop. Enquanto a narração entrelaça os fios de memórias das personagens, cada um conta em sua própria voz a sucessão dos fatos, com as marcas sentimentais do lembrar. Procurou-se respeitar o que sempre fez o Hip Hop, que aumenta o volume da voz de quem os gritos eram abafados desde o nascer da cultura. Até as últimas curvas deste rio, são essas memórias que desenham a rota da riqueza cultural produzida em águas vulcânicas que se juntam ao mar de outras belezas produzidas no Hip Hop.

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TRANSPOSIÇÃO Transpor significa ultrapassar. Quando um rio é transposto, a rota de suas águas é alterada e passa por caminhos que, sem a intervenção, não teria alcançado. Na história de Thailine o Hip Hop cumpriu os dois papéis. A mãe da bailarina viu de perto quando as águas mudaram de rumo. “O Hip Hop foi muito bom na vida da Thailine. Quando ela parou para se casar, estacionou a vida dela também. E quando ela se separou e voltou para o Union Crew, tudo fluiu na vida dela. Ela tinha depressão profunda e eu só tenho a agradecer ao Union Crew por ter ajudado ela. Todos deram as mãos para ajudar. O grupo não é só um grupo de dança. Ali, pra mim, é uma família. A união ali faz a força. É muito bonito. Eu tenho orgulho da Thailine, da Thaisha terem participado dele. A Taisha só não está mais porque não está no Brasil, mas ela estaria se ainda estivesse aqui. A Thailine é outra depois que firmou no Union, ela continua os tratamentos que são prolongados, e nesse processo o grupo só teve a somar na vida dela. Às vezes o que ela desabafa com eles, ela não desabafa pra mim. Eles são irmãos pra ela. E pra mim são filhos. De tanto que eu amo esse grupo”. A vivência do grupo foi importante no processo de mudança, e os espetáculos, verdadeiros marcos da nova correnteza. “O primeiro foi “Os Barracos da Cidade” e no ano seguinte foi “O Sol da Liberdade”. Quando eu entrei no Union e fui gravar Os Barracos da Cidade, estava entrando em uma nova fase, logo após o divórcio, voltando para a casa dos pais. Foi quando eu decidi deixar meu cabelo natural. Eu me desfiz de muitas roupas que eu usava porque o meu ex 16 O RIO É NÓIZ


marido mandava. Eu estava me criando de novo. E no dia 16 de julho daquele ano íamos fazer dois anos de casados. Era muito difícil pra mim, ninguém se casa pensando em se divorciar. Nesse dia eu estava muito mal e a galera do Union não me deixou cair. Mas o Sol da Liberdade fechou um ciclo. Em 2018, quando eu me divorciei, foi muito complicado. Eu já tinha voltado para a casa dos meus pais, ele me pedia para voltar. Eu tive que reformular minha vida toda de novo. Em 2019 foi quando eu estava me acostumando com algumas coisas. E também foi quando, no grupo, começamos a pensar muito sobre o racismo, quando falamos sobre a nossa cor, a nossa história. E quando a gente terminou de montar o espetáculo, o Ricardo me disse “parece que está faltando alguma coisa” e foi quando ele colocou a música Amarelo, do Emicida, no final. A música tem um sample do Belchior que fala “tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro. Ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro.” E, ano passado tinha sido difícil. Foi o ano que eu me divorciei, voltei pra casa… e quando fala esse ano eu não morro, eu chorei ouvindo a música. Quando eu dancei o Sol da Liberdade eu senti os meus ancestrais se orgulhando de mim. Eu não sei te explicar, mas é como se tivesse espíritos vendo a gente. Como se Deus olhasse e dissesse “é isso o que eu quero que vocês façam. Não quero que abaixem a cabeça. Não é porque são negros que você vão abaixar a cabeça. Não é porque são negros que não têm que ser feliz”. E quando falava “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”, pra mim foi muito forte”. Ricardo, o primeiro a sonhar com o grupo, talvez não possa mensurar sozinho o impacto que o Union Crew causa na vida das pessoas. Mas só de imaginar experimenta a

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sensação de dever cumprido. “O Union é literalmente, união. Quando montamos o grupo ficamos muito tempo pensando no que ia ser o nome do grupo, e aí a galera falou que o que mais prevalecia em nós era a união, e ficamos com isso na cabeça. Toda vez que a gente se sentisse mal, pensasse em desistir, a gente se lembra da união. Que estamos ali por uma causa maior. Foi bem isso que a gente pensou. Se eu estiver no grupo, fazendo com que as pessoas que estão lá se sintam bem, felizes, e que estando lá elas tenham vontade de sonhar, eu alcancei um dos meus objetivos. Depois disso, pro futuro eu quero que as pessoas nos vejam mais, que entam mais as nossas lutas. Eu quero que as pessoas conheçam o grupo melhor, que a gente está aqui e precisa estar onde está”.

PURIFICAÇÃO A água, sem nunca deixar de ser o que é, consegue tomar a forma dos espaços que ocupa. E por vezes, transformálo. Em um copo cheio de lodo, se a água pura começa a pingar, ainda que demore, todo o conteúdo do recipiente é substituído e passa a ser cristalino de novo. Foi isso o que aconteceu na história de Igor, que já viu por tantas vezes o Hip Hop ser a água que pinga sobre as dificuldades de muitos e provou deste poder em sua própria vida. “A dança salva uma pessoa. Tem vários casos no nosso grupo de pessoas que bebiam, estavam na droga e hoje estão firmes no grupo sem mexer com essas porcarias. A gente conseguiu ajudar as pessoas a se curarem. Também constantemente a gente tinha ensaio, a pessoa se ocupa com isso e fica sem tempo para essas coisas ruins. Eu não tenho vergonha de falar, eu 18 O RIO É NÓIZ


já tive depressão, cheguei a tomar veneno, fui pro hospital, fiquei internado. Nessa época eu coloquei na cabeça que eu não queria mais dançar. E o pessoal do grupo foi competir em Ilhabela e eu nem quis viajar, achei que eu ia parar. Foram acontecendo vários problemas na minha vida e eu pensei em parar de dançar. Mas aí eu parei pra pensar que o único lugar que eu tinha amigos, que eu podia sorrir, era nos ensaios. Aí eu voltei, comecei a sorrir novamente, a conversar mais. E eu acho que se eu tivesse tomado a decisão de sair do grupo, algo de ruim teria acontecido. Muitos dos meus amigos me mandavam mensagem me chamando pra voltar, dizendo que precisavam de mim no grupo e isso foi me ajudando bastante. Hoje eu não deixei mais espaço para depressão. A gente está sempre ensaiando, pensando em coreografias, em competições, e acaba que a gente começa a ocupar a mente com outras coisas e se esquecendo isso. Claro que tem dias ruins, mas isso são coisas da vida. Aí um manda bom dia no grupo, começa a rir, brincar… tudo muda pra melhor de novo”.

ÁGUAS QUE ACALMAM

São muitas as circunstâncias em que as águas têm poder calmante. Talvez não sozinhas, de fato, mas ninguém está no meio de uma reunião de negócios enquanto toma banho de cachoeira ou escrevendo um relatório enquanto toma banho de mar. A água com açúcar, ainda que seja placebo, ancora-se no poder da crença e também acalma. A águas do Hip Hop têm o mesmo poder. Na vida do MC TLZ foi como um tratamento, de efeito cumulativo: quanto mais perto da cultura, mais sentia os benefícios. “O Hip Hop funcionou

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como uma válvula de escape, é por onde eu posso me expressar, expor minhas ideias e o meu modo de pensar. A cultura me ajudou muito com a ansiedade, de várias formas. Muitas vezes eu ia batalhar, com aquela expectativa, e tinha que esperar minha vez. Batia aquele desespero mas hoje eu já não sinto isso. Levei pra vida o que aprendi nas batalhas de MCs onde eu tenho que manter a calma pra batalhar em público. O Hip Hop ainda me fez olhar diferente pras coisas por conta das letras e das ideias que o rap expõe, por conta da realidade que cada cantor passou e cantou sobre ela. E porque, pra mim, tudo que eu estava ouvindo era a verdade, acontecia e não era contado em outro lugar, daquela forma, a não ser no rap. Foi por isso que mudei até meu jeito de pensar sobre as pautas sociais”.

CICLOS Vapor, líquido e gelo. Depois tudo de novo. A água, em ciclos, muda de forma e mesmo que diferente em cada estado, continua sendo a mesma e sempre pode retornar ao início para começar tudo de novo. Castor, quando vivia na Casa Lab, deu início as primeiras Noites do Vinil e sonhou junto dos amigos que a iniciativa seria bem como a água: mudaria de estado e se tornaria grande, mas sem deixar de ser o que é de verdade. “A gente iniciou a festa e o primeiro a tocar foi o Dough. Fizemos o convite pro DJ Mancha, rolou. O Renan falava comigo que a gente ia deixar a festa grande e que um dia a gente a trazer até o KL Jay pra tocar aqui. Visão lá na frente, mas o planejamento aqui. Quando a gente fechou a casa a festa parou de rolar. A festa ficou sem acontecer sete meses. Um dia eu e os meninos fomo tomar uma junto e um deles começou a 20 O RIO É NÓIZ


pilhar eu a voltar com a festa. Pensamos em lugares e o Diego se lembrou do Teçá. Ele conhecia os antigos donos, e a gente foi lá e apresentou o projeto da festa. O cara ficou animado, que tava com um bar novo. Fechamos a parceria. Voltamos a ativa e aí já tinha mais gente organizando, super foi rolando. E a gente foi com a visão de ser extremamente organizado, de dividir funções, de orçamento, de logística. Se tinha cinco na equipe cada um fazia uma parte e da melhor forma possível pra não sobrecarregar ninguém. As edições passaram e no Natal de 2019 a gente trouxe mesmo o KL Jay. Eu acho que eu fui entender no outro dia, até porque eu consigo ser um profissional muito focado na hora. Eu não consigo transmitir muito essa ideia da emoção, fico muito mais na expectativa da parada funcionar, do que ter essa lembrança. No outro dia eu quase chorei quando a gente foi com os caras tomar uma pra comemorar. Mas no dia eu tava ligado no 220 pra parada ser exatamente como planejamos. No momento eu sempre tento deixar a emoção de lado, e eu fico feliz com isso porque pra mim funciona. E depois que aconteceu eu consigo acalmar, consigo relaxar. E foi muito foda. Cê vê um cara que é ídolo seu e pensar que a gente trouxe o cara pra festa que a gente organiza. É história. Escrevemos história. É pensar que é desse degrau pra cima. A gente nunca ficou se gabando de nada. Eu fico tão focado pra dar certo e nem tenho tempo de ficar se gabando. A gente tomou até umas junto com o KL Jay no camarim, trocamos muita ideia. Presenteei ele com um azeite aqui da cidade porque ele é vegetariano e sei que um azeite combina e ele brincou comigo “você é da culinária?” e eu falei que não, que eu era fuçado, que eu era o que o Racionais me ensinou a ser. E ele me cumprimentou, a gente

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se abraçou, foi um momento bem foda. Ele foi super humilde, falou que todo mundo que quisesse podia fazer fila pra ir tirar foto. Ele parou 15 minutos, deu uma acalmada na adrenalina e foi pra tirar foto com a galera. O que eu fico muito feliz é que as pessoas param pra agradecer. Depois do show do Kl Jay, na semana seguinte a gente já estava planejando o 2020 da festa, fui me capacitar, fiz curso com o Fioti, troquei muita ideia com ele. E tudo isso acontece pelas pessoas que a gente conhece, pelo respeito e carinho que você troca. É fantástico fazer os olhos das pessoas brilharem com os seus projetos. A festa foi dessa forma, o Leve é dessa forma, o Hip Hop em Cine é dessa forma, Portugal foi dessa forma. E seguimos assim”.

QUINTO ELEMENTO Desde a Grécia Antiga foram eleitos os quatro elementos da natureza que perpassam a vida do planeta. No Hip Hop também há quatro elementos principais: O DJ, o MC, o Dançarino e o Grafiteiro. Há, no entanto, quem selecione um quinto elemento e o classifique como essencial para sobrevivência da cultura: o conhecimento. É o pensa Mário, que defende que as raízes devem ser conhecidas e preservados para que os frutos continuem a ser colhidos. “Falam que o quinto elemento do Hip Hop é o conhecimento, mas eu costumo falar que é o elemento zero. Ele tem que estar antes até do primeiro. Não adianta nada um MC querer cantar e só falar merda. Um dançarino que não tem conhecimento só vai rodar até ficar tonto. Um grafiteiro que não passa uma mensagem da hora vai ser só um vândalo. Mas se você utiliza essa ferramenta com inteligência você passa uma mensagem. 22 O RIO É NÓIZ


Se você não tem conhecimento e é um DJ, você não consegue fazer as viradas e colocar a galera pra dançar. Foi o Hip Hop que me fez ir atrás de conhecimento. Eu recebi dois amigos em casa e eles me disseram que eu sou um dos melhores naquilo que eu faço. E eu penso que se as pessoas me veem como um dos melhores, foi pelo Hip Hop. Não foi só porque eu fui fazer faculdade. Quando eu era dono a companhia de dança eu fui aprender a falar inglês. Sozinho. Aprendi com livros doados, passei na prova de proficiência em Inglês da Unicamp e hoje eu faço um mestrado. Eu fiz faculdade, especialização. E se você pegar os temas, desde o meu TCC da graduação foi sobre o Hip Hop. Eu vínculo o Hip Hop a tudo. O Hip Hop é uma cultura tão bonita, tão cheia de coisas, que ele pode ser vinculado a qualquer coisa que você quiser. Quantas aulas eu já dei ensinando geometria pela dança Break. Quantos dançarinos de break cursam educação física? Eu me sinto privilegiado. O intuito é só esse: fazer para molecada o que o Hip Hop fez por mim. Eu sei que tem um monte de menino e menina igual a mim na quebrada, que precisa desse direcionamento e o Hip Hop dá. Às vezes a galera não sente firmeza na escola mais, mas ele escuta um Rap. Ele dança Break que ajuda a ter disciplina. A criança se encanta com a dança e se volta para aquilo lá, começa a treinar, pesquisa, tira as outras coisas da cabeça. O Hip Hop tem esse poder”.

O MAR, NÃO A ONDA Imenso e em movimento. O Hip Hop, sendo mar, banha o mundo toda em grandeza e se movimenta até chacoalhar pessoalmente cada um - afluente de rio - que se interessa

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pela cultura, de quem aprecia a quem produz e rega um pouco mais este oceano. Gabriel Schultz sabe disso. “O Hip Hop transformou a minha vida. eu não sei o que eu faria sem o Hip Hop. Não é que eu viva de Rap, mas eu vivo o Rap. Eu vivo a arte e vivo pra arte. O Hip Hop é o que a gente fez aqui na quadra do São José. É a molecada unindo as mãos pra um grito de guerra sobre o respeito. Hip Hop é acordar de manhã e dar bom dia pra todo mundo da sua casa. Hip Hop é ser uma pessoa que tem respeito na rua e em casa também. Hip Hop é a pessoa que você é quando tá você e você”. E o Hip Hop, imenso e pequeno para se encaixar em todas as situações, se fez presente de forma que merece a interrupção para contar o que não precisou de muito ser dito. Esta foi uma das poucas entrevistas presenciais feitas para este livro e aconteceu bem ao lado da quadra citada por Schultz. Era noite de um dia de feira e as crianças brincavam, conversavam e andavam de bicicleta. Um dos garotos sobre duas rodas, como se tivesse planejado a intervenção, interrompeu a conversa e com um sorriso descoberto perguntou “E aí, tio? E as rimas?”. As batalhas de rima que aconteciam no local foram interrompidas por causa da pandemia de Covid-19. Mas, para a criança sem máscara, Schultz brinca que não estão mais acontecendo porque os meninos estão mais devagar. O menino, de pele preta e roupas de calor cortando o vento gelado da noite, volta a pedalar a bicicleta enquanto responde um concordante “né?” e segue seu caminho de volta ao encontro dos amigos. Depois do exemplo espontâneo da vida real, Schultz sorri e retoma sua fala. “Isso é o Hip Hop. É isso que acontece aqui nessa quadra. O Hip Hop muda sua ótica pro mundo. Trocando ideia com os moleques, pra que eles vissem que têm voz ativa, eles moram 24 O RIO É NÓIZ


aqui. Um dia o TLZ me contou que tiraram a luz aqui da quadra. E eu falei pra ir atrás disso aí. Corremos atrás, e conseguimos voltar com a luz. E aí eu falei pra eles usarem mesmo o quanto puderem. Que isso aqui é nosso. Não é da prefeitura. A prefeitura trabalha pra nós, não o contrário. Eles são os moleques que transformam a parada. Isso é ser Hip Hop. Eu briso que o Hip Hop é como se fosse um indivíduo que não vai ver se você é homem, se é mulher, se é branco, se é preto, se tem deficiência ou se não tem. O Hip Hop não olha sua orientação sexual. Ele aceita quem for, do jeito que vier. E transforma porque te faz ser um ser humano melhor. Assim que eu vejo. Esses dias eu estava descendo de moto e um aluninho me gritou na rua. Isso também é o Hip Hop, eu marquei a vida dele. Talvez ele nem faça Hip Hop, talvez ele pense que Hip Hop é o que ele não quer fazer porque os tios que ensinaram eram chatos. Mas ele foi marcado de alguma forma. Não tem como entrar e se desligar totalmente. Eu já tentei e não deu certo. Eu sempre sinto que é a primeira vez. Igual eu tava na Dog Style é a última que eu rimo.O Hip Hop me abriu muitas portas. Eu me apresentei, fiz shows, meu som tocou em Londres. Eu não fui lá fazer show, mas meu som chegou lá, chegou na França. Isso graças ao poder do Hip Hop. Eu vou ser Hip Hop pro resto da minha vida, onde eu pude ser Hip Hop eu vou ser. Vejo algo ilimitado. As paradas acontecem. Hoje eu vejo tudo como Hip Hop, a arte tá em tudo o que eu faço, na minha tattoo, na minha marca de roupa. O Hip Hop é um mar, pode crer? Não dá pra busca ser só a onda. A onda é muito passageira, do mesmo jeito que ela sobe ela desce. Seja o mar, não a onda. Acho que o Rashid fala isso. Essa que é a fita. Respeito sempre e é isso”.

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Nascente

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Os

nascimentos acontecem dos encontros. Dos rios, quando as águas se juntam; dos homens e dos bichos, quando duas células se unem; e dos artistas, quando os olhos brilham diante da arte. Este livro foi produzido na supracitada Poços de Caldas, no meio da pandemia de Coronavírus e, portanto, não nasceu de muitos encontros físicos, do tipo em que é possível ver de perto as expressões de sentimento do outro. Mas não há distância que impeça os sentidos de reconhecerem a emoção. Foi o que aconteceu em todas as vezes - sem exceção - quando se falou da arte. De olhos fechados não se vê o brilho do Sol quando toca o mar, mas a pele ainda sente o aquecimento e as vibrações da água, e reconhece de diferentes formas a beleza do encontro. “Eu vou te contar uma coisa. A primeira vez que eu vi a dança de rua foi no bairro Cascatinha. Eu estava na casa dos meus pais, era um domingo. Eu ouvi uma música, vi um monte de gente junta e pensei em chegar ali na multidão pra ver o que era. E quando eu vi... eu queria estar ali no meio. Mas eu, porque sou velha, casada, não tenho mais passo pra isso. Mas se eu estivesse nessa geração de hoje eu estaria no Hip Hop. Eu amei a dança, os passos… achei uma maravilha. Naquela época era a Dança de Rua o nome... o Hip Hop aqui em casa tinha que acontecer. Porque eu tenho para mim que começou comigo. Eu fiquei com aquilo na cabeça, fiquei com aquilo no meu coração. Eu pensava em como eles dançavam daquele jeito, era tudo bonito, ensaiadinho, muito legal. Eu fiquei apaixonada e tentava dançar também. A Thailine era pequena. Eu aplaudia, aplaudi de pé e pulando ainda. Dava parabéns, falava que eles eram demais. Eu achei lindo,

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maravilhoso. O Hip Hop começou naquele dia. Eu não me lembro data. Mas eu sei que depois disso aí é que tudo aconteceu. O Hip Hop aconteceu dentro de mim e passou para as minhas filhas. Eu gosto de dança, de arte. Eu só não curto balé. Mas os bboys, o Hip Hop… eu gosto demais! Eu sou fã da dança. Eu amo o Hip Hop. Por isso que eu não perco uma apresentação. E isso que eu sinto, a Thailine também sente. O grupo de dança também sente. Se você entrevistar cada um deles vai chegar na mesma conclusão: todos amam o Hip Hop”. Maira Almeida de Paula, enfermeira de 57 anos, nasceu em Bom Sucesso (MG) e mora em Poços de Caldas há 40 anos. Casada, é mãe de duas mulheres dançarinas, Thaisha Aparecida Almeida de Paula, de 21 anos, e Thailine Aparecida Almeida de Paula, de 29 anos. Ela não soube previamente quem seriam os entrevistados para este livro, mas acertou em cheio quando disse que todos amam o Hip Hop. Dividindo o entusiasmo de contar as lembranças com a fala pausada para caprichar na primeira entrevista que concedeu, Maira narrou o episódio em que se encontrou com a dança pela primeira vez e fez nascer o amor pela cultura em sua casa. A enfermeira trabalha há 32 anos na Santa Casa e já passou por diversas funções e setores no hospital. No ano em que trabalhou na hemodiálise - e assistiu o grupo no Cascatinha - a filha mais velha, Thailine, resolveu que também queria dançar. “Minha mãe conta que quando eu ia em aniversários eu não ficava brincando com as crianças, eu ficava em frente a caixa de som, dançando. Quando eu fiz 10 anos, um moço de uma agência de modelos de Poços disse para minha mãe que me queria como modelo. Eu não queria, não era a minha praia, mas eu fui. Aí estávamos fazendo uma sessão de fotos perto 30 O RIO É NÓIZ


da praça do museu. Foi onde eu vi um grupo, era o The Power Music Dance, eles estavam ensaiando. Eu vi e fiquei, assim, apaixonada. Meu coração disparou, eu me lembro de pensar que era aquilo que eu queria”. Encantada pela arte como a mãe, Thailine procurou formas de aprender a dançar. Pesquisou, descobriu que o que tinha visto era chamado de Dança de Rua e que havia aulas próximo a sua casa, no Centro Social Urbano (CESU), na zona Leste da cidade. Apesar do amor ter sido à primeira vista, o primeiro contato com a prática foi decepcionante para ela. Bastaram poucos passos para que o professor de dança da época dissesse que aquela não era a atividade adequada para ela e que deveria procurar outro estilo. Decepcionada, se afastou da dança. Algum tempo depois, no entanto, algumas amigas passaram a frequentar as aulas e, insistentemente, convidavam Thailine para ir também, sob o argumento de que o antigo professor havia sido substituído por outro, mais receptivo e atencioso. Relutante, mas interessada, ela foi só para assistir. “Assim que eu fiquei por uns três meses. Eu ia, assistia as meninas dançarem, mas não participava. Foi aí que eu vi que eu tinha uma memória fotográfica, não sei. Mesmo sentada, eu aprendia os passos. Só de olhar. Eu tinha essa facilidade, então eu treinava em casa. Um dia uma amiga me disse para tentar, porque era um professor mais legal. Era o Luís Fernando, o Nando. Eu me lembro que eu fui com o coração apertado, chamei ele e disse que eu queria dançar. Na hora ele não deu muita moral, falou que eu podia dançar. Então ele chamou as meninas, que já estavam dançando fazia tempo e eu no canto dancei a coreografia toda. Quando viu, o Nando me perguntou se as meninas tinham me passado os passinhos. Eu disse que não,

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que tinha aprendido vendo os passos. Então me pediu para eu mostrar o que eu sabia. Eu dancei a coreografia para ele, que respondeu que eu levo muito jeito. Daí eu comecei a dançar. Mas era no Centro Social Urbano, um projetinho pequeno. Só que o Nando dançava no The Power Music Dance. Na época era o único grupo de dança de rua na cidade e já estava muito lá em cima. Eu era menor de idade, o Nando me disse para conversar com os meus pais para tentar entrar no grupo, porque eles viajavam para competir em outras cidades. Eu comentei com os meus pais e eles ficaram com medo, eu nunca tinha ido nem pra Campestrinho sem eles. Mas deixaram, e eu fui. Entrei no The Power Music Dance, mas para ir para as competições tinha uma peneira. A gente dançava a coreografia inteira, sozinha, na frente do grupo todo. Se você dançasse bem, era selecionado para a competição. E eu me lembro que, dos novatos, eu fui a única que passou na peneira. Minha primeira competição foi no Rio de Janeiro. Eu já estava com 14 anos e a partir daí eu nunca mais parei”. O Hip Hop nasceu nas ruas, foi primeiro praticado e só depois compreendido em termos e descrições. Em meio às águas sulfurosas de Poços de Caldas, começou com a dança. No final da década de 1980, não tinha nome específico, mas tinha passos ensaiados nas ruas e apresentados nas discotecas onde tocavam sucessos da música Black e do Rap. Em 1987, depois de dançar em incontáveis bailes, Régis Messias Reis fundou seu primeiro grupo de dança, ainda chamado Black Funk. Três anos depois, agora como The Power - e mais tarde como The Power Music Dance, o grupo se tornou o pioneiro da cidade. Colecionando competições e prêmios, o The Power Music Dance seguiu sob o comando direto do fundador até 32 O RIO É NÓIZ


2010, quando algumas pessoas saíram do grupo e ele pensou em desistir. “A gente falou ‘pai, dá uma oportunidade para a gente. Deixa a gente puxar um ensaio’. Eu tinha 10 anos na época. Ele relutou um pouco, mas fomos. Depois de observar, meu pai achou que a gente levava jeito. Foi aí que surgiu a era dos irmãos. A gente começou a coreografar e continuamos a caminhada com o grupo. Até hoje somos nós na frente, com o meu pai nos bastidores”. Quem narra o episódio é Igor Christiano Reis, filho de Régis e um dos atuais coreógrafos do grupo. Com pai e mãe dançarinos, o amor pela arte veio embutido no DNA. A história de Igor e seus irmãos se mistura com a do The Power Music Dance, bem como a de tantos outros personagens do Hip Hop poços-caldense. No rio da história, o The Power Music Dance é como um trecho cheio de cascalhos que se espalharam com o fluxo da água por diversos pontos do percurso. Na vida de Mário Castro Júnior, por exemplo. Arte Educador premiado, Bboy e pesquisador, sua história começou em terras paulistas. Tem 42 anos, nasceu em São Caetano, mas morou em Santo André até a pré-adolescência. Aos 11, junto dos amigos, saía de casa para pixar muros. No que considera um momento de sorte, teve uma crise de asma e bronquite e precisou ir ao médico no Centro de São Paulo. “Nesse dia tinha uns caras dançando break no chão e, daquele jeito, eu nunca tinha visto. Foi muito legal ver os caras rodando no chão ali na minha frente, uns caras estilosos, de roupa colorida, de abrigo. Assim que eu vi, falei para minha mãe encostar lá pra gente assistir. E estava na moda. Ali que eu descobri o que era break e contaminou, eu queria fazer. Cheguei em casa, arrastei o sofá e comecei a tentar dançar. Gostei do

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Hip Hop sem nem saber o que era, só sabia que era Break”. Não demorou até que Mario descobrisse um grupo de rapazes mais velhos que dançavam Break no bairro onde morava. Os mesmos amigos que pixavam muro, agora se reuniam para ver a dança. De espectadores, passaram a praticantes: montaram um grupo - chamado de crew - ao qual deram o nome de Bad Boys. No auge dos ensaios, a família de Mário se mudou para Poços de Caldas. “Minha maior preocupação era se aqui ia ter dança. Eu descobri que aqui não tinha um movimento igual ao de São Paulo, mas a galera dançava. Aqui também ninguém sabia o que era o Hip Hop, a dança era diferente. O termo Dança de Rua veio pro final dos anos 90. No início da década era dançar passinho para ir em discoteca, não tinha Dança de Rua ainda”. Como Régis, de baile em baile, Mário também se tornou um integrante do então The Power e deu início à caminhada de sucesso - e muito trabalho - com a cultura. A fluviometria da história do The Power Music Dance foi longe, depois de ser por diversas vezes campeão do Brasil, o grupo transpôs o oceano e foi competir nos Estados Unidos, na maior competição de Hip Hop do planeta. Ricardo estava lá. Dançarino e fotógrafo, Ricardo Batista Junior já registrou, pelas lentes de sua câmera, diversos trechos emocionantes da vida de muitas pessoas, mas foram seus olhos que armazenaram os detalhes de cada episódio em que navegou nas águas da dança. Hoje ele é coreógrafo do grupo Union Crew, que também brilha em apresentações nos palcos e ruas e, através de outras lentes: as que gravam vídeos de coreografias do grupo para ganhar a internet. Muito antes disso, quando Ricardo tinha 8 anos, sua mãe 34 O RIO É NÓIZ


o levou para assistir uma apresentação de dança de rua e, a partir daquele momento, o coração de criança soube que a arte seria um caminho inevitável. “Na primeira vez que eu vi a dança já me interessei e pensei que eu queria fazer aquilo quando eu crescesse. Eu comecei a ver uns grupos da cidade quando pequeno e uma amiga minha tinha começado a dançar também, então eu quis saber como fazia pra participar. Com 15 anos eu entrei para o grupo de dança da escola. E eu tinha receio… a gente fica com um pouco de medo de como seria visto, o Hip Hop era muito marginalizado, as pessoas olhavam a dança de rua e achavam que a gente era drogado. Mas quando a minha mãe disse que eu podia ir, entrei de cabeça. Aí fluiu”. Por vezes, mesmo quem não seguiu pelo caminho da dança passou por ela em algum trecho deste rio. Robson Leve, ou Castor, tem 25 anos, é rapper do grupo Leve e produtor musical. Conheceu o Hip Hop na infância, e o Power Music Dance também estava lá. “Através de projetos sociais eu tive mais contato com o Hip Hop. Eu nunca tive uma boa coordenação para dançar, era mais para jogar futebol. Me aventurei primeiro na dança, acho que esse é um caminho que muita gente faz por conta até da vivência com os nossos professores nesses projetos. Eu fazia o PMJ no bairro Santa Maria e tinha o Reginho, professor do Power Music Dance. Os filhos dele eram amigos nossos, a gente jogava bola junto. E ele sempre chamava a gente pro grupo. O dia da escola que eles iam era o dia super fera. Inclusive a minha primeira letra de Rap foi dentro do projeto. A professora passou para a gente que o tema era higiene e a gente podia desenhar, fazer o que quisesse. E eu ouvia muito Rap, pensei em me aventurar e escrever. E foi muito

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rápido, bem inocente, mas a intenção foi boa para a época”. A primeira chuva de Hip Hop é derramada, para muitos, com a dança. Como criança que se diverte brincando na rua durante uma chuva de verão, Gabriel Schultz, rapper, tatuador e dono de uma marca de roupas tem 25 anos e na primeira infância também se banhou nas águas da cultura Hip Hop. “Quando eu era criança, chegava em casa e a minha irmã estava ouvindo Rap. As vezes a gente passava na frente da casa de uns manos lá do Parque Pinheiros e sempre tinha uns caras cantando ou ouvindo um Rap na rua de casa. A gente brincava de cantar Rap na rua. Tive contato com a dança no Recriança. Foram muitos estímulos de Hip Hop na infância, sempre esteve presente. Mas o mais marcante era a brincadeira de cantar Rap na rua e o que a gente aprendia nas aulas de dança do Recriança, no contraturno da escola”. Tem criança que brinca em enxurrada depois que a chuva cai. Vinicius Paiva dos Anjos se banhava nas enxurradas do Rap. Hoje, aos 22 anos, o MC TLZ, como é conhecido, é fundador de uma das mais jovens batalhas de Rap de Poços de Caldas, a Batalha da Quadra. Antes de saber rimar no improviso, ele ouviu os maiores sucessos da rima em uma jukebox. “Meu primeiro contato com o Rap foi aos 7 anos de idade, eu morava aqui no São José mesmo, só que em outra casa, a casa onde eu passei a maior parte da minha infância. Lá tinha 3 bares e um campinho onde a molecada jogava bola, geralmente tocava Rap na máquina do bar, e eu ficava ouvindo… tinha Racionais, Ndee Naldinho… Eu tinha 3 melhores amigos e depois dessa fase dos 7 anos, eu meio que me acostumei a ouvir Rap. Um dia eu fui na casa do Lucas, um dos amigos. Ele tinha um computador com internet de 36 O RIO É NÓIZ


modem e uma caixinha de som. Eu ia para lá e ele colocava MV Bill, Favela Sinistra, voltava para o Ndee Naldinho, para os Racionais… eu já tinha viciado nas batidas. Achava envolvente, a voz deles muito grossa, com umas letras pesadas. Conforme fui crescendo, fui começando a entender que o Rap que eu ouvia era Rap de protesto e eu fui procurar saber. A partir desse “procurar” eu fui descobrindo muita coisa. Já tinha ouvido muitos dizerem que era coisa de bandido, que não era música de se ouvir, e eu comecei a ir procurar o porquê “não era música de se ouvir”. E eu não achei nada, nenhum motivo. Mas de tanto procurar, hoje vejo que essas pessoas estão erradas. As letras falam das dificuldades, dos preconceitos, são verdades que ninguém gosta mesmo de ouvir”.

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PERCURSOS

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pois da nascente, o rio não sabe o que o espera. As águas que se uniram saem a desbravar florestas, cortam cidades, recebem os banhistas, testemunham alegrias e tristezas. É o percurso que constrói a história de um rio. Na Amazônia, por exemplo, quando os rios Negro e Solimões se encontram, o contraste acontece porque cada um carregou, até ali, uma história diferente, mesmo dividindo o mesmo espaço naquele momento. O Rio Solimões, de água clara e barrenta, nasceu em lugar montanhoso e carregou terra que arrancou das montanhas quando desceu. O Rio Negro, de águas escuras e limpas, tem essas características porque nasceu em um lugar baixo e não levou nenhum sedimento em seu percurso. Assim também acontece com quem navega pelo Hip Hop. Mesmo que dividam espaços e se encontrem muitas vezes pelo caminho, cada pessoa leva consigo suas próprias histórias e, no fim do percurso, o rio todo deságua no grande mar da cultura urbana. Mesmo quando o trecho do rio é o mesmo, cada um segue com suas próprias cores e particularidades. Houve, há 10 anos, um grupo de dança da Igreja Metodista de Poços de Caldas. Ricardo e Thailine participavam do grupo, que tinha integrantes talentosos, mas nenhuma vitória até outubro de 2010, quando foram para o Meeting Hip Hop, um campeonato em Indaiatuba (SP). “Foi na época em que minha mãe ficou doente. Ela ficou muito ruim, teve pneumonia. Os médicos já tinham chamado a família para o hospital. Eu tinha 19 anos, a Taisha tinha 8. Minha mãe foi parar no hospital na semana que a gente ia viajar. Eu lembro que ela não conseguia muito falar, e o que

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ela conseguia pôr para fora era me falando para ir na viagem. Eu disse que não ia, mas ela pediu por favor para que eu fosse. Eu saí daqui na madrugada de sexta para sábado, viajei para Indaiatuba”. Maira se lembra bem do episódio. “Em 2010, dia 7 de outubro, eu estava de folga. Eu não tinha tido nem uma gripe. Do nada eu comecei a passar mal, fui para a policlínica, segui ruim para a emergência da Santa Casa, e fui para o CTI. Lá, eles me deram 8 diagnósticos. Pediam exames, davam medicação e não surtia efeito. Por fim, acharam que eu estava com H1N1. Como nada surtia efeito, chegou a um certo ponto em que eles me desenganaram. Não tinha mais o que fazer por mim. Cada vez que eu lutava era em vão. E eu sabia que no dia seguinte a Thailine tinha que viajar para a dança. Como ela ainda era menor, ela pediu para me visitar e, pelo meu quadro, deixaram. Eu falei pra ela da viagem e ela disse que não ia, eu insisti para ela ir. Que em cada gingado ela colocasse toda a fé, toda energia positiva para mandar pra mim. ‘É na dança que você vai fazer isso por mim. A dança é como uma oração e você vai fazer isso por mim’. Muita gente da minha família foi contra eu deixar ela viajar quando eu estava naquele estado crítico. Mas eu pedi que ela dançasse e depositasse a energia positiva em mim. Pedi para que o grupo, junto, orasse por mim. Pedi que ela fizesse isso por mim”. Thailine fez. “Eu não levei nem roupa. Fui com a roupa do corpo e o figurino em uma sacola. O emocional lá em baixo. Aí quando entramos na van, o Ricardo, que era coreógrafo do Peace, me disse: eu não sei o que a gente está fazendo aqui, mas Deus manda te falar que ele está cuidando do que você está pedindo. E outro moço chegou e me disse: cuida das coisas de Deus, porque Deus está cuidando das suas. Até então a gente 42 O RIO É NÓIZ


não tinha pegado primeiro lugar em nenhuma competição. Fomos orar de novo e caiu a palavra de Davi e Golias, que Davi matava Golias, o gigante. E essa é uma competição muito famosa. A gente era o grupo mais novo, ninguém botava fé, éramos só o grupinho de igreja. Ganhamos o primeiro lugar. Antes de eu sair para viagem, minha mãe estava muito ruim, ela nem falava. Quando eu voltei, a minha mãe estava sentada em uma poltrona, comendo gelatina. Foi marcante demais”, afirma a filha quando, emocionada, revisita as memórias. A mãe também se emocionou ao falar do episódio, marcado por dor, mas também por muita fé e superação. “Depois que as visitas foram embora, o médico me perguntou onde estavam os exames que eu tinha feito na policlínica, porque eles não sabiam mais o que fazer por mim. Eu falei aquilo tudo para a Thailine quase sem voz. E então eu apontei onde estavam os exames, junto das minhas roupas. Foi onde eles pegaram e viram que o raio-x, que estava muito ruim. Ele pediu outro. Foram feitos três vezes. Cada vez que ela fazia, mais nítido aparecia que eu estava com pneumonia bacteriana e virótica. Aí foi quando eles aplicaram os remédios certos e eu comecei a melhorar. Fazia tratamento com fisioterapeutas… foi onde eu fui melhorando. Quando a Thailine chegou da viagem, a primeira coisa que ela quis saber foi de mim. Quando eu fui pro quarto, a Taisha e a Thailine foram me ver. A Thailine me contou que tinha feito o que eu pedi pra ela. Que havia emanado toda energia positiva para mim. Eu agradeci e houve essa parte bonita. Mesmo eu estando desenganada, deixei ela viajar para que ela soubesse que nada no mundo pode parar o sonho dela, nem isso. No dia seguinte, ia ser uma dança importante para o grupo,

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não podia faltar bailarino. Eu me desprendi totalmente para ela ir dançar porque eu sei que, por mais que eu estivesse daquele jeito, para ela era importante. Eu sabia que o mais importante era eu, mas eu pedi para ela ir e me colocar nas orações, porque eu tinha certeza que Deus ia ouvir. E ouviu”. Para Thailine e Maira, este trecho do rio foi marcado por águas turbulentas, que movimentaram medos e angústias, mas depois se acalmaram e voltaram a brilhar sob a luz de um sol de esperança. Já para Ricardo, a competição foi a calmaria, pois a turbulência só viria depois. “Ficou uma lembrança boa de 2010. Já tinha três anos que, com o grupo da igreja, a gente ia para o Meeting Hip Hop, que tem relevância nacional. A gente ainda não tinha ganhado nada nessa competição, mas desde 2007 a gente ia e estudava o que precisaríamos fazer para ganhar o evento. E em 2010 conquistamos o primeiro lugar. Foi a minha maior conquista da época. Pensa bem, um grupo de igreja ganhou uma competição nacional, levando uma mensagem super do bem, falando mesmo do amor de Deus”. Depois disso, no entanto, as águas se agitaram no grupo. “A gente competiu, foi muito legal, mas eu tive que sair desse grupo porque eu era gay. Eu tive que abrir mão do Peace, dos meus amigos, porque a igreja metodista não me aceitava como eu era. Se reuniram com o diretor do grupo e decidiram que eu não podia participar do ministério porque eu sou gay. Aí chegou uma hora que eu decidi que eu não precisava disso mais. Piquei o pé. Era difícil dançar na igreja. A igreja contribuiu com muita coisa que fodeu com a vida de muita gente. E dançar é coisa da Bíblia, Davi dançou. Eu não entendia como eles podiam não aceitar a dança. 44 O RIO É NÓIZ


E eu empurrei com a barriga durante muito tempo. Aí depois que eles não me quiseram eu saí e foquei em Campinas”. Na cidade paulista, Ricardo foi membro de uma companhia de dança que lhe rendeu muitas oportunidades: dançou no Show da Virada da Rede Globo, participou de um comercial para uma marca de carros e foi até para o Rio Grande do Sul numa estada de uma semana para gravar um clipe. “Passou um pouco, eu voltei pra Poços. O Power Dance pediu pra eu montar a categoria adulta, beirando 2014, e eu fiquei no grupo por mais três anos, período que eu fui para o mundial, em Las Vegas, em 2016. Ganhamos eventos importantíssimos e isso deu uma vaga para viajar para o Estados Unidos”.

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nas Gerais não tem mar, o que não quer dizer que quem se acostumou com os rios não saiba lidar bem com as ondas, pelo menos no oceano Hip Hop. Em Poços de Caldas, os bailarinos do The Power Music Dance trabalham duro nos ensaios. Por isso, pelo Brasil, são muitas vezes destaques nas competições. O grupo não cobra pelas aulas e recebe crianças a partir de 8 anos para os ensaios na quadra da escola Júlio Bonazzi, no bairro Santa Augusta. “Pode chegar lá ou mandar uma mensagem que a gente passa os dias do ensaio. É só chegar e começar a dançar. Pra continuar é só ter interesse, querer fazer parte. E quando uma pessoa aprende a dançar não tem como não ter interesse. É muito gostoso, a gente vai em cidade de praia, se diverte bastante, além de competir em competições que garantem vaga para fora do país. É muito bom mesmo”. O entusiasmo de Igor e dos irmãos, somado à dedicação da família pelo grupo fez com que o The Power Music Dance alcançasse títulos de seleção brasileira de Hip Hop em diversas categorias. “O HHIBrasil (Hiphopinternacional Brasil) é o que dá vaga para o HHI (Hip Hop International Championship). Nas quatro vezes que fomos na categoria megacrew, que tem no mínimo 15 e no máximo 40 participantes de qualquer idade, viramos seleção brasileira. Fomos seleção brasileira também nas categorias junior e crew adulto. Todos os grupos do Brasil vão e só os melhores chegam no mundial. Todas as vezes que fomos disputar nós conseguimos a vaga. Dá pra ver que o nosso grupo está num nível de mundial. Só dois grupos de cada modalidade são selecionados para o mundial. Se tiver 200 grupos, são só os dois que passam. Sempre tem muita gente

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competindo e estamos conseguindo ganhar. No prêmio tem camiseta, medalha, é bem legal”. Igor se lembra das vitórias cheio de orgulho e da mesma forma se orgulha das batalhas que foram necessárias para alcançá-las. “O problema é que a dança não tem incentivo que nem o futebol, por exemplo. Nós fomos quatro vezes seleção brasileira em uma competição bem acirrada e, mesmo assim, a gente não tem ajuda com nada… tem que tirar passaporte, visto, comprar passagem. É muito dinheiro. Se no Brasil tivesse uma visão para a dança igual sempre tem pro futebol, a gente teria uma dança muito mais forte do que já é. A gente participa de projetos, mas muitas das vezes não passa no edital; as vezes, quando passamos, é pouco o dinheiro e só dá pra comprar um tênis e uma camisa do grupo para cada integrante”. Das quatro vezes em que foram campeões brasileiros, em uma conseguiram viajar para a etapa internacional da competição. A conquista foi um marco na história do grupo, mas muito mais do que isso, deixou para sempre suas marcas no coração de cada bailarino que entrou no avião e desembarcou para viver um sonho. “O mundial foi uma sensação muito gostosa. Quando a gente desceu e viu a plaquinha de ‘bem-vindo a Las Vegas’ foi incrível. A gente nem acreditava que estava lá. Muitas pessoas passam necessidade no grupo. A gente, que é coreógrafo, também não é pago pra isso e rala pra conseguir dinheiro. O meu irmão teve que vender uma moto pra ajudar com o dinheiro, foi um sacrifício, mas quando a gente chegou foi uma sensação muito boa de um sonho se realizando. A gente sempre estudava esse campeonato e pensávamos que nunca íamos chegar lá... quando chegamos não dava pra acreditar, parecia um sonho muito distante e estava diante 50 O RIO É NÓIZ


da gente… vimos vários dançarinos renomados, bailarinos de artistas famosos, e estar no meio deles foi muito especial. Foi por Deus, porque condições mesmo a gente não tinha. Lá a gente aprendeu muita coisa. Inclusive, o meu pai não conseguiu ir porque ele já tinha ajudado a gente, os filhos. Fomos eu e mais quatro dos meus irmãos, fomos nós cinco. A gente ficou igual a jogador de futebol que é escalado para jogar copa do mundo. Foi um momento muito especial mesmo”. Ricardo fez parte de toda a emoção de estar em uma competição internacional e experimentou uma espécie de brainstorm em solo americano. Nos dias em que esteve em Las Vegas para a competição, notou que muitos dos grupos participantes gravaram vídeos das coreografias que elaboravam e notou que isso ainda não era feito em Poços de Caldas. De volta ao Brasil, o brainstorm em um mineiro ‘toró de palpites’, que foram colocados em prática com a criação do Union Crew. “Quando eu fui para a competição em Las Vegas eu já fotografava desde 2012 e ver todos aqueles grupos gravando vídeo mudou a minha vida. Voltamos para o Brasil e eu decidi que não queria mais seguir pelo Power Music Dance; agradeci por tudo o que já tínhamos vivido até ali e segui. Fui viver outra vida. E foi aí que eu montei o Union Crew, que nem era pra ser um grupo, era um projeto de vídeo. Começou a fluir demais.... a gente sabia que ia ser um grupo de vídeo e já sabíamos também que a gente ia usar a dança para militar pelos assuntos que a gente achava importante. O Hip Hop foi criado para confrontar, nasceu em periferias do Bronx onde existia muito forte o racismo. O Hip Hop foi criado por pessoas excluídas da sociedade e foi criado para revolucionar. Quando, há um tempo atrás, pensavam que o Hip Hop

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era marginalizado é porque foi mesmo criado por pessoas periféricas, pretas. O Hip Hop nasceu das pessoas pretas. E é importante saber dessa história, que é uma história preta. Se você não leva a história da dança com você, você fere toda a ancestralidade da cultura”. A ideia funcionou e o projeto de vídeos que nasceu do outro lado do Atlântico conseguiu movimentar águas culturais por todo o Brasil. Em julho de 2020, o grupo gravou um vídeo intitulado “Vidas Negras Importam”, em consonância com o movimento internacional Black Lives Matter. No período da gravação, o mundo havia assistido a um vídeo gravado por uma testemunha do crime que aconteceu nos Estados Unidos em que um policial branco asfixiou George Floyd - um vigia negro - até a morte com os joelhos em seu pescoço. De acordo com os policiais, a vítima foi abordada em seu carro porque “parecia estar intoxicada”. Durante a agressão, testemunhas pediam para que o policial soltasse Floyd, enquanto a vítima dizia que não conseguia respirar e pedia para que o policial não o matasse. O caso provocou inúmeras reações de indignação e motivou protestos pelas ruas dos Estados Unidos e também em diversas partes do mundo. Após o caso, mesmo em meio a pandemia de coronavírus, milhares de pessoas saíram às ruas contra o racismo. O vídeo foi produzido na periferia de Poços de Caldas e viralizou nas redes sociais, até ser notado pelo programa É de Casa, da Rede Globo, e ganhar o Brasil inteiro. “O vídeo foi um protesto contra o racismo ao som da música This Is America, do Childish Gambino. A gente foi muito criticado, mas eu tenho muito orgulho de que a nossa mensagem está percorrendo o mundo. Estivemos com o nosso repúdio ao racismo em grandes mídias nacionais. Isso é muito 52 O RIO É NÓIZ


gratificante pra nós. Tem 13 anos que eu danço e depois de todo esse tempo eu consegui aparecer em rede nacional, já fui ao mundial de dança. E mesmo assim, eu volto pra casa e milito pela causa de todas as pessoas pretas do meu grupo, pela minha causa contra homofobia. A gente luta pra lembrar que a nossa dança tem história”. Para Thailine, um dos membros de pele preta do grupo, a gravação foi difícil por tocar em assuntos tão delicados e, ao mesmo tempo, muito gratificante pelo resultado com o público e, principalmente, pela transformação da própria história. “O vídeo foi muito importante por poder explicar que não é para separar pretos de brancos, é para que todo mundo seja igual. E eu também vejo diariamente que as pessoas são muito preconceituosas. Agora, depois de tudo que vivi no grupo, eu percebo que elas têm muito mais preconceito do que eu enxergava antes. De mim o povo fala mesmo… do meu cabelo, da minha cor, das minhas tatuagens. Está estampado na cara das pessoas o preconceito que elas têm assim que me veem. A diferença é que antes eu não tinha força pra lutar, eu não tinha uma base, um apoio, ninguém para lutar comigo. Eu abaixava a cabeça e chorava. Mas hoje eu estou de peito aberto para lutar”.

BATALHA NO ALÉM MAR O menino que sonhava em ser jogador de futebol também desbravou mares pelo Hip Hop. Castor, junto ao amigo e companheiro de arte Dough, viajaram em outubro de 2015 para Portugal para uma apresentação do grupo Leve. O sonho de estar em outro país começou quando, ainda meninos, sonhavam em conquistar territórios com a música,

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mas nem sabiam que isso incluiria um show na Europa. Castor e Dough sempre foram amigos e, na adolescência, descobriram que outros dois amigos, Gean e Júlio, também gostavam de Rap: trocaram letras, pensaram em batidas e formaram o Elementos. O grupo de jovens escrevia sobre paixões adolescentes e pautas sociais e gravou sua primeira música em um estúdio improvisado na casa do Leopac, que hoje também compõe o Leve. “O Leo levou a gente na casa dele. A nossa primeira música foi quando vinha aqueles microfones ultra fininhos no PC, que a galera usava pra MSN. O Leo enrolou a captação do microfone com meia calça porque ele tinha visto que aquilo servia para abafar o som e a gente fez um EP de seis faixas usando esse microfoninho. A gente batia do centro até a zona sul a pé. Quantas vezes a gente saía de madrugada no Leo e rachava a pé… história pra contar. Quando eu cheguei para gravar, com o microfone de meia, eu me senti o Michael Jackson. A gente não tinha recurso naquela época. Hoje a gente sobe no estúdio, faz um story e todo mundo sabe que você está no estúdio. Na época, acho que só o Dough tinha celular. Mas se a gente tivesse um registro daquele momento seria da felicidade dos cinco. Eu fico feliz de ver a galera de hoje em dia começar com mais estrutura. A cena evoluiu muito e, hoje em dia, é só alguém dar um salve em ‘nóis’ que no nosso estúdio aqui o microfone é profissional, o monitor é profissional… e já tem três, quatro lugares produzindo Rap também. Isso é fantástico. Favela venceu mesmo. Mas naquele momento era o que a gente tinha. Era uma dificuldade grande fazer o que a gente fazia, da forma que a gente fazia. Eu acho que a dificuldade também ajudou a gente a ser autêntico. 54 O RIO É NÓIZ


Na hora que foi “facilitando a coisas” a gente conseguiu driblar algumas coisas e trazer algo verdadeiro nosso”. Castor conta que depois de quatro anos, alguns shows e uma saída antecipada da aula para conceder uma entrevista na rádio Libertas, o Elementos chegou ao fim. Foi então que, da parceria entre ele e Dough, nasceu o Leve. “Pouco tempo depois do Elementos já surgiu o Leve. Foi só eu e o Dough por uns dois anos, lançamos as primeiras músicas. O Dough é beatmaker e produtor musical, aí ele produziu alguns beats pro Leve e a gente já começou a fazer letras em cima. A nossa primeira faixa- a Deixa -, o Leo gravou, mixou e masterizou. E aí uma amiga nossa - Thais Helena - estudava Publicidade e Propaganda e a turma dela tinha um trabalho, que era gravar um clipe, e chamaram a gente. Foi o primeiro grupo de Rap a participar. Esse processo do clipe foi muito louco, foi bem rápido. E a gente participou da produção de tudo. Lançamos o clipe, fez um barulho legal e chegou no ouvido de um cara de Angola que morava em Portugal. Coisas da internet! Aí esse cara mandou mensagem dando parabéns pelo trabalho e todo dia o cara tentava trocar alguma ideia com a gente. Um dia ele pegou o telefone do Doug, mas sem pretensão. A gente já morava na casa1 e o Doug me acordou cedão para contar que o cara de Portugal tinha acabado de ligar falando que ia fazer um festival em Lisboa e estava convidando a gente pra ir. Marcamos um papo com o cara, ele mostrou como ia ser o festival e ia ter uma estrutura gigante, muito legal. O cara falou que se a gente conseguisse custear a passagem podíamos ficar na casa dele lá. A gente mandou tudo, tudo o que a gente já tinha. Contou muito a nossa organização, 1 A Casa Lab era uma residência-estúdio onde os integrantes do Leve moravam e produziam seu trabalho

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que prezamos desde o começo de tudo. E aí descobrimos o Música Minas2 e entramos no edital que estava aberto. O edital vai contemplando por mês que você vai fazer a parada. A gente estava em julho e ia viajar em outubro, então tinha um tempo de planejar. E aí rolou, fomos aprovados no nosso primeiro edital estadual”. O edital disponibilizou R$ 12 mil para custear a viagem. Assim que foram aprovados, começaram a busca por toda a documentação para a viagem, que teve carro emprestado dando problema na estrada, mas que chegou ao seu objetivo. Chegado o dia do embarque, Castor experimentou as sensações de entrar em um avião pela primeira vez. “Fui eu, o Dough e o China, que foi fazer a cobertura audiovisual de tudo. A nossa vontade era do Leo ir também, mas o Leo estava em outro momento, morava em Guaxupé e não tinha essa possibilidade de ficar cinco dias lá. Foi uma aventura. 12 horas de voo, a gente nunca tinha voado. O Dough ainda derramou Coca-Cola no cara do lado, a gente riu demais. Teve turbulência no meio do oceano. Eu nem fiquei com medo de decolar, eu pensei “porra, nasci pra essa parada mesmo”. Transposto o oceano, o primeiro aperitivo foi, segundo os artistas, “um chá de cadeira do produtor”, que só chegou depois de quatro horas do desembarque. O festival para que foram convidados era promovido pela Comunidade dos Países de Língua Portugues (CPLP) e receberia, além do Leve, Gabriel O Pensador e Fernandinho Beat Box como representantes do Brasil. Depois de três dias hospedados na casa do produtor musical que os havia convidado - nesse período, os meninos vinham notando alguma movimentação estranha dele - os 2 Programa do Governo de Minas Gerais de apoio a viagens de intercâmbios culturais no segmento da música. O último edital foi publicado em março de 2018, com vigência máxima de 12 meses.

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três descobriram que o festival havia sido cancelado por um problema de repasse de verbas. “É aquela hora que o seu mundo desaba e você tem que ter equilíbrio. Fomos na casa do organizador, trocamos uma ideia e ele explicou que tinha um projeto que era feito com dois repasses, de dois governos, o de Lisboa e o de Angola. O repasse da Angola, por questões políticas, não poderia ser transferido. Por isso o rolê não aconteceu. Mas a gente tinha que cantar, nem que fosse na rua. A gente tinha que comprovar pro estado que a gente tinha ido se apresentar. Senão teríamos que devolver a grana e onde a gente ia arrumar R$12 mil para devolver pro edital? A justificativa da nossa proposta é que a gente estava indo para representar Poços de Caldas em outro continente. O cara fez alguns telefonemas, tentou arrumar alguns lugares pra gente tocar mas não rolou”. A salvação veio de Mariana, amiga de um amigo que morava em Lisboa. Ela ofereceu hospedagem para os últimos dias e foi com o Leve procurar um lugar para se apresentar nas terras portuguesas. Com ajuda, conseguiram entrar em contato com o dono de uma galeria de arte. “Fomos lá na galeria. O dono era o Rodrigo e tinha um outro francês. E olha pra você ver como o Hip Hop é foda. Esse cara perguntou se a gente curtia Hocus Pocus, que é um grupo de Rap francês que a gente curte pra caralho e a gente cantou uma música junto com ele. Aí ele já disse que o som da gente devia ser foda. Os caras não tinham equipamento, eles tinham um espaço. Aí começou a outra correria pra conseguir o equipamento minimamente necessário. A gente conseguiu um mixer de CDJ com um Dj e fizemos muita gambiarra. Da CDJ fizemos a ligação para uma caixa de som que eles tinham, que era minúscula e não dava pra colocar a voz e o

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beat na mesma caixinha. A gente conseguiu um amplificador de guitarra e pensamos que a gente podia usar pra nossa voz, que é a ideia do microfone. E fomos. Estouro! E olha que foda, só foi possível a gente conseguir montar uma estrutura com recursos limitados porque a gente tinha a vivência da batalha de rima. Quantas vezes a gente remava a caixa no skate pra rolar a batalha. Hoje em dia quem vê a estrutura que a batalha tem, que ‘nóis’ tem grana pra pagar alguém pra montar o som, é um progresso gigantesco. Quando a gente olha pra trás a gente vê o quanto é importante ter passado por tudo isso. Foi fazer efeito lá em Lisboa”.

BEBENDO DA FONTE Mário Castro Junior começou sua história com o Hip Hop antes mesmo de saber nomear a cultura, quando ainda era adolescente nos anos 1990. O paulista fez sua história em Poços de Caldas e viveu episódios marcantes em cada fase de seu percurso pela terra de águas sulfurosas. Quando dançou no The Power, ainda primeiro grupo de dança da cidade, alcançou o Brasil todo em rede nacional de televisão. “Em 96 o Raul Gil lançou o concurso de dança e tinha um telefone pra ligar e se inscrever. Eu corri, anotei. Ninguém tinha internet. Com muito custo um integrante comprou um vídeo K7 financiado pra gravar isso. Todo dia na hora do almoço eu comprava ficha pro orelhão e ligava pedindo pro cara deixar a gente dançar, com o argumento de que a gente era bom e ele não precisava ver antes. Com muito custo ele aceitou e marcou o dia pra gente estar lá. Era segunda feira, e ele disse que quinta-feira às 8h era para estar lá. A gente 58 O RIO É NÓIZ


já tinha uma coisa pronta, pedimos para uma costureira fazer um figurino. Nesses quatro dias a gente treinava de dia, ensaiávamos na hora do almoço, virávamos noite ensaiando e fomos. Em 1996 a gente foi e dançou no Programa Raul Gil, para o Brasil inteiro. A gente passou em uma eliminatória e perdeu depois para um grupo que dançava break, era o Detroit Breaker, a melhor crew de São Paulo. Aí eu fiquei enchendo o saco do Régis para a gente começar a dançar break. Ele era dono do grupo, eu era meio que um braço direito dele e aí ele concordou. Já tinha uns caras da zona sul que dançavam break e, em 1996, montamos a primeira crew só de break em Poços de Caldas. Se chamava Street Arts Breakers. Voltei para a minha dança original. Foi uma época bem legal. Aí eu já tenho 42 anos de idade e ainda danço break”. Até 2005 a crew se apresentava junto do grupo de Régis, mas acabou se desfazendo conforme os integrantes assumiam novas responsabilidades em suas vidas pessoais. Contudo, a dança sempre falou mais alto no coração de Mário. Um ano depois ele montou seu primeiro grupo de dança, o Concepção Urbana Brasil, que durou até 2014. Foi pelo grupo que Mário resolveu se dedicar ao empreendedorismo cultural. Autodidata, aprendeu sobre o funcionamento dos editais e conseguiu viabilizar viagens e apresentações. Paralelamente ao grupo, Mário trabalhava em uma empresa privada e ainda encontrou espaço para se dedicar ao que mudou os rumos de sua história, a arte-educação. Ele plantou a semente, regou o broto e colheu os frutos. “O Hip Hop me ajudou muito como ser humano, então eu preferi ir para esse lado social do que seguir o lance da moda, de se mostrar. Eu quis usar o Hip Hop como ferramenta. Quando eu voltei para

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minha companhia de dança, a que eu era o dono dela, eu consegui implantar isso. Tinha 10, 12 dançarinos bons, mas tínhamos também 4 pessoas que davam aula nas quebradas com projetos sociais. Devagarzinho a gente ia puxando esses adolescentes para a nossa companhia de dança. Em 2007 eu me filiei à Zulu Nation. Eu fui convidado a ser um membro da Zulu Nation e fiquei muito honrado, a organização tem esse caráter educativo, de ensinar pela arte. Em 2010, a gente foi para a Argentina competir no Festival de Danzas del Mercosur3 . Em 2011, a gente foi para os Estados Unidos fazer uma apresentação pela primeira vez em Chicago, no WOD4 (World Of Dance), sempre com os projetos culturais. Em 2014 eu voltei sozinho pros Estados Unidos, fui participar do 40º aniversário da cultura Hip Hop e estive com os pioneiros, com África Bambaataa. Fiquei 20 dias em Nova Iorque bebendo da fonte; tinha vários irmãos e irmãs Zulu”. O homem que saiu do entorno das águas vulcânicas de Poços de Caldas chegou aos lugares onde caiu a primeira chuva da cultura Hip Hop. A viagem foi possível graças à participação em um programa de intercâmbio cultural do Governo Federal, viabilizada pelo Fundo Nacional de Cultura, que acontecia à época. Além dos 40 anos do Hip Hop, Mário comemorou os 41 anos da Zulu Nation ao lado de África Bambaataa, que além de “pai do Hip Hop”, é fundador da organização que foi criada em 1973 a fim de promover a paz, o amor, a união e garantir a diversão. Eles lutam por pautas antirracistas e buscam transformar o pensamento 3 O festival é idealizado pela bailarina profissional argentina Norma Mabel Pelligrini e reúne grupos de danças da Argentina, Brasil, Uruguai e Paraguai. Em 2019, o festival completou sua 25ª edição. Em 2020 o evento não aconteceu. 4 O campeonato acontece desde 2008 e reúne grupos de danças de mais de 30 países. Em 2020, por conta da pandemia de Covid-19, o evento foi adiado.

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de jovens que, naquela época, estavam envolvidos com o problema das gangues nos Estados Unidos. Hoje, a Zulu Nation conta com mais de uma dezena de milhar de membros ao redor de todo o mundo, que buscam manter vivos os valores pregados pela cultura Hip Hop.

MARINHEIROS DA ZONA PERDIDA NO CENTRO: A BATALHA DO PALACE

Schultz ainda não atravessou o mar com sua música, mas já fez ondas nas águas doces de Minas Gerais. A história começa em Poços de Caldas, com um post despretensioso que ele fez em uma rede social logo depois de ter ganho sua primeira batalha de Rap. “Ia ter a inauguração da loja Dog Style, que tem um conceito urbano. Aí o Japa, amigo nosso, falou que na inauguração ia ter uma batalha de rima e eu falei que ia, mas ia pra assistir. Eu só cantava Rap na igreja e nem era uma ambição que eu tinha. Eu estava lá de boa, era 2012, estava rolando um som e nesse dia os caras me falaram pra colocar meu nome e eu não queria, mas eu acho que alguém colocou meu nome e me chamaram. Eu tinha 17 anos e caí na primeira batalha. Tinha o Dough, o Zóio e não lembro quem mais tava. Os caras já eram fodas, continuam avançando até hoje. Eu pensei que nada a ver eu rimar com quem já rimava há uma cota. A primeira foi contra o Dough e eu ganhei. Eu não entendi como que eu ganhei do cara muito bom, era adrenalina, eu lembro certinho que eu estava tremendo. O Zóio tinha rimado mesmo, dichavando, e eu pensei que jeito que eu ia ganhar desse cara? E aconteceu que eu ganhei. O Dough foi pra repescagem, na final deu eu e ele de novo e eu

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ganhei. Aí eu saí e falei “não acredito que eu ganhei dos caras que já tão na parada faz muito tempo”. Pensei que se páh dava bom, acendeu uma chama. Eu lembro certinho, tenho guardado até hoje um CD do Leo Pac que ganhei no dia. Aconteceu que teve outro evento desse, mas eu perdi pro Zóio. Passou um tempo e eu joguei no Facebook que eu achava que todo sábado tinha que ter uma batalha de rima, porque não tinha até então. Aí o Zóio comentou pra gente trocar ideia disso, ainda era 2012. Eu falei “agora eu quero, consegui ganhar dos cara foda… na segunda eu consegui representar. Mano, eu quero isso direto”. Aí que surgiu a Batalha do Palace, que antes de ser a Batalha da Palace rodou um ano como Freestyle na Praça. Um dia nós fomos trocar ideia, conversamos e, pra não passar em branco, o Zóio levou um celularzinho, colocamos o beat no celular e ficamos rimando. Aí no outro sábado a mesma coisa e assim a engrenagem foi girando”. No começo, a recém nascida batalha de rima não recebia muitos participantes e enfrentava muitas dificuldades, da falta de equipamentos à restrição da polícia que, sem entender o movimento novo, tentou algumas vezes impedir os eventos. “Nós não buscamos informação para fazer. Nós fizemos e depois fomos adquirindo informação de projeto, lei de incentivo, alvará… e conseguimos. Foi só depois que a gente soube que era errado a polícia querer tirar a gente da praça porque é um lugar público e já aconteceu isso umas duas vezes, chegaram falando que a gente não podia fazer. “Se vocês não desligarem a caixa eu vou pegar”. Aí a gente pensava nossa a gente já não tem os bagulho, se o cara pegar como que vamos tirar? Passou mais ou menos um ano e o Dough e o Castor, que já estavam na cena há uma cota, se 62 O RIO É NÓIZ


juntaram e fecharam com a gente. Eles que tinham tentado um edital que não passou e sugeriram da gente tentar de novo”. Enquanto o projeto não era aprovado em nenhum edital, a batalha funcionava com som emprestado e lugar improvisado para guardar equipamento. “Assim foi até 2016 com esse equipamento emprestado e mandando projeto, até que um dia bateu e cantou. Foram uns dois anos tentando e teve um ano que a gente parou com a batalha. Foi aí que eu fui a um grupo de rap com o Everton da Zona Sul e o Cash B. Depois disso teve Festival Manancial, que fizemos parte dele. A gente tocou no Vai Sul de Minas, que tinha todo ano pelo Coletivo Corrente Cultural. Conseguimos fazer show em São João da Boa Vista [SP], conseguimos ir pra Alfenas [MG], tocamos em alguns eventos fechados daqui. Tinha um evento, Time to Dance, que a gente cantou; festa em chácara a galera chamava ‘nóis’. A gente não vivia disso, mas a gente tocava pra galera. Quando ganhava era muito pouco, a gente queria tocar, tinha oportunidade, a gente ia. Quando chegava sábado e a praça lotava, isso dava um gás. Eu saía, ficava olhando e pensava que louco o bagulho que ‘nóis’ conseguiu. Os cara das antiga elogiando a batalha, você olhava na roda tinha criança, jovem idoso, todas as classes, e por um momento você desliga. Você tava fazendo arte. A galera parava a gente na rua pra perguntar da batalha. Era todo sábado. A gente colocava a caixa em cima do skate, remava até lá na praça, ligava o som e depois pegava o skate, levava de novo, guardava e só então ia todo mundo embora”. Do sucesso em Poços veio o sucesso em todo o estado. Graças à verba de um edital estadual em que foram aprovados, Schultz conseguiu viajar para Belo Horizonte para participar do Duelo Nacional de

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MCs. “Graças a esse investimento eu consegui ir, passei pelos mesmos filtros e consegui chegar em BH. Representando o Sul de Minas fui eu e o Leo Vinícius, um MC de Três Corações. A gente reuniu em Poços uma galera de várias cidades do Sul de Minas inteiro, eram 16 MCs.Tinham sido selecionados dois MCs de Poços, o Inquieto e a Aline, só que a Aline mora em São João da Boa Vista e ela não podia porque era estado de São Paulo, aí ela tinha que ir pra outra cidade e sobrou uma vaga. No final de semana seguinte fizemos um filtro, que era na casa da Casa Lab na rua São Paulo. Fomos de manhã e eu passei. Aí no outro final de semana a galera colou aqui e aconteceu o blackout. Um blackout na cidade inteira e tivemos que remarcar a etapa. Eu entrei nos 45 do segundo, passei, e na outra semana já fomos para BH. E tudo isso graças a esse corre inteiro, de 8 ou 9 anos, graças a essa ideia que eu troquei com o Zóio, o fechamento do Castor e do Dough, o Gueiras que fortaleceu muito, mas já faleceu, se afogou um dia, mó fita paia. Em BH aconteceu de eu perder, mas eu senti a adrenalina mais foda. Tinha gente de Minas Gerais inteira… os cara faz um evento de reconhecimento nacional sem ajuda de ninguém. Se eu ganhasse ou se eu perdesse eu não tava nem aí, olha onde eu tava. Nunca ninguém teve essa oportunidade. Eu batalhei igual todo mundo, passei por filtro igual todo mundo. Não tive vantagem, é uma trajetória gigantesca, isso falando só de batalha”.

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FONTE

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quanto desbravam as águas do Hip Hop, os olhares de quem vive a cultura se atentam para o que acontece ao redor, reparam onde há flores às margens do rio e analisam onde ficam as pedras por entre a correnteza. Poços de Caldas é uma cidade turística, recebe todos os dias moradores de cidades vizinhas e também ônibus lotados de pessoas que vêm de longe para provar do poder das águas sulfurosas que nascem de seu solo outrora vulcânico. O Museu Histórico e Geográfico conta a história dos antigos cassinos e mostra as preciosidades da terra. Contrapondo a história erudita, ao seu lado, as paredes são coloridas pelo grafite. O palco do teatro da Urca, que já recebeu de orquestra de música clássica a encontro de escritores renomados da literatura brasileira, também foi espaço para bailarinos de Hip Hop encantarem milhares de pessoas com sua dança. Quem passeia pela praça se encanta com as árvores bem cuidadas, a grama verde e os fontanários; mas atualmente, encontra também naquela paisagem, uma batalha de rima. Em tempos normais, quando aglomerações são permitidas e desejadas pelos mais festeiros, os DJs do Hip Hop levantam o público com seu talento. Porém, longe dos olhares dos turistas, a cidade esconde aqueles aos quais o acesso à cultura é restrito. Pelas ruas, escadões e vielas onde o dinheiro não chega em enxurradas, vivem os que desde a infância veem o crime e as drogas passarem reluzentes entre as dificuldades que se assemelham à miséria dos períodos de estiagem. Nestes lugares, a chuva do Hip Hop cai cuidadosamente e reflete o sol em um brilho intenso como a luz transformadora da esperança. É neste momento que a mágica acontece e

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quem nadava pelos afluentes do Hip Hop se transforma num grande rio de cultura para saciar a sede de outros. As aulas de dança do Centro Social Urbano que inseriram Thailine na cultura Hip Hop foram uma dessas afluentes. Ela ainda hoje bebe desta água e bem sabe a importância de não deixar que outros sintam sede. “A arte salva vidas. Na época que eu ia no Centro Social Urbano, muita gente ia comigo. A gente tinha a mesma realidade. Pai e mãe trabalhavam, o irmão mais velho cuidava do irmão mais novo. Íamos todos juntos levar as crianças pra escola de manhã. A tarde, quando a gente ficava sem fazer nada, todo mundo descia pro CESU. Só que teve gente que precisou começar a trabalhar muito cedo, outros os pais não apoiavam na dança… hoje em dia, infelizmente, uns estão mortos e outros estão presos. Eu acho que se tivesse um apoio maior, se a cultura fosse levada às escolas, isso ia ajudar demais. Não adianta. A arte salva vidas”. Foi justamente por acreditar no poder da arte em salvar vidas que Mário se dedicou à arte-educação. Ele, que viveu o Hip Hop durante a década de 1990, acredita que dos anos 2000 em diante o Hip Hop morreu e é resgatando o papel social da cultura que ele se mantém conectado às raízes. “Qualquer coisa relacionada ao Hip Hop de dois mil pra frente, desculpe falar, mas virou uma merda. Nos Estados Unidos, no Brasil. Foi uma reação em cadeia e isso não é conversa de cara velho, papo de velho saudosista. Isso não é. O que eu uso pra falar isso é estudo social e científico. E se você perguntar o porquê disso, é a influência do mainstream, da mídia, que acabou como Hip Hop. Acabou. Não existe mais Hip Hop. O Hip Hop está morto. Tem um livro que se chama “O Hip Hop está morto”, e não tem só um escritor que fala isso, tem vários. Tem um 70 O RIO É NÓIZ


outro livro que se chama “Caos Total” e um dos autores fala que o Hip Hop morreu exatamente em 1979, na visão dele. Ele acha que o Hip Hop acabou nesse ano, quando gravaram a primeira vez o Rap Comercial. Porque aí o Hip Hop, o Rap, foram para a mídia, e ao ir para a mídia, a mídia transformou isso em negócio, em business, e o Hip Hop morreu ali, segundo esse autor. Ali o Hip Hop virou correntona, carrão, mulher com bunda de fora, explorar coisas fúteis. Danças fúteis, virou futilidade. Mas uma futilidade que gera muita renda, todo mundo ficou rico com isso. O lado positivo dos anos 2000 para frente é que houve mais acesso à informação e a galera começou a entender o que é Hip Hop. A primeira tese sobre Hip Hop escrita no Brasil foi na USP em 1996. A galera da dança foi se profissionalizando, começou a aparecer mais grupos de Rap. Aí o lado ruim: a mídia. Não só a brasileira, mas a americana que foi cagando coisa na cabeça do mundo todo. O que a galera tinha contato no primeiro momento eram só as coisas ruins. Aí quem teve interesse foi procurar, esmiuçar o que é o Hip Hop, mas não é todo mundo que faz isso. Talvez se você perguntar pra alguém de 40 anos o que é o Rap, vão falar que é música de bandido, porque foi isso que mostraram no começo. O grande poder transformador, o Hip Hop como ferramenta de aprendizado foi morto pela grande mídia. Infelizmente a nova geração não pega livros para ler, só acompanha o hype, ninguém quer ouvir um velho que nem eu. E foi lendo, estudando, que eu comecei a aprender que aquilo que a gente fazia, além de arte, tinha função social e que muita gente valorizava essa função social. Lá atrás a galera falava que a dança de rua era boa pra tirar os meninos da rua. Algumas pessoas começaram a ver isso. Coisa que

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o Milton Sales falava para o Mano Brown nos anos 1980. O Paulo Freire foi secretário de educação em São Paulo no governo da Luiza Erundina, na década de 1990. Foi quando se instalou o primeiro projeto de educação por meio do Hip Hop. Teve o RAPensando a Educação1 , que visava evitar a evasão escolar. Eles tentavam, por meio do Rap, segurar a galera na escola, e teve resultado legal”. Acreditando neste caminho, em 2013, Mário deixou o emprego na empresa privada em que trabalhava e se dedicou exclusivamente aos projetos educacionais relacionados ao Hip Hop. Em sete anos de trajetória como arte educador, o Bboy já ensinou o Break para centenas de crianças e adolescentes assistidos por instituições assistenciais. “No Instituto Semear2 eu trabalho desde 2013. Lá eu ensino a molecada a dançar break, geralmente são crianças e adolescentes. Eu trabalhei dois anos na ONG Criança Feliz3 , do bairro São José. Eu trabalho atualmente no APHAS4 , que atua também no bairro São José. E eu tenho ainda dois projetos que eu desenvolvo aqui na cidade. De vez em quando eu realizo alguns eventos. O Hip Hop in The Park acontece no Julho Fest5 e está na 1 O RAPensando a Educação contou com palestras dos Racionais MCs, ministradas a estudantes e professores de escola públicas de São Paulo em 1992. Eram abordados temas do cotidiano das periferias, como violência policial, racismo e tráfico de drogas. 2 O Instituto Semear nasceu em 2003 e hoje atende gratuitamente cerca de 200 crianças e adolescentes. O instituto realiza um trabalho sociocultural nas áreas da música e da dança, além de oferecer workshops e realizar eventos como Saraus. 3 O Lar Criança Feliz foi fundado em 1992 e atende uma média de 120 crianças e adolescentes do bairro São José no contra turno das aulas. O objetivo da Organização da Sociedade Civil (OSC), sem fins lucrativos, é oferecer atividades que contribuam com o desenvolvimento das potencialidades de cada criança, contribuindo para que conquistem formação ética e no incentivo de rupturas dos paradigmas sociais em que estão inseridos. 4 Associação de Promoção Humana e Ação Social. 5 Festival de Inverno de Poços de Caldas.

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sexta edição. É uma celebração da cultura Hip Hop. Eu junto os quatro elementos lá, tudo ao mesmo tempo. Minha vida tem sido essa nos últimos sete anos. Em 2018 eu tive uma premiação bacana pela Funarte, com o projeto “Cultura & Arte Urbana - Na Batida do Hip Hop”. Foram mais de 600 inscrições do país todo e o meu projeto ficou em 7º lugar. Eu ganhei um prêmio em dinheiro, saímos na Folha de São Paulo. E fui o único projeto de interior premiado”.

RETORNO DO ALÉM MAR

Enquanto estiveram em Portugal, o grupo Leve registrou imagens e sons de tudo o que viveram do outro lado do oceano. Os meninos ainda não sabiam bem o que seria feito com aquelas imagens, mas sabiam que as memórias eternizadas da primeira viagem internacional de um grupo de Poços de Caldas seriam importantes. E foram. Logo que embarcaram no avião para retornar do além mar, o China - olhos por trás de todos os registros - fez a primeira provocação a respeito do destino das imagens. “Dentro do avião mesmo a gente trocou muita ideia. Foi no voo que surgiu a ideia de usar todas as aquelas imagens para produzir um documentário. E olha como as coisas acontecem! A gente já ia nas escolas quando convidavam a gente pra falar um pouco do Rap. Acreditamos muito nessa parada da base, significa várias coisas. Foi uma provocação muito importante que o China fez. E olhando o material que a gente tinha, pensamos em fazer um documentário e que com ele a gente poderia ir nas escolas, desta vez, pra contar as nossas experiências, falar do que a gente passou, falar um

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pouco sobre o Hip Hop e as nossas lutas. Então, chegamos em Poços com a mentalidade de fazer esse trabalho. Depois de editado, a gente viu e reviu o documentário e pensamos bem no que íamos fazer com isso. E fomos fazer um teste pra ver como funcionava na prática. A gente sabia que tinha editais que permitiam que a gente fizesse esse trabalho nas escolas de forma remunerada, que eu acho que é mais do que justo, então fomos fazer alguns testes. Aí a gente criou o Hip Hop em Cine, baseado nesse trabalho do documentário. No começo, nessa fase experimental mesmo, visitamos as escolas com um trabalho totalmente gratuito. E aí rolou, até porque a gente conhecia vários professores. Foi muito legal a repercussão que teve, teve matéria em jornal, teve entrevista… e a gente focou nisso um pouco. Fomos vendo a prática porque na teoria é tudo muito lindo, mas a realidade sempre é diferente, principalmente em escola pública. A gente anotava o que dava certo e o que não dava e no ano seguinte a gente se inscreveu no edital do DME6 , e já fomos aprovados logo de cara. Assim começou o Hip Hop em cine. Nessa o Leo já tinha voltado pra Poços e temos uma equipe indo pras escolas. Entre eles o Nicolas e o Chikão que são do DLS7 , que têm um trabalho que a gente se identifica muito. O Nicolas tá fazendo foto, gravando pros stories e ainda troca ideia com a galera porque ele tem uma vivência mais nova. É importante ir renovando quando falamos com a galera mais nova, você prende eles mais. O projeto já tem três e nesse tempo rodou muitas escolas 6 Hoje, o Hip Hop em Cine acontece pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Poços de Caldas com apoio institucional da Prefeitura Municipal, Secretaria Municipal de Cultura e incentivo cultural de uma clínica oftalmológica da cidade. 7 O DLS é um grupo de Rap poços caldense fundado em 2015, formado por Chikão Shakur(Tayre), Sullivan,Stwart NB.

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municipais e estaduais, que são o nosso foco de público mesmo”. Ter atravessado o mar para fazer um show fez com que o trecho do rio de histórias do grupo Leve passasse a regar também o solo da arte-educação, que floriu experiências com raízes fincadas diretamente no coração dos integrantes. E não seria para menos: essas flores nascem por entre os sorrisos das crianças que participam do Hip Hop em Cine. “Quando a gente chega na escola, fala que é artista de Poços, que é rapper, fala da nossa história e de toda essa construção, a gente permite concretizar uma ideia dos sonhos deles. A gente dá uma ideia de empreendedorismo. A gente se considera empreendedor cultural, tá dando certo até hoje, a gente vive da parada. A nossa sociedade passa de uma certa forma que viver de arte é difícil. A mídia vende a galera que investiu grana pra estar onde está. E quem sou eu pra falar se está certo ou errado, a grana sempre fala mais alto, nesse meio então… O que muda é que a gente chega mostrando essa proximidade, essa possibilidade. E não falamos só de cultura. Se eles falam que têm vontade de ser empresário, a gente pergunta o que ele tem feito pra conquistar isso. Se eles querem fazer faculdade, a gente fala pra eles verem as bolsas que existem. E no final isso é uma experiência muito enriquecedora pra gente também. Em uma das escolas que fomos tinha um moleque de boné e viu eu e o Leo com blackão mesmo. No outro dia ele já mandou a foto no Instagram com o blackão dele armado também, indo pra escola. Às vezes é através disso que a gente conseguiu pelo menos proporcionar uma ideia diferente pra ele se sentir melhor. E pela foto ele já estava ultra feliz. Isso pra mim foi do caralho. É tipo quando você posta um vídeo no YouTube e tem criança

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elogiando porque a gente estava antes na escola dela, sabe?”.

ÁGUA QUE AVIVA Quando Schultz rimou pela primeira vez, bebeu da água oferecida por aqueles que já estavam caminhando no Rap. Depois de muitas braçadas neste rio, foi ele quem pôde matar a sede de dezenas de crianças e adolescentes por meio do projeto de arte-educação A-viva Cultura, que começou em julho de 2019. O projeto teve apoio da Secretaria de Promoção Social e foi desenvolvido durante o segundo semestre do ano no antigo Centro de Referência da Assistência Social (Cras), cuja sede ficava no bairro São José. Para o rapper, desempenhar o papel de fonte da cultura era novidade e um desafio. Havia muita água em movimento: seu rio de histórias se enchia ainda mais com a nova experiência, a fonte recém-formada jorrava, ansiosa, uma verdadeira piscina de novidades nas quais os participantes molhavam os pés na cultura Hip Hop, como quem explora a cachoeira para saber se pode mergulhar. “O Bruno, que é meu amigo há muito tempo. Trabalhava numa casa de passagem na zona sul e ele veio me falar que ia abrir um edital na Secretaria de Promoção Social. Perguntou o que a gente podia fazer. Foi daí que a gente pensou em tudo. O Dough ajudou muito na montagem da proposta, enviamos e foi aprovado. Um negócio totalmente novo pra mim. Quando você monta um projeto é a sua teoria, você estuda e leva pronto aquilo que você aprendeu. Mas a teoria não é igual a prática. Você tá tratando com um monte de universinhos, prontos pra ganhar o mundo. A gente pensou em fazer no 76 O RIO É NÓIZ


São José e também queríamos fazer no Parque Pinheiros, mas lá já tinha várias ações, então conseguimos fazer no São José, com as crianças do PMJ. A gente ofereceu oficina de beat, produção musical, falamos sobre ter responsabilidade sobre o que você fala. Eu batia muito nessa tecla, que eles seriam referência naquela coisa, que as palavras têm poder. E aconteceu como tinha que acontecer. A gente trouxe uma teoria, viu que a prática é totalmente diferente e a gente ia aprendendo mais do que ensinando”. Talvez tenha sido neste momento que os amigos perceberam que mesmo que tenham se tornado fonte, nunca deixariam de ser também um rio que transpõe pedras, flores e folhas para alcançar o mar. Foi aí que deram às mãos, taparam seus narizes e mergulharam juntos nas experiências, mergulharam juntos aos participantes nas águas do A-viva Cultura. Os encontros aconteciam às quartas-feiras. De manhã, as crianças se reuniam e, disfarçadas de “siga ao mestre”, vinham as primeiras noções dos passos do Break. Na conversa sobre respeito mútuo, a construção de uma convivência saudável também surgia. À tarde, com os meninos mais velhos, a ideia era de progredir junto, ampliar a visão para perceber que o percurso pelo qual resolveram nadar ruma ao mar. “Com as crianças foi muito nervosismo. Por mais que tenha uns que estivessem cagando, tinha outros olhando você no lugar de fala, esperando o que a gente ia apresentar. E criança pergunta tudo. Se você for chato demais eles não vão prestar atenção, se você for legal demais eles fazem a bagunça que for. Então tem que ser o tio legal, mas o tio pulso firme. E a gente dialogava nessa, aprendendo. Saía numa quarta pensando que foi tenso e a na outra a gente já estava na sintonia da galera.

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Foi muito louco. Eu sentia muita adrenalina, criança absorve tudo. Você se preocupa com a responsabilidade do que você tá passando. Teve uma experiência que me marcou por expor a realidade de algumas daquelas crianças. Um dia eu tava meio gripado, com dor de garganta, não tava conseguindo falar alto e eu disse pra eles pra gente trocar ideia mais baixinho, pedi pra eles me escutarem. A gente desenvolveu junto de que quando um fosse falar os outros escutavam, as vezes o que ele ia falar você não sabia e aquilo ia servir pra você. Até que o nosso lema era uma frase do Sabotage: O respeito de um por um faz a paz prevalecer. Era muito fera, a galera gritava a frase. E nesse dia eu falei que eu não tava com a garganta muito boa e o menininho, pequenininho, falou assim “mas se você quiser ficar de boa é só pegar um cházinho” e fez com a mão sinal de dar um trago no baseado. E aquilo lá me chocou. Aí ‘cê’ já pensa um monte de coisa. Nem boa, nem ruim, mas você reflete sobre um monte de coisa. Sobre a sua vida, sobre a vida do próximo, o que acontece, o seu papel ali na hora. Isso me marcou muito. Pra ele isso era normal, tava presente no dia a dia dele. Nesse dia eu pelo menos comecei a entender isso um pouco melhor. A gente não queria mostrar que aquilo era uma responsabilidade, era pra ser prazeroso. A gente fez um sarau aqui, as crianças ficaram nervosas de se apresentar. A família veio pra assistir eles fazendo um negócio. Minha mãe era sempre correria, meu pai não rolava de ir. Eu ia sozinho pra apresentação e já era, eu tava com uns dois, três anos de Rap quando a minha mãe colou na minha primeira apresentação e eu achei isso uma brisa, foi o que a gente proporcionou para eles também”. A transformação vivida por Schultz teve início de fato 78 O RIO É NÓIZ


quando convidou os MCs para participarem do projeto - e ainda nem imaginava todas as braçadas que teriam de dar. Um dos jovens que mergulhou no A-viva Cultura apostou no projeto desde o primeiro dia; se encantou, perseverou e esteve presente até a última apresentação do projeto: o TLZ. Ele frequentava a Batalha do Palace e estava lá bem no dia em que o Schultz anunciou que iniciariam esta nova empreitada no Hip Hop. Ele se interessou e quando soube que seria em frente à sua casa, decidiu que iria participar. “No dia e na hora que o Schultz tinha anunciado que aconteceria o projeto eu fui ali no CRAS e já tava rolando. Eu senti alegria, porque eu queria me conectar mais a fundo com o Hip Hop, aprender mais. Uma vez rolou um sarau aqui na quadra, foi onde eu senti felicidade mesmo. Um dos meus sonhos sempre foi encher a quadra por meio da cultura e consegui viver isso através do A-viva Cultura. Eu participei e foi legal porque eu pude expor as minhas ideias, cantar as minhas músicas”. Nadando como um peixe pelo Rap, TLZ gostava cada vez mais de rimar e sentiu falta das batalhas, que estavam temporariamente paradas no centro. Ele, então, resolveu tomar uma atitude: fundou a Batalha da Quadra, que reuniu dezenas de jovens MCs na quadra do bairro São José. Foi naquele momento em que outra fonte desenhava-se em TLZ. “Eu resolvi criar a batalha porque na cidade não tinha batalha rolando mais; existia, mas não tava rolando. Eu assistia muita batalha no YouTube e sempre chamava uns amigos pra rimar e eles sempre iam. Num dia desses eu decidi fazer uma batalha mesmo. Chamei um amigo, conversei com ele e com meu irmão mais novo pra dar a ideia. De início deu muito certo, praticamente continuamos da mesma forma

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que a gente fazia, só indo pra rimar e boa, até que em 2019 eu resolvi comprar uma caixinha e pegar a sério. Aí a gente foi crescendo, pessoas que gostam de Rap foram aparecendo. Nessa mesma época tinha uma batalha acontecendo na Toca do Açaí e a gente resolveu colar lá. Conhecemos mais gente nessa outra batalha e anunciamos também a batalha que fazíamos no meu bairro. A gente divulgava também pelo status de whatsapp e decidimos que faríamos uma semana aqui e uma lá. Nisso as duas batalhas foram crescendo e na época que eles não faziam mais lá, eu resolvi seguir solo pra cá mesmo pra não dar confusão. E começou a acontecer. Os MCs que eu conhecia da Batalha do Palace começaram a aparecer aqui. A gente cresceu tanto que a galera pediu pra gente mudar a batalha para o Centro. Nós fizemos isso e rolou até antes da pandemia”. Conforme a Batalha da Quadra crescia, novos MCs iam se juntando ao evento. Cada vez mais parecia surgir uma nova fonte. Quem estava no começo da trajetória pelo Hip Hop queria mais do que uma única chance de rimar em um desses duelos. Pronto, foi o que bastou para criar como que uma inauguração da nova obra da fonte de água pura à beira da estrada. TLZ também iniciou o movimento de ser, ao mesmo tempo, rio e fonte. Ele criou o Projeto Cam, que acontecia em um dia da semana anterior à batalha com o objetivo de treinar os iniciantes. “A batalha já tava rolando toda sexta-feira e a galera não se contentava, queria mais! A rapaziada novata, que não rimava muito bem e que tava aprendendo, queria mais batalha porque imagina comigo: você que não sabe rimar entra na batalha, batalha uma vez e perde, aí é só semana que vem pra você batalhar de novo. Foi pra melhorar isso que 80 O RIO É NÓIZ


surgiu o treino das quartas-feiras e funcionava assim, você batalha uma vez e, se perder, continua tendo o direito de novo e de novo. Assim, a gente ia fazendo a pessoa evoluir melhor e aprender mais, muita gente já passou pelo Projeto CAM”.

ÁGUA ENGARRAFADA A transformação de rios em novas fontes é importante para que o ciclo da água continue se completando no Hip Hop. Neste processo, uma das questões é como fazer com que mais pessoas saciem sua sede com a cultura. A resposta pode ser com água engarrafada. Quando ainda se é rio cursando sua história, uma garrafa bonita surge às margens, ainda vazia e com espaço em branco para o nome do fontanário que a preencherá. Estes são os editais de cultura, elaborados por iniciativa do poder público por meio da Secretaria Municipal de Cultura. A garrafa às margens do rio pode ser uma provocação importante para o surgimento de novas fontes: ao se interessar pelos benefícios de alcançar mais pessoas, as águas dos rios se movem e ocupam a nova forma do interior da garrafa, o rótulo se preenche com o nome do projeto e seus idealizadores e, então, aquela água engarrafada é enviada a lugares onde nem nos períodos de cheia as margens do rio alcançariam. João Alexandre Moura é professor, mestre em políticas públicas e pesquisador da área da cultura. Em 2012, trabalhando com sua esposa Juliana, o grupo de teatro que coordenava foi indicado a um prêmio de gestão cultural. Isso chamou atenção do então prefeito de Poços de Caldas, que convidou o professor para ser gestor de cultura e, posteriormente, construir

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a Secretaria Municipal de Cultura, coletivamente com a comunidade artística da cidade. O projeto obteve sucesso e, em 2015 a secretaria foi criada. Houve, ainda, a elaboração do Sistema Municipal de Cultura e do Plano Municipal de Cultura de 2017 a 2027, que propõe estratégias para o fomento da cultura na cidade. Um dos feitos da gestão foi, justamente, disponibilizar as garrafas de editais para iniciativas do Hip Hop, como detalha João Alexandre. “Democratizamos o processo, criamos os editais públicos que possibilitaram mais acessos aos festivais, aos patrocínios e incentivos. Foi uma experiência de grande sucesso. Depois disso fui convidado a ser secretário de Cultura em Machado também. A cultura é uma manifestação espontânea de um povo, mas também compete ao Estado intervir nestes aspectos para que ela chegue mais à população, que entenda a cultura também como uma economia criativa, ainda mais em Poços de Caldas, que é uma cidade que recebe turistas e tem também uma população interessada em cultura. Compete ao poder público também identificar os grupos dos bairros, seja de Hip Hop, capoeira ou outras manifestações de cultura popular. Inclusive na minha gestão como secretário começaram a ocorrer as batalhas de rima no Centro e hoje a gente fica muito feliz que as batalhas tenham se expandido aos bairros. Conversando com alguns grupos de Hip Hop, eles relatam que, às vezes, a ocupação do espaço tem discriminação do poder público. Por exemplo, oferecer um ponto de luz, o apoio da secretaria com um aparelho de som… São coisas mínimas que devem caber ao poder público. Inclusive chamá-los para os editais e garantir que tenham condição de empreender nisso. Isso deve acontecer para que a Batalha da Quadra, que nasceu no São 82 O RIO É NÓIZ


José, possa ficar no São José. Ela não precisa ser mostrada para o turista, ela pode permanecer no bairro. Outra tarefa do poder público é combater os estereótipos com os agentes de segurança pública Isso poderia ser feito se a própria Secretaria de Cultura divulgasse as ações que já acontecem pela cidade”. Para o ex-secretário, quando os agentes do poder público voltam olhares humanizados e sensíveis para as questões culturais, as mudanças podem ser percebidas cristalinas como água. Em uma das experiências que viveu enquanto secretário, o professor de Geografia entendeu, na prática, como a localização do rio importa muito aos que mergulham. Quem prefere estar imerso no Hip Hop até aprecia os afluentes de outras culturas que passam por perto, mas não querem abrir mão de se banhar no rio de origem. “Enquanto poder público a gente não observa algumas coisas porque temos que nos atentar à coletividade. Mas quando você vai para um evento e conversa com as lideranças, com os artistas, com os manifestantes da arte, é algo extremamente transformador na vida deles. Cada um com a sua história de família, muitas vezes fruto da desigualdade social brasileira e ver a arte, a cultura Hip Hop, libertar essas pessoas. Ela não é só uma válvula de escape, mas uma acolhida, um momento feliz, um lugar onde o jovem se identifica com tudo, com as músicas, com as vestimentas. Nós vimos grupos de Poços de Caldas irem para outros países. Talvez a esperança deste menino da periferia seja o Hip Hop, talvez a motivação que ele tenha seja isso. Do ponto de vista de gestão pública a gente vê isso numa visão coletiva, de que é para todo mundo. Mas quando nós temos a sensibilidade de ver individualmente a história de cada um, a gente vê que a arte liberta e não só no

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Hip Hop, mas em todas as manifestações culturais. Por isso é tão importante que o Estado incentive que isso permaneça, que isso se multiplique. Nós temos o Conservatório Municipal8, vinculado à Secretaria de Educação e sempre tivemos isso de descentralizar a arte, para que ela não seja só feita para o turista. Ela tem que ser para a população de Poços de Caldas, que paga seus impostos e que deve ter acesso à cultura porque é um direito constitucional, deve estar ao alcance de todos. Criamos um projeto chamado Cultura nas Escolas, que infelizmente terminou na atual gestão. A ideia era levar a arte para a comunidade escolar além do contra turno, em um intervalo, em alguns momentos. Isso aconteceu de 2014 a 2016 e utilizamos muito do conservatório, já que é um equipamento da prefeitura. Levamos isso na periferia e foi uma experiência muito bacana. Um dia eu acompanhei o projeto no PMJ do São José e, ao final, as crianças gostaram, o professor era muito comunicativo. Mas quando acabou tudo, algumas crianças perguntaram “secretário, não dá pra trazer também uma dança de rua, um break?”. Eu achei aquilo muito legal. A gente se identifica com o lugar em que a gente vive. Eles se identificam muito com o Hip Hop, muito mais do que com a música clássica. Não que a música clássica fosse ruim ou que eles tiveram preconceito, não. Mas eles preferiam o Hip Hop. Na outra semana a gente levou um grupo de Hip Hop e foi um êxtase. Foi uma experiência muito legal de linguagem mesmo. O Hip Hop se comunicou com a periferia muito mais do que um Beethoven ou Bach. Eles pertencem, têm raízes e isso é importante. Eu fiquei, inclusive, muito emocionado com isso porque, em um mundo 8 Conservatório Municipal Professor Antônio FerucioViviani

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em que você é influenciado por tantas coisas, eles foram influenciados pela cultura que estava próxima. No São José tinha o primo de um menino que estava num grupo de Hip Hop e aí ele não quer ser o Bach, ele quer ser o primo dele”. O processo de engarrafamento da água ajuda a levá-la para lugares distantes, mas, aliado à cidadania, começam as mudanças bem às margens do rio, justamente no canto em que há mais pedras a serem transpostas. João Alexandre acredita que, quando há incentivo à cultura para além do centro, os bairros têm mais chances de visibilidade e, chamando atenção por algo positivo, motiva os responsáveis a olhar também para as pedras da margem e a pensar em maneiras de deixar mais suave o relevo por debaixo das águas. “Nós criamos os editais, mas entendemos que nem todo mundo que está na periferia sabe escrever um projeto. O Mário é uma experiência exitosa, ele se formou primeiro em Administração e hoje tem os projetos dele. E eu acho que cabe ao poder público ter um olhar mais humano. Ali, no bairro, é onde está o povo de Poços de Caldas que se manifesta pela cultura. Seja pelo Hip Hop, sejam pelas congadas, caiapós ou folias de reis. Tem de haver mais políticas públicas para a população. Temos que incentivar e qualificar. A escola de tempo integral também pode ter essa linguagem. A escola da Zona Sul não vai querer uma aula de violino, vai querer o Mário dando aulas lá. A cultura é cidadania, é a libertação de muito desses jovens. Pode ser que tenha um jovem que vá para a escola para fazer as aulas de Hip Hop e comer. Talvez o restante seja desinteressante, mas a aula de Hip Hop faz com que a escola passe a ser interessante de novo. A gente precisa de políticas públicas e de pessoas sensíveis a essas causas

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também. O Hip Hop é uma ferramenta de pertencimento”.

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REFLEXO

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Pa

ra os pés tão acostumados com terra firme, flutuar em meio às águas é como sair, naquele instante, para um pouco além da realidade. Não muito distante, é claro. Ao redor continuam existindo terras e raízes, árvores e bichos. Mas, naquele momento, a sensação é outra. Ver-se refletido na água é como reconhecer que é parte deste mundo, sem se esquecer que estar além dele é possível. Por isso, a cultura se parece tanto com as águas. Os pés calejados por caminhar por caminhos, muitas vezes tortuosos, podem descansar quando imersos em um banho relaxante. Da mesma forma, aqueles que estão cansados dos cenários complexos em que vivem podem parar para contemplar a arte e pensar além do que está ao seu redor quando em contato com a cultura. Muito antes de saber que seria jornalista, eu já observava o mundo ao meu redor com olhos curiosos para o que está além do que se vê. Morei por 19 anos no bairro Santa Emília, ao lado de Thailine e Taisha, e estive com elas quando descobríamos o que era o Hip Hop. O que não aconteceu exatamente perto de casa. Ao redor de onde morávamos eram escassos os projetos ou iniciativas que levassem a cultura para mais perto das crianças e jovens. Quando cresci e notei que algumas crianças estavam na rua por tempo demais e que, por vezes, ainda, envolvidas com os problemas que rua oferece, percebi também que as duas coisas poderiam ter relação. A cultura Hip Hop também vem da rua e fica na contramão, do lado das soluções. Em 2019, já cursando o penúltimo ano da faculdade de Jornalismo, poucos detalhes passavam despercebidos aos meus olhos ainda mais curiosos. Mudei-me para o bairro São

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José e, da minha casa, durante o dia, ouvia os beats do Hip Hop. À noite ouvia gente rimar. Descobri, pouco depois, que se tratava do projeto A-viva Cultura, do Schultz, e da Batalha da Quadra, do TLZ. As mudanças que a cultura promove ficaram, para mim, cristalinas. Foi como atravessar a rua. O Jornalismo Cultural veio a mim na prática muito antes do conceito. Em minhas experiências de estágio, as pautas culturais sempre estiveram presentes. Ainda que nunca tenha estado imersa nas águas do Hip Hop com as manifestações artísticas, sempre estive ao redor, no reflexo, apreciando e desejando que ainda mais pessoas fossem tocadas pela arte e, principalmente, pelas transformações que ela propõe e proporciona. Uma vez que não rimo, não danço, nem toco ou grafito, dediquei estas páginas a este objetivo: fazer com que o Jornalismo Cultural cumpra seu papel de condutor sobre estes rios. Que ele seja instrumento, não somente de informação; mas de formação, empoderamento e pertença. Que ele não fique apenas na superfície do que, tradicionalmente, é reconhecido como cultura, mas que faça emergir das profundezas outrora desconhecidas - e por isso, temidas e negadas - uma voz nova, efervescente e legítima.

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SOBRE A AUTORA Camilla Resende nasceu há 21 anos na cidade das águas sulfurosas e aprendeu desde cedo a traduzir o mundo nas palavras mais bonitas que encontrou ao longo da vida. Com mãos cuidadosas, ela sabia escavar o que tinha de mais bonito nos seres, fosse bicho, movimento cultural ou gente. Foi por esse encanto pelo mundo que ela descobriu no Jornalismo um caminho para contar histórias como essas. Por Victória Silveira, melhor amiga de infância

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