COMO SE FOSSE DA FAMÍLIA, a transformação pelo trabalho doméstico

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CAPA


FICHA CATALOGRÁFICA L788c

Locatelli, Alessandra dos Reis Como se fosse da família... A transformação pelo trabalho doméstico. / Alessandra dos Reis Locatelli. - 2020. 66 p. : il. Trabalho de conclusão de curso de Comunicação Social com habilitação em Jornalismo – Centro Universitário das Faculdades Associadas de Ensino, São João da Boa Vista, 2020. Orientação: Prof. Me. Camilo Antônio de Assis Barbosa.

1. Empregado doméstico. 2. Família. 3. Vida. I. Locatelli, Alessandra dos Reis. II. Título. CDU 647

©2020, COMO SE FOSSE DA FAMÍLIA, a transformação pelo trabalho doméstico; Todos os direitos reservados a autora. Projeto gráfico e diagramação: Gabriel Saraiva Ilustração de capa: rawpixel - br.freepik.com Um livro reportagem desenvolvido e apresentado como projeto de conclusão de curso para a obtenção do título de bacharel em Jornalismo, no Centro Universitário das Faculdades Associadas - UNIFAE.


SUMÁRIO

08. Introdução 15. Tamillys Lírio da Silva 27. Fabiana Cristina Gonçalves Costa 37. Rita Helena Marcacini Garcia 43. Maria Assis da Silva Florêncio 49. Clarice de Fátima Machado Nicolau 55. Elsa Aparecida dos Reis Locatelli 65. Sobre a autora 66. Agradecimentos


“Ainda? Ainda não somos livres Ainda não somos livres Depois de tanto tempo Mamãe é escrava da casa grande num bairro de luxo Papai é escravo da cachaça no boteco da esquina Meu irmão mais velho é motorista de bacana Ainda não somos livres Ainda não somos livres! Depois de tanto tempo Eu ganhei uma bolsa de estudos meio do ventre livre A patroa da minha mãe é quem paga Sempre li as entrelinhas de todos os livros que encontrei Ainda somos escravos Nunca fomos eslavos Muito menos imigrantes Ainda não somos livres O capitão do mato espreita no carro preto com sirene estridente Se começar a operação pente fino não escapo Ainda há um barco que transporta a negrada todos os dias É o ônibus lotado cravejado de assaltos e balas perdidas Ainda não somos livres Favela é senzala Depois de tanto tempo.”

CRISTIANE SOBRAL


Caro leitor, Esse livro foi planejado e realizado com muito carinho. Nas próximas páginas você vai conhecer alguns personagens que construíram seus mundos trabalhando como empregadas domésticas. Essas personagens são reais e me concederam a honra de contar sobre a vida delas. Mulheres que enfrentaram dificuldades mas que, com muita luta e força de vontade, venceram na vida e conquistaram seus objetivos. Desejo a você que, com a leitura, perceba com outros olhos esse universo que nos rodeia e que integra o dia a dia de nossas vidas.

BOA LEITURA!


APRESENTAÇÃO

O livro “Eu, empregada doméstica. A senzala moderna é o quartinho da empregada”, escrito pela historiadora e rapper Preta Rara, traz relatos inéditos de mulheres empregadas domésticas, e deixa claro o racismo estrutural do país. A cantora trabalhou durante nove anos na profissão. No último emprego, foi demitida porque não aceitava comer os restos de comida oferecidos pela patroa. Há mais de três anos, decidiu relatar o ocorrido no seu perfil em uma rede social. Em pouco tempo aconteceu uma grande repercussão e começou a receber inúmeras histórias semelhantes. Em setembro de 2019 decidiu reunir essas narrativas e transformá-las em livros. Mas, afinal, será que todos os empregados domésticos enfrentam os mesmos problemas? Será que exercem essa profissão por hereditariedade? Por que elas escolheram essa profissão? Partindo de algumas dessas questões, esse livro fala sobre o assunto, num contexto que permeia a construção de nossa sociedade, desde a vinda dos escravos para o Brasil. O foco da obra é a história de seis mulheres que, desde muito novas, atuam como empregadas domésticas para sobreviverem. São relatos como o de Tamillys Lírio da Silva, jovem de 30 anos, que assumiu as faxinas da mãe, enquanto ela se curava de um câncer de mama. Outra, da dona Maria Assis da Silva Florêncio, que trabalhou mais de 40 anos na mesma casa. Já Elsa Aparecida dos Reis Locatelli criou e formou as três filhas com o salário de doméstica, em uma vida de altos e baixos... As histórias são seletivas e narradas a partir do tempo em


que se encontra o personagem. Dessa forma, o texto respeita as peculiaridades, medos e mistérios. São apenas algumas histórias das muitas que acontecem todos os dias no nosso país. A escolha dos personagens foi feita com base em indicações de amigos e por conhecer alguns deles. Espero que o leitor possa refletir sobre o tema e que os empregados domésticos se sintam representados por este trabalho.

ESSE LIVRO EU DEDICO Com muito carinho, para a melhor mãe que eu poderia ter, Elsa.


INTRODUÇÃO O Brasil teve o maior número de escravos do Hemisfério Ocidental durante três séculos e meio. Só aqui chegaram quase cinco milhões de africanos cativos, ou 40% dos 12,5 milhões que embarcaram para a América. A finalidade do tráfico humano era oferecer mão de obra para a indústria do açúcar no Nordeste (primeira atividade econômica importante colonial). Porém, a ideia se espalhou rapidamente por todas as divisões da sociedade e da economia. Trezentos e cinquenta anos se passaram e mais de 6 milhões de seres humanos foram traficados. Até que em 1850, o Ministro da Justiça durante o Segundo Reinado, Eusébio de Queirós Coutinho Matoso da Câmara (1812-1868), promulgou a Lei nº 581, Eusébio de Queirós, que proibia o tráfico. Em 28 de setembro de 1871, os escravos conseguiram mais um direito: a Lei do Ventre Livre, também conhecida como Lei Rio Branco. Determinava que os filhos de mulheres escravizadas, nascidos a partir daquela data, ficariam livres. Foi uma das imposições mais significativas do período, além de ser resultado de uma ampla discussão no Parlamento, aprovada com 65 votos favoráveis e 45 contrários. Em 1872, foi realizado o primeiro senso no país, que constatou que havia pouco mais de 10,1 milhões de habitantes, dos quais 1,5 milhões, eram escravos. Em 1886 foi apresentado o Código de Posturas Municipais sobre Criados e Amas de Leite, que tentava regularizar os serviços realizados pelas mulheres. Por

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meio de contratos registrados na polícia, anotados a mão pelo escrivão, constava-se o valor e data de pagamento do salário, além da função exercida. Na última década do período imperial brasileiro, a regente do país, Princesa Isabel, em 15 de maio de 1888, colocou um ponto final na escravidão com a Lei Áurea, dando liberdade a cerca de 700 mil escravos, que viviam em um país de 15 milhões de habitantes. Para a doutora em história, Ana Luíza Mello Santiago de Andrade1, o contexto era de instabilidade e tensão social. A questão da escravidão era um ponto importante a ser resolvido e vinha, desde meados do século XIX, causando preocupação. A promoção das diversas leis tentava adiar uma solução definitiva. A partir dessa data, houve a migração das mulheres que trabalhavam nas casas dos senhores. Como não sabiam fazer outro trabalho e não tinham como sobreviver, se tornam o que chamamos hoje de empregados domésticos.

DE MONARQUIA À REPÚBLICA A forma de governo do Brasil deixou de ser monárquico e passou a ser republicano. E no dia 1º de maio de 1943, o presidente Getúlio Vargas sanciona o DecretoLei nº 5.452, que cria a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), unificando toda a legislação trabalhista existente no país. O objetivo era regulamentar as relações individuais e coletivas do trabalho, garantindo que todos os trabalhadores brasileiros estivessem seguros por lei. ¹ Artigo publicado no site Info Escola, no dia 06 de fevereiro de 2017.

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Porém, uma classe profissional foi isenta de todos os benefícios: os empregados domésticos. Em 1972, o então presidente Emílio Garrastazu Médici sanciona a Lei n°5.859/1972, estabelecendo que é considerado empregado doméstico aquele que presta serviços diários à pessoa ou à família no ambiente residencial. Já diarista é aquele que recebe por dia de trabalho, sem vínculo empregatício. Trinta anos mais tarde, a Lei nº 10.208/2002 regulamentou o direito do empregado doméstico ao FGTS (Fundo de Garantia do Tempo de Serviço) e ao seguro-desemprego. Porém, a medida dependia da liberalidade do empregador. Sendo assim, foi efetivada apenas em alguns casos. No dia 02 de abril de 2013, o Congresso Nacional promulgou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 66/2012, apelidada de “PEC da doméstica”, que se transformou na Emenda Constitucional (EC) nº 72/2013. A PEC regularizou a profissão e estabeleceu benefícios igualitários das demais categorias para a classe trabalhadora. Porém, a Lei foi oficializada dois anos depois de sua criação, no dia 01 de junho de 2015. Após a vigência da Emenda Constitucional os empregados domésticos, que antes não tinham direito algum, passaram a ter: jornada de trabalho estabelecida de até 44h semanais, com no máximo 8h dia, hora extra, banco de horas, intervalo de refeição e/ou descanso, repouso semanal remunerado, férias anuais, 13º salário, licença maternidade e estabilidade pós parto, vale transporte, FGTS, seguro desemprego e salário família, aviso prévio indenizado e homologação. O salário doméstico é de R$ 4,75 a hora (como base o mínimo nacional ou da região/2020). A OIT (Organização Internacional do Trabalho) defende que 10 ALESSANDRA LOCATELLI


o trabalho doméstico remunerado é uma atividade essencial ao bom funcionamento da economia, pois garante, por meio das atividades de cuidado, a reprodução social. Por outro lado, destaca que: “Apesar dessa importância central para a organização social e econômica do país, a categoria se caracteriza pela invisibilidade, desvalorização e baixa regulamentação, apresentando um conjunto de aspectos que o distanciam do conceito de serviço decente”. (OIT Brasília, 2020) Segundo a Organização2, o empregado doméstico geralmente recebe salários baixos, trabalha por horas sem descanso semanal garantido e, às vezes, é vulnerável a abusos físicos, mentais e sexuais ou a restrições à liberdade de movimento. Essa exploração reflete muitas vezes a discriminação presente nas relações sociais, de gênero e raça. Atualmente, segundo censo divulgado pelo IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – no último trimestre de 2019, o número que essa classe trabalhista representa em nosso país é de cerca de 6,25 milhões. Porém, desses, 1,77 milhões tem a carteira assinada. O restante, 4,59 milhões, trabalha na informalidade. É válido ressaltar que em sua maioria são mulheres e negras. Não podemos apagar da memória que os empregados domésticos fazem parte de uma classe econômica desvalorizada, esquecida pela sociedade, e que são frutos de uma herança escravista. Mesmo com todos os direitos conquistados, a triste realidade de péssimas condições de trabalho ainda existe no nosso país. Não é permitida por lei a escravidão nos moldes antigos, onde seres humanos eram vendidos e comprados, como se fossem mercadorias. Mas, vemos nos noticiários pessoas que ² Em seu site disponível para consulta ilo.org.

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são submetidas a situações de emprego similar ao cativeiro, exploradas mediante a pagamentos de salários insignificantes (ou nem isso), além da privatização da liberdade de ir e vir. Esta obra quer dar a oportunidade dos empregados domésticos serem protagonistas de suas próprias histórias, dando voz e vez a todos eles. Além de mostrar o quão valioso é o trabalho realizado por todos esses profissionais.

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CAPÍTULO 1 A L E S S A N D R A L O C AT E L L I

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TAMILLYS LÍRIO DA SILVA “Eu achava que sonhar era desperdício, nem ousava sonhar, ia sonhar pra que, pra me frustrar?”. (Tamillys Lírio da Silva, 30, psicóloga,Campos dos Goytacazes, RJ. Empregada doméstica por dois anos.) Sua vida começa em 1980, quando os pais se casam e veem na cidade de Cabo Frio, RJ, a oportunidade de trabalhar como caseiros e melhorar de vida. Começaram a poupar dinheiro para construir uma casa, pensando em aumentar a família, porém, o pai descobre que tinha problemas de fertilidade. Durante 10 anos ouviram os médicos dizer que não poderiam ter filhos. Foram inúmeros tratamentos, até que durante uma corrida matinal pela praia do Peró, a mãe desmaiou e veio a notícia de que era gravidez. Dois anos se passaram. Tamillys era a euforia da casa,a filha tão esperada. Porém, o pai é vítima de um acidente vascular e morre. A vida virou de cabeça para baixo. Mudam-se para Macaé, porém, a vida não acerta e voltam para a cidade natal. Sua mãe trabalhava como enfermeira no hospital da cidade. Porém, devido a uma miopia severa - sequela da meningite que teve quando criança – é obrigada a deixar o ofício e trabalhar como doméstica e babá. “Ela sempre foi muito realista comigo. Não sucumbiu e conseguiu se manter, mesmo perdendo meu pai. Mas presou em me dar essa injeção de realidade, mostrando que a vida não seria um conto de fadas”, conta. Tendo que aprender a lidar com a ausência materna, por conta do trabalho, passou a infância migrando entre

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a casa da avó e da tia. Muitas vezes, para ficarem mais perto, a mãe a levava para o trabalho. Em uma das vezes, estava no quartinho da empregada, como sempre ficou. A patroa colocou um pouco de suco no copo, bebeu e ofereceu o restante. Imediatamente sua mãe se revolta e responde: “Não! A minha filha não vai beber resto. Eu não ofereço resto para os seus filhos”. Pegou a menina, a bolsa e saíram da casa. Ao relembrar da cena, Tamillys se emociona. Devido a todo esforço, a mãe sempre prezou pela educação de qualidade para a filha. Por isso, estudava em um colégio particular. Entre os 8 e 9 anos, a tia engravidou. O amadurecimento veio de forma precoce, pois tinha que ficar sozinha em casa e aprender as tarefas domésticas para ajudar a mãe. Na adolescência sai do colégio particular e vai para um público. Mais mudanças: acordar mais cedo, pegar ônibus, chegar em casa tarde, além das adaptações. A mãe sempre trabalhando muito e sendo realista com tudo que enfrentavam. Aos 14 anos, após ter ido a uma festa com uma amiga, Tamillys recebe um telefonema da mãe. “Foi a primeira vez (eu não me esqueço disso) que eu a vi chorar. Chorava muito, muito, muito. E eu, logicamente, fiquei desesperada; nunca tinha visto ela assim. Sempre teve essa coisa de ser forte, do estereótipo da mulher negra forte, que tudo suporta. E naquele momento não podia ser. Então me falou: “Filha, fiz um exame e deu que tenho câncer de mama”, conta emocionada. Mais uma vez Tamillys e a mãe têm a vida revirada. Naquele momento a adolescente começa a sentir um turbilhão de emoções. Foram muitas biópsias para saber a gravidade. E a mãe teve que se afastar novamente do 16 ALESSANDRA LOCATELLI


trabalho por conta do tratamento. Dessa forma, a filha iria ter que trabalhar para ajudar nas contas, pelo menos até a recuperação. E não pensou duas vezes. A batalha por um emprego começa. Tias e avós se mobilizam e todos tentam ajudar, até que surge uma família na qual a avó, tia e a própria mãe já tinham trabalhado. Era no mesmo bairro e daria para conciliar o trabalho, estudo e o apoio em casa. A família era muito boa. Ela cuidava de uma menina e fazia todo o serviço da casa. O patrão e a patroa entendiam a situação em que se encontrava e sempre ajudavam. “Mas a avó, que vivia com eles, era uma pessoa que quando lembro fico arrepiada. Não era fácil de lidar. Diversas vezes olhava com preconceito e nojo para mim. Me tratava como se fosse uma serva, além de mandar refazer as tarefas”. Chega a cirurgia da mãe. Para Tamillys o pior dia de sua vida. Já havia perdido o pai e agora o perigo de ficar sem a mãe que tanto amava. Após a operação vem o tratamento. Dias difíceis em que procura conciliar o trabalho, estudos e faxinas esporádicas para complementar a renda. Sem contar que ao chegar em casa tinha que lidar com a situação de ver a mãe sem cabelo e enfrentando fortes sessões de radioterapia. Se via muito sozinha, pois escondia dos amigos a situação. “Eu me culpava também. Falava: o que aconteceu? O que eu fiz? Porque eu não entendia. Perdi meu pai, e pensava: por que comigo?”, relembra em lágrimas. Nas férias de final de ano ia para Cabo Frio, pois a patroa da casa em que era fixa viajava. Para não ficar sem renda, conseguia faxinas extras. Em uma das casas, uma senhora usou um cloro específico para piscinas no rejunte do banheiro. Passou e deixou de molho para que depois

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esfregasse. Tamillys teve uma forte alergia com o produto, começou espirrar e sofreu várias reações. Disse à patroa que não poderia continuar, pois estava passando mal. No mesmo instante recebeu como resposta que não poderia ter frescuras; que alergia era para pessoas ricas. Pobre não tinha esse tipo de coisa, e que iria limpar sim. Mandou se ajoelhar e esfregar o rejunte até que ficasse extremamente branco. Em outra situação, em uma família diferente, foi para um clube refinado com os filhos. Tamillys estava com roupa de praia, cuidando das crianças, enquanto os pais aproveitavam o dia. Até que no momento de entrar na piscina, foi proibida, por conta da função. Os pequenos poderiam, mas sem a babá. Ficou do lado de fora. Um deles bateu com a boca na piscina e perdeu o dente que já estava mole. Ficou ensanguentado e acabou com o passeio. Para ela foi um dia horrível, em que se sentiu muito mal pela forma como foi tratada e pelo ocorrido com a criança. Sempre amou estudar e sempre foi boa aluna, esforçada e dedicada. Nesse período, ter que deixar de lado os cadernos e livros de certa forma foi um dos piores momentos. “Estudar também era muito difícil, porque não tinha tempo. Penso que poderia ser uma aluna brilhante se tivesse tido mais tempo; e não tive”. Precisava enfrentar as dores físicas e não abandonar o serviço. Muitas vezes, com cólica era obrigada a esfregar os pisos, lavar o quintal, limpar banheiros, além da criança que tinha que cuidar. Mas, nada disso era pior do que pensar na possibilidade de ficar sem a imagem de mulher que enfrenta tudo e não chora: a imagem da mãe. Nas faxinas esporádicas teve que lidar com as situações 18 ALESSANDRA LOCATELLI


de assédio. Homens paravam na porta para que passasse e esfregasse; olhares cobiçados, risadas fora de hora. Mas sempre manteve a postura profissional, apesar de muito nova. Nunca concedeu liberdade; evitava até argumentar com os patrões para evitar esse tipo de situação, mas, infelizmente não adiantava. Sem contar no tratamento das faxinas esporádicas: não podia comer da mesma comida, transitar em certos lugares, se sentar à mesa que usavam; usar os mesmos talheres e banheiro, nem em sonho. “Foram dois anos, dois anos terrivelmente difíceis, porque minha mãe estava doente. Então era o sofrimento de vêla mal, de achar que eu ia ficar sozinha, e o sofrimento do trabalho, de conciliar o estudo, todas as pressões adolescentes... Foi um período muito, muito difícil. Não glamorizo nada do que aconteceu. Só a gente sabe; só eu vi o que aconteceu, mas é doloroso, foi muito doloroso, difícil. Mas, enfim, graças a isso e todas as outras lutas sou o que eu sou. Então, de certa forma, sou muito grata também.” Após muitas sessões de radioterapia, sofrimento, dor e angústia, a mãe recebe a notícia de que estava bem. Por um tempo, teria que fazer o acompanhamento de 3 em 3 meses. Mais tarde, de 6 em 6. Dessa forma decide retornar gradualmente ao trabalho, para que Tamillys focasse nos estudos, mas que por um tempo continuasse ajudando na renda da casa. Decide reduzir a carga de trabalho. Pararia com as faxinas e, na casa em que era fixa, só olharia a criança. A patroa aceita, porém diminui o salário. Aos 16 anos, consegue uma vaga no Instituto Federal Fluminense, além de uma bolsa de trabalho como digitadora para deficientes visuais, e deixa o trabalho

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doméstico. As esperanças em dias melhores retornam. Um pouco mais tarde tenta o ensino técnico e consegue. Em 2008 conhece o namorado Lebron – hoje marido. Ele havia criado, dois anos antes, uma Organização Social: a Nação Basquete de Rua, na qual realizam trabalhos com crianças das periferias, tendo o basquetebol como ferramenta, além de desenvolver a prática do ‘streetbasketball’ e das vertentes do movimento Hip Hop. No ano seguinte, veem a necessidade de reorganizar a iniciativa. Surge, então, a a Organização Não Governamental Nação Basquete De Rua (NBR). Sempre com o pé no chão, é incentivada pelo marido a cursar uma faculdade. Porém, o maior medo era como pagar. Pretendia fazer Psicologia, mas na cidade não tinha. Porém, era tempo de mudanças e quando prestou o vestibular surgiu o PROUNI (Programa Universidade para Todos) e, por coincidência, abriu o curso em Campos. Conseguiu uma bolsa de 100% e foi uma alegria danada. Estava realizando o sonho do pai, que antes de falecer tinha criado uma poupança para que ela um dia conseguisse fazer um curso superior. 2015 foi um ano de altos e baixos. Se formou em psicologia, porém, sem a presença da mãe na colação de grau. Não podendo enxergar, não quis participar daquele momento. Esteve em Brasília (DF) e conheceu a sede da ONU (Organização das Nações Unidas) por meio de um curso que realizou. Mas também descobriu a hipertensão. Mais tarde, perdeu a avó. A mãe ficou muito abalada e começa a perder totalmente a visão, por conta da sequela da meningite. Três meses mais tarde o tio vem a falecer. Mas, com todo o crescimento e amadurecimento, 20 ALESSANDRA LOCATELLI


Foto: Arquivo pessoal

começou a enxergar um novo mundo. “Sempre penso no que eu diria para mim mais nova. Porque essa falta de compreensão sobre o que estava acontecendo comigo me assustou, me massacrou. Esse medo de assumir o que eu realmente era, a minha vida. Não me arrependo de nada. Acho que poderia ter feito mais. Agradeço por esse período; pelas lições que deixou para mim, minha consciência racial, minha consciência de classe. Tudo isso vem dessa história. Não me arrependo, nem mudaria, porque talvez hoje em dia o resultado seria diferente”. Trinta anos depois Tamillys consegue sonhar e quer realizálos. Um deles seria trabalhar na ONU. E lá se vão 12 anos participando da UNAIDS, programa das Nações Unidas criado em 1996, que tem a função de buscar soluções e ajudar nações no combate à AIDS. Tendo como objetivo prevenir o avanço do HIV, prestar tratamento e assistência aos afetados pela doença. Um trabalho de formiguinha, segundo ela, mas que auxilia inúmeras pessoas, e que ama.

Tamillys em visita à sede da ONU em Brasília



Tamillys durante atividade da ONG NBR Foto: Arquivo pessoal


Foto: Arquivo pessoal

A psicรณloga Tamillys e a mรฃe logo apรณs a formatura


Foto: Arquivo pessoal

Tamillys em uma das poucas fotos ao lado do pai


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CAPÍTULO 2 A L E S S A N D R A L O C AT E L L I


FABIANA CRISTINA GONÇALVES COSTA “Eu criei minhas três filhas trabalhando como doméstica e elas em creche. Graças a Deus, sem depender de ninguém.” (Fabiana Cristina Gonçalves Costa, 44, São João da BoaVista, SP.) Sua história começa no Sul de Minas Gerais, em Poços de Caldas, local em que nasceu e viveu até os quatro anos, quando os pais se separaram e a mãe, com duas filhas, se mudou para São João para oferecer uma vida melhor à família. Chegando à cidade, vão morar com a tia em uma chácara. A mãe consegue um trabalho como empregada doméstica. A infância é marcada por aventuras e brincadeiras, pois espaço é o que não faltava para as meninas se divertirem. Porém, o dever de ajudar a mãe com as despesas da casa e a vontade de ter o próprio dinheiro chamam a atenção. Com 10 anos começa, aos finais de semana, a lavar louça e varrer o quintal para uma senhora que morava ao lado. Eram muitas louças e a família era enorme. Um ano se passou uma das filhas da patroa engravidou de gêmeos e precisou de ajuda para cuidar das crianças. Naquele momento Fabiana começa a estudar de manhã e à tarde cuida das crianças. Por conta da mãe trabalhar muito, não sabia fazer um bom serviço doméstico. Mas, aos 12 anos a patroa já tinha ensinado tudo que precisava saber para cuidar de uma casa e, aos 13, fazer uma boa comida. “Ela não foi minha patroa. Para mim, até hoje, é como minha segunda mãe. Me ensinou tudo o que eu sei fazer. E a gente tem uma boa amizade, os filhos dela falam que eu sou a irmã caçula”, conta. Com o sonho de cursar Direito não parou com os estudos que fazia a noite. Dessa forma, poderia se dedicar durante o COMO SE FOSSE DA FAMÍLIA

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dia ao serviço. Com 14 anos, Fabiana começou a namorar. Dois anos depois veio a notícia de que estava grávida. Casouse. Porém, a angústia de trabalhar o dia todo, ter que deixar a filha na creche, a noite ir estudar e nos intervalos voltar para casa para amamentar, fizeram com que encerrasse o aprendizado e abandonasse o sonho de ser advogada. Quando Laryssa nasceu, parou por três meses com o trabalho e se dedicou a filha. Mas, as despesas da casa aumentam e tem que voltar. Consegue um emprego com uma filha da antiga patroa, mas a moça não pagava direito e, em todas as datas do recebimento, ouvia que tinha esquecido de sacar o dinheiro ou que estava sem. Até o dia em que se cansou e foi embora. O marido sempre trabalhou como servidor público, mas o dinheiro era pouco para o sustento da casa. Fabiana recebe uma proposta para trabalhar como caseira em uma chácara, que ficava dentro da cidade. Em troca do trabalho ganhariam casa para morar. Porém, o que não imaginava é que o serviço seria completamente diferente do que foi prometido. Para começar, a casa tinha 25 cômodos. O dono namorava uma mulher soberba e sem humildade. Entrava as 6h e saia às 20h. Tinha que limpar, lavar, passar, cozinhar... sem contar o serviço do jardim, que também era sua responsabilidade. Oito meses se passaram. A depressão, por não sair de casa e ter um serviço que exigia demais, foi surgindo. Um dia saiu em busca de uma casa para alugar. Por ser bem conhecida na cidade conseguiu fácil. Voltou para a chácara, empacotou a mudança e deixou um bilhete e a chave para o dono, dizendo que o combinado não tinha sido cumprido e estava indo embora. Nesse período, vem a segunda filha: Lethycia. Mais 28 ALESSANDRA LOCATELLI


uma menina. O serviço não para. Sempre com registro em carteira, segue a vida como empregada doméstica e o marido como funcionário público. A vida começa a melhorar e Fabiana não precisava acordar tão cedo e caminhar mais de quarenta minutos para deixar as filhas na creche. Já consegue pagar uma van escolar, que pegava as crianças na porta de casa e fazia todo o percurso. Seis anos depois, com a chegada da terceira filha, Luiza, a vida continua sendo dupla. Trabalhando como empregada doméstica, cuidando da casa, das filhas e do marido, sempre muito ativa e zelosa. Em uma das reuniões de escola, Fabiana ouviu uma mãe questionar por que ela era tão bonita e inteligente, mas lavava vasos sanitários dos outros. Como sempre foi de uma paciência curta, logo respondeu: “Filha, eu varro rua, lavo privada, faço o que for preciso, desde que meu dinheiro seja honesto. E outra coisa: ando com minha cabeça erguida, pois não devo nada para ninguém. Tudo que você tem, eu posso ter. A gente tem que ter dignidade”, conta. Dois anos depois começa um novo trabalho, como cuidadora. Nesse serviço, além de cuidar da patroa, limpava, lavava, passava, cozinhava, levava no médico, supermercado, fazia de tudo. Iniciou em um período em que a senhora estava com depressão. Então ficava deprimida pelos cantos e não conversava muito. Com o passar dos meses, Fabiana foi aumentando a auto estima da mulher e a ajudou a se curar. Faziam tudo juntas, já que na casa ficavam o dia todo sozinhas. Então, quando o almoço estava pronto, sentavam-se juntas a mesa, conversavam, brincavam e riam muito. No período de férias, nunca

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pode tirar o mês inteiro. Sempre dividia, pois os filhos da patroa tinham medo de que a mãe voltasse a ficar mal. Em 2014, consegue, com muita luta e suor, ajudar a primeira filha a se formar. Laryssa concluiu a graduação em Engenharia de Produção. Essa conquista enche a mãe de orgulho, que sempre quis ter uma formação, mas nunca conseguiu. Três anos depois, a do meio ingressa na faculdade de Jornalismo, e Fabiana precisa aumentar a renda para ajudála. Dessa forma, decide cuidar de uma senhora à noite. Mas continuou fazendo companhia para a outra patroa, durante o dia. Antes de começar o novo serviço, foi informada de que era uma mulher bem idosa e que nunca tinha aceitado nenhum cuidador. Passaram-se três dias e corria tudo bem, até que no horário de dar o remédio, a idosa grita a chamando de burra e fala que está errado. A paciência nunca foi um dom e respondeu: “eu não sou sua filha, não sou sua parente, nem nada sua. Vá gritar com os teus filhos que eu estou catando minha bolsa e indo embora. Preciso trabalhar, mas nem com um cachorro a gente grita, e não vai ser comigo que a senhora vai gritar.” Nesse momento, pegou o telefone e foi ligar para os filhos avisando que estava indo embora. A senhora ficou com medo, pediu milhões de desculpas e disse que não ia mais fazer aquilo. No serviço em que era fixa, trabalhava de segunda à sábado, e por estar em uma jornada dupla estava ficando muito cansada. Então, decidiu conversar com os filhos e falar que ia sair do emprego. Mas o pedido foi negado. Propuseram que dariam um sábado a cada 15 dias, de folga. Dessa forma, poderia continuar cuidando da mãe 30 ALESSANDRA LOCATELLI


deles, e descansar. Topou, já que precisava mesmo do emprego para continuar ajudando a filha na faculdade. Sete meses depois do acordo feito, em uma sexta-feira, um dos filhos descobriu que estava trabalhando a noite. Muito irritado chegou para Fabiana e disse que, a partir daquele momento, não teria mais folgas aos sábados, mas o que ele não esperava era que ela pediria as contas. A patroa, assistindo toda aquela cena, em lágrimas, pedia que não fizesse aquilo, pois não queria perder a cuidadora. Ele olhou para a mãe e mandou escolher, entre ele e ela. Óbvio que não teve escolha. A senhora não disse que sim, nem que não, para nenhum deles. Fabiana terminou o almoço. Comeram juntas, como de costume, mas como sabia que seria seu último dia, não aguentou e chorou, pois tinha muito afeto pela idosa. Colocou-a para dormir, organizou a cozinha, terminou seu serviço e, com muita raiva, colocou todo seu uniforme no lixo. Ligou para o filho, que imaginava que o aviso seria cumprido, e foi bem clara: “a partir de hoje não trabalho mais com a tua mãe. Não quero ser uma pedra na vida de ninguém. Passar bem. Ah! E segunda-feira eu quero a minha carteira dado baixa. Do contrário, você vai me pagar uma multa de um salário mínimo a cada dia que atrasar”. Inicia uma nova busca de emprego, mas, por estar cansada, Fabiana se dá ao direito de encontrar uma casa em que não tenha que trabalhar aos finais de semana. Encontra uma mulher bem sucedida que estava construindo. Iniciou o trabalho, mas como a casa era muito grande, pediu para contratar uma diarista para auxiliar nas atividades. Fabiana vem de uma família que é quase toda

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Foto: Arquivo pessoal

com base de mulheres empregadas domésticas. São duas tias, primas e a mãe, que ensinou o valor do trabalho e o quão falta reconhecimento. Com 10 anos para se aposentar, Fabiana sonha em ver as três filhas formadas e encaminhadas na vida, mas, principalmente, planeja parar de trabalhar. “A recompensa maior é ouvir elas dizendo que me amam; não tem dinheiro que paga. Chegar em casa, ganhar o abraço e o beijo das minhas meninas... amo estar com a minha família. Faria tudo de novo, porque toda minha história que vivi e vivo, não me arrependo de nada. Para mim, cada dia é um aprendizado, um dia após o outro, vivendo, aprendendo e crescendo.”

Fabiana e as três filhas 32 ALESSANDRA LOCATELLI


Foto: Arquivo pessoal

O primeiro sonho realizado, formando a primeira filha


Ao lado da sua matriarca Foto: Arquivo pessoal



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CAPÍTULO 3 A L E S S A N D R A L O C AT E L L I

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RITA HELENA MARCACINI GARCIA “Eu parti pra essa parte de diarista porque eu não conseguia trabalhar naquilo que eu gostava.” (Rita Helena Marcacini Garcia, 55, diarista desde os 49). Nascida em Botelhos, Minas Gerais, se mudou para Poços de Caldas, com 9 anos. É a caçula de uma linhagem de três irmãos. Os pais se divorciaram quando ainda era muito nova, e foi criada pela mãe. Por ser sozinha, com três filhos, enfrentaram dificuldades. Os irmãos tiveram que começar a trabalhar cedo e Rita tinha a obrigação de cuidar da casa e fazer a comida para a família. Caso contrário, recebia broncas da mãe, que sempre foi muito severa. Conseguiu o seu primeiro emprego como secretária de um consultório médico, onde ficou durante oito anos. Era a única para administrar oito doutores. Concluiu o ensino médio, fez Magistério, mas nunca exerceu a profissão. “Naquela época a gente não tinha o incentivo da mãe; parece que todo mundo queria ser professora. Não que era aquilo que eu queria, mas parece que eu não tinha vontade também de outra coisa”, conta. Quando saiu do consultório, entrou em um escritório de contabilidade. Continuou trabalhando com papéis e fazendo o que gostava. Ficou por quatro anos, quando, conheceu Davi e decidiu casar e largar o emprego. Logo quando se casou descobriu que estava grávida. Foi quando um primo, que tinha vários postos de gasolina, convidou-a e o marido para se mudar para Santa Rita de Caldas, e cuidarem do posto que ficava à beira da estrada, a 7km da cidade. Foi a oportunidade para saírem do aluguel. COMO SE FOSSE DA FAMÍLIA

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Rita cuidava de todo o escritório do posto sozinha, enquanto o marido era gerente. Logo veio a primeira filha, Marcela. Como vizinhos tinham o restaurante que era de um rapaz, mas logo fechou e foi embora, e um borracheiro, mas que também não ficou por muito tempo. Foi um ano muito difícil, pois estava com uma filha recémnascida, longe da família, e todos os dias ficava sozinha, pois seu marido ia até Poços de Caldas fazer depósitos. Ficaram por um ano nesse emprego. O primo decidiu arrendar o posto e chamou o casal para se mudarem para Espírito Santo do Pinhal, São Paulo, para cuidarem de outro posto que era dele. Aceitaram o novo desafio e foram, ambos com a mesma função. Dois anos e meio depois vem a segunda filha, Bruna. Nessa época foram guardando dinheiro para conseguirem comprar uma casa, e logo esse sonho foi realizado. Rita descobriu que estava grávida novamente; era um casal de gêmeos. Mas, infelizmente teve complicações, perdeu uma das crianças; o outro chegou a nascer, mas não sobreviveu. Um pouco mais tarde, engravidou novamente, mas também não houve nascimento. Oito anos se passaram e o primo faleceu. O novo dono ainda ficou com o casal por dois anos, mas dispensou. Conseguiu emprego no escritório de um supermercado da cidade; fazia toda a contabilidade. Quatro anos depois, o proprietário começou a não pagar as dívidas e os funcionários começaram a sair. Logo, também decidiu pedir demissão. Enquanto o marido comprou um ônibus para levar os trabalhadores que estavam fazendo a duplicação da pista, entre Espírito Santo do Pinhal e Mogi-Guaçu. Quando 38 ALESSANDRA LOCATELLI


terminou a obra vendeu o transporte e comprou um caminhão. Tentou ser caminhoneiro por conta própria, mas não teve retorno financeiro e decidiu voltar a ser empregado. Nessa época, Rita já estava com mais de quarenta anos. Enviava currículo para todos os estabelecimentos da cidade, mas ninguém a contratava. “Eu acho que o pessoal sempre julga muito pela idade, acha que a gente não tem capacidade”, conta. Então soube que estava tendo um concurso estadual para organização escolar, temporário, por um ano. Prestou e passou. Foi trabalhar como inspetora em uma escola de ensino fundamental e médio. Acabado o contrato voltou a encaminhar diversos currículos, sem sucesso. Até que uma amiga que tinha feito no trabalho da escola, conta que havia uma moça, que estava vindo de São Paulo e precisava de alguém para cuidar da casa três vezes na semana. Precisando do emprego e voltar a ter a sua independência financeira, aceita na mesma hora. O trabalho era dos sonhos: apenas limpava a casa e passava as roupas, pois a patroa só comia em restaurantes e gostava de lavar a própria roupa. Entrava mais tarde e chegava cedo em casa. Não aceitou ser registrada porque a intenção era ficar ali até conseguir um emprego na área em que sempre trabalhou. Mas, por ir três vezes na semana na mesma casa, sempre recebeu 13º salário e férias. O tempo foi passando e nenhuma outra oportunidade aparecia. Quatro anos depois, a patroa decide voltar para a capital e ficar com o filho. Novamente fica desempregada. Como não conseguiu voltar para a área inicial, começou a trabalhar como diarista. Foi de casas de família a lojas de comércio. Em todos os lugares, sempre foi muito bem

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Foto: Arquivo pessoal

tratada, conversa com os patrões, usa o mesmo banheiro da casa, pode comer da mesma comida, mas não come, porque prefere não fazer horário de almoço para ir embora mais cedo. Geralmente as casas são muito grandes, mas uma em especial chamou sua atenção. Chegou para organizar o lar e, além de ser enorme, tinha muitos móveis e objetos para tirar do lugar. Ficou um dia inteiro e teve que voltar no outro para terminar. Não dava conta de tanta coisa que tinha. Depois desse dia preferiu não voltar mais, porque ficou muito cansada. No decorrer da vida, teve alguns momentos em que o marido ficou desempregado e seu salário de diarista conseguiu suprir as necessidades da família. Esse é o maior motivo de continuar na profissão: “eu não tenho o que reclamar, apesar das dificuldades. É cansativo, mas gosto de poder saber que tenho meu dinheiro, que não dependo de ninguém para fazer o que eu quero”. Em dezembro de 2019, Rita formou a filha Bruna na faculdade de Administração de Empresas. Sonho realizado, com muito esforço e alegria. Hoje quer ser avó, mas continuar trabalhando. Está presente em cinco casas como diarista fixa, e em algumas vai uma vez por semana e outras a cada 15 dias.

Junto com a mãe, formando a filha caçula 40 ALESSANDRA LOCATELLI


Foto: Arquivo pessoal

Rita, ainda tem esperanรงas de voltar a รกrea da contabilidade


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CAPÍTULO 4 A L E S S A N D R A L O C AT E L L I

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MARIA ASSIS DA SILVA FLORÊNCIO “Adoro trabalhar. Prefiro trabalhar que pedir. Não gosto. Eu quero ter para dar, pois me sinto feliz em ajudar os outros”. Maria Assis da Silva Florêncio, 65, e há mais de 40 anos trabalhando como empregada doméstica na mesma família. Maria nasceu em Cansanção, no interior da Bahia, em uma fazenda. Fruto de um relacionamento que gerou outros 6 irmãos, dos quais, dois morreram logo após o parto. O sustento da família sempre esteve na porta de casa. O pai plantava e cuidava de animais; a mãe ajudava na lavoura, cuidava da casa e dos filhos e, à noite, fazia costuras para complementar a renda. Com uma realidade diferente da que está acostumada hoje, Maria não teve oportunidade de estudar. “Para nós ter estudo, tinha que contratar uma professora de fora. Meu pai contratou uma; deixou em casa um ano mais ou menos. Mas, a gente não aprendeu tudo; aprendeu pouco, a assinar o nome e ler”. Aos 21 anos, o primo do pai a convida para se mudar para São Paulo. Em busca de melhorias, não recusa, até porque a vida no interior nordestino não dava muitas oportunidades, e já se sentia grande para continuar dependendo dos pais. Chegando à capital, inicia o trabalho em uma casa de família enorme. Eram 17 empregados; um para cada função. O patrão com três filhos de um relacionamento e a patroa com mais três de outro, além da mãe e da irmã do empregador. Não faltava trabalho. Maria não recusava serviço algum; sempre ajudou com tudo, na limpeza, cuidava das roupas, auxiliava na cozinha e até cobria folga das colegas.

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Uma época muito boa em que os patrões sempre foram muito generosos. À noite, no final do turno, entregava um cheque em branco para os empregados se divertirem. Eles iam todos para as festas da cidade, voltavam tarde da noite, e no outro dia estavam de pé cumprindo o horário. Todos moravam na mesma casa dos patrões. Cada um tinha o seu quarto e comiam da mesma comida. Eram tratados como se fossem da família. Sempre tiveram muito respeito e consideração por todos. Dias vão, dias vem, até que, por meio de amigos, conhece um homem que trabalhava na mesma rua, e descobre que também tinha vindo do nordeste em busca de melhores condições de vida, do Recife. Era motorista particular em uma empresa. Engatam um namoro e logo se casam. Foi uma festa danada. Cada um ajudou com o que podia: a patroa deu o vestido, o patrão a garagem da casa para receber os convidados, a irmã do dono, a maquiagem. Os familiares da Bahia vieram todos. Nove meses depois vem o primeiro filho, um menino, Wiliam, mas não para de trabalhar. Consegue autorização do empregador para levá-lo ao serviço. Quatro anos depois vem o segundo, uma menina, Ana Paula. Mas dessa vez precisa sair do trabalho porque não poderia ficar com os dois na casa. Foram três anos bem complicados, porque sempre foi muito ativa e independente. Por isso, começou a ficar doente por ter que permanecer sem trabalhar. Então, decide procurar um trabalho. De início conseguiu roupas do patrão do marido para passar, mas, ainda infeliz, resolve procurar outra coisa. Começa como diarista na casa da enteada da ex patroa, enquanto os filhos ficavam com uma babá, porém, nenhuma 44 ALESSANDRA LOCATELLI


de confiança. Não cuidavam direito, além de não ser como gostava. Até que o marido consegue cadastrar as crianças em um colégio perto do serviço. Assim, poderia levar e buscar. Nas férias escolares, Maria e o marido também paravam de trabalhar. Iam todos para o nordeste visitar as famílias. Levavam presentes da capital e se divertiam muito, pois era uma realidade que as crianças não estavam acostumadas. Passavam o mês todo entre Recife e a Bahia. Até que um dia, recebe a notícia de que tinha perdido o pai. Uma morte súbita que abalou muito sua vida. Infelizmente, não pode ir ao enterro, pois era muito distante e não chegaria a tempo. Em meados de 2014, por conta da dificuldade financeira, a família tem que se mudar para um bairro mais simples. Wiliam, se envolve com algumas amizades que o levam para o uso de drogas. Uma fase muito difícil para todos, mas, o que não sabiam é que mais tarde isso iria desencadear uma doença em que todos tiveram que aprender a lidar, a esquizofrenia. Um ano depois, recebe a notícia de que a mãe estava muito doente e hospitalizada. Mais um susto e noites sem dormir, pois não podia estar junto, e a distância fazia com que se sentisse culpada, pois tinha saído muito cedo de casa. Infelizmente a mãe vem a óbito. Mais uma vez não pode ir ao enterro e teve que se despedir da mãe um tempo depois, quando conseguiu ir para o nordeste. Por não ter estudado, o que sempre pediu aos filhos é que o fizessem e se tornassem “alguém na vida”. Não queria que fossem empregados domésticos, pois sempre teve consciência que é uma classe desvalorizada. Ana Paula, sempre muito motivada pela mãe, após

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se formar no ensino médio, ingressou na faculdade de Psicologia, também para tentar compreender a doença do irmão e ajudar a família com o tratamento. É chegada a hora da aposentadoria, mas descobrem que os patrões, com os quais nunca tiveram nenhum problema, não estavam em dia com o INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). Então tiveram que fazer um acordo para não irem resolver o caso na Justiça. Mas não parou de trabalhar imediatamente. Continuou como se nada tivesse acontecido, até porque sempre gostou muito do que faz, e não queria voltar a ficar em casa. “Eu gosto de trabalhar, qualquer coisa que eu fizer. O importante é que eu faça alguma coisa. Me sinto bem”, conta Recentemente, Maria decidiu parar. Chegou a hora de aproveitar a vida e descansar, usufruir do ardo trabalho de mais de 40 anos. “Porque eu vim lá do interior, da roça, sem experiência nenhuma. Aprendi muito com os meus patrões. Como me comportar, de tudo eu sei um pouco e devo ao meu serviço. Foi no dia a dia trabalhando que aprendi. Só tenho orgulho da minha batalha. Me sinto viva e não me arrependo”.

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Foto: Arquivo pessoal

Maria e Ana Paula durante a formatura em Psicologia


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CAPÍTULO 5 A L E S S A N D R A L O C AT E L L I

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CLARICE DE FÁTIMA MACHADO NICOLAU “O sonho que não realizei foi estudar e me formar.” (Clarice de Fátima Machado Nicolau, 65. Santo Antônio do Jardim, SP). Nascida em uma fazenda no interior de São Paulo, em Santo Antônio do Jardim, é fruto de um relacionamento que gerou oito irmãos. Eram unidos e se divertiam muito. Estudou até o quinto ano do Ensino Fundamental em uma escola na própria fazenda onde morava, porque tinha que ajudar o pai na lavoura e a mãe com os serviços de casa. Aos 17 anos se casou e mudou para uma fazenda vizinha. Logo em seguida veio a primeira filha, Marisa. Um ano e meio depois a segunda, Mônica. Dois anos mais tarde a terceira, Magda, e em seguida Milena. Aos 22 anos, Clarice já tinha as quatro filhas e realizado laqueadura. Ficou em casa até a mais nova completar 12 anos. Depois já estavam todas na escola e decidiu voltar a trabalhar na roça, com o marido. Nessa época, o irmão decidiu se mudar para a cidade vizinha, Espírito Santo do Pinhal, e levar toda a família. Como não queria ficar longe, decidiu ir junto. Chegando à nova cidade, teria que arrumar um emprego para ajudar nas despesas da casa, já que pagaria aluguel. Começou a trabalhar para um casal como empregada doméstica. Era tudo muito tranquilo: lavava, passava, cuidava da casa e auxiliava com as crianças pequenas. Ficou um ano e meio com eles. Depois conseguiu emprego em uma lavanderia para trabalhar como serviços gerais. Ajudava em todos os setores. Dois anos mais tarde a patroa vendeu o local e comprou uma padaria. Lá continuou por mais dois COMO SE FOSSE DA FAMÍLIA

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anos, quando o estabelecimento fechou. Sem demora, conseguiu serviço com uma viúva que morava em São Paulo, mas vinha sempre para o interior. Cuidava da casa e auxiliava com a comida. Tinha dois filhos, já adultos, que também estavam sempre na cidade, cada um com uma fazenda. Três anos depois, o marido adoeceu. Sai do emprego para conseguir ficar mais tempo cuidando dele. Com as dificuldades surgindo e as contas chegando, teve que retornar ao a cuidadora para ficar com o marido. Conseguiu trabalhar para uma professora da cidade, que tinha duas filhas pequenas. A mais nova com apenas dois meses. Nessa casa fazia de tudo: lavava, passava, cozinhava, cuidava das crianças, era tratada como se fosse da família. “No começo, a mais nova começou a me chamar de mãe. A patroa ficou com medo. “Ela vai chamar você de mãe e eu não”. Então começou a me chamar de Ice. Chama até hoje”, conta. Trabalhava por mês, mas sem registro em carteira. Entre idas e voltas, ficou seis anos. Apesar de ter que olhar as crianças, além de fazer o serviço doméstico, foi a casa com quem mais teve sentimento afetivo. Os patrões não interviam na relação casa x empregada x filhos. Um tempo depois soube que havia uma Organização Não Governamental (ONG) que estava precisando de uma pessoa para realizar os serviços domésticos no escritório. Foi atrás e descobriu que era da nora da viúva de São Paulo. Está até hoje nesse serviço, há mais de 15 anos. A tarefa é manter a organização e limpeza das salas e fazer um café quando recebem visitas. O local é um casarão antigo, com muitos cômodos grandes. Trabalha de segunda a sexta. Entra antes dos funcionários para conseguir limpar sem interrupções. 50 ALESSANDRA LOCATELLI


Houve uma época em que o patrão decidiu se pré candidatar a prefeito da cidade, e realizava reuniões no período noturno. Tinha que ficar fora do horário para servir café e organizar as salas. Auxilia ainda nos eventos da ONG fora do escritório. Com muita luta, foi nesse emprego que conseguiu se aposentar, mas não parou de trabalhar. Recentemente, na pandemia da Covid-19, foi afastada. Quando pediram que voltasse, foi apenas por duas vezes na semana. Mas, como era muito serviço, não dava conta de manter tudo limpo o tempo todo. Possui ainda um jardim ao redor, cuidado por um jardineiro. Para diminuir o serviço decide soprar as folhas ao invés de varrer. Um dia a patroa se reuniu com as educadoras da Organização, mas interrompeu a conversa e foi falar com Clarice. Dizia não estar em condições de ficar no local, pois estava muito empoeirado. Sem pensar duas vezes retrucou: “Pois é! É só a senhora pedir ao jardineiro que pare de soprar o jardim com a máquina, que eu consigo manter limpo. E outra, vindo duas vezes por semana eu não consigo dar conta de tudo.” No decorrer da vida teve que lidar com algumas perdas: o pai faleceu ao enfrentar um derrame. Logo em seguida foi o marido, que estava acamado fazia muitos anos. Dois anos depois foi a mãe, o que deu uma balançada em sua vida, pois eram pessoas importantes. Mas no dia 3 de setembro de 2019 Clarice enfrentou a pior dor que uma mãe pode aguentar. Magda, sua terceira filha, havia saído do trabalho e ido para a sua casa, já que eram vizinhas, onde estavam os dois filhos. Conversaram, riram e contaram como tinha sido o dia. “Ela se levantou com falta de ar e tossindo. Me disse que ia em casa tomar um remédio

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e logo meu neto me gritou pedindo ajuda, porque ela não estava bem. Quando cheguei, vi que estava ficando roxa. Ligamos para o Samu que estava ocupado e mandou o corpo de bombeiros. Meu neto gritava pedindo para ela respirar. Fomos nós dois tentando levá-la até a porta. Quando chegamos na rua, ela se apoiou no capô do carro e disse: “meu Deus, agora não, porque eu tenho dois filhos”. Foi até o portão da minha casa, onde teve a primeira parada cardíaca. Colocamos um travesseiro para apoiar a cabeça dela. O bombeiro chegou; colocaram ela dentro da ambulância e meu neto foi acompanhando para o hospital. Ele me conta que antes de chegar na entrada da cidade, ela estava consciente e conversando, tanto que ainda olhou para ele e pediu perdão, porque não ia viver mais. Antes de chegar no hospital teve a segunda parada e morreu”, conta muito emocionada. Após um ano difícil, cheio de altos e baixos, hoje Clarice mora na casa da filha e cuida dos dois netos: Amanda e Edson. Fala deles com o maior orgulho, pois foi a herança que Magda deixou. Está terminando uma reforma para aumentar a casa e pretende ajudar os netos. “Meu maior sonho é terminar aquela casa e continuar cuidando deles, continuar ajudando”.

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Foto: Arquivo pessoal

Clarice sonha em continuar ajudando os netos


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CAPÍTULO 6 A L E S S A N D R A L O C AT E L L I

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ELSA APARECIDA DOS REIS LOCATELLI “Eu trabalhei muito a noite. Trabalhava de dia no meu serviço e, à noite, para poder sustentar o estudo das minhas filhas”. Elsa Aparecida dos Reis Locatelli, 59, empregada doméstica desde os 14. Nascida em uma fazenda no interior de São Paulo, em São José do Rio Pardo, aos seis meses de vida se mudou com os pais e o irmão mais velho para a cidade vizinha, Divinolândia. Era uma casa bem pequena com banheiro para fora e chão batido. Era a segunda filha, dos quatro que os pais tiveram. Elsa teve uma infância sofrida, mas feliz. A mãe lavava roupas de algumas famílias, enquanto o pai trabalhava na roça. A renda era contada. Nunca passaram fome, mas jamais tiveram o presente que pediam para o Papai Noel no final do ano. Começou a trabalhar aos 11 anos, em um salão de beleza da prima da mãe, mas era muito mal tratada; se cansou e saiu. Aos 13 foi para uma fábrica de calças. Porém, estava falindo e como foi a última a ser contratada acabou sendo a primeira a ser mandada embora. No ano seguinte foi ser cuidadora de uma senhora, que incluía fazer o serviço da casa. Almoçavam juntas, dormiam após o almoço, assistiam a novela. Eram super companheiras, tanto que foi adotada como neta. Três anos depois, a filha da mulher se casou e decidiu levá-la para trabalhar. A casa era grande, e logo veio o primeiro filho e o serviço aumentou, pois tinha que cuidar da criança também. Um ano depois veio o segundo, o terceiro... Foi quando aceitou ter o primeiro registro em carteira. Elsa tinha que cuidar das

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crianças, fazer o serviço doméstico, além da comida. Apesar de nunca ter gostado de estudar, quando concluiu o ensino médio os patrões fizeram questão de pagar uma universidade para ela. Cursou Administração de Empresas. Nesse período já tinha saído de casa, morava com os empregadores e tinha uma cama no quarto junto com as crianças. A relação com a patroa tinha altos e baixos, sempre cheia de idas e vindas. “Passamos por momentos difíceis, brigávamos muito e o marido entrava no meio. A mãe dela, enquanto viva, preferia ficar comigo na casa dela que ficar com outras filhas, porque era mais chegada a mim. Tinha uma irmã que se intrometia muito na casa, fazia fofocas. Eu não aceitava isso. Chegamos a brigar e ficar um mês sem olhar uma na cara da outra, conversando por bilhete. Eu, cuidando das crianças do mesmo jeito, porque elas não tinham nada com isso. Até que um dia o marido e a mãe dela nos colocaram frente a frente para conversar. Brigamos de verdade, mas nos entendemos”, conta. Naquela época, já com 21 anos, em uma das idas à praça da cidade, conheceu um rapaz que a encantou. Foram três meses de paquera para saírem a primeira vez e mais dois meses para darem o primeiro beijo. Ele morava em uma fazenda na mesma cidade, trabalhando na lavoura com o pai e os oito irmãos. Cinco anos depois, com 26, se casou. As meninas que cuidava foram daminhas do casamento; os patrões, padrinhos. Em dezembro do mesmo ano veio a primeira filha, uma menina, Suzana. A patroa batizou a criança. Elsa ficou apenas 40 dias em casa e voltou a trabalhar,. Os filhos 56 ALESSANDRA LOCATELLI


da patroa não aceitaram a moça que ficou no seu lugar. Todo dia de manhã iam para a casa da empregada e, como ficava muito cansativo, preferiu voltar a trabalhar. Durante um ano e meio Suzana ficou no trabalho com a mãe. Depois, cansada de cuidar de quatro crianças, decidiu colocar a filha na creche que, por coincidência, ficava a uma quadra do serviço. Em 1993 chega a segunda filha. Mais uma menina, Ana Paula. Durante seis meses ficou com Elsa no trabalho e, depois, creche. Cinco anos se passaram e veio a terceira, Alessandra. Um ano com Elsa, mas com a ajuda da mais velha que a ajudava a olhar. Em meados de 2002, conseguiu tirar suas primeiras férias. Porém, não descansou. Conseguiu algumas faxinas extras para contribuir com os estudos das filhas. “Elas tinham que estudar; elas gostam. Eu que não gostava fui até o final, por que elas, que gostam, não estudariam?”, conta. Encontrou uma mulher que a convidou para cuidar da casa e dos filhos. Quando retornou do recesso, decidiu sair do emprego em que estava há mais de 30 anos. No novo, a patroa também tinha três filhos. A mais nova, inclusive, tinha a idade da Ana Paula. Nesse trabalho ela fazia para as crianças o que não conseguia fazer com as filhas: levava na escola, natação, médico. Mas também tinha que cuidar da casa e da comida. Quatro anos depois, vem a notícia de que a patroa estava enfrentando uma crise financeira. Então Elsa começou a ir apenas duas vezes por semana. Mas a patroa era tão compreensiva e sabia que estava estudando as filhas, que arrumava outras faxinas para que

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ela complementasse a renda. Foi nessa época que começou a trabalhar a noite em eventos da cidade. Trabalhava também em uma pousada, passando roupa. E a noite trabalhava com os jantares promovidos por uma médica, ou em carnavais, rodeios, e outros eventos que aconteciam. Todo serviço que aparecia, aceitava. Foram dois anos assim, até que o marido perdeu o emprego e as faxinas diminuíram. A patroa, para quem ia dois dias por semana, se muda e decide cancelar o serviço. Foi uma época muito complicada, pois estavam com três filhas para estudar e ambos sem trabalho. Até que em uma noite, seu marido recebeu a ligação da irmã, que morava em uma fazenda em Espírito Santo do Pinhal, dizendo que os patrões estavam precisando de caseiros com urgência, e queria saber se tinha interesse. Em duas semanas o casal resolveu tudo o que precisava, transferência de escola de Ana e Alessandra; Suzana já estava trabalhando e tinha acabado de se matricular na faculdade. Foi uma correria, mas aceitaram a oportunidade. Por algum tempo, a dificuldade continuou, pois não tinham uma reserva e estavam recomeçando a vida. Nessa fazenda, Elsa era responsável pela casa, comida e roupas. O marido pelo jardim e afazeres ao redor. Os patrões eram rígidos. O banheiro era separado, o tratamento diferente, não tinha aquela amizade que estava acostumada. Na casa tinha uma outra moça que a auxiliava. Em novembro de 2011 a vida já estava muito melhor. Já havia trocado quase toda a mobília e estava muito contente. Até que vem a notícia da perda do pai. Foi um período muito difícil porque era muito apegada. 58 ALESSANDRA LOCATELLI


Um mês depois, Suzana se forma em Ciências Contábeis. Para Elsa, uma alegria inenarrável, pois sempre lutou muito para que isso acontecesse. No próximo ano vem o casamento de Suzana. Outra alegria. Ela se casa e se muda com o marido para o Triângulo Mineiro, em São Gotardo. Foi bem difícil, pois estava acostumada com a família unida. Logo em seguida consegue a tão sonhada aposentadoria, mas continua trabalhando. Com o salário “extra”, ela e o marido compram o primeiro carro. Dois anos depois, o primeiro neto, Carlos Eduardo. Sua filha já havia se mudado para Guaxupé, em Minas Gerais, e estava mais próxima. Em dezembro de 2014 consegue formar Ana Paula, em Pedagogia. Mas, o emprego começa a ficar complicado, o serviço aumenta a cada dia. Até que em um carnaval, a casa estava lotada com os quatro filhos e nove netos do patrão. Elsa trabalhava muito, cozinhando, ajudando na casa, cuidando das roupas e auxiliando as babás com as crianças. Suzana decide ir para a casa da mãe passar o feriado; seu marido estava com suspeita de dengue. “O patrão chegou em mim e pediu pra eu mandar meu genro, meu neto e a minha filha embora, porque ele estava com a casa cheia e a suspeita da doença dele poderia transmitir para a família dele. Foi a pior coisa da minha vida.”, conta. Isso foi o estopim para o casal pedir a conta. Já haviam recebido uma proposta para serem caseiros em uma outra fazenda. Não cogitaram e foram. Nesse novo emprego tudo era mais fácil. Não tinha crianças e ela era sozinha para cuidar da casa, comida e das roupas, além dos patrões que eram educados e respeitavam os empregados. Em abril de

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Foto: Arquivo pessoal

2018 Ana Paula se casa. Estava vendo as filhas estudadas se encaminhando na vida... tudo o que sempre sonhou. Hoje, se pudesse, diz que aproveitaria mais as filhas. “Fiquei sim um bom tempo com elas. Eu acho que eu aproveitaria um pouco mais, porque a infância é uma fase muito boa da criança e a gente não pode perder. Eu não perdia nada de escola porque ia em tudo. Mas aproveitaria um pouco mais, brincaria um pouco mais com elas”, desabafa. Feliz, aguarda a chegada do segundo neto, Bernardo e a formação da terceira filha, em Jornalismo.

Realizando o sonho de formar a primeira filha, Suzana 60 ALESSANDRA LOCATELLI


Foto: Arquivo pessoal

Elsa, com a terceira filha da comadre no seu segundo emprego.


À esquerda a matriacra da família Reis Locatelli Foto: Arquivo pessoal



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SOBRE A AUTORA Alessandra dos Reis Locatelli nasceu em Divinolândia, São Paulo, em 1998. Aos 8 anos de idade se mudou para Espírito Santo do Pinhal, no mesmo estado. Estudante de escolas públicas, no ensino médio fez integrado e se formou em técnico em meio ambiente. Começou a trabalhar antes de completar 18 anos, em uma loja de sapatos. Um ano e meio depois foi estagiar na área de comunicação em uma multinacional. No término do contrato de dois anos, voltou para o comércio ficando nove meses. Atualmente, está em uma empresa de marketing olfativo, como estagiária em assessoria de imprensa. Filha de Eliseu, que estudou até a 3ª série e hoje trabalha como jardineiro, e de Elsa, que é graduada em Administração, mas trabalha como empregada doméstica.

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AGRADECIMENTOS Primeiramente gostaria de agradecer à Deus, pois sem fé e a força Dele nada disso teria sido possível. Em segundo, aos meus pais, pela educação de qualidade que me deram e pelo incentivo de sempre. Às minhas irmãs e amigas, Suzana e Ana Paula, por sempre acreditarem e apoiarem as minhas ideias. Ao meu noivo, Rafael, que além da paciência, sempre teve uma palavra de conforto para os momentos difíceis. Aos meus cunhados e irmãos, André eWagner, que sempre estiveram ao meu lado. Ao meu orientador, Camilo Antônio de Assis Barbosa, pela paciência, correção e orientação, além da confiança e segurança transmitidas em todo momento no trabalho que estava desenvolvendo. Agradeço ao Centro Universitário das Faculdades Associadas de Ensino, UNIFAE, pelos quatro anos de acolhimento e dedicação. A toda a equipe gestora que passou pela minha vida acadêmica e auxiliou no meu conhecimento. A todas as minhas entrevistadas: Tamillys, Fabiana, Maria, Elsa, Clarice e Rita, muito obrigada por confiarem e compartilharem suas histórias. A todos que me ajudaram e acompanharam direta ou indiretamente nessa jornada, minha eterna gratidão.

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