Catálogo Cinco pontos de orientação

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CINCO PONTOS DE ORIENTAÇÃO

CURADORIA CATTANI-KLAMT

CINCO PONTOS DE ORIENTAÇÃO

Bruno Borne

Dione Veiga Vieira

Elaine Tedesco

Guilherme Dable

Rogério Severo

Curadoria

Cattani-Klamt

Ed. Névoa

Cinco Pontos de Orientação

Texto de Laura Cattani e Munir Klamt

Artistas

Bruno Borne

Dione Veiga Vieira

Elaine Tedesco

Guilherme Dable

Severo

CINCO PONTOS DE ORIENTAÇÃO

Um circuito

Cinco Pontos de Orientação é concebida como a primeira edição de um projeto voltado exclusivamente para a área externa da Fundação Vera Chaves Barcellos (FVCB). A proposta busca estabelecer um espaço expositivo ao ar livre, com caráter recorrente e invernal, abrangendo toda a área que circunda a Sala dos Pomares. A exposição parte da constatação da escassez, no estado do Rio Grande do Sul, de iniciativas efêmeras que integrem e façam dialogar a arte contemporânea com o meio ambiente, considerando o espaço campestre e arborizado como local privilegiado para instalações artísticas. As diretrizes enfatizam obras comissionadas especificamente para a FVCB, com a intenção não apenas de ampliar a programação da instituição, mas também de proporcionar aos visitantes uma experiência integrada à topografia que conduz à sala expositiva.

Guilherme Dable

Desenho (para Laura e Munir), 2017-2025. Intervenção sobre a paisagem. Medidas Aprox.: 1,50 x 45 x 6 m

O projeto teve início em 2017, com a exposição Aã, na qual propusemos categorias híbridas: acervo, projetos comissionados, coleções particulares, documentos de trabalho, homenagem e, pela primeira vez na FVCB, obras criadas para além dos limites da Sala dos Pomares. Essa iniciativa partiu da convicção de que tudo o que há — da estrada ao pomar — integra o espaço expositivo, compondo o dentro e o fora de um mesmo sistema. Na ocasião, Antônio Augusto Bueno mimetizou as frutas do pomar em cerâmicas imorredouras, dispersas entre as folhas, na obra Chão de Pomelos. Marina Camargo, em Desvio, estabeleceu um jogo de reposição arquitetural com as formigas próximas ao acervo. E os curadores homenagearam Vera Chaves Barcellos com uma ruína — um curioso simulacro de uma fotografia da capa do

livro Vera Chaves Barcellos: Obras Incompletas (2009). Entre outros gestos, estavam também a integração à exposição de um livro do artista britânico Henry Moore, da biblioteca de Vera, esculpido em arabescos por cupins; e os desenhos formados pelas fezes de um pássaro, acompanhadas de seu “ringue” — simulacro de espelho retrovisor do carro de Patrício Farías.

A exposição atual não é apenas a concretização desse desejo inaugural, mas a disposição de estabelecer um projeto continuado, no qual curadores e pesquisadores possam desenvolver iniciativas nos mais diversos formatos, criando estratégias para ocupar e refletir sobre um espaço que, até então, era visto apenas como uma passagem até a área expositiva.

Exemplar do livro The Art of Henry Moore, de Will Grohmann, de 1960, Editora Thames & Hudson, comido por cupins.

Paisagem Íntima

No cinema, o plano-sequência é um signo de preciosismo herdado da literatura (e do teatro). Ao incorporar os cortes — metáforas inconscientes do pensamento e da atenção — o cinema pondera (em prosopopeia) que a realidade humana não é um ato contínuo, mas um conjunto de fragmentos unificados. Em Festim Diabólico (1948), de Hitchcock, a arma do crime é uma corda (Rope, no título original), alegoria direta da própria narrativa construída em plano-sequência. Em Cinco Pontos de Orientação, o plano-sequência é apropriado da seguinte forma ideal (situação inexistente no mundo concreto): o espectador inicia sua caminhada na entrada da FVCB com Desenho (para Laura e Munir) — uma operação lógica — e encerra atrás da Sala dos Pomares, na última das 7 Bruxas — um mito. As obras, a vegetação, o céu, o condomínio adjacente, as salas do acervo, o horizonte, o corpo do transeunte e a paisagem íntima de seus pensamentos constituem capítulos desta sequência ininterrupta. O plano-sequência é o unicórnio da consciência, pois esta última contenta-se sempre em sua dispersão, gerando associações, analepses, intrusões, déjà vu, hipóteses, crenças e toda sorte de dispositivos aos quais o tempo, as experiências e os afetos (positivos e negativos) são convidados, inevitavelmente maculando a linearidade da narrativa. É precisamente esse o princípio sobre o qual a curadoria se revela — ou melhor, se estrutura.

Moto-contínuo

Em mais de uma circunstância, A Invenção de Morel (1940), de Adolfo Bioy Casares, serve-nos de modelo. Em uma ilha inabitada do Pacífico, um homem sem nome (provavelmente, o próprio leitor) apaixona-se pela projeção de uma mulher presa a um ciclo espectral de acontecimentos que se repetem invariavelmente, devido à invenção de um cientista chamado Morel. Faustine (nome que ressoa Mefistófeles) é o objeto A, a realidade inatingível.

Esse dispositivo que instaura uma sequência da vida em eterno retorno é a linha que nos conduz através destes Cinco Pontos de Orientação. Cada obra, situada entre as árvores ou sobre a grama, possui uma vida espectral que opera incessantemente (mesmo agora, enquanto escrevemos, sob a chuva). São máquinas de significação que contam histórias, evocam mitos e especulam sobre o mundo. Enquanto nós as circundamos, interpretamos e observamos em seu funcionamento contínuo e autônomo, as obras tornam-se a própria Invenção de Morel, e nós, distantes, habitamos este outro mundo.

Ruído

A disnarratividade é um conceito formulado por Alain Robbe-Grillet, que contesta voluntariamente a narrativa como ilusão de continuidade ou relação de causa e efeito. No cinema, o termo refere-se aos elementos que rompem a ilusão ou a suspensão da descrença, como o aparecimento involuntário de apetrechos cenográficos, operadores de filmagem ou som, ou mesmo a película que se rasga inesperadamente. É como se, ao revelar o mecanismo, condicionássemos o surgimento da narrativa e, nesse processo, curiosamente, outra ilusão fosse construída; a disnarratividade torna-se corpo fílmico.

Em Cinco Pontos de Orientação, a externalidade das obras — tudo o que não está contido em sua própria materialidade — é disnarrativa. A trilha de formigas entre Anã Branca e Aqui tem Água, o mato que cresce incessantemente em Strages, o canto dos pássaros em diálogo com 7 Bruxas, a árvore que brota do fundo do poço próximo a Desenho (para Laura e Munir); ou mesmo os carros que passam na avenida e o céu nublado. Todo ruído externo constitui, em termos culinários, o recheio — informação adicional que se incorpora à proposição artística no espaço aberto da Fundação.

Uma Síndrome do Impostor

Reversa

Cabe aos curadores, pela própria natureza de seu ofício, justificar certo fio invisível que conecta as obras de forma quase imperceptível (idealmente, como faria um ilusionista), tramando uma rede capaz de unir solidamente todos os trabalhos. Trata-se de criar um corpo infrangível, um logos, no qual cada parte mantém sua diversidade — com identidade, biografia e intenções próprias — e, paradoxalmente, permanece unificada, como engrenagens de uma máquina ou órgãos em um corpo. Toda curadoria é, em certa medida, uma espécie de dramaturgia, já que utiliza as vozes alheias para construir seu roteiro. Durante o período de convivência com as obras, em uma exposição, ao refletir continuamente sobre elas e dissecá-las mentalmente, não é incomum que ocorra uma espécie de síndrome do impostor reversa: intuitivamente, sem formular explicitamente esse argumento, os curadores passam a acreditar, de modo subterrâneo, que as obras lhes pertencem, como se fossem de sua autoria. Essa apropriação aparentemente delirante decorre do mergulho na realidade íntima das obras, em seu DNA interno; para além dos seus criadores (os autores), existe uma lógica operacional, uma tessitura anônima que os curadores sentem ser capazes de tocar — mas, evidentemente, trata-se apenas de uma ilusão.

Elaine Tedesco

7 Bruxas, 2025

7 peças em tule.

Dimensões: altura 3 m, diâmetro 50 cm

Laboratorial

Há uma identidade inesperada que aproxima as obras de Cinco Pontos de Orientação. Surpreendentemente, todas parecem constituir experimentos destinados a comprovar ou refutar determinados estratos da realidade, como se o terreno da FVCB fosse um laboratório aberto: ilusão óptica em Dable; anemologia em Tedesco; trajetória das correntes em Veiga Vieira; órbitas em Borne; hidrogeologia em Severo. Nenhuma dessas operações constitui a linha mestra das obras, porém todas formam sua hermenêutica periférica, remetendo à prática dos artistas renascentistas, cujos campos de atuação se entrelaçavam livremente, dispensando categorizações estanques.

Corda Rende ao Chão

Um aforisma de Kafka nos guia: “O caminho verdadeiro segue por sobre uma corda, que não está esticada no alto, mas se estende quase rente ao chão. Parece mais determinada a fazer tropeçar do que facilitar o trânsito” 1. De origem hipocrática, o aforisma é uma proposição concisa encerrada em um saber derivado da experiência, ao qual dogma e norma aderem, e a máxima o acompanha como espelho verbal. No decorrer dos séculos, seu sentido torna-se mais amplo e abarca elementos afetivos, místicos, alógicos, intuitivos e irracionais; hábil ao contrair o rigor e a intuição. A transmigração do aforismo para pensar instalações campestres de Arte Contemporânea é incomum, mas a plasticidade do termo nos permite fazê-lo. Cada artista desta exposição, em sua concisão, comprime um fragmento da realidade — o prólogo, o conflito, a clareza, o clímax, a obscuridade e o epílogo estão atados em um único nó. Dable é apenas aquele que leva o aforisma de Kafka às últimas consequências, tautologicamente.

1 KAFKA, Franz. 28 desaforismos [28 aphorismen]; trad. Silveira de Souza. Florianópolis: UFSC/ Bernúncia, 2010.

A Escada

Dentro de Cinco Pontos de Orientação há um curioso ponto de inflexão. No fundo do pomar, um lance de degraus em concreto rústico ascende a lugar nenhum — construído durante a exposição Aã. Não se trata de um mirante, pois não oferece uma vista privilegiada, nem de uma escada funcional, voltada ao uso cotidiano. Sua total inutilidade — como um cóccix — é, paradoxalmente, comovente.

Em nossa fantasia, sua trajetória é a seguinte: uma família constrói uma casa, provavelmente de madeira; são felizes e, com o tempo, progressivamente menos. Os anos — dentes vorazes que a tudo consomem — digerem a casa, restando apenas a escada de alvenaria, sobrevivente simbólica, metonímia daquilo que existiu. Vera Chaves a encontra ao acaso e, naquele objet trouvé, reconhece uma solidez que lhe parece frágil, mais próxima de um ato de memória do que de uma realidade concreta. A escada torna-se fotografia, e nós a reificamos.

A memória não é dada às origens — sempre que nos lembramos, evocamos a última lembrança do objeto, pessoa ou acontecimento, e não o fato matricial. A memória desconsidera falhas e incongruências; por isso, em Aã, construímos uma memória falsa (e uma referência à obra de Vera Chaves), no fundo do pomar, como algo esquecido. Não figura como uma obra da exposição e, ainda assim, constitui a identidade profunda de Cinco Pontos de Orientação.

Texto por Cattani-Klamt

Reconstituição da escada a partir de uma foto de capa do livro Vera Chaves Barcellos: Obras Incompletas, 2009.

Artistas

BRUNO BORNE

Relatos de uma Anã Branca no Pátio

Caminhando, nos aproximamos de Anã Branca, de Bruno Borne — uma esfera planetária azul, ancorada em um declive, rodeada por árvores e por um minúsculo sol. O azul é uma cor escassa na natureza — e, para muitos povos da Antiguidade, nem mesmo o céu era azul —; por isso, uma estranheza inconsciente e cortês nos alerta, sem palavras, de que adentramos uma topografia das incoerências.

Somos as primeiras gerações da humanidade capazes, por um ato de vontade, de imaginar nosso planeta visto do espaço. O Pálido Ponto Azul (expressão cunhada por Carl Sagan) condensa a solidão de um cosmos infinito e a alegria pela vitória aleatória da vida na Terra. Quando nos aproximamos da obra, em suspensão da descrença, estamos no espaço — flutuando em direção à Terra. E é nesse momento que

Bruno Borne

Anã Branca, 2025 Impressão digital sobre filme PVC, motor ventilador, luminária esférica. Dimensões: 300 x 200 x 200 cm

ocorre a principal corrosão de nossa expectativa: aquela esfera não representa o planeta que conhecemos (amálgama de sete continentes e cinco oceanos), mas a superfície de outra realidade, em que o solo que pisamos, o terreno da Fundação Vera Chaves Barcellos, a cidade de Viamão e o céu se fundem em uma única esfera — como se outra dimensão, da mesma realidade, irrompesse da grama.

Rotação é o termo que descreve o movimento da Terra ao girar sobre seu próprio eixo — um hábito adquirido ainda quando ela era apenas um feto na nebulosa solar. É da rotação que nascem o dia e a noite. Mas é exótica, singular, a rotação desta obra. Trata-se, primeiro, de um sistema binário. Há um sol, amarelo, a 150 milhões de quilômetros e, à medida que ele se põe, revela-se a tênue luz de outro — uma

anã branca, estrela massiva e de vida breve — estática, pousada sobre a grama, como se o tempo estivesse, ao mesmo tempo, em movimento (amarelo) e em suspensão (branco). Há ainda outro arco no ciclo vital da obra: todos os dias, às 17h, ela “morre” — quando a noite do sol amarelo se aproxima, um temporizador interrompe o fluxo de ar em seu interior, e ela murcha; às 9h, renasce.

Anã Branca talvez seja, também, uma transversal e inopinada releitura de L’Empire des lumières (1961), de René Magritte — pintura realista e discreta, um oxímoro infrangível entre o dia e a noite. Assim, a obra de Borne unifica o espaço sideral e a paisagem terrestre, e o que resta dessa equação é uma aguda e afiada incerteza quanto à natureza da realidade que vemos.

DIONE VEIGA VIEIRA

Exílio dos Deuses

Por anos, George W. Melville lançou ao mar barris numerados com o objetivo de que, ao serem encontrados, indicassem as trilhas das correntes oceânicas. Se as marés são causadas pela exótica e gigantesca lua que nos orbita, as correntes têm causas múltiplas: ventos, rotação da Terra, oscilações de temperatura, salinidade e topografia submarina. Fascina-nos a deriva de um objeto conduzido por essa confluência de fatores — uma linha contínua, um desenho em plano-sequência, traçado de um ponto a outro pela força invisível do acaso. As mensagens lançadas ao mar em garrafas — do emissor ao eventual destinatário — tornam-se menos um gesto de comunicação e mais um signo da contingência, da serendipidade que rege o mundo.

Dione, ensina-nos Hesíodo, é filha de Oceano e Tétis — uma oceânide, ninfa das profundezas inatingíveis do mar, vetor mitológico que move os destinos até a costa. No último interglacial, parte de Viamão pode ter sido tomada pelo mar — o que nos permite imaginar Strages submersa em ondas e espumas. Afrodite, para alguns também filha de Dione, nasce dessas espumas inaugurais. Strages é moldado por pedras erodidas de rios que transbordaram, inundaram casas, derrubaram pontes — mas também evoca uma ilha ou costa, molhes em ruínas, abandonados, esvaziados de sua função limítrofe entre terra e mar. O título da obra remete à ruína — essa entropia que, indiferente, desorganiza todos os sistemas: vulcões, casas, vidas.

Entre as pedras, podemos imaginar garrafas em sua fatura fálica. Pois a obra de Dione Veiga Vieira parece sempre narrar processos químicos ou biológicos, em que coisas, seres ou criaturas míticas se reproduzem, engalfinhados em seus próprios ciclos de vida e morte. Se as garrafas nos iludem por parecerem vazias, talvez seja porque os gênios (ou sacis) só se revelam quando libertos. Outra narrativa nos fala de um banquete em que o álcool inebriou os convidados, promessas foram feitas — e não cumpridas —, taças se romperam em brindes rituais, e deuses obsoletos voltaram ao esquecimento. Veiga Vieira parece sempre apontar para o purgatório do tempo: o momento exato da espera, esse nicho sem nome entre o passado e o futuro, onde as coisas cessaram de acontecer e apenas se desfazem.

Dione Veiga Vieira

Strages, 2025

Instalação ao ar livre: 15 m² de pedras de rio; 230 garrafas de vidro; 10 taças de vidro; planta jiboia; 1 ninho natural de pássaro; ovo plástico.

Dimensões totais variáveis

ELAINE TEDESCO

Ou o Conclave

7 Bruxas, de Elaine Tedesco, é a única obra da mostra apresentada em forma fracionada — termo que evocamos das fórmulas químicas ou da culinária. Se em Aparatos do Sono (1993) Tedesco instrumentaliza o mundo concreto (através de cabines, colchões, véus, etc.) para — difícil definir o verbo — filtrar, coadunar, cooptar, enredar o mundo dos sonhos, esse espaço nubiloso e paralelo onde ensaiamos o cotidiano, furamos os olhos dos traumas e recalcamos com serenidade o que não podemos modificar — ou, como acreditavam os que viveram antes da era comum, onde se antecipa o futuro. Aqui, a artista realiza uma operação consanguínea.

Em 7 Bruxas, não se trata mais dos sonhos, mas do suprassensível — um mundo real e significante que não parece acessível à lógica ou à nossa cognição. A palavra “bruxa” remete a figuras xamânicas, capazes de conjurar potências latentes em plantas, animais e nos desvãos da realidade — suas passagens secretas e paredes

falsas. Mas, curiosamente, o dicionário também nos informa: “bruxa” é o pavio da lamparina (e, por metonímia, uma chama).

7 Bruxas é a reencarnação de uma obra anterior de Tedesco, O quarto das almas (1996), originalmente parte da mostra Arte Construtora, na Ilha da Casa da Pólvora, nos arredores de Porto Alegre. Em sua versão branca e fantasmática, a obra surgia como espectro em uma ilha abandonada e degredada, evocando as fábulas dos arrabaldes e interiores do Brasil anterior à luz elétrica — mas também remetendo a uma tragédia pessoal: o afogamento do irmão da artista nas proximidades. Trinta anos se passaram, outro mundo gira ao nosso redor, e a obra, quase a mesma, é agora sanguínea — e outra (como nos ensina Danto, em A Transfiguração do Lugar Comum). A artista hesitava em manter o nome anterior, até que este foi substituído por 7 Bruxas (ou: O Conclave). O nome da obra surgiu sete dias antes da morte do Papa Francisco, mas

o subtítulo “O Conclave” foi logo abandonado, como que intuindo o excesso de coincidência que viria a se seguir — que Tedesco parecia, como nos sonhos premonitórios, antecipar.

7 Bruxas fascina por sua multiplicidade. O que são aquelas formas esvoaçantes em vermelho? Com suas vestes rubras, dispostas no perímetro da mostra, evocam uma procissão, um grupo prestes a se reunir. Ou armadilhas em ambientes piscosos, véus de damas elegantes, mosquiteiros, trajes de apicultor? Talvez signos gráficos que assinalam um texto, ou seres como a oceânica Praya dubia. Nos atos da linguagem há uma categoria curiosa — a das declarações performativas —, que não são verdadeiras nem falsas, mas acontecimentos em potência: promessas, advertências, proclamações. As 7 Bruxas, como os fantasmas, não parecem estar propriamente ali, diante de nós, mas em outro lugar — anunciando um fato que só existirá no futuro.

7 Bruxas, 2025

7 peças em tule.

Dimensões: altura 3 m, diâmetro 50 cm

Elaine Tedesco

GUILHERME DABLE

Anamorfose

Guilherme Dable se autoimpõe a curiosa tarefa de realizar uma obra constituída por um plano — ou por uma única e extensa linha — em um campo ondulado, logo na entrada da FVCB. Como se tivesse extraído de uma imaginária Carta Oblíqua (1975), de Brian Eno, a instrução: “preencha o máximo de espaço com nada”— um quase koan — e, voluntariosamente, a tivesse cumprido.

Algo similar, embora dessemelhante, fez Richard Long em Walking a Line in Peru (1972): uma linha reta, extensa, traçada na topografia inóspita do país andino — acessível a nós apenas por meio de uma fotografia. Mas Long ecoa a perspectiva de um britânico andarilho em um território exótico; Dable, ao contrário, ocupa os arrabaldes, espaços que nem mesmo chegam a ser não-lugares.

Desenho (para Laura e Munir) tem uma constituição simples: Dable delimita uma área

específica do campo com um passe-partout de grama, emoldurada por elementos heteróclitos — cerca de tela, arbustos, a estrada e, no horizonte, um condomínio. Ao centro, um vão: a grama é retirada, revelando a terra escura. Dable recorta na grama um retângulo imperfeito, cuja parte frontal é mais estreita que o fundo. Essa irregularidade é explícita, visível de ambos os lados. No entanto, há um ponto específico — que varia de acordo com cada indivíduo — no qual a linha, e por consequência o espaço, sofrem uma metamorfose, e o espectador, uma epifania.

Por meio de uma percepção anamórfica, a linha se revela imaculadamente reta. A obra de Dable convoca, assim, um paradoxo ontológico: o próprio espaço ao redor da linha parece achatado, reduzido em sua profundidade, enquanto a terra escura da obra adquire uma precisão e retidão inusitadas — como se encontrássemos, ali, uma brecha para outra realidade. Desenho

(para Laura e Munir) não é nem a linha nem o espaço que a cerca, mas uma prestidigitação laminar — puro ilusionismo — que confronta nossa confiança no que enxergamos. Essa breve e silenciosa dúvida sobre o real é a essência da obra.

É espantoso que a unidade mais básica do desenho — uma simples linha — seja capaz de alterar nossa percepção e, ao mesmo tempo, questionar as formas com que representamos o espaço. A perspectiva renascentista, afinal, também é uma anamorfose que nos ilude. A natureza, por sua vez, ama as curvas, os arabescos, a sinuosidade — e exclui de seu repertório, como se fosse uma praga, as linhas retas. O que Dable, ironicamente, nos pergunta, é se a linha reta — ilusória, ideal, impossível — não seria justamente a identidade mais profunda da nossa espécie.

Guilherme Dable

Desenho (para Laura e Munir), 2017-2025. Intervenção sobre a paisagem. Medidas Aprox.: 1,50 x 45 x 6 m

ROGÉRIO SEVERO

Navegar é preciso

As esculturas e instalações de Rogerio Severo são desenhos manifestos no mundo tridimensional, como se o traço não seguisse o desígnio da mão, mas obedecesse às leis do mundo físico: a gravidade, as tensões, a resistência dos materiais — como estrias de músculo. São desenhos de forças peculiares, quase equações, que frequentemente apontam para o vazio que os preenche, para aquilo que não está exatamente presente, mas ao qual nossa imaginação e nosso olhar aderem, quase de modo funcional — a asa de uma xícara, um cinto de segurança, uma sela: seus pares ou primos (sendo quase impossível fotografá-los).

Há uma sinestesia em seu gesto, como se a fisicalidade da matéria vibrasse na forma de ondas sonoras. A música concreta apropria-se de todo o universo sônico que nos cerca — motos, elevadores, motores elétricos —; Severo, igualmente, compõe com trilhos, carretéis, chapas, cordas, um inventário do seu desenho concreto.

A radiestesia é uma prática divinatória que recorre a instrumentos como forquilhas ou pêndulos para localizar águas subterrâneas, minérios ou pedras preciosas. Metaforicamente, podemos chamá-la de técnica, pois envolve uma suposta sensibilidade do operador — alguém capaz de perceber o que jaz oculto, o que escapa à razão. Em Aqui tem Água, Severo conjuga essa operação com uma gramática própria, construída ao longo de uma série de obras que remetem a estruturas náuticas e de pesca: quilha, roda do leme, caniços, boias, sobrequilha — elementos que almejam flutuar no espaço ou derivar. A navegação, em quase toda a sua história, foi mais uma hermenêutica do que um ofício: mar, correntes, ondas e ventos devem ser interpretados e transfigurados em rota.

No imaginário gaúcho, a pampa é um vasto oceano, onde as coxilhas são ondas, como se o tempo — em sua vaidade que a tudo corrói — optasse por se deter. A imagem não é casual:

Severo é também um hábil guasqueiro (palavra regional que designa quem trança o couro). Em Aqui tem Água, instalada no declive da grama, a escultura parece enfrentar a crista de uma vaga.

Uma experiência que marcou minha infância foi o naufrágio de um navio na praia que eu frequentava. Nos anos seguintes, acompanhei os destroços mergulharem lentamente na areia. Ao final, dois mastros restaram como índices mnemônicos, mais do que vestígios de embarcação. Aqui tem Água, em sua ferrugem, sugere a superfície de um casco afundado na terra. Na montagem de suas obras, Severo nunca sabe ao certo o que surgirá: vai, com precisão e paciência, montando, ordenando, moldando esse espaço subterrâneo que ancora seus trabalhos.

Rogério Silvério

Aqui tem água, 2025

Instalação com chapas de aço, trempes de ferro, linhas depoliéster, caniços de fibra de vidro. Dimensões totais variáveis

Laura Cattani e Munir Klamt atuam juntos desde 2003. Artistas (sob o pseudônimo Ío), curadores (assinando como Cattani-Klamt), pesquisadores e professores, com mestrado e doutorado em Poéticas Visuais (PPGAV/UFRGS) e pós-doutorado (PPGAV/UnB). Realizaram projetos de curadoria com ênfase em arte contemporânea no Brasil, Uruguai, Argentina e França. Assinaram a curadoria adjunta da 13ª Bienal do Mercosul (2022), e realizaram exposições como Aã (FVCB, 2017), Ponto Vernal – Bruno Borne (MARGS, 2019–20) e Trindade do Tempo – ou, um Torus (MARGS, 2023–24). São idealizadores do Instituto Cultural Torus e do selo editorial Névoa, voltado à difusão de arte contemporânea. http://linktr.ee/lauracattani | https://linktr.ee/Torus.arte

Bruno Borne é Artista visual e arquiteto residente em Porto Alegre/RS. É Doutor em Poéticas Visuais pelo PPGAV/UFRGS. Em seus trabalhos trata de questões sensoriais e espaciais relacionando ambiente de exposição, obra e espectador. Produz videoinstalações, esculturas e impressões com técnicas de computação gráfica e procedimentos relacionados à arquitetura e ao sítio. Participou da 13ª Bienal do Mercosul. Tem obras nos acervos públicos do MAC-PR, MAC-RS e das prefeituras de Porto Alegre e Santo André. Prêmio aquisição no 65º Salão Paranaense (2014); 2º Prêmio IEAVI (2013); recebeu prêmio Açorianos de Artes Plásticas (2011, 2014, 2015, 2016 e 2020). http://www.brunoborne.com/ | @bruno_borne

Dione Veiga Vieira é graduada em Letras (PUCRS) e com especialização em Artes Plásticas (PUCRS). Entre 1989/1992 residiu na Alemanha, onde manteve ateliê no StadtKunst E.V. Köln (Kunst Vereine in Köln Ehrenfeld), espaço cultural mantido pela Prefeitura da Cidade de Colônia. Sua obra explora elementos poéticos em alusões ao corpo e ao orgânico com o uso de diversos meios: instalação, escultura, pintura, desenho, objeto, fotografia e vídeo. Com participação em exposições na Alemanha, Colômbia, Reino Unido, e inúmeras outras no Brasil. Em 2012, realizou exposição individual no Instituto Goethe –Porto Alegre, como artista convidada, e em 2021/22, exposição panorâmica no MARGS. @dioneveigavieira

Elaine Tedesco é Artista visual e professora no Dep. de Artes Visuais no Instituto de Artes (UFRGS), onde atua na Graduação e Pós-Graduação. Atualmente desenvolve o projeto de pesquisa Imagem movente, das ações com a câmera à instalação narrativa. Realizou residências artísticas: Goethe-Institut, Berlim, Alemanha (2014); SAM ART Projects, Paris, França (2010). Participou de Bienais (2007) 52a. Biennale di Venezia, curadoria Robert Storr, Veneza, Itália. Bienal de Artes Visuais do Mercosul, V (2005) e II (1999). Possui obras em acervos públicos, tais como: Museu de Arte de Brasília, Brasília; MALBA, Buenos Aires; MAC do Paraná, Curitiba, entre outros. https://elainetedesco.wordpress.com/

Guilherme Dable é doutor em Poéticas Visuais pelo Instituto de Artes (UFRGS), instituição onde também concluiu a graduação e o mestrado em Artes Visuais. Foi um dos fundadores e co-gestor do Atelier Subterrânea, espaço independente baseado em Porto Alegre ativo entre 2006 e 2015 com um intenso programa de exposições e eventos. Sua pesquisa abarca principalmente as linguagens do desenho e da pintura, expandindo-se para investigações que flertam com a ocupação do espaço, não atendo-se somente aos suportes tradicionais das linguagens. O trabalho pensa relações entre arquitetura, memória, paisagem e as características diagramáticas da linguagem do desenho. http://guilhermedable.com/ | @guilhermedraws

Rogério Severo é natural de Uruguaiana/RS, e reside em São Leopoldo. Em 1986 ingressa na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (Unisinos). Em 1993, começa a estudar pintura no Ateliê Livre de Porto Alegre e, a partir de 1995, passa a expor suas obras. Em 1999, ingressa no curso de Artes Visuais da Feevale. De 2003 a 2007 faz especialização em Poéticas Visuais – Pintura, Desenho, Instalação: Processos Híbridos (Feevale). Recebeu o Prêmio Açorianos em 2011. Participou da 8° Bienal do Mercosul – Vitrine Casa M, POA, em 2011. Recebeu o Prêmio Funarte de Arte Contemporânea com a exposição

Linhas e Lugares à Espera, na Marquise da Funarte – Brasília, DF (2012).

http://www.rogeriosevero.com.br/ | @rogerio__severo

CINCO PONTOS DE ORIENTAÇÃO

EXPOSIÇÃO

Curadoria

Cattani-Klamt

Artistas

Bruno Borne

Dione Veiga Vieira

Elaine Tedesco

Guilherme Dable

Rogério Severo

26 de abril a 13 de dezembro de 2025

Área externa da FVCB – Viamão/RS

FUNDAÇÃO VERA CHAVES BARCELLOS

Diretora-Presidente

Vera Chaves Barcellos

Diretora Cultural

Bruna Fetter

Diretor Administrativo

Carlos Renato Hees

Coordenação de Projetos e Produção

Katiana Ribeiro

Acervo Artístico

Bruna Martin

Arthur Bonfim

Vitor Lanes

Produção Executiva

Katiana Ribeiro

Design Gráfico

Alexandre De Nadal

Assistente de Montagem

Felipe Quevedo

CATÁLOGO

Textos e Organização

Laura Cattani

Munir Klamt

Fotos

Anderson Astor

Projeto Gráfico e Diagramação

Alexandre De Nadal

Editora Névoa

Centro de Documentação e Pesquisa

Yuri Flores Machado

Aline Zimmer

Programa Educativo

Margarita Kremer

Ethiene Nachtigall

Comunicação

Katiana Ribeiro

Isabelle Riege

Conselho Deliberativo

Ana Maria Albani de Carvalho

Clóvis Dariano

Eduardo Veras

Elaine Tedesco

Flávio Kiefer

Leopoldo Plentz

Maria Fernanda de Lima Santin

Patricio Farías (presidente)

Paulo Silveira

Conselho Fiscal

Fáride Costa Pereira

Pedro Chaves Barcellos Filho

Richard John

Esta proposta foi fomentada pelo PROGRAMA RETOMADA CULTURAL RS –BOLSA FUNARTE DE APOIO A AÇÕES ARTÍSTICAS CONTINUADAS 2024.

Apoio Realização

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