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Manuel Viegas Guerreiro, o arquivo pessoal de um “humanismo essencial” Por Pedro Félix

Manuel Viegas Guerreiro O arquivo pessoal de um “humanismo essencial”

Pedro Félix*

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Ahistória da Etnografia em Portugal terá duas figuras tutelares: Leite de Vasconcellos e Jorge Dias. Essas duas figuras tocam-se em Manuel Viegas Guerreiro. Leite de Vasconcelos é o perfeito exemplo do intelectual romântico da viragem de século que cruzava as ainda indistintas fronteiras disciplinares da arqueologia, da etnografia, da história, da geografia e da filologia. Jorge Dias e o seu grupo - de que fazia parte a sua mulher Margot Dias, Fernando Galhano, Benjamin Pereira e Ernesto Veiga de Oliveira - representa uma linhagem mais reconhecidamente moderna num contexto em que a prática etnográfica ainda se articulava bastante com a prática folklórica e em que a “recolha”, mais do que uma técnica, era um instrumento. Manuel Viegas Guerreiro teve por mestre Leite de Vasconcelos. Acompanhou-o até ao final dos seus dias e projectou-o no futuro, não só por ter assumido a responsabilidade de editar e fazer publicar os materiais dispersos do mestre, mas sobretudo por encontrarmos intensas linhas de continuidade da obra de Vasconcelos na mundo-visão de Viegas Guerreiro. No que diz respeito a Jorge Dias, Viegas Guerreiro foi nomeado seu assistente em várias missões em Angola e Moçambique, integrado na “Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar”, tendo procedido a importantes recolhas juntos de Bosquímanes e Maconde. Marcado pela pluralidade de uma abordagem “ecológica” e “humanista” que terá raiz profunda no mestre Vasconcelos, com Dias reforçou o seu fascínio por África. Na década de 1970, já académico afirmado e reconhecido, Viegas Guerreiro cruzou-se com outra figura central da etnografia em Portugal, o corso Michel Giacometti, com quem se mobiliza no Serviço Cívico. Nesses intensos anos, Viegas Guerreiro assumiu a direcção do Museu Nacional de Arqueologia, entidade herdeira do Museu Etnográfico Português criado, em 1893, pelo mestre Leite Vasconcelos.

*Arquivo Nacional do Som, equipa de instalação

MANUEL VIEGAS GUERREIRO: O PERCURSO E A FILOSOFIA DE UM ANTROPÓLOGO E HUMANISTA

Desta muito sintética nota biográfica, fica-nos a imagem de alguém que parece estar presente ao lado de figuras tutelares, mas que nunca se coloca no centro da “fotografia”. Na verdade, a personalidade discreta e suave de Viegas Guerreiro esteve associada à produção de todo um manancial de informação etnográfica produzida praticamente durante todo o século XX de que foi agente determinante. Então, porque permanece tão discreto o seu papel na história da Etnografia em Portugal? Não será só por efeito da sua personalidade, mas, creio, deve-se sobretudo à sua visão da ciência como domínio sem barreiras disciplinares. Habitualmente, estes autores “transversais” acabam remetidos para uma zona cinzenta raramente reclamada e acabam, tantas vezes, secundarizados por um mundo moderno preocupado com o confinamento epistemológico. Por outro lado, estes autores, nas suas múltiplas e diversas actividades, vão acumulando documentação de todos os tipos, documentos que servem de base para a produção de conhecimento cuja face publicamente visível são as comunicações, os artigos, as monografias e as exposições. Sob essa “superfície” estão centenas, por vezes milhares, de documentos: fichas, correspondência, diários de terreno, notas dispersas, recortes de imprensa, fotografias, pequenos filmes, objectos, livros de outros autores que formam a percepção do mundo e o quadro conceptual, material gráfico (desenhos, postais) e... por vezes, documentos sonoros. Sendo diversos, o seu tratamento torna-se muito mais complexo. Os documentos valem por si, autonomamente, pela informação que neles está contida, mas valem também pelo conjunto que integram e que se convenciona designar, nas ciências da informação, por “arquivos pessoais”: conjuntos documentais, produzidos e reunidos por uma pessoa, tantas vezes articulado com a actividade de uma ou mais instituições (museus, universidades, centros de investigação). O seu tratamento exige, por isso, uma imensa variedade de recursos técnicos e tecnológicos para que o máximo de informação possa ser recuperada. Se essa complexidade própria de uma grande variedade de temas e formatos não fosse já o bastante, porque estes autores são especialmente dinâmicos, a sua produção documental surge muitas vezes dispersa por instituições com missões bem distintas, com capacidade de processamento muito variáveis, constituindo essa dispersão um risco para os próprios documentos mas sobretudo para a informação que neles está registada. No caso de Manuel Viegas Guerreiro, a sua produção documental estará sobretudo custodiada pela Fundação de que é patrono e no Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias (CLEPUL) de que é figura tutelar. Outras entidades por onde terá passado terão certamente documentação relevante para melhor conhecer a pessoa e o investigador, em particular no Museu Nacional de Arqueologia do qual foi director ou, sobretudo, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa onde foi destacado Professor. No caso de Manuel Viegas Guerreiro, é precisamente essa pluralidade e diversidade que é conceptual, epistemológica, filosófica, mas também biográfica - que importa

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sublinhar e fazer ressaltar. Tratar a sua documentação de forma atomística, seja a sua biblioteca pessoal (tratada como tal) ou a sua colecção de objectos (que poderíamos ter a tentação de tratar museologicamente), ou, pior, tratar os seus documentos conforme a sua tipologia material (os documentos textuais separados dos documentos fotográficos e dos documentos sonoros) seria exactamente igual a amputar um membro a um corpo, no caso vertente ainda mais grave dada a própria diversidade conceptual que subjazeu à sua produção. Além de tudo isto, a dispersão institucional e geográfica é factor a considerar, no que isso tem de obstáculo à integração e articulação de documentos, mas de riqueza contextual que importa fixar. Mas contra si, estes fundos têm o problema da fragmentação. As linhas que unem estes materiais é a figura de quem os criou ou reuniu. Por isso são tantas vezes secundarizados e dispersos até à sua diluição e mesmo desaparecimento. Mas é precisamente aqui, neste campo, que as mais inesperadas e produtivas associações podem ser geradas, pois ainda que, eventualmente, fragmentária e dispersa, não serão nunca mero “gabinete de curiosidades” mas um reflexo fiel e verdadeiro do seu criador, de Manuel Viegas Guerreiro. Só a pluralidade articulada num ecossistema documental poderá fazer jus à memória e à prática do seu criador. Acresce a todas as dificuldades sinalizadas, a inexistência de uma entidade habilitada a tratar arquivisticamente os documentos sonoros. Esse enorme obstáculo, sinalizado desde meados da década de 1930, só muito recentemente começou a ser ultrapassado. Nos últimos três anos, com a criação, por Resolução de Conselho de Ministros, de uma estrutura de missão; tutelada pelo Ministério da Cultura e pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior; com o objectivo de preparar a instalação do Arquivo Nacional do Som, tem sido possível conhecer melhor o património sonoro nacional e poder mesmo actuar em casos pontuais. Foi precisamente isso que aconteceu com este pequeno fundo de Manuel Viegas Guerreiro. Nos trabalhos preparatórios para a criação do Arquivo Nacional do Som, sinalizamos diversos fundos documentais que não se encontravam tratados, na sua maioria, ainda por digitalizar. São colecções dispersas por entidades que não têm como missão específica o tratamento desta tipologia documental, e que quase nunca dispõem ou têm acesso a tecnologia específica para a leitura destes materiais. Tal contexto deve ser tido como importante factor de risco pois é dado adquirido que só a digitalização assegura a preservação e acesso futuro aos documentos sonoros. Qualquer suporte de som, independentemente da sua qualidade e estado de conservação, está inexoravelmente em degradação, mecânica e química. Só a extracção do conteúdo viabiliza a sua salvaguarda e futuro acesso em segurança. Confrontada com a obsolescência tecnológica, a Fundação Manuel Viegas Guerreiro solicitou à equipa de instalação do Arquivo Nacional do Som a leitura e digitalização desses conteúdos. Ainda que não tenha operacionais os laboratórios, mas

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especialmente atenta à urgência da digitalização, a estrutura de missão criou as condições mínimas para a leitura das tipologias de suportes de som mais habituais.

Num dos documentos preparatórios da linha de Acção n.º 4 “Recolha e Estudo de Literatura Popular Portuguesa” do Centro de Estudos Geográficos, Manuel Viegas Guerreiro, elaborou uma tão simples quanto importante nota: “No que concerne a tradições orais muito pouco se juntou às preciosas colecções dos fundadores e mestres da Etnografia Portuguesa, Teófilo Braga, Adolfo Coelho e a todos sobrelevando Leite de Vasconcelos, apesar dos modernos recursos técnicos e dos novos métodos de pesquisa da Etnografia” (Ferreira 2007: 119). Ao propor-se retomar essa linha, coloca a tecnologia como actor fundamental e verdadeiramente transformador da prática etnográfica. São os materiais produzidos graças a esses “modernos recursos técnicos” que vamos aqui tratar. O arquivo custodiado pela Fundação Manuel Viegas Guerreiro integra 18 bobinas de fita-magnética de ¼’’ em enrolador plástico de 3’’ de diâmetro das marcas BASF (LGS, LGS 26, LGS 35), Philips (EL 3953 DP, 3953 LP, EL 3952), AGFA (PE41), Lancer (LT101). Também integram esse fundo documental, 5 cassetes das marcas BASF (LH e LH-EI, Ferro Extra I), NordMende, e TDK. Todos os suportes encontram-se nos contentores originais, com indicações manuscritas sobre os seus conteúdos, com excepção de uma fita magnética e de uma cassete. O formato de fitas em enroladores de 3’’ é relativamente habitual, especialmente no período em que foram feitas as gravações e pelo facto de serem gravações de terreno. O gravador teria de ser transportável e capaz de funcionar a bateria, logo, os enroladores teriam de ser de pequena dimensão. No entanto, actualmente, é precisamente a sua dimensão que levanta sérios problemas à leitura. Máquinas profissionais de estúdio ou de arquivo estão vocacionadas para ler fitas em enroladores de 7’’ a 10’’, os motores que puxam as fitas exercem muito mais força de arrasto do que aquela que estas pequenas bobinas conseguem suportar, o que pode fazer com que a fita deforme quando reproduzidas. O facto de algumas dessas fitas magnéticas serem de acetato também constitui um risco. Para a sua correcta leitura era portanto fundamental encontrar um equipamento em bom estado, mas que não constituísse, ele próprio, um factor de risco para os suportes. O conteúdo foi gravado em Moçambique, junto dos Macondes (1952-1953 e 1961), Angola, junto dos Bosquímanes (1952 e 1961), em Querença (1965, 1968, 1975, Páscoa de 1976, 1995), e em Salvaterra do Extremo (1994). Duas fitas têm indicações de leitura difícil, mas que é possível ler, numa, 1961. Trata-se de recolhas no campo da linguística, da literatura popular e da música, tanto no Algarve como em Moçambique (Macondes) e Angola (Bosquímanes). As fitas estão todas em bom estado, mas, por não ser muito habituais no contexto dos Arquivos de Som, foi necessário, primeiro, recolher informação técnica sobre as fitas e sobre os equipamentos de gravação e leitura antes de qualquer tentativa

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de leitura. Após diversas consultas com especialistas internacionais, e tendo encontrado uma máquina adequada para realizar a leitura, procedemos à sua digitalização. Não foi realizado qualquer restauro do som.

Agora importa cuidar do acesso. Mas esse acesso deverá, para benefício da informação, reflectir a pluralidade do criador destes documentos. Importa recuperar os materiais, as peças de que esse conhecimento foi feito para melhor compreendermos o autor e os seus métodos, e enriquecermos o conhecimento sobre estas matérias. Encontrando-se documentação dispersa por várias entidades (na Fundação Manuel Viegas Guerreiro, na Faculdade de Letras, no CLEPUL, na Escola Secundária João de Deus, em Faro, entre outras), a digitalização dos materiais tornará possível reuni-los e disponibiliza-los para consulta, de forma articulada. De certa forma, a pluralidade será mantida, mas de modo articulado e centralizado, com um só ponto de acesso e onde os cruzamentos - tão queridos a Manuel Viegas Guerreiro - serão não só uma constante, mas uma marca indissociável desses materiais.

Ana Rita da Cunha e Melo de Sousa Prates nasceu a 12 de Julho de 1971, em Coimbra. Licenciada em História, variante História da Arte, pós-graduação em Artes Decorativas Portuguesas, e Doutoramento iniciado em História da Arte, na especialidade Arte, Património e Restauro, com o tema Preservação de colecções documentais – a importância da conservação preventiva. O caso da colecção de desenhos do Museu de Ciência da Universidade de Lisboa. De 1997 a 2004 trabalhou na empresa Bleu Line, sendo responsável pelo apoio técnico em Conservação e Restauro a Arquivos, Bibliotecas e Museus. De 2004-2009 foi responsável pelo Departamento de Bibliotecas e Arquivos na Neschen Portugal, S. A. Em 2009 fundou a empresa Ph Neutro, Unipessoal Lda, empresa especializada em materiais e equipamentos para Conservação & Restauro e na prestação de serviços de consultoria e apoio técnico em Conservação Preventiva a Arquivos, Bibliotecas e Museus, onde exerce funções de directora desde então.

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