COMPILAÇÃO DE CAPÍTULOS M.D. I

COMPILAÇÃO DE CAPÍTULOS M.D. I

Ribeiro, Frederico d’Alincourt Mansur, Monica Compilação de capítulos M.D. I/ Moraes, Sílvio (org.), 1ª edição, Rio de Janeiro, 2023.

50 p.

ISBN 978-65-00-80872-8 Artes Visuais

Apresentação Compilação de capítulos sobre as relações do ready-made de Marcel Duchamp (M.D.), e de parte da produção de alguns outros artistas, com o universo da Escultura e outras formas de manifestação nas artes visuais.

Índice de capítulos selecionados Capítulo 1. Do ready-made à Escultura / Ribeiro, F. d’Alincourt ..................................4 Capítulo 2. Minimalismo: o retorno da escultura como estratégia estética / Ribeiro, F. d’Alincourt .....................................................................................................................24 Capítulo 3. Depois da pop art: A consciência de uma irredutível reprodutibilidade / Mansur, M. .....................................................................................................................31 Bibliografia.....................................................................................................................49

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CAPÍTULO 1

Do ready-made à Escultura Frederico d’Alincourt Ribeiro

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Do ready-made à Escultura

A sutil fronteira entre o que é ou não escultura tem sido objeto de investigação ao longo do século XX e, similarmente, na contemporaneidade. Apesar de não ser o objetivo ou uma das prioridades e preocupações de seu instituidor, podemos eleger o surgimento do ready-made como o momento primordial também na análise desta questão, afetando, não apenas este aspecto em particular, mas inúmeros outros no decorrer deste período da História da Arte.

Marcel Duchamp, no entanto, mostrava-se realmente interessado em enfatizar a origem e o destino conceitual de seus trabalhos, em detrimento ao objeto de arte e sua linguagem plástica, estética, retiniana. Em sua abordagem teórica, a ideia, o conceito e o questionamento se anunciavam como a verdadeira realização artística, fundamentais na estrutura da obra.

Em Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido,1 publicação de entrevistas concedidas a Pierre Cabanne,2 M.D. menciona que, em suas produções, conferia “[...] menos importância à visualidade, ao elemento visual, que era usado geralmente na pintura. Já não queria me preocupar com a linguagem visual... [...] Tudo estava se tornando conceitual, quer dizer que dependia de outras coisas que não a retina.”3 Contudo, mesmo aspirando um estreito contato ao viés ideativo, Duchamp necessitava e utilizava-se do objeto tridimensional para iniciar a ativação de suas intenções preestabelecidas. O artigo por ele selecionado seria, então, um instrumento detonador das proposições do autor na mente do espectador, o qual contribuiria à obra – não mais visual, porém conceitual – com suas percepções e conclusões a respeito do elemento observado.

Como nos informa o escritor e crítico de arte Michael Archer,4 “Duchamp inventara o termo readymade para descrever os objetos fabricados em série que ele 1

CABANNE, Pierre - Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido. 2.ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. Coleção “Debates”. Volume 200.

2 CABANNE, Pierre (1921-2007).

3 CABANNE, Pierre - Marcel Duchamp. In Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido. 2.ª ed.

São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. Coleção “Debates”. Volume 200, p. 65.

4 ARCHER, Michael (1954-).

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escolhia, comprava e, a seguir, designava como obras de arte. [...] Com os readymades, Duchamp pedia que o observador pensasse sobre o que definia a singularidade da obra de arte em meio à multiplicidade de todos os outros objetos.”5 Da assertiva de Archer, mediante as colocações de M.D., retiramos a dedução de que o ready-made havia sido instaurado como um produto direcionado ao pensamento do observador e não à sua fruição. Percebemos, do mesmo modo, que algo particularizava o utensílio designado, tal quais todas as demais criações de arte, como um item singular, detentor de uma unicidade apreciada, porém incompreendida pelo público.

O esclarecimento da questão lançada por Duchamp e apresentada por Archer requer, antes de tudo, e especificamente neste caso, que retornemos à gênese do readymade, à sua fase embrionária, para que possamos abranger não somente este termo em especial, referente ao que consubstancia uma obra de arte, mas, e principalmente, o quanto o objeto duchampiano afetou e expandiu o campo da Escultura.

José Jiménez,6 na edição espanhola por ele dirigida dos escritos de Duchamp, especifica o processo de nascimento e formação do ready-made, ao nos comunicar que “Em 1913, Marcel Duchamp acopla em seu estúdio uma roda de bicicleta, com o eixo invertido, sobre o assento de um tamborete de cozinha. Neste acoplamento, os dois objetos perdem sua função original: a roda não pode deslizar sobre uma superfície, já não é possível sentar-se no tamborete. [...] No ano seguinte, Duchamp põe três pequenos toques de cor em uma lâmina que reproduz uma paisagem, e a intitula Farmácia. As cores adicionadas são as que distinguiam, na França de então, as farmácias. Neste mesmo ano, adquire um secador de garrafas de uso industrial, um objeto que se conhece com os nomes Ouriço, Porta-garrafas ou Secador de garrafas. [...] Nascia, assim, um tipo de atuação plástica que receberia em 1915, em Nova York, com uma expressão do inglês americano, o nome de ready-made (literalmente: ‘já feito’, disponível). Os ready-mades de Duchamp supõem um questionamento e uma ampliação verdadeiramente radical dos limites da arte.”7

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ARCHER, Michael - Arte Contemporânea: Uma História Concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 03.

6 JIMENEZ, José (1951-).

7 “En 1913, Marcel Duchamp acopla en su estudio una rueda de bicicleta, con el eje invertido, sobre el asiento de un taburete de cocina. En ese acoplamiento los dos objetos pierden su función original: la

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Entretanto, segundo o relato do próprio Marcel Duchamp – conforme verificaremos no parágrafo subsequente –, o ready-made originou-se como um subproduto do acaso, um entretenimento, distração ou divertimento pessoal de seu mentor, sem qualquer intenção de gerar um objeto artístico, não-artístico ou de questionar coisa alguma: não havia uma intenção do artista.8 Observemos que Pierre Cabanne, ao inquerir M.D. “Como você veio a escolher um objeto produzido em série, um ready-made, para fazer uma obra de arte?”,9 obteve a seguinte resposta: “Note bem, não queria fazer uma obra de arte. A palavra ready-made só apareceu em 1915, quando fui aos Estados Unidos. Ela me interessou como palavra, mas quando coloquei uma roda de bicicleta sobre um banco, o garfo invertido, não havia qualquer ideia de ready-made ou coisa parecida, era apenas uma forma de distração. Não havia uma razão determinada para fazer aquilo, ou alguma intenção de exposição, de descrição. Não, nada disso...”10 Em sequência, M.D. acrescenta: “Em 1914 fiz o Porta-Garrafas. Comprei-o, simplesmente, no bazar do Hotel-de-Ville. A ideia de inscrição veio naquele momento.

Havia uma inscrição no porta-garrafas a qual esqueci. [...] Foi sobretudo em 1915, nos Estados Unidos, que fiz outros objetos com inscrições, como a pá de neve, na qual escrevi qualquer coisa em inglês. A palavra ready-made veio a mim naquele momento, e parecia bastante conveniente para essas coisas que não eram obras de arte, não eram desenhos, e que não se encaixavam em nenhum dos termos aceitos no mundo artístico.

Foi por isso que fiquei tentado a fazê-lo.”11 Evidente que Duchamp, ao longo dos três anos, os quais intervalaram o advento e a denominação do ready-made – 1913 a 1915 –, percebeu a relevância e originalidade rueda no puede deslizarse sobre una superficie, ya no es posible sentarse en el taburete. [...] Al año siguiente, Duchamp pone tres pequeños toques de color en una lámina que reproduce un paisaje, y la títula Farmacia. Los colores añadidos son los que distinguían en la Francia de entonces a las farmacias.

Ese mismo año adquire un secador de botellas de uso industrial, un objeto que se conoce con los nombres Erizo, Porta-botellas o Secador de botellas. [...] Nacía así un tipo de actuación plástica que recibiría en 1915, en Nueva York, con una expresión del inglês americano, el nombre de ready-made (literalmente: ‘ya echo’, disponible). Los ready-mades de Duchamp suponen un cuestionamiento y una ampliación verdaderamente radical de los límites del arte.” JIMÉNEZ, José - Marcel Duchamp. Escritos. Edicición Española dirigida por José Jiménez. Barcelona: Galáxia Gutemberg, 2012. Coleção “Ensayo”. pp. 1314.

8 CABANNE, Pierre - Marcel Duchamp. In Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido. 2.ª ed.

São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. Coleção “Debates”. Volume 200, p. 79.

9 CABANNE, Pierre - op. cit., p. 79.

10 CABANNE, Pierre - Marcel Duchamp. In Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido. 2.ª ed.

São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. Coleção “Debates”. Volume 200, p. 79.

11 Ibid., p. 80.

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do que estava criando e construiu o arcabouço teórico e conceitual que fundamentou e traduziu seu pensamento, além de conferir sentido à sua concepção e propiciar à obra a devida intenção do artista: dentre as diversas que observaremos, o questionamento da própria Arte.

Quanto aos procedimentos nomeadores dos respectivos artigos, obtemos de M.D., por meio da interpelação de Cabanne e citações suas publicadas por Octavio Paz,12 uma descrição que frisa o desapego visual, a alheação de gosto, emoção ou prazer estético: Ao ser inquirido por P.C. “O que determinava a escolha dos ready-mades?”,13 M.D. lhe responde que “Isto dependia do objeto; em geral, era preciso tomar cuidado com seu look. É muito difícil escolher um objeto porque depois de quinze dias você começa a gostar dele ou detestá-lo. É preciso chegar a qualquer coisa com uma indiferença tal, que você não tenha nenhuma emoção estética. A escolha do ready-made é sempre baseada na indiferença visual, e ao mesmo tempo numa ausência total de bom ou mau gosto.”14 Octavio Paz alude, de maneira similar, a uma explanação de M.D. sobre seu sistema eletivo: “O grande problema era o ato de escolher. Tinha que eleger um objeto sem que este me impressionasse e sem a menor intervenção, dentro do possível, de qualquer ideia ou propósito de deleite estético. Era necessário reduzir o meu gosto pessoal a zero. É dificílimo escolher um objeto que não nos interesse absolutamente, e não só no dia em que o elegemos mas para sempre e que, por fim, não tenha a possibilidade de tornar-se algo belo, agradável ou feio [...].”15 O método seletivo, o ato, o prazer e a inteligência da nomeação em si – desvinculada de um possível deleite estético, de certa satisfação com a coisa eleita – encaminhavam e conduziam a ordenação das ideias de Marcel Duchamp a outro patamar de seu intelecto criativo, direcionando-o contra a arte e em favor da nova arte, ao momentum de sua percepção, de achar algo.

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PAZ, Octavio (1914-1998).

CABANNE, Pierre - op. cit., p. 80.

14 CABANNE, Pierre - Marcel Duchamp. In Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido. 2.ª ed.

São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. Coleção “Debates”. Volume 200, p. 80.

15 PAZ, Octavio - Marcel Duchamp. In Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza. 3.ª ed. São Paulo: Perspectiva S.A., 2004. Coleção “Elos”. p. 25.

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A abordagem desta característica em particular é pormenorizada e concluída por Paz com outras duas colocações de M.D.: “Decidir que, em um momento vindouro (tal dia, tal hora, tal minuto) elejo um ready-made. O que conta então é a cronometria, o instante oco [...] é uma espécie de encontro.”16 E ainda: “Esse porta-garrafas sem garrafas, convertido em uma coisa que nem sequer se olha, embora se saiba que existe – que só olhamos ao voltar o rosto e cuja existência foi decidida por um gesto que fiz um dia [...].”17 Diante do comentário acima exposto, notamos inclusos no processo instaurado por Duchamp o momento cronológico de nascença artística do próprio objeto – mesmo que considerado pelo idealizador como instante oco –, a arte do encontro, ao deparar-se com o novo elemento, e o gesto do artista que seleciona, redefine e apresenta ao olhar do espectador uma nova obra.

Quando Cabanne relembra que “Seu primeiro ready-made americano intitula-se In advance of the Broken Arm, em avanço do braço quebrado”,18 M.D. lhe reporta que “Era uma pá de neve e, de fato, escrevi esta frase nela. Evidentemente, esperava que não tivesse nenhum sentido mas, no fundo, tudo acaba por ter algum.”19 P.C. questiona, em seguida, se “Ele toma um sentido quando o objeto está diante dos olhos?”;20 ao que M.D. prontamente aquiesce: “Justamente. Mas eu pensava que, em inglês, não tinha a menor importância, nenhuma relação possível. Evidentemente, a associação é fácil: você pode quebrar o braço escavando a neve, mas mesmo assim é muito simplista, e não creio que isto tenha sido marcante.”21 Cabanne indaga, então, se “Sua intenção foi a mesma em With Secret Noise, uma bola de barbante fixada entre suas placas de latão unidas por quatro longos parafusos?”22 M.D. replica: “O nome veio depois. Fiz três ready-mades, foi em Pâques, em 1926, e dois eu perdi. Um deles ficou com Arensberg

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Ibid., pp. 29-30.

Ibid., p. 30.

18 CABANNE, Pierre - op. cit., p. 90.

19 CABANNE, Pierre - Marcel Duchamp. In Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido. 2.ª ed.

São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. Coleção “Debates”. Volume 200, p. 90.

20 CABANNE, Pierre - op. cit., p. 90.

21 CABANNE, Pierre - Marcel Duchamp. In Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido. 2.ª ed.

São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. Coleção “Debates”. Volume 200, p. 90.

22 CABANNE, Pierre - op. cit., p. 90.

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que colocou alguma coisa dentro, depois de desaparafusar as placas, e aquilo fazia um ruído depois de aparafusado... O ruído era segredo para mim.”23 Observamos, deste modo, perante a descrição dos procedimentos originários e formadores dos referidos trabalhos, que, mesmo em face de uma interpelação conceitual e ideativa para fins outros que não o retiniano, a ação nomeadora e seletiva dos itens assinala, em primeira instância, um propósito deliberado de M.D. – a conduta de escolha e designação do que é arte por seu intermédio. Num segundo momento, manifestam-se uma atitude e uma configuração escultóricas do instituidor – a utilização por via artística de um objeto tridimensional –, para encaminhar-nos, enfim, ao aspecto primordialmente conceitual por ele mencionado.

José Jiménez frisa que “Os ready-mades são, antes de tudo, um símbolo da expansão da tecnologia na vida moderna, um indício da perda da hierarquia e da exclusividade tradicionais da arte no processo de produção de imagens, uma tomada de consciência do esforço criativo necessário para a realização de qualquer ‘protótipo’ para o desenho de um objeto, não inferior ao que realiza um artista. [...] São objetos ‘já feitos’, ‘disponíveis’, e Duchamp insistiria que, ao menos em parte, em toda atuação artística há igualmente uma dimensão de acoplamento, de utilização de materiais já dados. Com ele, se afundava a concepção tradicional da atividade artística como uma ‘criação’ do nada, com todo o seu fundo idealista e religioso.”24 Podemos melhor compreender o viés construtivo asseverado por M.D. e citado por J.J. – atribuído à organização condutora que direciona e permite o aparecimento do ready-made –, ao considerarmos que era possível ao artista do final do século XIX trabalhar com tintas e pincéis não necessariamente por ele fabricados, assim como ao pintor da Renascença lhe havia a condição de utilizar como suporte um linho não tecido pelo mesmo, estabelecendo-se, por conseguinte, um pressuposto embrionário ao

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CABANNE, Pierre - Marcel Duchamp. In Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido. 2.ª ed.

São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. Coleção “Debates”. Volume 200, p. 90.

24 “Los ready-mades son, ante todo, un signo de la expansión de la tecnología en la vida moderna, un índice de la perdida de la jerarquia y exclusividad tradicional del arte en el proceso de producción de imágenes, una toma de consciencia del esfuerzo creativo necesario para la realización de cualquier ‘prototipo’ para el diseño de un objeto, no menor al que realiza un artista. [...] Son objetos ‘ya echos’, ‘disponibles’, y Duchamp insistiría en que, al menos en parte, en toda actuación artística hay igualmente una dimensión de acoplamiento, de utilización de materiales ya dados. Con ello se socava la concepción tradicional de la actividad artística como una ‘creación’ de la nada, con todo su trasfondo idealista y religioso.” JIMÉNEZ, José - Marcel Duchamp. Escritos. Edicición Española dirigida por José Jiménez. Barcelona: Galáxia Gutemberg, 2012. Coleção “Ensayo”. p. 14.

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emprego de materiais preexistentes, o qual percebemos de maneira mais enfática e notória, mediante a ação resoluta de seu executor, no objeto duchampiano.

Jiménez inclui ainda uma diferenciação entre categorias distintas de produtos apresentados por M.D., ao nos informar que “Duchamp estabeleceu e manteve cuidadosamente, ao longo de toda sua vida, a proximidade e a diferença entre as obras de arte, às suas, lhe agradava chamar ‘coisas’ e ready-mades. As primeiras implicam um ‘fazer’, uma fabricação, os segundos, a apropriação de uma ideia.”25 Dentre os padrões elencados, são verificadas por Octavio Paz duas subdivisões naqueles que se anunciam como ready-made. Paz menciona que “Em alguns casos os ready-made são puros, isto é, passam sem modificação do estado de objetos de uso ao de ‘antiobras de arte’; outras vezes sofrem retificações e emendas, geralmente de ordem irônica e tendente a impedir toda confusão entre eles e os objetos artísticos.”26 Constatamos, então, em virtude das colocações de ambos os autores, que os trabalhos gerados por Duchamp agrupam-se basicamente em três qualidades distintas: ready-made puros, retificados e aqueles denominados coisas, sendo os primeiros fundamentados na apropriação de utensílios já fabricados, os segundos, uma junção de dois ou mais artigos desta mesma qualidade e os últimos, obras executadas pelo artista.

Retornando ao primeiro momento, condizente ao propósito artístico de M.D., no qual a obra instaura-se – o ato da escolha e a designação do que é arte, por seu intermédio –, aquele pode ser analogamente assimilado nas palavras da teórica e crítica de arte Rosalind Krauss,27 quando esta nos esclarece que “O porta-garrafas assinado, seu primeiro ready-made, foi transplantado do mundo dos objetos ordinários para o domínio da arte pelo simples fato de ter sido assinado pelo artista. Neste caso (bem como no caso dos ready-mades subsequentes, como a pá de neve, que recebeu o título de In Advance of a Broken Arm [Antes de um braço quebrado], de 1915, e o mictório

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“Duchamp estableció y mantuvo cuidadosamente a lo largo de toda su vida la proximidad y la diferencia entre las obras de arte, a las suyas le gustaba llamar ‘cosas’, y los ready-mades. Las primeras implican un ‘hacer’, una fabricación, los segundos la apropriación de una idea.” Ibid., pp. 14-15.

26 PAZ, Octavio - Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza. 3.ª ed. São Paulo: Perspectiva S.A., 2004.

Coleção “Elos”. p. 20.

27 KRAUSS, Rosalind (1941-).

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intitulado Fontaine [Fonte], de 1917), o artista claramente não fabricou ou construiu a escultura.”28 A autora arremata, ciente de que “Em lugar disso, elegera um objeto entre o número quase infinito de produtos industrializados que preenchiam passivamente o espaço de sua experiência cotidiana. Um objeto sobre cuja feitura ele não tivera o menor controle. Por conseguinte, não poderia ser tomado como portador da marca de um ato criativo, ou seja, o objeto não surgia como algo proveniente do manancial de ideias e emoções pessoais do artista. [...] a ‘obra’ de Duchamp era simplesmente um ato de seleção. Assim, Duchamp convertera-se em uma espécie de comutador [...] mas que evidentemente não guardaria com ele uma relação convencional na qualidade de seu ‘autor’. [...] Evidentemente, uma das respostas sugeridas pelos ready-mades é a de que um trabalho de arte pode não ser um objeto físico mas sim uma questão, e que seria possível reconsiderar a criação artística, portanto, como assumindo uma forma perfeitamente legítima no ato especulativo de formular questões.”29 Octavio Paz, em consonância com R.K., aborda igualitariamente este tema, ao asseverar que “Os ready-made são objetos anônimos que o gesto gratuito do artista, pelo único fato de escolhê-los, converte em obra de arte. Ao mesmo tempo esse gesto dissolve a noção de obra. A contradição é a essência do ato; é o equivalente plástico do jogo de palavras: este destrói o significado, aquele a ideia de valor.”30 A mencionada contradição como recesso do gesto inquietante realizado por Duchamp, exposta por Paz, nos reporta à estrutura de linguagem convencionada ao sentido de obra, condição esta designada pelo signo – composto com somatório do significado ao significante. Sob os preceitos desta conformação, o significado, o qual se consubstancia no conceito, seria destruído ou destituído de sua importância pelo contrassenso instaurado por M.D., não aniquilando ou suprimindo a obra em si, e, sim, sua noção até então estabelecida. Contudo, tal atitude viria a propiciar o deslocamento da própria arte, antes contida ou confinada ao objeto – seu significante e contraponto ao significado –, rumo ao gesto promovido pelo artista e ao ato de construir uma questão.

Quanto ao significante, a forma pelo componente evidenciada, este, em face às

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KRAUSS, Rosalind - Caminhos da Escultura Moderna. 2.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

Coleção “a”. pp. 88-89.

29 Ibid., pp. 89-91.

30 PAZ, Octavio - op. cit., p. 23.

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circunstâncias inferidas, perderia analogamente o seu sentido, pois não prosseguiria em ser o contentor de um significado, o receptáculo da própria arte.

Ante a explanação de Krauss, verificamos o pressuposto artístico que caracteriza a obra. Notamos que o segundo argumento mostra-se semelhantemente tratado pela autora, que já se refere ao item eleito e transplantado como escultura. A particularidade escultural aqui estabelecida confirma-se em outra passagem do texto de R.K., na qual esta nos esclarece que “Em 1913-14, Duchamp envolvera-se diretamente com produtos industriais propriamente ditos, ao criar suas duas primeiras ‘esculturas’: uma roda de bicicleta presa num banco de cozinha e uma armação para secar garrafas, produzida comercialmente, que ele se limitou a assinar [...]. Em outras palavras, tinha ingressado na fase madura de sua carreira, marcada por uma constante obsessão pela pergunta: o que ‘faz’ uma obra de arte?”31 O questionamento de Marcel Duchamp sobre a natureza de uma obra de arte, enfatizado previamente por Michael Archer, reaparece em Rosalind Krauss, e o amadurecimento no qual ingressou M.D. era igualmente solicitado por este ao observante, do qual exigia não mais a mera e simples fruição da visualidade pertencente ao objeto, mas a percepção dos conceitos, ideias e pensamentos contidos na obra.

Quanto ao viés escultórico, presente na constituição física e argumentativa do ready-made, a atribuição da terminologia condizente manifesta-se em Krauss noutras diversas oportunidades. Esta segunda instância, situada na encruzilhada existente entre os desígnios, intenções e procedimentos do fomentador e todas as mínimas, razoáveis ou medianamente comprováveis relações encontradas pelo espectador, habita o âmago do domínio da Escultura.

Ainda sobre o segundo aspecto, observamos R.K. pronunciar que: 1. “A Fontaine, de 1917, era um mictório que Duchamp girou noventa graus, de modo que o lado que normalmente estaria conectado à parede passa a ser agora a parte inferior ou a base da escultura. Nessa sua nova posição, o trabalho foi assinado com um pseudônimo e datado: ‘R. Mutt/1917.’”32

31 32

KRAUSS, Rosalind - op. cit., p. 88.

Ibid., p. 94.

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2. “Duchamp inscreveu a Fontaine na mostra dos independentes de Nova York, onde – o que não é de surpreender – foi eliminada (escondida pelos organizadores da exposição). As razões disso foram, presume-se, duas. A principal, provavelmente, era de que a escultura não era senão um objeto comum, enquanto a menos séria era a de que, por ser um mictório, o objeto violava os limites do bom gosto.”33 3. [O] “pseudônimo empregado por Duchamp [...], seu pronunciado ‘Eros c’est la vie’ [Eros é a vida], se traduz como uma declaração de base sexual ou do significado erótico da vida. E é esse significado erótico que [...] parece acompanhar a presença escultural de vários ready-mades.”34

Para que possamos ingressar no terceiro aspecto, concernente à peculiaridade primeira, conceitual, ao abordarmos as possíveis interpretações do circunstante – o elemento ao qual a obra se destina e no qual esta se completa –, devemos estar atentos às numerosas qualidades de entendimento que extrapolam uma absorção razoável ou minimamente admissível das intenções do realizador.

No universo linguístico, perante o constatado e de acordo com o semiólogo francês Roland Barthes,35 ao tratar da estrutura da linguagem: “O signo é, pois, composto de um significante e um significado.”36 Sendo estes seus componentes, o primeiro refere-se à forma expressa e, o seguinte, ao conteúdo. Deste modo, em uma forma do conteúdo, apresenta-se a organização formal do significado, onde este e o significante instituem uma única condição.37 Nas artes visuais, em ampla parcela dos objetos produzidos ao longo da segunda metade do século XX e, particularmente, nos artigos de Duchamp, nota-se um distanciamento temporal e perceptivo entre a absorção da forma e a compreensão do teor de uma determinada obra, cisão usualmente gerada pela exacerbação no caráter argumentativo como meio de propiciar o questionamento e a análise por parte do observador.

33

Ibid.

Ibid., pp. 96-97.

35 BARTHES, Roland (1915-1980).

36 BARTHES, Roland - Elementos de Semiologia. 3.ª ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1974. p. 43.

37 Ibid.

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Ao considerarmos a apreciação de um contexto similar no campo da literatura, verificamos que, sob a ótica do semiólogo, escritor e filósofo Umberto Eco,38 “existe uma forma de expressão que segmentou a substância de modo isomorfo àquele pelo qual atualmente, no interior de um dado modelo cultural, é considerada a forma do conteúdo que segmentou a substância do conteúdo. [...] Quando muito se pode dizer que a uma unidade de forma da expressão correspondem diferentes unidades de forma do conteúdo [...].”39 Entretanto, de acordo com Eco, “existem critérios para limitar a interpretação.

Caso contrário, correríamos o risco de nos ver diante de um paradoxo meramente linguístico [...]”40, ou seja, “O destinatário [...] não estaria autorizado a dizer que a mensagem pode significar qualquer coisa. Pode significar muitas coisas, mas há sentidos que seria despropositado sugerir. [...] Se há algo a ser interpretado, a interpretação deve falar de algo que deve ser encontrado em algum lugar, e de certa forma respeitado.”41 Diante do exposto por Umberto Eco e, de maneira semelhante, por Roland Barthes, percebemos que os argumentos manifestos nos permitem notar que a organização de pensamento alusiva à categoria linguística, nestas circunstâncias, se adequa de modo análogo às artes visuais, o que nos propiciaria, em decorrência do sugerido, o uso pelas mesmas das assertivas colocadas por ambos os autores – concernentes ao entendimento das questões apontadas e a seus possíveis desdobramentos.

O terceiro aspecto em meio a aqueles que caracterizam as origens do readymade, primordial em sua concepção, conceitual, institucionalizado por Duchamp e de natureza questionadora e ampliativa dos horizontes de nossa compreensão artística, começa, então, a ser percebido nas frases que finalizam as ponderações iniciais dos quatro autores, dentre os citados anteriormente, que abordam os objetos de M.D.:

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ECO, Umberto (1932-).

ECO, Umberto - As Formas do Conteúdo. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974. Coleção “Estudos”.

Volume 25. p. 66.

40 ECO, Umberto - Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993. Coleção “Tópicos”. p. 46.

41 Ibid., pp. 50-51.

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1. “Com os readymades, Duchamp pedia que o observador pensasse sobre o que definia a singularidade da obra de arte em meio à multiplicidade de todos os outros objetos.”42 2. “Os ready-mades de Duchamp supõem um questionamento e uma ampliação verdadeiramente radical dos limites da arte.”43 3. “Em outras palavras, tinha ingressado na fase madura de sua carreira, marcada por uma constante obsessão pela pergunta: o que ‘faz’ uma obra de arte?”44 4. “Ao mesmo tempo esse gesto dissolve a noção de obra. A contradição é a essência do ato; é o equivalente plástico do jogo de palavras: este destrói o significado, aquele a ideia de valor.”45 A perda na consideração de Duchamp pelos meios tradicionais de arte, que eclodiu em uma nova percepção ou atitude, pode ser observada perante o enfoque de outras duas posturas, geradas em circunstâncias por ele vividas e inseridas em um determinado período histórico. A primeira, parcialmente analisada, diz respeito à sua crescente estima pela condição ideativa na produção de suas obras, ou coisas – como preferia em diversas oportunidades chamá-las.

Sobre a etapa de transição e o início de um novo processo, Duchamp consigna que: “Perto de 1911. Foi nesta época que eu abandonei o lado fauvista para me aproximar dessa coisa que eu tinha visto, que me interessava, que era o cubismo. Eu o encarei com muita seriedade.”46 No entanto, com “Uma desconfiança contra a sistematização. Nunca consegui me conter o bastante, para aceitar fórmulas estabelecidas, copiar, ou ser influenciado, ao ponto de me lembrar de alguma coisa vista na véspera, numa vitrina de galeria.”47 Posteriormente, conclui: “O cubismo interessoume apenas durante alguns meses. Ao fim de 1912 eu já pensava em outra coisa. Então, foi uma forma de experiência, mais que uma convicção.”48

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ARCHER, Michael - op. cit., p. 03.

“Los ready-mades de Duchamp suponen un cuestionamiento y una ampliación verdaderamente radical de los límites del arte.” JIMÉNEZ, José - op. cit., p. 14.

44 KRAUSS, Rosalind - op. cit., p. 88.

45 PAZ, Octavio - op. cit., p. 23.

46 CABANNE, Pierre - Marcel Duchamp. In Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido. 2.ª ed.

São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. Coleção “Debates”. Volume 200, p. 41.

47 Ibid.

48 Ibid., p. 43.

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O segundo posicionamento refere-se ao lato interesse de M.D. – diametralmente oposto à sua incapacidade – em adaptar-se à vanguarda cubista, devido à consumação de uma pintura com reduzida consistência plástica e que demonstrava sua restrita consciência dos procedimentos e buscas engendrados por aqueles pintores.

De acordo com a autora e historiadora de arte Janis Mink,49 ao fazer menção à obra Nu Descendo Uma Escada Nº 2, este “foi o trabalho que mudou a vida de Marcel Duchamp. [...] este ‘nu’ era uma versão mais radical e mecanizada das figuras anônimas de Rapaz e Rapariga na Primavera.”50 O caráter dúbio e a dualidade mencionados no parágrafo acima são consubstanciados na sequência da explanação de Mink. Segundo a pesquisadora, “Quando Duchamp apresentou este trabalho no Salon des Indépendants, teve uma recepção fria. O pintor e teórico cubista Albert Gleizes, 51 que pertencia à comissão de exibição, pediu aos irmãos de Duchamp, Jacques Villon52 e Raymond Duchamp-Villon,53 para o persuadirem a desistir ‘voluntariamente’. Na sua opinião, este trabalho não estava de acordo com o que o círculo cubista pretendia para a sua exposição, que se desejava representativa. Parecia-lhes demasiado ‘futurista’ [...]. Os cubistas queriam clarificar e reforçar a sua posição face aos outros ‘ismos’ que começavam a despontar. Com ar sério e embaraçado, os irmãos mais velhos pediram a Duchamp que cedesse, o que ele fez sem exaltações.”54 Deste modo, verificamos que Duchamp uniu à sua incompreensão e posterior decepção frente ao cubismo, a busca por construir o seu respectivo arcabouço de um novo imaginário pessoal, ou seja, devido à sua inadaptação ao modelo de arte vigente, lhe foi necessário criar o próprio sistema. Desde os primórdios de seu processo pictórico e artístico, M.D. sempre esteve altamente referenciado pelo sentido conceitual da obra e tal atitude o lançava cada vez mais próximo à concepção de seu ready-made, contudo, cada vez mais distante de reproduzir ou sequer assimilar a abordagem e os fundamentos do pensamento cubista.

Pierre Cabanne corrobora neste sentido, ao comentar que “É a partir do Nu Descendo uma Escada [...] que se desliga dos meios exteriores da pintura para se ater a 49

MINK, Janis (1958-).

MINK, Janis - Duchamp. Colônia: Taschen, 2006. p. 27.

51 GLEIZES, Albert (1881-1953).

52 VILLON, Jacques (1875-1963).

53 DUCHAMP-VILLON, Raymond (1876-1918).

54 MINK, Janis - op. cit., p. 27.

50

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sua significação, ficando fora não somente de sua representação, da qual já havia se libertado, mas, sobretudo, de seu conteúdo. Tentou aproximar-se da realidade do objeto criado, com sua própria identidade plástica dentro de sua absoluta objetividade [...]”.55 O crítico de arte e teórico de estética Clement Greenberg56 nos fornece uma descrição mais abrangente e aprofundada deste segundo aspecto. Greenberg menciona que “Duchamp, a partir de 1912, é um exemplo diferente de inovação prematura. Mas na pintura que fez até 1913, [...] O fato de essas pinturas serem quase-futuristas e pseudocubistas não as prejudica necessariamente: o problema é que elas se dão um ar de novidade ao mesmo tempo em que conservam uma ‘infra-estrutura’ bastante convencional. Mas elas não abrem mão realmente das convenções que parecem estar descartando [...], o que contribuiu para torná-las um tanto ralas, quase da inconsistência de um papel. Elas nos mostram também que Duchamp ficara longe de entender o que era o verdadeiro cubismo.”57 Greenberg acrescenta que “Os primeiros ‘objetos recuperados’ que montou, [...], de 1913, nos revelam que ele não sabia tampouco o que eram de fato as primeiras construções-colagens de Picasso. Uma coisa era brincar com convenções há muito estabelecidas (embora nem mesmo isso seja assim tão fácil quando estão em jogo as convenções essenciais da ilusão); outra era ‘brincar’ com convenções mais recentemente estabelecidas, como os planos instáveis do cubismo. Só era possível fazer face a uma convenção nova assim mediante um gosto verdadeiramente agudo.

Duchamp, ao que parece, não o tinha. [...] Não posso deixar de pensar que foi por frustração que Duchamp se tornou tão ‘revolucionário’ a partir de 1912; e que foi por ter perdido a esperança de ser novo e avançado em sua própria arte que ele passou a se colocar contra a arte formal em geral.”58 Constatamos, ante aos dois parágrafos pregressos, que a argumentação de Greenberg vai de encontro às assertivas de Mink, de Cabanne e às orientações deste estudo sobre os motivos e o processo de transformação na arte de Duchamp, que o levaram, posteriormente, à criação do ready-made.

55

CABANNE, Pierre - op. cit., p. 10.

GREENBERG, Clement (1909-1994).

57 GREENBERG, Clement - Seminário Seis. In Clement Greenberg e o Debate Crítico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. p. 138.

58 Ibid.

56

17

Finda a explanação inicial sobre as origens do referido objeto, bem como o transcurso do período de transição de Marcel Duchamp rumo às novas questões por ele engendradas, e retornando à relação entre ready-made e escultura, conjecturada por Rosalind Krauss, devemos nos ater de antemão e fundamentalmente ao que se tem convencionado no decorrer de alguns séculos em chamar de escultura.

Com o intuito de melhor configurar o dilema e o caráter duvidoso do vínculo supracitado, observemos a seguinte conversa entre Pierre Cabanne e M.D., na qual, reportando-se ao início dos anos 50, Cabanne comenta que “Naquela época, você executou novos ready-mades, coisa que não fazia há dez anos.”59 Duchamp o corrige dizendo que “Não eram ready-mades, mas coisas esculpidas, coisas em plástico...”60 Cabanne prossegue: “Nas esculturas, aliás, há uma espécie de erotismo...”61 M.D. assente: “Claramente. Não eram completamente um trompe-l’oeil, mas enfim, era muito erótico mesmo assim. Além disso, não fiz mais que duas ou três coisas como aquelas.”62 P.C. arremata: “O Objeto-Dardo, ready-made fálico, a Folha de Videira Fêmea.”63 M.D. complementa: “Sim. A Cunha de Castidade que ofereci à minha mulher [...]. Era a cunha de castidade tomada no sentido de cunha que se enfia, não do lugar.”64 Percebemos no diálogo acima transcrito, recolhido ao conjunto de entrevistas concedidas pelo artista a Pierre Cabanne na década de 60 do século passado, que, apesar de decorridos quarenta anos desde a chegada do objeto duchampiano, a dúvida entre o que era ou não ready-made, ou escultura, se mostrava presente, inclusive a um crítico de arte, jornalista e escritor experiente como Cabanne. Verificamos, mesmo após a correção assinalada por M.D., que o teórico – de maneira similar a muitos outros especialistas – faz menção a uma das obras citadas como “Objeto-dardo, ready-made fálico”,65 ao que Duchamp acaba por assentir, sem corrigi-lo, pois um aspecto dúbio e dualista da obra se fazia presente mais uma vez.

59

CABANNE, Pierre - op. cit., p. 149.

CABANNE, Pierre - Marcel Duchamp. In Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido. 2.ª ed.

São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. Coleção “Debates”. Volume 200, p. 149.

61 CABANNE, Pierre - op. cit., p. 150.

62 CABANNE, Pierre - Marcel Duchamp. In Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido. 2.ª ed.

São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. Coleção “Debates”. Volume 200, p. 150.

63 CABANNE, Pierre - op. cit., p. 150.

64 CABANNE, Pierre - Marcel Duchamp. In Marcel Duchamp: Engenheiro do Tempo Perdido. 2.ª ed.

São Paulo: Editora Perspectiva, 1997. Coleção “Debates”. Volume 200, p. 150.

65 CABANNE, Pierre - op. cit., p. 150.

60

18

Obtemos em Krauss, assim como já era possível encontrar no pensamento do filósofo e crítico de arte Gotthold Lessing,66 algumas das respostas a este dilema.

Preliminarmente, R.K. nos informa que “Embora tenha sido escrito no século XVIII, o tratado estético de Gotthold Lessing, Laocoonte,67 aplica-se diretamente à discussão da escultura nos dias de hoje. Isso porque, no decurso de sua argumentação, Lessing julga necessário indagar sobre a natureza da escultura e considerar de que modo podemos definir a singular experiência dessa arte.”68 Por sua vez, de modo similar, Duchamp “pedia que o observador pensasse sobre o que definia a singularidade da obra de arte em meio à multiplicidade de todos os outros objetos.”69 Devemos notar que a indagação de Lessing no século XVIII apresenta-se, igualmente, em Duchamp, na passagem do século XIX ao XX, e reaparece em Krauss, ao final do século XX e início do XXI. Apesar de Lessing e Krauss interpelarem o assunto sob o interesse da escultura, o questionamento mostra-se válido em escala mais abrangente, tal qual nos inquire Marcel Duchamp. Pelo momento, contudo, procuraremos nos ater à adjacência escultórica, princípio e fim desta pesquisa.

Em sua assertiva seguinte, Krauss corrobora, em parte, às proposições centrais deste capítulo – e, mais além, desta dissertação – ao aduzir que “Se a formulação dessas mesmas questões tornou-se mais necessária ainda, é porque a escultura do século XX adotou, repetidamente, formas que o público contemporâneo teve dificuldade de incorporar às suas ideias convencionais acerca da função característica das artes plásticas.”70 R.K. acresce que “A questão do que se pode considerar propriamente um trabalho de escultura tornou-se cada vez mais problemática. Por conseguinte, será conveniente, ao se empreender um estudo da escultura deste século, examinar, a exemplo do fez Lessing duzentos anos atrás, a categoria geral de experiência em que a escultura se insere.”71

66

LESSING, Gotthold (1729-1781).

LESSING, Gotthold - Laocoonte ou Sobre as Fronteiras da Pintura e da Poesia. 2.ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2011.

68 KRAUSS, Rosalind - Rosalind Krauss; Gotthold Lessing. In Caminhos da Escultura Moderna. 2.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Coleção “a”. p. 01.

69 ARCHER, Michael - op. cit., p. 03.

70 KRAUSS, Rosalind - op. cit., p. 01.

71 Ibid.

67

19

Segundo Krauss, “em seu Laocoonte, Lessing começa por definir as condições limitadoras de cada arte. [...] Lessing incursiona por aquilo que denominamos crítica normativa. Ele procura estabelecer normas, ou critérios objetivos, que permitam definir o que é natural a um empreendimento artístico determinado e compreender quais seus poderes especiais de criar significado. Assim, em resposta à pergunta ‘o que é escultura?’, Lessing declara que a escultura é uma arte relacionada com a disposição de objetos no espaço.72 Em presença da asserção de Lessing, principiamos a perceber que algumas das características marcantes de procedimentos artísticos mais recentes e alusivos ao século XX, como a instalação, o objeto e a land art, encontram-se inseridas no conceito fundamental de escultura exposto por aquele, no setecentismo.

Ao confrontar as ponderações de Gotthold Lessing, deduzias de uma apreciação escultórica mediante a apreensão do olhar esteta vigente no século XVIII, com a argumentação produzida no século passado, Krauss cita que “Na década de 30, [...] no livro Modern Plastic Art,73 o primeiro a tratar seriamente da escultura do século XX, a autora Carola Giedion-Welcker,74 volta-se inteiramente para o caráter espacial do trabalho escultural. O entusiasmo de Giedion-Welcker pelas realizações modernas dessa arte decorre de sua percepção da crescente pureza com que a escultura foi concentrada em seu caráter espacial. [...] Ela observou, ao longo de toda a escultura moderna, forjarse manifestamente uma relação entre essa matéria inerte e um sistema de configuração imposto a ela, de modo que se estabelecia, no espaço estático e simultâneo do corpo escultural, uma comparação entre duas formas de quietude: a substância densa e imóvel do objeto e um sistema lúcido e analítico que aparentemente lhe havia dado forma.”75 De acordo com Krauss, “Ela identificou dois grandes caminhos por meio dos quais essa cristalização da matéria fora levada a cabo em fins da década de 30. Os escultores haviam analisado o material estático ‘quer através de uma deliberada simplificação dos volumes, quer em termos de desintegração da massa pela luz’. A obra de Brancusi foi o exemplo adotado pela autora da capacidade que tem o escultor de

72

Ibid, p. 03.

GIEDION-WELCKER, Carola - Modern Plastic Art. Zurique: H. Girsberger, 1937.

74 GIEDION-WELCKER, Carola (1893-1979).

75 KRAUSS, Rosalind - Rosalind Krauss; Carola Giedion-Welcker. In Caminhos da Escultura Moderna. 2.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Coleção “a”. p. 04.

73

20

reduzir o material à simplicidade volumétrica, ao passo que Naum Gabo 76 avultava como o mais nítido expoente do uso da luz pelo construtor para abrir a matéria a uma análise de sua estrutura.”77 Em virtude das asseverações de Lessing, Gideon-Welcker e da própria Rosalind Krauss, podemos constatar com maior clareza, no campo escultórico, a presença intrínseca da assertiva filosófica de Roland Barthes, relacionada à estrutura básica da composição do signo, originada pela complementação da forma, ou significante, ao conteúdo, seu significado, constituindo um único fenômeno – neste caso, a escultura.

Entretanto, ao tratar do ready-made, utilizando como exemplo a Fontaine, Krauss afiança que “Para Duchamp, todavia, o trabalho deixara de ser um objeto comum, pois sofrera uma transposição. Levara um tombo ou sofrera uma inversão de modo a ficar apoiado em um pedestal, o que equivale dizer que fora reposicionado, e tal reposicionamento físico representava uma transformação que deve ser lida em um nível metafísico.”78 No reposicionamento do objeto começamos a notar que a composição do signo é, então, afetada em sua estrutura básica, havendo uma nova percepção de seu segundo aspecto, o significado. Para R.K., “Esse ato de inversão compreende um momento em que o observador é obrigado a perceber que um ato de transferência teve lugar – um ato em que o objeto foi transplantado do mundo comum para o domínio da arte. Tal momento de percepção é o momento em que o objeto se torna ‘transparente’ a seu significado. E esse significado nada mais é que a curiosidade da produção – o enigma do como e do porque isso aconteceu. [...] A natureza desse reconhecimento difere daquele da escultura construtivista ou cubista. Não se trata de decifrar a construção formal do objeto ou o modo como as partes podem relacionar-se mutuamente na natureza dos signos ou conjuntos de significado. É um reconhecimento que, muito embora deflagrado pelo objeto, de certa forma não diz respeito ao objeto.”79 Ao colocar uma demanda como o elemento condizente ao significado, Marcel Duchamp criava um alargamento entre a percepção da forma, do significante, e a

76

GABO, Naum (1890-1977).

KRAUSS, Rosalind - Rosalind Krauss; Carola Giedion-Welcker. In Caminhos da Escultura Moderna. 2.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Coleção “a”. p. 04.

78 KRAUSS, Rosalind - op. cit., p. 94.

79 Ibid., pp. 94-95.

77

21

compreensão de seu conteúdo. Mediante este procedimento, M.D. retirava do objeto sua capacidade de significar, pois sua significação estaria contida no gesto do autor e na estrutura temática e argumentativa que lhe interessasse abordar. Por conseguinte, Duchamp havia, então, instaurado um novo conjunto de possibilidades tanto à arte como para o artista e, consequentemente, ao espectador – não a possibilidade de criar mais um artigo destinado à fruição retiniana, contudo a capacidade de formular uma questão.

22

CAPÍTULO 2

Minimalismo: o retorno da escultura como estratégia estética Frederico d’Alincourt Ribeiro

23

Minimalismo: o retorno da escultura como estratégia estética

A busca pela construção de uma escultura não-representacional, com a utilização de materiais que remetessem a si mesmos, cumulativamente à procura por sua colocação no espaço real – não apenas expositivo –, além do profundo interesse pela concepção de uma obra mentalmente estruturada, racional, dissociada à expressão, apresentaram-se como as diretrizes básicas do movimento surgido nos anos 1960, na América, ao qual denominou-se minimalismo.

De acordo com a crítica de arte e historiadora Suzi Gablik,80 a também historiadora e crítica de arte Barbara Rose,81 que escrevera em 1965 sobre a nova arte, “tinha ligado o minimalismo não só às renúncias de Malevich, mas também às de Duchamp, cujas ideias foram decisivas, de fato, para o desenvolvimento da ética minimalista. A importância de Duchamp, a esse respeito, relaciona-se com o modo como os ready-mades desafiaram o prestígio, em nosso pensamento estético, da nossa noção de trabalho como ingrediente essencial em arte. Ao propor um urinol e um portagarrafas como exemplo de arte ready-made, Duchamp tinha minimizado o papel do artista, bem como o valor da perícia artística. Ele atribuiu valor estético a objetos puramente funcionais por uma simples escolha mental e não através de qualquer exercício de habilidade manual. O que ele quis demonstrar foi que a produção de arte podia basear-se em outros termos que não o arranjo arbitrário e apurado de formas.”82 Sobre as influências na origem do movimento, expostas no parágrafo anterior, o igualmente crítico, escritor e professor de história da arte Michael Archer 83 nos relata que “A crítica Barbara Rose propôs a designação de Duchamp de um objeto como ‘readymade’ e a decisão do pintor russo Kasimir Malevich (1878-1935) de exibir um simples quadrado preto sobre um fundo branco como os polos históricos do Minimalismo. ‘É importante ter em mente’, escreveu ela, ‘que tanto a decisão de Duchamp como a de Malevich foram renúncias – por parte de Duchamp, da noção da

80

GABLIK, Suzi (1934-).

ROSE, Barbara (1938-).

82 STANGOS, Nikos - Suzi Gablik; Barbara Rose. In Conceitos da Arte Moderna. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda., 2000. p. 177.

83 ARCHER, Michael (1954-).

81

24

unicidade do objeto de arte e sua diferenciação dos objetos comuns; por parte de Malevich, uma renúncia da noção de que a arte precisa ser complexa’.”84 O estado adormecido deste aspecto em particular do pensamento de Marcel Duchamp, ou seja, da supressão de importância na figura do artista e em sua habilidade ou capacidade de se expressar, renegados diante da possibilidade de escolha, de uma atitude racional e mentalmente fundamentada em face aos interesses vinculados à arte – similarmente à perda no status da obra e de sua aura como objeto artístico –, retornou à tona, desta sorte, somente na segunda metade do século XX, com o advento do minimalismo.

Rosalind Krauss enfatiza que “Na verdade, foi apenas na década de 60 que o interesse de Duchamp pela escultura como uma espécie de estratégia estética [...] assumiu uma posição central no pensamento de uma nova geração de escultores.”85 Krauss, ao referir-se à distinção entre o modo como percebemos as relações de uma obra e sua existência física, rememora que “[...] já em 1917 Duchamp havia introduzido a possibilidade dessa confusão ao inscrever sua Fontaine, o mictório assinado, em uma exposição. Até o início dos anos 60, contudo, essa possibilidade se mantivera latente: casulo de uma ideia a espera de uma mudança de estação para se romper. Por uma série de razões [...], essa mudança climática havia chegado. E os escultores estavam vindo a público propor como obra sua objetos em que o processo de transformação formal não havia se dado de nenhuma maneira evidente.”86 Em diversas oportunidades semelhantes entre si – o que contribuía à despersonalização da imagem autoral –, as obras serviam-se de materiais do dia a dia, industrializados, consubstanciadas aos demais objetos do espaço real ao seu redor, supostamente mescladas diante da similitude entre as matérias empregadas em sua concepção e aquelas existentes na construção de seu entorno, no entanto, e principalmente, ali inseridas em virtude da permanência latente presente nos próprios objetos produzidos, circunscrita e ampliada pela constante replicação de suas formas padronizadas.

84

ARCHER, Michael - Barbara Rose. In Arte Contemporânea: Uma História Concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. pp. 42-43.

85 KRAUSS, Rosalind - op. cit., p. 106.

86 Ibid., pp. 236-237.

25

Devido a tais atributos contidos nos procedimentos utilizados, Krauss nos informa que “Ao caracterizar esses trabalhos como ‘arte minimalista’, Richard Wollheim87 afirmara acerca desses objetos ‘que eles têm um conteúdo artístico mínimo, no sentido que ou são indiferenciados em si mesmos a um grau extremo e, portanto, possuem um conteúdo ínfimo, seja este de que espécie for, ou a diferenciação que exibem, a qual pode ser bastante considerável em alguns casos, não provém do artista e sim de uma fonte não-artística, como a natureza e a indústria’.”88 Para que possamos particularizar este enfoque específico, ao comentar uma das obras de Donald Judd,89 R.K. aponta que “‘uma coisa depois da outra’ parece o transcurso dos dias, que simplesmente se sucedem um ao outro sem que nada lhes tenha conferido uma forma ou uma direção, sem que sejam habitados, vividos ou imbuídos de significado. Com esse pensamento, poderíamos ser levados a indagar se Judd estaria propondo, com essa fileira de caixas idênticas, uma analogia com a matéria inerte – com coisas intocadas pelo pensamento ou não-mediadas pela personalidade.”90 A autora deduz que “Ao fazer a pergunta nesses termos, começamos a descobrir um vínculo entre o procedimento de Judd com essas fileiras ou pilhas de caixas e o procedimento de Duchamp, quase cinquenta anos antes, com seus ready-mades.”91 Devemos estar atentos ao fato de que, assim como os minimalistas, também os artistas da pop art sofreram uma grande influência de Duchamp e, mais particularmente, de seu ready-made. No entanto, apesar das similaridades nas interferências hauridas – na preservação de um caráter anti-emocional e anti-romântico, na utilização de características e objetos pertencentes ao domínio industrial e comercial –, podemos constatar que, enquanto o minimalismo mostrou-se racional, intelectual, ou seja, mentalmente estruturado, “a arte pop é primordialmente paródia. É anti-romântica, antiemocional, antiintelectual, e antiarte.”92 Sobre este conjunto de influxos, semelhanças e disparidades, Krauss declara que “Por essa sua tendência a empregar elementos extraídos do universo comercial, a arte 87

WOLLHEIM, Richard (1923-2003).

KRAUSS, Rosalind - Richard Wollheim. In Caminhos da Escultura Moderna. 2.ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Coleção “a”. p. 237.

89 JUDD, Donald (1928-1994).

90 KRAUSS, Rosalind - op. cit., p. 298.

91 Ibid.

92 BATTCOCK, Gregory - Allen Leepa. In A Nova Arte. São Paulo: Editora Perspectiva, 1975. Coleção “Debates”. Volume 73, p. 172.

88

26

minimalista tem, portanto, uma fonte em comum com a arte pop: um interesse recémdespertado pelo ready-made duchampiano [...]. Contudo, há uma importante diferença entre a atitude dos artistas minimalistas e pop para com o ready-made cultural. Os artistas pop trabalhavam com imagens já altamente difundidas, como fotos de artistas de cinema ou imagens de histórias em quadrinhos, ao passo que os minimalistas se valiam de elementos aos quais nenhum tipo específico de conteúdo fora conferido.”93 Em vista ao exposto, observamos que a ingerência do ready-made de Marcel Duchamp sobre os objetos minimalistas se apresentava de maneira preponderante em suas infraestruturas e condições escultóricas elementares, ao passo que a pop art detinha-se nomeadamente em conjunturas, premissas e caracteres temáticos e anedóticos.

Referindo-se

aos

expoentes

do

minimalismo

e

em

consonância

às

dissemelhanças examinadas, a autora complementa seu pensamento, expressando que “Por essa razão, conseguiram tratar o ready-made como uma unidade abstrata e concentrar a atenção nas questões mais genéricas, relativas a como se poderia dispor deste. Sua prática consistia em explorar a ideia do ready-made de uma forma bem menos anedótica do que os artistas pop, considerando antes suas implicações estruturais do que suas implicações temáticas. [...] A primeira delas diz respeito às unidades básicas de uma escultura e à descoberta de que determinados elementos – tijolos refratários, por exemplo – resistirão ao aspecto da manipulação. A ideia de não terem sido fabricados pelo artista, mas sim para algum outro uso na sociedade em sentido amplo – na construção de edifícios –, confere a esses elementos uma obscuridade natural.”94 A primazia das concepções de Duchamp diante da ordenação e edificação dos propósitos, raciocínio e ideologia daquela vanguarda, simultaneamente à supressão da personalidade autoral, minimizada perante o emprego de artigos industrializados e replicados indeterminadamente, evidenciam-se novamente no modelo acima estipulado, assim como no caso das fileiras de caixas dispostas por Donald Judd, ou em quaisquer outros conjuntos de esculturas daqueles artistas.

93 94

KRAUSS, Rosalind - op. cit., p. 298.

Ibid., pp. 298-300.

27

Reportando-se ainda aos meios utilizados nas obras, Krauss conclui suas designações deste aspecto apregoando que “Será difícil, em outras palavras, interpretálos sob uma perspectiva ilusionista ou identificar neles a alusão a uma vida interior da forma (da maneira como a pedra erodida ou talhada no contexto de uma escultura pode aludir a forças biológicas internas). Em lugar disso, os tijolos refratários permanecem inexoravelmente externos, como objetos de uso e não como veículos de expressão.

Nesse sentido, os elementos ready-made são capazes de transmitir, em um nível puramente abstrato, a ideia de simples exterioridade.”95 Quanto à utilização de tais componentes, aos quais a autora nomeia “elementos ready-made”, sua estrutura concebida a partir de produtos industriais de fato caracteriza, tal qual o objeto de Marcel Duchamp, uma ausência de construção e composição interiores que remete à sua roupagem exterior, a qual demonstra ser avultada ainda mais pela reprodutibilidade modular do próprio item – um acréscimo minimalista contido no arcabouço do pensamento duchampiano.

No tocante à denominação condizente ao conjunto formado pelo somatório de módulos, obtemos, de acordo com Michael Archer, a seguinte informação: “Judd, que começou como pintor, escreveu em seu ensaio de 1965, ‘Objetos Específicos’, que muito da arte que estava sendo feita não podia mais ser descrito como pintura ou escultura. Em lugar destes, ele usou o termo ‘obra tridimensional’.”96 Todavia, a questão de uma especificidade no viés tridimensional das unidades minimalistas não se mantinha como um padrão constante ou estratégia de ação entre os artistas. Por outro lado, havia aqueles que abordavam a reprodutibilidade de modo inverso ao expresso acima, ou seja, empenhavam-se em retirar das obras quaisquer possibilidades tridimensionais, buscando planificá-las, achatá-las, enfraquecendo assim, e muito além, seu teor imagético.

Ao fazer menção, como exemplo, às obras de Carl Andre97 no início da década de 1960, o qual buscava “que sua escultura fosse ‘baixa’ e pegada ao solo”, 98 Archer comenta que “Nos anos seguintes, os trabalhos de Andre ficariam ainda mais baixos, 95

Ibid., p. 300.

ARCHER, Michael - Donald Judd. In Arte Contemporânea: Uma História Concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 43.

97 ANDRE, Carl (1935-).

98 ARCHER, Michael - Arte Contemporânea: Uma História Concisa. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p. 54.

96

28

utilizando lâminas quadradas de vários tipos de metal dispostas sobre o piso em configurações simples [...]. Para que elas fossem plenamente percebidas, o espectador era convidado a caminhar sobre essas ‘planícies’. A sensação literal da obra, a densidade particular do metal, seu som e sua resistência às pisadas são todas partes do que ela pode dar ao ‘espectador’. Ainda uma vez Duchamp é trazido à memória por suas críticas contra uma arte visual que era puramente ‘retiniana’.”99 Diante à diluição da contraparte aparente do meio exposto, percebia-se, similarmente, aqueles artistas como Jasper Johns,100 ao qual o caráter psicológico do objeto, não como veículo de expressão ou fruição, contudo como elemento existente em um espaço ideal, anterior a si próprio e à sua experimentação, mostrava-se como o verdadeiro interesse em foco, a verdadeira obra a ser notada.

Para aludir aos trabalhos de Johns, Krauss designa que “O tratamento do readymade por Johns reforçava sua oposição a toda a ideia da arte como pura expressão; seu entendimento deste conduzia não em direção, mas para longe, da expressão do eu. Na verdade, Johns via no ready-made a indicação do fato de não ser necessário vínculo nenhum entre um objeto de arte final e a matriz psicológica de onde provém, uma vez que, no caso do ready-made, tal possibilidade é inviável desde o princípio.”101 No intuito de reforçar sua colocação, R.K. nos relembra que “A Fontaine, por exemplo, não foi feita por Duchamp, mas apenas selecionada por ele. [...] Uma vez que o criador do objeto e o artista são evidentemente distintos, não há meios de o mictório servir de exteriorização do estado ou estados de espírito do artista ao produzir a obra. E, por não funcionar nos moldes da gramática da personalidade estética, pode-se considerar que a Fontaine estabelece uma distância entre si e a noção de personalidade per se.”102 Em sua busca por implantar um novo direcionamento aos rumos da escultura, o minimalismo e seus artistas exacerbaram ou, mais especificamente, se apropriaram e evidenciaram diversas das características estruturais do ready-made e da construção teórica de Marcel Duchamp, estabelecendo assim uma nova estética e esgotando as possibilidades formais do objeto artístico, desencadeando, deste modo, as bases de um encontro com o fundamento da argumentação duchampiana: o conceito.

99

Ibid., pp. 55-56.

JOHNS, Jasper (1930-).

101 KRAUSS, Rosalind - op. cit., pp. 309-311.

102 Ibid., pp. 311-312.

100

29

CAPÍTULO 3

Depois da pop art: A consciência de uma irredutível reprodutibilidade Monica Mansur

30

Depois da pop art: A consciência de uma irredutível reprodutibilidade

A CONSCIÊNCIA advinda de uma situação modificada que veio à tona com o aparecimento dos meios mecânicos trouxe um questionamento ao mundo da arte que persistiu, talvez, até o final do modernismo: deve a arte ignorar, opôr-se a ou explorar a tecnologia implícita na crescente industrialização? Ou, a produção artística é sintoma ou resultado das modificações?

Segundo os preceitos da modernidade, a produção artística dividia-se entre duas vertentes: aquela que tratava da arte em relação ao aparato técnico, sendo pois um resultado posterior, e uma outra que já vinha incorporando as modificações internamente, sendo então um sintoma a priori, lidando com elas já em sua origem.

Historicamente, porém, a problemática sempre foi proposta como se tudo não passasse de uma escolha posterior, ou seja, abraçar o uso da tecnologia ou conservar-se fiel à tradição do fazer do artista. Como a explicação para as duas correntes modernistas em oposição pode ser somente uma opção aleatória, um simples aceitar ou não as condições impostas por um mundo totalmente alheio à própria arte: as vanguardas históricas, de um lado, e as correntes que desaguariam no formalismo, de outro?

Aceitação ou negação, sintoma ou resultado, são meras ilustrações de uma situação controlada por aquisições conseguidas pelo desenvolvimento tecnológico alcançado por um sujeito descontextualizado?

Aparentemente, um fosso profundo abriu-se entre os artistas que ainda cultivavam práticas e formas tradicionais e os outros que defendiam uma vanguarda da antiestética. Os primeiros — cubistas, fauvistas e pós-impressionistas — rejeitavam essencialmente a máquina movendo-se em direção à abstração e a suas preocupações formais. Mas os construtivistas e futuristas mergulharam radicalmente no espírito da nova era, glorificando a máquina como ferramenta e a estética da máquina em si. Porém uma outra tendência da vanguarda, o dadaísmo, estava pronta para questionar a própria natureza da arte e toda a relação com o mundo artístico e com toda a sociedade.

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Tanto dadaístas quanto construtivistas, futuristas e surrealistas tomaram a máquina como ícone, para comentar as realidades do homem e do mundo, e todos eles usaram a fotografia como instrumento e meio em seus trabalhos. Como as correntes artísticas que se colocavam em oposição, ou seja, os movimentos de ruptura, as técnicas de reprodução representavam, para estes grupos, a possibilidade de atingir um público de modo mais amplo e rápido.

A intenção de ataque à tradição também era mais contundente, pois o vocabulário imagético passou a incluir e exprimir situações de uma aparente novidade.

Os construtivistas usaram métodos fotomecânicos de reprodução, por exemplo, para rapidamente imprimir cartazes e montar trabalhos de arte. Os dadaístas produziram fotomontagens e, também, ready mades, entre outras razões, para criticar os valores do sistema comercial das galerias de arte e a própria arte como instituição.

Porém, mesmo que tivessem em comum a utilização dos meios de reprodução mecânica na materialização de seus anseios e reflexões, isto não coloca os dadaístas e construtivistas lado a lado na origem de seus processos de pensamento artístico. O que significa que só o meio não pode ser tido na conta de detonador para esses processos.

Uma reflexão que parte da interioridade de um sistema não pode ser reduzida a uma simples conseqüência da evolução de um aparato tecnológico.

Já é ponto pacífico na história da arte que, enquanto o construtivismo é o lado positivo, dada é o lado negativo de uma total e utópica crítica da arte dentro de uma modernidade social. Logo, cada qual pensa o mundo da máquina a seu modo.

Historicamente, é posto nos cubistas o crédito pela transição da arte para o modernismo. De certa forma, esta é uma visão simplista, que não leva em consideração as correntes não-formais das vanguardas históricas. Seguindo o caminho aberto por Picasso e Braque, os cubistas deliberadamente fizeram explodir o ponto de vista único do espaço perspectivado e a representação convencional da natureza. Apesar de ser possível afirmar que o ponto de partida cubista em direção a uma abstração dinâmica foi a imagem fragmentada, partida e serial, sugerida pelas pesquisas dos fotógrafos

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Muybridge, Marey103 e pelo cinematógrafo, o objetivo alcançado foi uma organização sintética e abstrata do plano pictórico.

O meio foi utilizado como aparato técnico para pesquisa e não levado em consideração como materializador de uma estrutura instrumental para uma reflexão sobre sua especificidade interna: a reprodutibilidade. É como se houvessem traçado um caminho, que não seguiram até o fim.

Mas importa assinalar que, nas bases para a pesquisa cubista, encontram-se relações com a reprodução. E essas relações significam que houve um momento em que a questão da reprodutibilidade era real e interna ao campo da arte, mesmo que certas correntes, dela, se tenham desviado, em outras se forjou uma conscientização.

Ao proclamar que a arte deve alinhar-se à magnífica irradiação do futuro104, os futuristas italianos também saudaram a idade da máquina. A máquina deu a Boccioni, Balla e Severini a principal iconografia para suas artes. Eles quebraram as superfícies estáticas de carros, trens e figuras, buscando linhas de força, repetindo formas infinitamente com o fim de criar movimentos circulares, espiralados, sugestivos de uma energia irrestrita e irreprimível.

Num rompimento político com a tradição, dadaístas confrontaram práticas artísticas convencionais com táticas antiartísticas. De redutos vanguardistas em Zurique, Berlim, Paris e Nova York, periódicos dada insultaram a burguesia, a polícia e a instituição arte. Idealizaram assemblages (conjunções) irônicas e irracionais com partes de máquinas e produziram escandalosos trabalhos de fotomontagem. Profanaram a atmosfera elevada e formal de galerias públicas para levantar questões fundamentais sobre a “pureza” da arte, sobre seu valor de consumo comparado a seu valor social e 103 Muybridge ficou famoso pors seus estudos do movimento, que iniciou em 1872, quando tentou capturar, em fotografias, um cavalo a galope. Em 1877, expandiu suas experimentações, colocando 12 câmeras, próximas umas das outras, com o intuito de poder gravar, fotograficamente, todas as fases do movimento de um cavalo igualmente a galope. Marey também trabalhava o movimento nas imagens fotográficas, mas de modo diverso. Suas fotografias encaixam-se numa ótica científica e buscavam contribuir para a medicina do século XIX. As fotos eram feitas a partir de inúmeras exposições seqüenciais numa única tira de filme. Elas capturavam, visual e acuradamente, o movimento no espaço e no tempo.

104 “Afirmamos que a magnificência do mundo enriquece-se com uma nova beleza: a beleza da velocidade. Um carro em alta velocidade, cujo capô é adornado com enormes tubos, qual serpentes de hálito explosivo – um carro rugidor que parece disparar como um canhão é mais belo que a Vitória de Samotrácia.” Este é um dos itens do “Manifesto futurista” escrito por Marinetti em 1909 e traduzido pela primeira vez para o inglês em 1912. Apud Charles Harrison & Paul Wood (org.). Art in Theory: 19001990, Cambridge (Mass.): Blackwell, 1992, p. 145.

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sobre a originalidade de objetos manufaturados em relação a valor das cópias industrializadas.

O interesse dos cubistas por questões formais como espaço, estrutura, ritmo e composição construiu-se, de uma parte, pelo do desenvolvimento da fotografia e, por outra, como reação às possibilidades de representação abertas pela nova técnica, envolvendo mesmo uma certa repressão contra elas. Desenvolver e refinar uma linguagem formalista abstrata e seu vocabulário era a maior preocupação do modernismo, segundo Greenberg,105 até o aparecimento da pop art no início da década de 1960.

Os construtivistas russos receberam a era da máquina positivamente, acreditando que o futuro da sociedade estava nas forças libertárias e benéficas acionadas pela ciência, pela tecnologia e pela indústria. Procuraram fundir arte e vida, radicalmente, por meio da cultura de massa, da performática e da produção.

— Marcel Duchamp e o ato decisivo Duchamp, levantou questões fundamentais sobre a função da arte na era da máquina. Por isso é preciso aprofundar mais na análise de suas proposições. Ele começou seu trabalho artístico como cubista e foi aclamado tanto por dadaístas quanto por surrealistas. Ele desenvolveu conceitos que se colocaram além dos confinamentos de quaisquer movimentos e criou um domínio filosófico próprio, questionando todas as crenças, então firmadas, sobre a função da arte. Sentindo a máquina como formadora de uma consciência moderna e mais alinhado com o espírito da era moderna mecanizada do que com a pintura. Ele introduziu e fez experiências com quase todos os conceitos e técnicas que seriam importantes para artistas de vanguarda dos cinquenta anos subsequentes. O Nu descendo a escada, a partir da fotografia de Marey, que foi exibido em 1913, transformou-o numa celebridade.

Em 1915, Duchamp iniciou um grande trabalho construído em metal e vidro, que o ocuparia pelos oito anos seguintes. O Grande vidro — ou The bride stripped bare by her bachelors, even... —, que sugere a idéia de uma “máquina do amor”, carrega em 105 GREENBERG, Clement. Art and Culture, Critical Essays. Boston : Beacon Press, 1961.

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si uma concepção totalmente nova tanto em relação ao pensamento artístico quanto aos materiais e ao fazer artísticos. O uso de pedaços de maquinário com referência à cultura de massa, encadeada às alusões freudianas, tornaram a obra uma efetiva base para idéias estéticas e atitudes que continuam a influenciar artistas na atualidade.

Em 1917106, com seu primeiro ready made, Duchamp elevou um objeto comum à estatura de obra de arte, na melhor tradição iconoclasta dadaísta. As perguntas, que foram criadas a partir dali, levantaram várias dúvidas, que se renovam até hoje. O que pode ser um trabalho de arte? É sempre um objeto feito pelas mãos do artista? E sua composição é definida a partir de quais leis?

Ao negar até a possibilidade de definir arte, apropriando-se da cópia comum — uma reprodução mecânica — e colocando esta cópia no contexto de uma galeria de arte, Duchamp criou a oportunidade para sua significação alterada: um novo pensamento sobre o objeto, voltado para atribuir a consideração estética à escolha da mente e não à habilidade ou à destreza da mão. Com isso, subtraem-se as qualidades estéticas do objeto, passando a responsabilidade para a mente e, obviamente, para o homem, pois objeto não pensa nem reconhece pensamento. O que o objeto artístico ainda detém — e sempre será assim — é a possibilidade de, com sua presença, instaurar no observador uma situação que detone o pensar.

De certa forma, a preocupação com a reprodução em Duchamp vai mais além do que um simples fetiche “aurático”. Isto é, ao retirar a aura do objeto, instaura uma outra nos mesmos moldes, porque conserva o atributo, do original, como único e, da reprodução, como cópia. Esta retomada da aura é a que se faz na contemporaneidade, mas de modo diferente,. A relação entre originalidade e cópia, é preciso refrisar, modifica-se. Talvez esteja aí a problemática duchampiana. Duchamp poderia estar tratando já desta conscientização da reprodutibilidade como ação e não como consequência. O ready made não encerra uma inadequação à reprodução em sua própria natureza constitutiva, como obra. Ao contrário, ele é sintoma da intranquilidade gerada pela necessidade de perceber que a realidade já funciona sob outras regras de observação e de reflexão. Mas ainda não é suficiente para reinstaurar a efetividade da

106 A primeira vez que Duchamp tornou público um ready made foi em 1917, com Fountain. DE DUVE, Thierry. “Echoes of the Readymade”, in Martha Burskirk e Mignon Nixon (org.), The Duchamp Effect, Cambridge (Mass.) : MIT / October, 1996, p. 107.

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aura nos moldes contemporâneos e por isso o modernismo de sua vanguarda associada a Duchamp falhou como projeto, mesmo que acendesse um estopim para o futuro.

Como Duchamp afirmou anos depois, um artista pode usar qualquer coisa — um ponto, uma linha, o mais ou o menos convencional dos símbolos — para dizer aquilo que quer. O ato de escolher é aquele que é decisivo.107 Ele ampliou as questões anteriormente colocadas pela fotografia, sobre a obra única. Minimizou as atribuições do fazer artístico e enfatizou o processo conceitual, introduzindo a possibilidade do uso de técnicas industriais e mecânicas, como mais um aspecto da escolha decisiva. Mas isto não foi feito como simples crítica, ou lançado como posição de ruptura total com o contexto artístico vigente: talvez a intenção implícita de Duchamp tivesse sido uma crença na própria arte, à medida que ela capta as transformações da experiência. Sua concepção influenciou diretamente a pop art e a maioria dos artistas que se afirmaram a seguir.

Esta tendência permeia claramente a produção artística contemporânea.

Conjuntamente com a minimal art e a arte conceitual, a produção da pop art abriu o caminho para inúmeros artistas atuantes hoje. Muitos trabalham suas questões por meio de estratégias artísticas similares àquelas patenteadas por Warhol, num desdobramento até das discussões por ele inauguradas. Para o modernismo, a distinção canônica feita entre as belas-artes e a cultura de massa resumia-se a que as belas-artes criticavam a si próprias, enquanto a cultura de massa era mero entretenimento.108 Com Andy Warhol, novamente enfocado, impõe-se a ideia de que ambas podem tratar dos mesmos temas e um desses temas é sua audiência, seu público. Assim, a arte passa a discutir e a endereçar-se à audiência, influenciada diretamente pelas transformações na difusão e na distribuição da arte, introduzidas pela era da imagem — reproduzida e reprodutível. Ganha terreno a compreensão de que a arte, estando no mundo, deve também lidar com as questões do mundo para estar nele.

Além do observador da arte, aparece um público para a arte. O público é o sujeito coletivo, que pode ou não perceber o desgaste ou o retorno da aura da obra de arte, pois é ele que está sujeitado aos meios de comunicação. Sendo um sujeito coletivo, 107 DUCHAMP, Marcel. “O ato criador”, in Gregory Battcock, A nova arte. São Paulo : Perspectiva, 1973.

108 Cf. GREENBERG, Clement. Art and Culture, Critical Essays. Boston : Beacon Press, 1961.

Particularmente nos textos que falam da pintura moderna.

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submete-se, enquanto sujeito individual — observador na situação instalada — ao conscientizar-se da presença da máquina como intermediadora, torna-se aberto para receber as ondas da aura que navegam o espaço de instalação.

Apesar de estar devidamente limitada a um período, a produção da pop art em descompasso com a sequência lógica do desenvolvimento abstrato e formalista do modernismo clássico criou um desvio em direção à estética ligada antes à cultura de massa que aos cânones vigentes na high art.

O retorno à renegada e repudiada "figuração" na arte — em oposição a uma aparente "abstração" —, pelo uso da fotografia, par a par com os comentários sobre as condições da vida material e também da cultural na sociedade de massas, está nas origens da nova arte, que não é tanto a rejeição de antigas fórmulas, mas, muito mais, é a criação das novas relações e das inúmeras leituras contextualizadas, nas quais o artista apresenta a instância para que esses acontecimentos possam realmente acontecer.

A pop art indica um caminho para uma leitura de objetos de arte da contemporaneidade que leva em consideração a consciência implícita e pulsante de reprodutibilidade, como característica do estar no mundo.109

— A face da consciência: Andy Warhol A complexidade deste artista, que no decorrer de quarenta anos incendiou a atenção de historiadores e teóricos, ainda hoje se comprova, quando vem à baila a extensa bibliografia sobre ele, que remete a vários Warhols, todos possíveis.110 E contudo, depois de percorridos inúmeros ensaios e escritos, ainda permanece a idéia de que Andy Warhol apresenta (representa) a virada para uma nova noção de arte, tanto em seu aspecto "produção", como em seu aspecto "compreensão", uma vez que ele 109 É neste ponto que o círculo maior, aquele formado pelos pequenos círculos a que se faz referência na Apresentação deste trabalho, retorna a seu início: quando a estrutura instrumental dos quatro pares de conceitos pôde ser construída e a conceituação específica efetiva-se como instrumento de análise na observação de obras de arte. Neste estágio embrionário da teorização a ser desenvolvida a partir das primeiras conclusões deste texto, pareceu oportuno voltar à análise de obras de Andy Warhol, pois é na pop art e e, sobretudo, na obra de Warhol, que a conscientização da reprodutibilidade como questão e processo, como discussão e afirmação, se traduz plenamente..

110 Uma pequena parte desta longa produção pode ser conferida na bibliografia deste trabalho, onde estão incluídos textos de Terry Atkinson, Roland Barthes, Thomas Crow, Arthur Danto, Thierry de Duve, Luc Lang, Robert Rosenblum.

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abriu a possibilidade de outros caminhos para uma arte que pensou a reprodutibilidade e a imagem sob inúmeros formas e aparências.

Aliás, a palavra aparência é muito utilizada nas análises mais conhecidas de Warhol, pois trabalhar a aparência sempre foi uma intenção revelada por ele, ainda que mesclada de um certo desinteresse blasé, característica atribuída a sua personalidade.111 Mas a ambivalência e a evasividade de Warhol em relação a alguma significação em seu trabalho foi sempre teatral, ou melhor dizendo: possivelmente construída intencionalmente com o fito de produzir uma reação. Para alguns autores, inclusive, a trajetória posterior do artista confirma a característica teleológica em sua obra, evidenciada a partir da época da criação de trabalhos como The Last Supper e outros das décadas de 1970 e 80.112 A afirmação de que existe na obra de Warhol uma ideologia política pronta para ser consumida e de que ele, ao tentar mostrar que só existem aparência e alienação consumista, estaria escondendo, mas com a intenção de revelar, um artista revolucionário — este sim irresistível para as legiões do consumo cultural —, justificase plenamente em seus trabalhos mais recentes, realizados depois 1970.

Hoje, é possível encontrar análises em que ele aparece investido de vontade política, engajada em direção à denúncia.113 Em seu caso, objeto e sujeito são fenômenos artísticos e esta convergência entre o objeto de arte e seu criador poderia muito bem ser tomada como um fator a mais na aproximação entre arte e vida. Mesmo que fosse para negar qualquer conteúdo, tanto no artista quanto na obra, esta superposição apresenta-se, não apenas pela obsessão de Warhol em aparecer pessoalmente na mídia, mas também pelos inúmeros auto-retratos e fotografias de si próprio que expõe em seus trabalhos. O ser supostamente 111 É excepcionalmente interessante ler o que o próprio Warhol escreveu em seu livro The Philosophy of Andy Warhol, Nova York : Harcourt, 1975. Seu pensamento e suas idéias parecem, em alguns momentos, completamente incoerentes, pela liberdade expressada em suas palavras. Porém, a intenção de apontar para uma filosofia da aparência é bastante evidente em muitos trechos, mesmo que, por trás dela, uma sombra sutil se delineie.

112 Entre estes autores estão Trevor Fairbrother e outros cujos textos e discussões integram o volume publicado pelo DIA Center for the Arts sobre Andy Warhol, parte da coleção Discussions of Contemporary Art. GARRELS, Gary Garrels (org.). The Work of Andy Warhol, Seattle : Bay Press, 1989.

113 Cf. BUCHLOCH, Benjamin, "The Andy Warhol Line" in Gary (org.), The Work of Andy Warhol,.

Op. cit..

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desumanizado pelo consumo permanece humano, está no mundo e — o próprio artista inclusive — pode morrer. Pela própria finitude, Warhol comprovou, mais uma vez, que a aparência é uma casca vazia e perecível, mas pode continuar existindo pela via desta própria aparência — a imagem reproduzida — mesmo se construída artificialmente.

Pois não interessa a “verdadeira” face, mas, sim, a face que se perpetua.

O certo é que a questão fotográfica está totalmente embutida nas obras de Warhol. Constitui a base para toda uma “pintura” do deslocamento, da cópia, da repetição, da fragmentação, onde mesmo a palavra pintura põe em evidência aquele início da era do pós-meio, em que a categorização da técnica cede terreno à preocupação com o resultado e sua relação com o observador pela via da situação instalada.

Toda a “pintura” de Warhol desliza, de um lado a outro, pelo campo das conceituações aqui já analisadas. A partir da escolha intencional das práticas “pictóricas” — a fotografia, o silk-screen, o off set, e mesmo a própria reprodução manual das obras do início de sua carreira — todo um percurso de raciocínio, revelado na materialização das obras, é percorrido.

Para desenvolver um estudo coeso das séries de Warhol, não há como deixar de admitir que a fotografia, como meio e em sua relação com a “representação”, está presente e de modo surpreendente, mesmo que, no início de sua produção, ele próprio pintasse as telas,114 "simulando" até mesmo seu instrumento de reprodução, como foi mencionado.

Este fato pode servir para esclarecer, inclusive, a importância daquele momento em que o uso de material fotográfico passou a ser fundamental para que a obra deixasse ver aquela "aparente preocupação com a aparência real". Mas a discussão da aparência vai muito além da questão do real, ou melhor, de uma aparência de real: deve enfrentar aquilo que Baudrillard chama de simulacro,115 mas com a intenção de apresentar, sob a

114 Andy Warhol pintou páginas de jornal e tiras de histórias em quadrinhos, a princípio (1960 até 1962) sem utilizar o recurso do silk-screen, mas já com a preocupação de semelhança com uma reprodução, até mesmo pela escolha desses temas.

115 BAUDRILLARD, Jean. “The Precession of Simulacra”, in Brian Wallis (org.), Art after Modernism: Rethinking Representation. Nova York: The New Museum of Contemporary Art, 1984.

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forma institucionalizada da arte,116 a consciência da reprodutibilidade como real. E não um substituto para a realidade, via reprodutibilidade.

Quando Warhol pinta, com a própria mão, utilizando pincéis e tintas sobre tela, aparentes “cópias” de primeiras páginas de jornal — e o faz inserindo modificações intencionais nas imagens —, começa o debate da obra única versus a cópia numa escala mais sutil, talvez menos contundente do que aquele que vai aparecer, bem mais adiante, na série de 1984 intitulada The Last Supper. Vale assinalar que, desde 1964, Warhol estabelecera uma relação significativa com o mestre Leonardo da Vinci quando trabalhou com a imagem da Mona Lisa.

Se na série The Last Supper, a imagem da Última Ceia de Cristo, pintada por Leonardo da Vinci, a obra clássica de um dos pintores mais importantes da história da arte, é reproduzida e retrabalhada, Warhol não para aí. Para servir de matrizes e modelos de seus “quadros”, escolheu uma reprodução barata, em preto e branco, amplamente divulgada no século XIX, e um desenho esquemático encontrado numa edição de 1913 da Cyclopedia of Painters and Painters. A reprodutibilidade como consciência revela-se tanto na utilização das reproduções e de sua referência ao original, quanto no entendimento de que, mesmo reproduzindo a obra de da Vinci, a gravura e o desenho são originais em si, produzidos por outros artistas. Mais: a gravura fora obtida pela impressão de uma matriz em metal, ela própria um pseudo-original.

De certa forma, este processo perfaz uma reavaliação da aura da grande obra.

Não só uma avaliação do rastro da aura “original”, mas também de uma nova situação instalada pela memória desta, deslocada e ampliada na escala agora aumentada pelo artista pop: o espetáculo.

Além disso, Warhol introduz, em grande parte das versões do The Last Supper, imagens da propaganda e de objetos do cotidiano contemporâneo: sapatos do tipo tênis, rótulos de embalagens para batatas fritas etc. Este procedimento, um pouco diferente do das latas de sopa Campbell na década de 1960, faz sobressair o elemento temporal, ao expor aquele esmagamento, aquele estreitamento resultante da aproximação da imagem imóvel (imobilidade) desta obra-prima renascentista à imagem móvel (deslocamento)

116 Consideramos a arte como instituição na medida em que oferece legitimação às obras assim chamadas.

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do cotidiano da cultura de massa. Se a história é o discurso, o real é a imagem — a imagem reproduzida.

The Last Supper retira a obra de Leonardo da Vinci de seu espaço atual específico que funciona como museu. 117 Porém — reiterando —, por se tratar de uma igreja, por si só a aura emana do espaço, do sentimento transcendente na conotação do sagrado. E, por ser a obra um afresco, é muito mais imóvel do que um quadro, pois não pode ser fisicamente removida. Com seu procedimento apropriativo, Warhol recoloca a imagem numa instituição de arte, mas numa instituição dinâmica, a galeria de arte 118: assim, amplia sua significação, expande sua penetração, incorpora questões e redefine os limites de sua ação.

Uma das primeiras vezes em que o termo pós-modernismo119, aplicado às artes visuais, apareceu, foi ao curso de uma discussão sobre o trabalho de Robert Rauschenberg120 e sobre sua capacidade de transformar a superfície pictórica numa “cama” — referência à aparência absolutamente plana da “cama” de uma prensa, que é a superfície onde são colocados a matriz e, por cima, o papel antes de o rolo de impressão ser pressionado.

Ou seja, a “cama” constitui uma superfície que pode receber uma vasta gama de imagens e artefatos a serem impressos, diferentes tipos de imagens que, mesmo separadas no tempo, podem ser organizadas num mesmo espaço plano. É certo que o trabalho artístico de Rauschenberg lida em grande parte com a arqueologia de imagens, algumas delas “escavadas” da história da arte e das imagens de museus. E, pela via da arqueologia, o artista dispõe suas escavações numa “cama” única, o quadro, onde as imagens dos museus e as do mundo contemporâneo convivem em harmonia.

Ora, o procedimento de Warhol, de certo modo, equivale ao de Rauschenberg, com a “escavação” da gravura baseada na Última Ceia, de Leonardo da Vinci, uma obra-prima de “museu”. A analogia com a “cama” da prensa é vital. Ela evidencia a 117 A Última Ceia, de Leonardo da Vinci, foi restaurada recentemente e está disponível à visitação pública.

118 A obra The Last Supper foi encomendada pelo marchant Alexadre Lolas para uma exposição em sua galeria de arte, anteriormente o refeitório do Palazzo delle Stelline, em Milão.

119 CRIMP, Douglas. “On The Museum’s Ruins”, in Hal Foster (org.), The Anti-Aesthetic: Essays on Postmodern Culture. Seattle : Bay Press, 1983.

120 Os trabalhos deste artista já foram mencionados anteriormente, por ocasião da apresentação do conceito de fragmentação.

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manifestação das causas e efeitos da reprodutibilidade na consciência, não sendo todo o procedimento um simples meio de reproduzir. A posse arqueológica, sua apresentação na obra — no quadro, isto é, na pintura —, e seu deslocamento para a superfície da pintura só são viáveis graças à faculdade de reproduzir como ação do intelecto.

Este momento é o limite do modernismo, o portal para uma lógica que vai além dele.

Ao definir o museu como ruína, no sentido de que a história faz o discurso da destruição,121 a obra do museu da mesma maneira se torna ruína e, segundo Benjamin, como a ruína é o elemento alegórico por excelência, a apropriação da imagem de Leonardo da Vinci por Warhol trabalha a ampliação da significação.

Pela noção de apropriação, a extensão do sentido da imagem apropriada —: um procedimento alegórico, agora, necessita ser enfrentado. O fragmento contemporâneo, aliado ao histórico (fragmentação), investe-se de unidade (reunificação), na superfície plana da “pintura” pop.

As séries de Warhol onde aparecem Marilyn Monroe e as outras personagens, cujas imagens são construídas e transformadas pelos media em objetos da atenção pública, materializam, sob este enfoque, todos os pares de conceitos aqui expostos.

Apesar de real em si, a fotografia prende-se ao real "original" mediante os fios invisíveis da luz que a imprimiu. "A fotografia adere ao real",122 adere ao tempo, envolvendo-se em sua cronicidade. Ela invoca um real original, na medida em que percorre um ir e vir constante entre o presente-presente e o presente-passado.

Qual é o real “original” no caso de uma Marilyn Monroe? A resposta estaria relacionada com Norma Jean — ou com a imagem dela construída pelos meios de comunicação e absorvida pela massa, em que até as características físicas já não são mais as mesmas entre elas: Norma Jean e sua figura popular e pública, Marilyn Monroe.

A construção de uma realidade artificial deslocada, mas ao mesmo tempo considerada real pela imagem divulgada, é debate dentro das questões pop.

121 Cf. STEINBERG, Michael. Walter Benjamin and the Demands of History. Nova York : Cornell University Press, 1996.

122 BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1984, p.16.

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Quando, em 1962, Warhol "pintou" a série de "retratos" Marilyn Monroe, “pintou" com as técnicas da serigrafia e utilizou reproduções fotográficas já existentes.

Ele escolheu uma foto e a reproduziu, acrescentando pequenas modificações ao original.

E isto, por convenção, seria a reprodução de uma reprodução.

Naquela época, a retratística contemporânea acusava uma quase total paralisia, estava moribunda, talvez até já falecida. As perspectivas de que qualquer mortal, vivo ou morto, pudesse ser retratado de modo pictórico com alguma relevância artística — naquele momento uma quase exclusividade dos Pollocks, Rothkos e Newmans — eram, no mínimo, remotas. Mas, como a arte não pode ser previsível, o "aqui e agora" da década de 1960, — o cotidiano da vida norte-americana — foi introduzido no campo artístico de modo surpreendente pela jovem geração de artistas da qual Warhol faz parte.

E o que pedia atenção imediata — atenção esta aguçada pelo consumo, pela indústria da cultura de massa, desde supermercados e auto-estradas até aparelhos de televisão e eletrodomésticos —, foram o cinema de Hollywood e sua galeria de estrelas que encabeçaram a lista.

Com um oportunismo e inteligência incomuns no artista moderno, Warhol ressuscitou a categoria moribunda da retratística para impregnar a arte de realidade, aquela realidade imaginada, reproduzida infinitamente e sempre reprodutível, supostamente reconhecível por todos os componentes da sociedade massificada.

Os retratos pintados por Warhol são impressões em silk-screen cujas matrizes, transferidas de forma fotográfica, são reproduções em off-set de ilustrações de revista que, por sua vez, tinham como base fotografias criadas de negativos que resultaram da reflexão da luz sobre pessoas reais, conhecidas de milhares e milhares de pessoas, mas conhecidas somente pela e na imagem que os media delas construíram e fizeram reproduzir.

Como tal, esta é a Marilyn real, ela própria, existindo unicamente como imagem.

Como imagem, apresentava-se pela via de um artifício: uma criação a priori, destinada a ser consumida pela massa, baseada no que a esta consumir, numa resposta aos seus anseios, mas nem por isso menos real.

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O anonimato do sujeito real, tanto a “verdadeira face” do retratado, quanto o indivíduo que a retratou — Warhol apropriava-se de fotos produzidas por fotógrafos anônimos, usava fotografias sem autoria —, reforça o aspecto da dialética e do paradoxo na obra de Warhol. A imagem, em sua gênese, foi criada para ser multiplicada, consumida, e não possui qualquer original. Mesmo que possuísse — a matriz é a fotografia de jornal —, o original já é uma cópia, uma reprodução da fotografia “original”. Porém, Warhol assina seus quadros, chama a todos e a cada um deles de “pintura”, em suma, determina originais: altamente cotados no mercado de arte, admirados pelo público e pelos mídia, “glamourizados” pela propaganda que o próprio artista fez de si próprio: único, original, diferente.

A consciência da reprodutibilidade da imagem implícita o processo técnico de transferência. Esta consciência explícita na maior parte dos exemplos das séries de "retratos" e também das séries de desastres e objetos, em que imagens quase idênticas foram impressas numa mesma tela. Inclusive, com a recorrência ao artifício das cores fortes e chocantes com o fim de alterar as feições do "retratado", Warhol aumenta a diferença e a distância entre a imagem e a persona, parodiando o uso do make-up como meio de transformar um indivíduo (ator) em personagem.

Ao mesmo tempo, a combinação visual de uma suposta fidelidade às feições da personagem e o efeito de distanciamento resultante do tratamento dado, principalmente pelas cores escolhidas, ocasiona e cada vez mais desvenda a desindividualização do sujeito. Tanto do sujeito que parece ser retratado, quanto do que contempla a obra.

Esta desindividualização completa-se e se inverte de série para série. Aos “retratos” das figuras famosas, “indivíduos” criados em resposta aos desejos e anseios das massas, seguem-se as séries de acontecimentos relacionados aos “desindivíduos”, os anônimos, os homens e mulheres que povoam esta massa: são os desastres de carro, os suicídios, as tragédias urbanas.

As já citadas séries de retratos de Marilyn Monroe iniciam o mecanismo interno de todas as outras séries de retratos, na própria origem delas: começam por ocasião da morte da estrela, por suposto suicídio, em agosto de 1962. Até mesmo a escolha de cores e a composição formal — só o rosto colocado sobre o fundo, em tratamento similar ao que é dado ao ícone medieval — pode referir-se a uma função comemorativa ou funerária, como uma imagem sagrada.

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Como o povo administra, racionaliza, uma morte célebre? A morte é a única certeza, a única verdade, o único real. Por ser única, iminente e irremediável, é necessário o acostumar-se a ela como ideia. E, sendo aquilo que existe de original para cada um, o ser humano, para conviver com a ideia, repete a experiência da morte alheia.

Segundo Deleuze, “somente um original pode ser repetido pela reprodução”.123 Na repetição, habitua-se o olhar. A imagem que representa a morte, ou sua experiência, repetida infinitamente nas séries de Warhol, habitua a mente na certeza universal. A tragédia, a destruição sempre estiveram presentes na obra de Warhol. Desde aquela pintura — Plane Crash — que representa uma página de jornal noticiando a queda de um avião e a morte de mais de uma centena de pessoas, os pensamentos dele, voltados para a morte, determinaram uma temática aparentemente obsessiva que se manteve por anos a fio.

Celebridades — série dos retratos — e desconhecidos — séries dos desastres de carro, suicídios — unem-se na série Skulls que lida com uma questão muito contemporânea: a da impermanência como qualidade universal da irredutível angústia humana. Onde se encaixariam os inúmeros auto-retratos, feitos por Warhol em todo decorrer de sua trajetória? Podem ser vistos como uma tentativa de permanecer pela história, pois, como ser humano, Warhol e todos os outros seres, celebridades ou não, mais cedo ou mais tarde encontrariam a finitude na terra.

Mais do que a crença na aparente “aparência” superficial pop, a crença na história é um eco que reverbera em Warhol desde Benjamin — um elo a mais entre ambos, além do pensamento voltado para a reprodutibilidade: a história como lugar de recuperação, como escavação e arqueologia que salvam o mundo da total destruição a que está fadado.

Existem mais relações entre Warhol e Benjamin do que seria possível encontrar em personagens aparentemente tão distantes. Embora filhos de épocas diferentes, preocupações e questionamentos comuns são detectados por um olhar afinado neste sentido: a postura dândi de Warhol, evidente em sua persona e uma certa tendência para

123 Cf.. deste texto: Repetição e diferença.

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a melancolia124 possibilitam esta aproximação e o elo acontece com Baudelaire, que tanto motivou Benjamin.

A série Skulls — produzida na década de 1970 — já traz em si a iconologia da ruína universal, o rastro, o traço. Após o episódio em que Warhol quase morreu, quando uma “fã” disparou dois tiros de revólver contra ele, seus trabalhos passaram a demonstrar uma preocupação ainda maior com destruição, morte, impermanência, principalmente com sua própria destruição, sua própria impermanência, sua própria morte. Afinal até aquele momento Warhol era indestrutível, já que era persona.

Onde está a ligação da morte célebre com a morte anônima do homem desconhecido, pequena partícula da grande massa? O que aproxima o famoso do desconhecido é a sensação de perda, da ausência de uma presença imaginada abundantemente, posto que construída. A aproximação só é possível graças ao uso do aparato fotográfico, à imagem impressa, ao material que o artista só conseguiu achar nos meios de comunicação. É pela via destes meios que personagens, eventos e objetos são idealizados e devolvidos ao dia-a-dia contundentemente: tornam-se elementos familiares, mesmo não pertencendo ao "real". E é pela via do sofrimento que todos os homens são iguais. No drama e na tragédia, o astro de cinema, o presidente da república, o funcionário público e a dona-de-casa se encontram. Os referidos "retratos" de Marilyn Monroe, os de Elizabeth Taylor e, mesmo, os de Jackie Kennedy são todos visões determinadas de um mesmo ângulo.

Estes são os heróis e heroínas do tempo da cultura de massa, de igual forma tão eternizados, pelas gravuras vastamente distribuídas para o povo., quanto os heróis e santos da idade média. A construção da personagem, sua colocação no cotidiano da massa por intermédio da divulgação da imagem reproduzida, seu reconhecimento como a imagem materializada dos anseios e desejos do homem comum e, finalmente, a sacralização pelo sofrimento e a subsequente adoração pelo povo são aspectos muito

124 Cf. BUCHLOCH, Benjamin."The Andy Warhol Line", in Gary Garrels (org.), The Work of Andy Warhol, Seattle : Bay Press, 1989, p. 64. Benjamin Buchloch compara Warhol a Manet, ao posicionar os dois artistas como dândis disfarçados e assinalar, nos trabalhos artísticos de ambos, uma ambigüidade entre um conservadorismo apolítico e blasé e uma precisão subversiva na temática.

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similares aos encontrados na história, quando do aparecimento da gravura em madeira impressa sobre velin.

Da mesma forma que a imagem substituiu o discurso na idade média, pois então quase todo o povo era analfabeto, na era da reprodutibilidade técnica, mesmo sendo quase generalizado o acesso às letras, a imagem também substitui o discurso e o hábito da reprodução faz com que a imagem não passe, para além dos olhos, até o intelecto.

Warhol racionaliza e mostra a consciência da reprodutibilidade, utilizando aquilo que sabe: fazer arte. Quer colocar, na arte, um olhar que passe pelo intelecto, pondo em discussão a aparência vazia, a cópia, o fragmento, a repetição.

Assim, Warhol, negando a profundidade, enfatizava a superfície e elegia a máscara, não o indivíduo que, enquanto sede de uma personalidade manifestada por intermédio da linguagem e da ação, foi desprezado. Warhol incorporava em sua vida a mesma estratégia que mobilizava para sua arte e era essencial para que permanecesse absolutamente neutro e rigidamente alheio, arvorando-se um papel de completo afastamento e insistindo em que ele próprio não possuía toda a complexidade de um ser humano, de um sujeito individualizado. É fundamental compreender a posição de Warhol na construção de sua própria personagem. Pois, exatamente o que ele pretendia, ao incluir-se entre as figuras que compõem sua galeria de “celebridades” era isso: construir uma persona para si próprio.

E também se colocar como um dos retratados, daí a grande quantidade de auto-retratos que existe em sua produção.

Ao encarnar uma persona na vida real, Warhol discute não só o conceito de realidade, como a conscientização da reprodutibilidade no olhar habituado à reprodução e a construção de um real neste olhar. Como se fosse possível olhar-se de fora para dentro, olhos nos próprios olhos — num diálogo entre um herói construído pela imagem reproduzida e divulgada amplamente e um artista preocupado com sua condição mortal e com a infinitude do poder da arte. E, enfim, se perguntar: quantas realidades podem existir na era da conscientização da reprodutibilidade?

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