Revista Luz na Lente - Ano 2022 Edição 2

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ANO 2022 EDIÇÃO 2

A ALQUIMIA DA FOTO Conheça a vertente estética da fotografia que explora as etapas físicas e químicas do processo de impressão como foco criativo de construção das peças

SOCIEDADES SINTÔNCIAS - VIVÊNCIA INDÍGENA - ECONTRO COM GAVIÃO REAL - ENSAIO SOBRE A MEMÓRIA - MANUAL DO FOTÓGRAFO ARTISTA



Foto de Capa: Télio Luiz Chegamos à segunda edição da Revista do Fotoclube Luz na Lente. É um feito a ser comemorado, mas, sobretudo, a ser refletido. Algumas perguntas saltam aos associados... Por que uma Revista? Quais assuntos ou fotógrafos devem participar? Em que uma Revista acrescenta ao Fotoclube? Não sabemos quais respostas seriam as mais exatas, porque a análise e objetivação de um trabalho artístico-jornalístico é algo de extrema subjetividade. Melhor deixar essa função para os leitores. No entanto, podemos arriscar uns palpites, visto que o papel do Fotoclube é trazer informação e lazer aos associados. No Luz na Lente, procuramos cumprir essa tarefa com reuniões mensais, onde profissionais de renome, tanto de fora quanto da própria organização, são convidados para palestras, cursos, saídas fotográficas e oficinas. Nos últimos meses, tivemos a honra de receber autoridades como Alexandre Sequeira, Ana Póvoas, Ângela Berlinde, Carlos Barcellos, Cláudia Bokel, Danny Bittencourt, Eustáquio Neves, Ioana Mello, dentre outros. Quanto à escolha dos fotógrafos para compor a revista, houve um convite aberto aos associados, para quem tivesse material para apresentar, independente do tema. A única exigência foi, claro, que o assunto tratasse de fotografia. Por último, o que uma revista acrescenta ao coletivo? A resposta é bastante larga: abrange desde o desafio de se comprometer a escrever, e fazê-lo; passa pelas trocas propostas nos trabalhos dos colegas e, quiçá, daqui tirar alguma inspiração para novo projeto, sem falar na importância da informação compartilhada com os leitores. Merece destaque o desprendimento em deixar-se conhecer pelos colegas e pelo público externo, além de estar aberto tanto para críticas como para novos aprendizados pela leitura da revista. Mas o que fica desta edição é o desafio enfrentado por alguns fotógrafos, pois escrever é algo relativamente novo para eles. Participar de um coletivo onde a técnica jornalística deve andar ombro a ombro com o olhar do artista é outro desafio enfrentado nessa experiência. Mas nada disso abalou o entusiasmo dos participantes em dar o melhor de si. Cada qual, de maneira personalíssima, a seu tempo e modo, escolheu as melhores palavras e as organizou. Em seguida, com o mesmo encanto, escolheu as melhores fotos, para dar ao leitor um instante de prazer na leitura. Um detalhe aguçou esse entusiasmo: o fato de estarmos saindo da pandemia da Covid 19. Uma das medidas sugeridas pelas autoridades de saúde foi o distanciamento social e, por conta disso, essa Revista foi feita totalmente em sistema remoto. A vontade de nos encontrarmos para aprofundarmos debates em torno dos textos ficou contida nas reuniões online e nas mensagens enviadas pelas redes sociais. Vencendo todos esses desafios, o Fotoclube Luz na Lente deseja aos leitores momentos agradáveis ao desfrutarem dessa Revista. Apreciem-na, critiquem-na para nosso aperfeiçoamento. E em nome da arte, divulguem-na.

EDITORIAL

ANO 2022 EDIÇÃO 2

A Direção.

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SUMÁRIO

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PASSO A PASSO PROJETO FOTOGRAFIA ALTERNATIVA

PALESTRA DO ASSOSSIADO Carlos Barcellos apresentou o tema “O fim do mundo e o reino das águas - lugares sonhados”, para contar um pouco do que foi a experiência de fotografar onças no Pantanal e a cidade de Ushuaia, na Argentina. Dois lugares que ele sempre sonhou em conhecer. Foto: Carlos Barcellos

ENSAIO REFLEXÃO BIOGRAFIA EXPEDIÇÃO INCLUSÃO FOTOLIVRO

EXPEDIENTE

Presidente João Rios Diretoria Financeira Stela Moura Fernandes Diretoria de Fotografia Mariana Almada Conselheiros Cláudio Cunha Lucila Rosa Diagramação Hanna Guimarães

Redatores Alexandre Heller Danny Bittencourt Fernanda Matos Fernanda Ottoni Jeanne Martins João Rios Mariana Almada Télio Luiz Thiago Tolêdo

Fale Conosco fotoclubeluznalente@gmail.com fotoclubeluznalente.com.br @fotoclubeluznalente (61) 99975-7936/(61) 98111-4114 SQSW 105 Bloco F, Sudoeste, Brasília - DF

A revista Luz na Lente é uma publicação da Orbith Digital. A empresa não se responsabiliza pela venda, distribuição ou anúncios relacionados a este produto.

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Foto: Carlos Barcellos

Foto: Carlos Barcellos


BOLETIM

Foto: Carlos Barcellos

OFICINA DE ASTROFOTOGRAFIA Em abril, o Fotoclube teve a oportunidade de participar de uma oficina de astrofotografia com o fotógrafo especialista no assunto Carlos Barcellos. Os alunos tiveram uma explicação online sobre procedimentos básicos para fotografar a Via Láctea e uma experiência prática na Chapada dos Veadeiros.

Foto: Sandra Bethlem

PROJETO DE INCLUSÃO O Luz na Lente se juntou com o Candango Fotoclube para realizar uma ação social na Comunidade Indígena Guajajara, no Setor Noroeste, em Brasília. Os voluntários se mobilizaram para recolher alimentos e agasalhos, além de oferecer pequenas oficinas de fotografia no local.

Foto: João Rios

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PASSO A PASSO 06

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Instalação do tríptico na casa do cliente. Imagem: Deserto do Atacama.

MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA DO FOTÓGRAFO-ARTISTA CONTEMPORÂNEO DO ARQUIVO DIGITAL À IMPRESSÃO FINE ART

Um bote de salva-vidas para os fotógrafos que utilizam as redes sociais e os mecanismos do mercado de arte, arquitetura e design para venderem suas fotografias. POR ALEXANDRE HELLER (TEXTO E FOTOS)

“Como se não bastasse o processo de criação, edição e impressão de suas imagens, o fotógrafo contemporâneo deve compreender e explorar seu posicionamento na trincheira entre poética e consumo, sendo, ao mesmo tempo, vendedor e educador de seus clientes, pois seus objetivos finais são a venda e a garantia da qualidade museológica da impressão, as quais garantem a curto, médio e longo prazo a satisfação e fidelização.” Trecho do Artigo Original*

*O conteúdo dessa matéria foi retirado de um artigo de mesmo nome, apresentado por Alexandre Heller em sua banca de pós-graduação em fotografia como suporte da imaginação.

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que há em comum entre um artista que viveu no início do século passado e um artista contemporâneo é a necessidade de desenvolver uma sensibilidade de venda para apresentar aos possíveis clientes aquelas obras que podem despertar o desejo da aquisição. A diferença é que hoje nós não precisamos colocar as obras no carro e percorrer quilômetros pelo Brasil afora, tomando muito café com as esposas dos prefeitos das cidades e passando meses longe de casa e da família para trazer o dinheiro das vendas dos quadros. Pelo contrário, com um computador e um perfil em redes sociais, é possível estar em casa ou em qualquer lugar do mundo, desenvolvendo e produzindo arte com qualidade e certeza da satisfação do cliente. Através de simulações em ambientes, muitas vezes fictícios, um fotógrafo-artista pode expor seu acervo de maneira menos onerosa monetariamente. Dessa forma, o cliente escolhe aquela que mais lhe agrada e, somente após

a aprovação do projeto, a obra se materializa através da impressão fine art, emolduramento e instalação. Como o próprio termo expressa, fine art trata-se da impressão de maneira altamente artística, oferecendo controle de todo o fluxo, desde a captura até a impressão final, em busca de um esforço sensorial para ampliar a sensibilização. Para que uma obra possa ser classificada dessa maneira, existem vários detalhes técnicos em sua produção, desde a captação da imagem, seu processamento digital, o encaminhamento do arquivo final para o ateliê de impressão e a finalização da obra na molduraria. E para auxiliar aqueles que desejam se atualizar ou até mesmo se inserir no universo da fotografia contemporânea, aqui jaz um manual que aborda todas as etapas de produção, desde a concepção de uma ideia, produção das imagens, análise e reflexão acerca da relação entre forma e conteúdo, materialização da imagem e diálogo com o mundo.

Instalação casa do cliente. Dimensão 150 X 200cm.

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PROCESSO CRIATIVO

CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA

Para nós, artistas, é fundamental a importância do processo criativo. Ele se inicia antes mesmo de lançarmos o primeiro clique, pois nosso repertório visual nos conduz diante do desafio de criar e transformar em arte tudo aquilo que nos cerca ou que já existe. E para explorar ao máximo esse potencial artístico, é muito importante ter como base três pilares – estudo, prática e técnica. O estudo e a prática andam lado a lado, e o ideal é que ambos estejam em equilíbrio, que possam se complementar continuamente para que a pessoa adquira a técnica. Muitas vezes, realizamos muito mais prática, e com isso o tempo da reflexão crítica do que se está produzindo é escasso, quase nulo. Demandas do mercado? Necessidades comerciais? Não importa o que faça a balança pender, temos que retomar o equilíbrio. O oposto também é preocupante, quando se estuda demais uma imagem, mas nunca a executamos.

A narrativa começa com a composição da cena, formato da imagem e fotometria, e tem sequência quando, ao chegar à sua estação de trabalho, descarrega suas imagens captadas em RAW – negativo digital – e, no programa de edição, começa a expressar seu sentimento através da paleta de cores, saturação, contraste, brilho etc. No pós-processamento da fotografia, aliando a expressão criativa à técnica, obtém-se o resultado esperado desde o momento da concepção da ideia. A partir daí, todos os processos subsequentes devem ser respostas para que a imagem seja finalizada com extrema qualidade, encaixando-se nos preceitos de uma obra fotográfica fine art. Isso significa que, antes de serem enviadas para o ateliê de impressão, devese ter a garantia de que as imagens têm qualidade e resolução suficientes para a dimensão (ou dimensões) do suporte (papel) proposto.

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ATELIÊ DE IMPRESSÃO Após explorar e lapidar a proposta de trabalho, é necessário concretizá-la. E para isso, o fotógrafo-artista obrigatoriamente compartilhará sua criação com um terceiro profissional, o impressor, que o ajudará na execução final desse projeto. É nesse momento que ocorre a materialização de todo o processo criativo aliado à técnica: a impressão fine art, que é o objetivo final das fotografias de belas-artes. Essa é uma etapa tão importante quanto o processo criativo, a magia da transformação de luz e códigos binários em pigmento e matéria. O ateliê de impressão, ambiente em que todo fotógrafoartista deveria se encontrar, torna-se extensão da sua própria estação de criação. Cria-se então uma relação profissional e de muita confiança, parceria e coautoria da imagem a ser impressa. Tal relação inicia-se com o envio do arquivo digital para o ateliê de impressão. Nessa etapa, o fotógrafoartista encontra-se completamente dependente do impressor e sua máquina. O impressor deve garantir que os melhores materiais (papéis e tintas) serão usados com um cuidadoso processo na manipulação dos instrumentos e objetos. A impressão fine art é a combinação entre as tintas de pigmentos minerais sobre papéis 100% algodão, livres de ácidos, ou papéis 100% alfacelulose. Essa fusão resulta em uma impressão de altíssima qualidade com a longevidade de mais de um século, garantida pelos fabricantes das matériasprimas, desde que finalizadas da maneira correta (moldura, vedação, vidro e suporte). Atualmente, as marcas mais conhecidas são a alemã Hahnemühle, que já está no mercado há 300 anos, e a francesa Canson. Logo após a impressão, existe um período de secagem para que posteriormente enfrente o emolduramento. Em ambos os processos, o artista já não possui mais participação; ele ressurgirá no momento da instalação no ambiente de seu cliente, para fazer os ajustes finais e contemplar o resultado com o novo proprietário da obra.

completamente. Não existe mais a necessidade de produzir fisicamente a obra. Atualmente, lança-se mão das ferramentas digitais para simular na parede do cliente a obra de interesse. O cliente entra em contato com o trabalho do artista principalmente através do Instagram e manda um arquivo da foto da parede em que pretende colocar a obra. Com essa imagem em mãos, é possível inserir na parede do cliente a obra fotográfica, simulando um quadro com moldura e, até mesmo, por vezes, um reflexo do ambiente para que fique mais próximo da realidade. Assim, o cliente se conecta diretamente com a fotografia e, somente após a compra do projeto é que a imagem passa pelo processo de impressão, garantindo a sustentabilidade de todo o processo.

DIVULGAÇÃO No século passado, o consumidor tinha contato direto com os quadros, muitas vezes na própria casa, onde já “experimentava” aquela obra na parede da sua sala ou em outro ambiente. Tradicionalmente, a forma como os artistas expõem seus trabalhos é através de eventos culturais ou galerias de arte, o que demanda um alto investimento para atingir o público. Hoje, com a fotografia e todo o processamento digital, aliados à exposição em redes sociais, essa realidade mudou

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Manchete de jornal de 1949 indica que avós de Heller estariam em Porto Rico com uma exposição de quadros e esculturas. Em contraste, as atuais fotos de Alexandre o mostram produzindo e expondo material de qualidade de sua própria casa.


Alexandre Heller Ateliê de impressão. REDES SOCIAIS De acordo com o relatório da We Are Social e da Hootsuite, o Instagram foi a 4ª rede social mais usada no Brasil em 2021, com 110 milhões de usuários, baseada unicamente no compartilhamento de imagens e vídeos. Ou seja, é a maior galeria de arte gratuita do mundo, proporcionando a seus usuários a possibilidade da divulgação de seus trabalhos e escalando as vendas para um público diversificado e consideravelmente amplo, com a possiblidade de ter os trabalhos acessados mundialmente, rompendo qualquer barreira demográfica e proporcionando escalonamento mundial das obras fotográficas. Para o fotógrafo-artista que pretende comercializar as suas obras fine art, a internet com certeza será seu maior aliado. Plataformas como Pinterest, Behance, Adobe My Portfolio e até mesmo – e não menos interessantes – blogs e sites (e-commerce) são mídias importantes para a presença digital. Esses espaços de divulgação, apesar de terem menos visibilidade

que o Instagram, são muito úteis, pois podem ser conectados entre si e auxiliar no ranqueamento da maior ferramenta de pesquisas do mundo: o Google. Mas é importante ressaltar: as habilidades de venda continuam sendo extremamente necessárias, mesmo no cenário virtual, pois para garantir a venda é preciso saber conversar com simpatia, explicar tudo nos mínimos detalhes e fazer uso de técnicas de persuasão para o fechamento da compra. Agora que você já sabe o passo a passo para ser um fotógrafo-artista no meio digital, basta se dedicar aos estudos necessários e treinar bastante para melhorar suas técnicas e a qualidade do seu processo cada vez mais. E fique tranquilo, pois cada obra possui uma pessoa certa, que vai se conectar profundamente e valorizar inteiramente sua criação. Confie no seu talento e boa sorte!

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PROJETO

SOCIEDADES SINTÔNICAS

Conheça o primeiro jogo brasileiro de psicofotografia que proporciona diálogos com o inconsciente, aprofunda o autoconhecimento e resulta em séries fotográficas autorais e amplamente significativas.

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POR FERNANDA MATOS (TEXTO E FOTOS) LUZ NA LENTE


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s fronteiras que separam os seres humanos são permeáveis, principalmente numa mesma família. A energia de cada pessoa, conhecida ou não, viva ou falecida, com laços sanguíneos ou laços de convívio, atravessa constantemente a nossa alma e influencia o que somos. As células do nosso organismo têm memória genética e psíquica, ou seja: nós herdamos talentos e desvirtudes dos nossos ancestrais, nos inspiramos e somos desafiados por amigos, professores e até mesmo animais do nosso convívio; e construímos a essência da nossa personalidade a partir da interação dessas referências com os acontecimentos diários que formam a nossa história de vida. De acordo com Carl Jung, psiquiatra e psicoterapeuta fundador da psicologia analítica durante a primeira metade do século XXI, a consciência de individualidade do ser humano é composta por duas estruturas psiquicas: Self e Ego. Enquanto o Self é descrito como a essência, aquilo que existe de único e peculiar na nossa personalidade, que já nasce conosco; o Ego é

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uma construção que ocorre nos primeiros anos de desenvolvimento, em função dos processos de socialização e da leitura que a criança faz das expectativas criadas sobre ela. Esse Self é a matriz das heranças psíquicas, é a origem dos potenciais de realização que o Ego se apropria ora de forma segura, ora defensivamente, gerando nós psíquicos, traumas e complexos. E o modo como cada pessoa nutre, trilha e cura a própria jornada, entendendo e ressignificando feridas, é o que impacta nas mudanças individuais e sociais necessárias para a construção de sociedades mais harmônicas, ou sintônicas. Nesse cenário, a Artista, Fotógrafa, Escritora e Psicóloga Fernanda Matos, adepta aos conceitos Jungianos, traz para o consultório um caminho de encontro com o inconsciente, através de fotografias e imagens produzidas pelos pacientes.

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Como Especialista em Fotografia como Suporte do Imaginário e em Tanatologia, uma área que trabalha com Luto e Perdas; ela desenvolve com seus pacientes uma variedade de trabalhos em que eles usam a fotografia como apoio e meio de expressão de suas dores. Além disso, por ser certificada em EMDR (Eye Movement Desensitization and Reprocessing – Movimentos Oculares para Dessensibilização e Reprocessamento), Fernanda atua na Psicofisiologia do cérebro, também com imagens que os pacientes evocam de sua memória, a partir de estímulos sensoriais visuais, auditivos e táteis, típicos dessa abordagem psicológica.


“Existe um protocolo dentro do consultório, de solicitar ao paciente que ele imagine que aquela cena traumática que está sendo trabalhada é uma fotografia. Eu peço que ele descreva o que tem nessa imagem e depois vamos aprofundando em cada um dos elementos”, conta Fernanda. “Também criei, durante alguns anos, em rodas de mulheres, o trabalho de ampliação imagética, utilizando imagens arquetípicas de deusas gregas como referências para a vivência de um processo criativo com desenhos, objetivando a compreensão das características diversas do princípio feminino jungiano”, acrescenta. Em ambos os casos, as imagens são construídas de maneira intuitiva e depois compreendidas através de questionamentos e conversas. Buscando uma maneira de integrar cada vez mais sua profissão de psicóloga e sua profissão de fotógrafa dentro da clínica, Fernanda desenvolveu o conceito de PsicoFoto, a partir da união dos conhecimentos que ela adquiriu da Psicologia Analítica, Simbólica e Arquetípica de Jung, da psicofisiologia EMDRista de Francine Shapiro e da @ SoulCollage de Seena Frost. Nessa última técnica, as pessoas são convidadas a escolher imagens de maneira intuitiva e construir colagens em cartões retangulares. Depois de pronto, é o momento de observar e tentar sentir o que aquela imagem significa, o que ela traz de informação, criando assim um diálogo com o inconsciente. “Sou encantada com todos esses mestres, mas senti necessidade de mesclar todos os seus saberes. Primeiro, uni o trabalho da Seena com as Mandalas de Jung, porque mandala é algo que não tem lados, tudo gira em torno do centro. E o centro é o nosso Self, a energia essencial da nossa Psique. Ou seja quanto mais a gente caminha para o nosso centro selfiano, mais perto estamos de nós mesmos”, explica a psicóloga. “Também quis organizar uma jornada, que vem do mundo mais concreto e palpável para as pessoas, até o mais longínquo, abstrato e arquétipo, que também conta a história da humanidade ou da pessoa diante da sua existência na humanidade”, completa. Assim, ela deu à luz às Sociedades Sintônicas: seis temporadas de um jogo psicológico, individual, autorreferente e oracular que tem como principal objetivo a conexão intuitiva e criativa dos hemisférios direito (emoção) e esquerdo (razão) do cérebro do jogador, potencializando em sua psique, as forças mentais e afetivas do seu inconsciente e, as energias arquetípicas, mitológicas e alquímicas do Inconsciente Coletivo da Humanidade. Cada temporada é composta por uma caixa com 24 mandalas de papelão, imagens cortadas em formas circulares para serem usadas como fundo e um questionário a ser respondido após a montagem

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das figuras, que deve ser realizada com o auxílio de fotos e revistas. A primeira temporada do Jogo é chamada de Família Real e visa o reencontro com as personagens das proximidades reais do jogador, como família, amigos, amores e bichos de estimação; buscando o tesouro perdido, as memórias esquecidas, as histórias escondidas, as relíquias veladas, o não dito, o não conhecido, enfim, a herança familiar. É uma viagem na própria história, recriando parte de sua colmeia ou árvore genealógica com as raízes e os galhos de sua sociedade íntima. Em seguida, vem o Vale das Sombras, com a elucidação das virtudes e desvirtudes do Ser e o reprocessamento de possíveis traumas do participante; a Travessia Sagrada, com a descoberta do itinerário e da missão de vida do aventureiro; as Fábulas Fantásticas, com o reencontro com personagens do imaginário infantil e o resgate da possível criança ferida do participante; a Família Divina, com o reconhecimento arquetípico e mitológico das energias originais, invisíveis e inspiradoras do viver; e, por fim, a Romaria Alquímica, com o conhecimento simbólico e oculto da Alquimia e o poder de transformação do participante. “Sociedades Sintônicas é um jogo simbólico, sincrônico, sensorial, surpreendente e sagrado que materializa as imagens psicológicas do indivíduo, de forma voluntária e involuntária, e, utiliza mandalas, fotografias, imagens, colagens e um Oráculo-Quiz de perguntas. Tudo isso com uma possível análise psicoterapêutica, no caso dos pacientes ou alunos que desejem aprofundamentos psicológicos e analíticos”, resume a autora. “E o interessante é compreender que apesar de ser concebido como um jogo dentro do campo da psicologia, seu resultado na fotografia são séries fotográficas inteiras, com temáticas específicas e construções autorais que revelam o mais íntimo daquele ser”, aponta.

Para adquirir a primeira temporada do jogo Sociedades Sintôncias, basta entrar em contato com a artista: Telefone: (61) 98115 1502 E-mail: fmatos@psicofoto.com Instagram: @fmatos.psicofoto

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BENEFÍCIOS DO JOGAR Independente da temporada vivenciada, a experiência proporciona: • • • • • • • • • • • • • • • • • • •

Pausa nos excessos de velocidade da vida; Um momento gostoso, divertido, integrador; Uma ação sensório-afetiva-motora que brinca com a espontaneidade e a originalidade da sua criança interior; Surpresas estéticas e imagéticas feitas pelas próprias mãos; Uma forma de expressão segura, criativa e silenciosa que ensina sobre assertividade e amorosidade no dialogar; Aumento das habilidades de observação, concentração e foco; Aumento da fluência criativa; Ver suas próprias desproporções psíquicas e rir com elas um riso de cura; Liberação e reorganização de conteúdos psíquicos bloqueados; Respostas espantosas que abrem caminhos; Resoluções de enigmas mentais e afetivos; Reflexões inacreditavelmente transformadoras; Aprofundamento da percepção das imagens e suas mensagens no cotidiano; Fim da sensação ruim da solidão destrutiva a partir da reconexão com as Sociedades Sintônicas; Vinculação com a sabedoria do Inconsciente Coletivo e os significados mais enraizados do ser humano; Resgate de lembranças deliciosas da família; Conhecimento de características familiares silenciadas; Recuperação do sentimento de pertencimento familiar; Ter um baralho próprio e único de mandalas duráveis, carregáveis, que servem como lembretes imagéticos e âncoras psicológicas.

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FOTOGRAFIA ALTERNATIVA 18

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A ALQUIMIA DA FOTO

A ESTÉTICA DE PROCESSOS HISTÓRICOS O que leva um fotógrafo a apresentar seu trabalho em formato analógico, quando se tem à disposição câmeras fotográficas, celulares e computadores de última geração? POR TÉLIO LUIZ (TEXTO E FOTOS)


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“Fotografia alternativa funciona como um grande guarda-chuva que abriga, em primeiro lugar, todas as técnicas de impressão fotográfica desenvolvidas e pesquisadas durante o século XIX, e que fazem parte da evolução histórica da fotografia.” Fábio Giorgi, em Manual de Cianotipia e Papel Salgado

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s termos histórico e alternativo se referem à mesma coisa e costumam ser utilizados com a mesma finalidade: para se referir aos processos fotográficos desenvolvidos no século XIX, entre 1826 e 1889, que posteriormente foram sendo deixados de lado com o surgimento da fotografia em película apresentada pela Kodak. “Eu sempre fui grande fã do ‘feito à mão’ e não poderia ser diferente com as cópias analógicas. Poder criar cópias com processos clássicos, lindos e muito permanentes me deu a certeza de que este seria meu caminho”, conta Leonardo Bittencourt, fotógrafo e instrutor especializado em processos alternativos. “É fundamental ter em mente que tudo isso é uma jornada que, provavelmente, não terá um final previsível ou esperado. Tudo isso é uma evolução, o fotógrafo que encarar dessa forma vai entender que a busca é o objetivo”, acrescenta. Para os profissionais que trabalham com esse tipo de técnica, a captura de uma foto é só o início de um longo caminho, que pode demorar dias em ambiente de laboratório, às vezes para produzir uma única imagem. É preciso pensar nos mínimos detalhes, desde a escolha de um suporte, um processo histórico para impressão, os químicos que serão utilizados, a melhor opção de exposição à luz... Para enfim realizar em vias o experimento e desfrutar dos resultados. Sobre seus processos criativos, Bittencourt revela: “Eu tenho muitas ideias sempre. Elas surgem do cotidiano, de uma ida à praia ou ao cemitério. Costumo criar uma pasta para a ideia e ali começar a incluir anotações, fotografias de inspiração que se relacionem com o tema, etc. Deixo passar um tempo e retorno para validar se a ideia é realmente interessante e se ainda faz sentido para mim.”

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AFINAL, O QUE É FOTOGRAFIA? A fotografia é o resultado de diversos experimentos físicos e químicos que foram se aperfeiçoando ao longo de vários séculos. Leonardo da Vince descreve, em um de seus periódicos do Codex Atlânticus, datados de 1478 a 1519, sobre os métodos e efeitos da câmara escura. Ele constatou que se fosse feito um pequeno furo na janela de um quarto completamente escuro, a imagem que estava do lado de fora seria projetada na parede dentro com suas proporções perfeitas, só que de cabeça para baixo. Com essa informação, vários pintores e desenhistas adotaram a técnica para reproduzir a realidade se utilizando de caixas de madeira pintadas de preto. Aproximadamente 250 anos depois, o inventor e cientista Joseph Nicéphore Niépce explorou processos de gravação dessas imagens através de agentes químicos sensíveis à luz do sol,

como o Betume da Judéia; em diversas superfícies, como o vidro, o cobre, a prata, o zinco e o estanho. Em maio de 1826, ele obteve a primeira imagem fixada em uma placa, com uma câmara escura posicionada na janela da sua casa, na cidade de Saint-Loup-de-Varennes, na França, com um tempo de exposição de oito horas. Em 1839 Louis-Jacques Daguerre criou um sistema que reduzia o tempo de revelação em um aparelho chamado “daguerreótipo”, no qual a imagem era realizada sobre uma placa de cobre devidamente polida, recoberta com uma camada de prata e sensibilizada com vapor de iodo. O material era exposto à luz durante um período que variava de 5 a 30 minutos e, posteriormente, revelado em vapor de mercúrio. Três anos depois, esse processo foi acelerado com o acréscimo de brometos e cloretos, possibilitando o retrato analógico como conhecemos. Na oportunidade, o Governo Francês adquiriu o invento, tornando-o um bem público, e assim foi criada a Fotografia.

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INSPIRAÇÕES labclube.com www.diafragma8.com.br www.leobittencourt.com.br instagram.com/quimica_fotografia_arte instagram.com/telioluiz alternativafotografica.wordpress.com/2009/05/21/ como-fazer-uma-cianotipia/ www.nancybreslin.com/alternative.html imagesarizona.com/paper-dresses-annie-lopez/ www.alternativephotography.com/egill-ibsen/ www.hannahlamb.co.uk/#0

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A ARTE DO ERRO Para quem se dispõe a trabalhar pesquisando e trabalhando com processos fotográficos históricos, é preciso modificar a forma de executar e avaliar seus experimentos, pois lidamos com diversas variáveis sobre as quais não temos controle. Compostos químicos mudam suas características com o passar do tempo, suportes sofrem alterações de acordo com o ambiente em que se encontram, a luz muda de acordo com o clima, a estação do ano e as condições atmosféricas de cada dia, entre outros. “Lidar com o acaso é um belo desafio, mas é preciso reconhecer o inusitado como parte do processo criativo”, explica Rinaldo Morelli, fotógrafo, pesquisador e experimentalista de processos históricos. Neste conceito da poética da percepção, o pesquisador trabalha com a aceitação do erro, a interferência do acaso e com a necessidade do improviso. O erro, neste contexto, é considerado um determinado efeito que se conseguiu a partir de testes direcionados a outras finalidades, e que uma vez realizado, catalogado e estudado, pode ser repetido; ou pode ser um resultado causado por variantes desconhecidas, implicando na possibilidade de uma obra de arte única e exclusiva. “Estamos fora de toda a industrialização existente, partimos de um ponto aberto, elaboramos tecnicamente os processos e estamos sempre expandindo os processos existentes. Quanto mais pesquisamos, mais estamos motivados e menos engessados ficamos, pelo contrário estamos sempre expandindo, desta forma o método cresce a partir do aumento das minúcias entendidas: minúcias técnicas, artísticas e estéticas”, aponta Alex Topini, Fotógrafo especializado em processos alternativos do LabClube. “Com o passar do tempo, aquilo que inicialmente parece muito simples, muito alternativo, começa a se tornar um meio de expressão, uma linguagem que pode ser incorporada como um meio onde seu trabalho artístico se estabelece como propósito”, adiciona.

expandido provoca o artista a encontrar sua arte próxima ao seu dia a dia, no convívio com amigos e familiares, na caminhada diária, enfim em tudo que está ao seu redor. É necessário que cada um reflita sobre o seu dia a dia, de como está utilizando bem ou mal seu tempo, se suas prioridades estão bem definidas, se é necessário combater a ansiedade, qualificar quais informações queremos receber e usar a tecnologia a nosso favor, para isto a prática de um processo fotográfico histórico pode auxiliar nesta busca do autoconhecimento. Sobre o início desse processo criativo, a artista Virgínia Matos partilha: “Não obedece a um planejamento rigoroso. Tenho linhas gerais para iniciar o trabalho. Acredito que o trabalho é autoinstrutivo, você vai fazendo e ele vai te mostrando caminhos. Apenas com um resultado desconhecido ou inesperado, posso avançar na técnica e sair do lugar comum.” Ao ser questionada sobre sugestões para um fotógrafo iniciante nessas experimentações estéticas, indica que “comece dos processos mais simples e rápidos. Penso que quem deseja enveredar pelo mundo da fotografia alternativa deve, pelo menos ter o equipamento básico para manuseio de químicos, bacias para lavagem de papéis, pinceis e acessórios exclusivamente para o uso nesses processos e se possível, uma mesa de luz UV, além do equipamento básico de proteção individual.”

DESACELERAR E FOCAR NO AGORA Como pano de fundo temos, a questão do tempo que, no mundo contemporâneo, pode ser considerado acelerado, diluído, expandido, instantâneo, presente, futuro, passado e aqui buscamos exatamente a desaceleração, a observação do cotidiano, o que está ao nosso redor, buscando as práticas do caminhar, intervir, sentir como uma forma de nos voltarmos para as questões mais presentes, para o agora, para o simples. A temática do Cotidiano associada ao tempo

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A POÉTICA DA PERCEPÇÃO Em 2019, Télio Luiz apresentou um trabalho de pós-graduação em fotografia intitulado “Rastros Visuais: Fotografia e Obsolescência”, cujo objetivo era encontrar a essência da construção de imagens, independentemente da sua captura analógica ou digital. Para isso, investigou o envolvimento de personagens, suas memórias, sonhos, desejos e ansiedades; e a poética do cotidiano: a ocupação de espaços urbanos com arte, o olhar focado nos acontecimentos diários, a percepção do entorno, do simples e do óbvio. Foram utilizados elementos do dia a dia, como papel, tecido, vidro e espelho, na prática de uma técnica fotográfica histórica, a cianotipia, que resulta em imagens com a tonalidade do azul da Prússia. Como resultado da pesquisa, Télio desenvolveu a tríade da poética da percepção, para quem se propõe a trabalhar com processos fotográficos históricos e desenvolver uma estética autoral: erro, acaso e improviso. Em resumo, é preciso entender e aceitar que o erro faz parte do processo, que o acaso interfere no resultado e que a necessidade de improviso é constante. “O resultado das imagens e o próprio processo ampliam o sentido da observação, do caminhar e das suas conexões com outros sentidos além da visão”, explica.

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A EXPERIMENTAÇÃO DE MATERIAIS “As ideias dos projetos surgem a partir da motivação de unir um processo fotográfico (alternativo ou não) com uma temática específica”, conta Renan Nakano, fotógrafo da Diafragma8 e pesquisador de processos alternativos. “Em 2019, por exemplo, realizei uma exposição com fotografias em Ambrotipia onde a ideia era relacionar o tema que era a conscientização sobre a preservação dos nossos patrimônios históricos relacionando-o com o suporte da fotografia, no caso placas de vidro, que podem ser eternas e resistentes se bem cuidadas, bem preservadas ou frágeis e facilmente “quebráveis” se não preservadas”, completa. O processo da Ambrotipia é bastante peculiar: o resultado é um negativo de vidro, como é denominado, mas que apresenta uma dualidade sendo negativo ao ser visualizado sobre um fundo branco e positivo ao ser visualizado sobre um fundo preto. “Então, sempre há uma reflexão, antes de iniciar cada projeto, sobre a união do suporte com a temática pretendida que será abordada para uma exposição ou um novo projeto de pesquisa”, conclui Nakano. Outro fator determinante para a prática dos processos fotográficos históricos é a falta de insumos produzidos de forma industrializada para atender a este segmento, sendo que os químicos

normalmente são destinados ao uso farmacêutico, os papéis em sua maioria são do segmento de desenho e pintura, as luzes UV servem a segmentos de serigrafia, aquários, enfim a grande maioria dos produtos têm sua finalidade específica, definida pela industrialização e devem ser adaptados para a perfeita utilização. “Antes de escolher qual a técnica, materiais e suporte, verifico previamente a viabilidade financeira e viabilidade prática. Infelizmente, no Brasil, trabalhar com fotografia química tem um custo elevado e tudo precisa ser calculado para evitar surpresas no decorrer do projeto”, orienta Nakano. “Além disso, a depender do processo, é necessário pesquisar previamente se um determinado reagente químico tem sua compra permitida sem a necessidade de adesão de licenças e autorizações, seja do Exército Brasileiro, Polícia Federal ou Polícia Civil”, acrescenta. Nesta busca experimental, cabe destacar algumas surpresas obtidas com a pesquisa dos suportes e seus resultados. Alguns papéis e tecidos, que por sua aparência simples ou pela dificuldade de manuseio muitas vezes são deixados de lado, nos surpreendem com os resultados obtidos, a citar o papel jornal, papel vegetal, pano de prato e pano de chão. Em termos técnicos, a percepção do observador muda conforme o suporte utilizado, o que faz da escolha do material uma etapa crucial de planejamento da experiência.

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BIOGRAFIA Télio Luiz é graduado em Engenharia Civil, com especialização em cálculo estrutural e fundação, tem experiência na área de Governança de Tecnologia da Informação, Gerenciamento de Projetos e Modelagem de Processos, desenvolve pesquisas sobre processos fotográficos históricos, adotando uma mistura de técnicas tradicionais e contemporâneas na criação de imagens. Como especialista em gerenciamento de projetos, adota metodologia específica na elaboração e condução dos trabalhos fotográficos que utilizam as técnicas Pinhole, Cianotipia, Goma bicromatada, Papel Salgado, Marrom Vandyke, Platinum Paladium, Antotipia e Fitotipia. No período 2018/2019 cursou a Pós-graduação em Fotografia como Suporte para Imaginação. No segundo semestre de 2021 participou de residência artística no @dobrasdesi e desenvolveu o livro de artista Castelos e Ruínas. Mini História As fotos apresentadas fazem parte da busca de um fazer fotográfico que abrange tanto a parte técnica, suportes diversos e uma pesquisa que sempre considerou como elemento mais importante o tempo. Um tempo que se mostrou estendido, as vezes me levando a caminhos tortuosos, mas sempre com resultados muito satisfatórios, independentemente se este resultado era ou não o esperado. Acredito que neste processo temos que aprender com os erros, aceitar a interferência do acaso e a entender a necessidade do improviso.

INDICAÇÃO DE LIVROS A Fotografia Pensante Luis Carlos Monforte Guide to Photographic Alternative Processes Jill Enfield’s The Book of Alternative Photographic Processes Christopher James Manual Prático de Cianotipia e Papel Salgado Fábio Giorgi O Lápis da Natureza William Henry Fox-Talbot (Tradução de Fábio Giorgi) Reveladores P&B não Convencionais Fábio Giorgi Formulário P&B Fábio Giorgi Fotografia do Séc. XIX: Ambrotipia e Ferrotipia Alex Gimenes e Renan Nakano

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ENSAIO

MEMÓRIA NARRATIVAS POSSÍVEIS POR FERNANDA OTTONI (TEXTO E FOTOS)

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recordação rememoração reminiscência faíscas lampejos pedaços se misturam se confundem se fundem quando o tempo passa quanto mais o tempo passa MAIS O QUE FICA impresso aqui dentro na alma no cérebro na mente no espírito no inconsciente na carne

quanto mais o tempo

passa mais as lembranças se tornam colagens de passados distantes colagens de cheiros trajetos emoções dores gozos choros se sobrepõem se compõem se emaranham os fragmentos DO VIVIDO se tornam histórias

maiores

mais complexas apesar de alteradas pelo tempo pela maturidade idade velhice pelos tantos acontecimentos vividos sentidos sobrevividos. lembranças. apesar de traídas pelo esquecimento RESISTEM vivas contando a vida em tantas narrativas que perpetuam inquebrável a memória das experiências registradas NA pele.

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REFLEXÃO Foto: Danny Bittencourt

A FOTOGRAFIA NÃO CONGELA, MAS NÓS, AO CONGELARMOS A FOTOGRAFIA, CRIAMOS UM TEMPO QUE NUNCA PARA... POR DANNY BITTENCOURT

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arece-me importante para qualquer produtor de imagem refletir sobre questões relacionadas à fotografia e seu contexto. Por isso, nesse texto, proponho pensarmos um pouco acerca de um discurso tão presente entre fotógrafos, fotografados e apreciadores de imagens fotográficas: a capacidade da fotografia de eternizar um momento e a qualificação dela como meio onde conservamos nossa memória “congelando” o tempo em imagem. Porém, antes de seguir, preciso deixar claro que nessa reflexão apenas coloco um ponto de vista coerente com minhas pesquisas. Sendo assim, nunca absoluto e finalizado. Em relação à capacidade da fotografia de fixar um momento, é evidente que há um “congelamento” do instante que, agora, se tornou imaterial. E apenas por esse motivo conseguimos identificar contextualmente onde os objetos fotografados estão inseridos, em que década a imagem foi construída, em que lugar estávamos etc. Porém, mesmo que a fotografia nos mostre um tempo passado, nossa relação com aquela imagem muda conforme nossas experiências vão transformando nossas abstrações. Nesse sentido, o próprio tempo nos possibilita estar diante de uma visão de mundo que também se modifica, fazendo com que a imagem seja impermanente. Sendo

assim, podemos pensar que a imagem fotográfica apenas diz de um tempo passado, não sendo mais um artefato substituto de memória. Uma mesma imagem, vista por um mesmo espectador em momentos diferentes de sua vida, pode ter significados diferentes. Dessa maneira, ela se mantém viva na construção efêmera de cada indivíduo que se relaciona com ela. Para que a fotografia fosse capaz de congelar um momento, seria primeiro necessário que esse momento fosse fixo e eterno, sendo ele mesmo a própria fotografiaem-matéria em um tempo que nunca passa. E nós, como consequência, também nunca passaríamos. Como os momentos vividos são sempre construções a partir da carga que trazemos do passado, a fotografia utilizada como prova ou a lembrança de um acontecimento, nesse nosso raciocínio, é a maior evidência que aquele momento não existe mais: uma evidência de sua morte, uma prova de sua ausência, de sua finitude. Ou seja, a fotografia é um rastro que nos lembra que a nossa própria memória se modifica; um resto que nos fere em lugares (cada vez) diferentes. Cada vez que a olhamos, um vestígio nos evoca, nos convoca… depois nos abandona ou nos acrescenta, gerando assim, novas possibilidades.

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BIOGRAFIA

PASSARINHANDO FOTOGRAFIAS Conheça a história de Thiago Tolêdo, o piloto de avião que se apaixonou pelo registro de aves e largou tudo para investir na vida dos sonhos POR THIAGO TOLÊDO (TEXTO E FOTOS)

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E

u cresci tendo muito contato com animais, principalmente pássaros, que meu pai criava na chácara onde morávamos desde os meus três anos de idade. Sempre fui aficionado pela natureza e suas belezas, tinha diversas coleções de cartões telefônicos, cards e selos relacionados a esse tema. A natureza para mim é a forma mais clara da beleza e da perfeição de Deus. Eu já fui ateu, agnóstico e hoje sou cristão, mas foi através da natureza que comecei a ter alguns insights de que não tem como ser tudo tão belo, em ordem e com uma sabedoria tão grande, sem ter tido um Criador por trás. E foi assim que eu comecei a desenvolver meu lado espiritual, observando todas as formas dela se apresentar ao mundo, estando aberto a essa beleza e curtindo cada nascer e cada pôr do Sol, sentindo o vento, tomando um banho de cachoeira, observando as aves, os animais e as plantas, e vendo que tudo faz parte de um pequeno e perfeito caos.

Meu maior sonho era ser biólogo, mas acabei seguindo a carreira de piloto de avião. Quando voei a primeira vez, me apaixonei e acreditei verdadeiramente ser a minha vocação, só que não demorou muito até eu me sentir solitário. Em menos de um ano, comprei a minha primeira câmera e comecei a fotografar para me distrair. Eu encontrei na fotografia uma maneira de sair dos quartos de hotéis em que ficava por longos períodos aguardando os voos, e até um ânimo a mais, me libertando, inclusive, de um quadro depressivo. Eu buscava saber tudo sobre os lugares que iria fotografar, procurava sempre locais com relevância histórica, e isso foi me dando cada vez mais vontade de conhecer novas cidades, novas pessoas e locais ainda inexplorados. Fora a felicidade que a fotografia me proporciona de poder exteriorizar meus sentimentos a familiares e amigos, retratando os locais mágicos que eu passei, os causos inusitados e o olhar sobre situações que só eu vivi.

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Certa vez, em Brasília, fotografei uma ave tão linda que me fez pesquisar sobre o assunto e me apaixonar pelo tema. Comecei a publicar minhas imagens online em sites especializados e aprofundar meus conhecimentos de edição. Tive um salto de qualidade e ganhei notoriedade no meio dos fotógrafos de aves. Abri um canal no Youtube com dicas de fotografia e edição, making of de viagens e dicas relacionadas; que rapidamente se tornou uma plataforma de ensino, abrindo-me portas para realizar o primeiro congresso brasileiro de observadores e fotógrafos online (CONAFA 1.0). A partir daí, comecei a participar cada vez mais de conferências desse tipo e, em 2017, ministrei a minha primeira palestra no maior evento de observadores de aves da América Latina: o Avistar Brasil. Em um intervalo de quatro anos, foquei em estudar o tema das aves e da fotografia, me aprofundei ainda mais em técnicas de edição e fui me exigindo saltos de evolução em todas as áreas. Foi então que, no dia primeiro de janeiro de 2020, descobri um mundo inédito de oportunidades: viajei com um grupo de amigos para a Costa Rica e conheci pessoas que empreendem com a preservação da natureza, recebendo fotógrafos de aves de todos os cantos do globo em suas propriedades. Dois meses depois, veio a pandemia e senti que era o momento ideal para investir nesse novo sonho. Conversei com a minha esposa sobre largar a aviação e mudar para Brasília, para viver verdadeiramente de pássaros e fotografia. Em outubro do mesmo ano, abríamos pela primeira vez as portas do Jardim dos Beija-Flores.

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O sucesso foi imediato, nossos primeiros clientes e visitantes saíram muito felizes e satisfeitos com os resultados de suas fotos e, dali em diante, caímos no gosto dos fotógrafos brasilienses, do Brasil e do mundo. Já recebemos visitas de todos os estados brasileiros, da América do Norte e da Europa. Hoje, afirmo categoricamente que estou muito realizado pessoalmente, porque ver uma pessoa se emocionar ao fazer uma fotografia de qualidade no nosso jardim é uma satisfação sem precedentes. Claro, temos muitos projetos de crescimento, ampliações e de aprimoramento no nosso empreendimento, mas não existe combinação mais perfeita para mim do que poder estar mais próximo da minha esposa e do meu filho, estar em contato direto todos os dias com as aves, aprendendo e crescendo como ser humano, estar perto da minha família e terminar o dia literalmente em casa. Hoje, além do jardim, tenho uma agência de turismo especializada junto com meu sócio Flávio Mota, o IBFN, que a princípio tínhamos o interesse de ser o Instituto Brasileiro de Fotografia de Natureza, mas reestruturamos nossa missão e valores e deixaremos só a sigla IBFN. Através


dele, eu levo pessoas apaixonadas por fotografia de aves a uma imersão em paisagens dos mais diversos pontos turísticos do Brasil e América do Sul, explorando também a cultura, a culinária e o regionalismo presentes no local. Nosso diferencial é a inserção total do nosso cliente na vivência do local visitado, em conjunto com minicursos, ministrados por mim, com as melhores técnicas de fotografia que desenvolvi ao longo dos anos, a fim de que a pessoa não tenha que passar longos períodos para alcançar esse conhecimento. Isso, sem contar o meu acompanhamento real em todas as fases de cada viagem. O processo de escolher e desenhar uma viagem é bem simples, pois depois de anos aproveitando as folgas para passarinhar ou empreendendo viagens com esse objetivo, eu fui conhecendo os melhores locais do Brasil para fotografia. Para mim, é uma diversão pensar tudo nos mínimos detalhes e montar um roteiro que eu gostaria de fazer: bacana, divertido, leve, onde eu conheço a região, faço fotos belíssimas e ainda tenho a possibilidade de levar a minha esposa, já que a viagem atende não só ao fotógrafo, mas a seus parceiros também. O calendário de 2022 começou com duas idas à Chapada Diamantina para minicursos práticos e, em maio, nós fizemos a primeira trip internacional, para Jujuy, no norte da Argentina. No próximo semestre, estão planejadas idas ao Ceará e à Serra da Canastra. Eu consegui transformar o meu hobby em uma forma de ganhar a vida. Sabe aquele jargão de se trabalhar com o que gosta e não trabalhar um só dia? Hoje, sem demagogia eu vivo isso! Não posso ser hipócrita e dizer que não existem momentos de stress e ansiedade ao lidar com as responsabilidades e expectativas, mas têm horas em que parece que eu vivo de férias. Sempre encorajo as pessoas a seguirem seus sonhos, mas claro, com o pé no chão, eu sou pai de um garoto espetacular, sou marido de uma mulher incrível e tenho as minhas demandas e responsabilidades como provedor. Antes de mais nada eu entrego minha vida nas mãos de Deus na certeza de que Ele sabe o que é melhor para nós. O importante disso tudo é você estar feliz, preservar a natureza e poder ser mais um agente nessa batalha tão bonita e do bem em prol do mundo. Então, eu quero te encorajar, se você gosta de natureza e gosta de aves, vamos fotografar esses seres incríveis! Venha nos visitar no Jardim, para um bom papo, fazer alguns cliques, ter um contato pertinho dos beija-flores e, se quiser dar um passo além, planejar suas viagens conosco. Você vai visitar os lugares mais lindos e preservados do planeta atrás desses bichos e, no final, ainda vai sair com um super troféu: uma boa foto!

FICOU INTERESSADO? Acesse nossas redes e mande uma mensagem: @thiago.t.silva @ibfnbrasil www.passarinhadapro.com.br www.youtube.com.br/passarinhadapro

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EXPEDIÇÃO 38

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OLHO NO OLHO

Relatos pessoais da experiência de ficar frente a frente com a maior ave da rapina do Brasil POR JEANNE MARTINS (TEXTO E FOTOS)

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A

vida é como um mosaico de momentos efêmeros que se sucedem initerruptamente em alta velocidade, deixando na nossa memória os fragmentos mais marcantes. Busco vivenciar momentos e armazenar memórias que tenham raízes profundas e que possam turbilhonar minhas emoções quando acessadas. Observar a natureza sempre me causa um grande rebuliço interno, pois as relações naturais, especialmente as interações entre os animais selvagens, me levam a refletir na insignificância do ser humano. Poder imortalizar isso em uma imagem torna a experiência ainda mais espetacular! Desde a infância, sou apaixonada por fotografia, mas apenas há poucos anos pude me dedicar a esta atividade. Dentro das infinitas possibilidades da fotografia, o que mais me cativa é a fotografia de vida selvagem. Nada pode ser previsto, arranjado, combinado, tudo sempre surpreende. Particularmente os rapinantes são os animais que mais me atraem e, quando possível, vou em busca deles. Recentemente, em meios a momentos de graves turbulências no planeta, fui visitar a maior águia brasileira e a mais forte do planeta, para asserenar a mente, absorver aprendizados e encher os olhos e a alma de vida e paz.

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A Harpia é um dos maiores rapinantes do mundo. Pode alcançar 1.05m de altura e um pouco mais de 2m de envergadura. É uma águia florestal, que se reproduz a cada dois anos e está em grave risco de extinção, pela sistemática perda do seu habitat. Ela possui uma aerodinâmica especial, para voar entre grandes árvores sem fazer barulho e surpreender suas presas. Constrói seus ninhos em imensas árvores, com grandes galhos em forquilhas reforçadas, e os reutilizam anos seguidos, apenas reformando-os na época da procriação. O filhote leva mais de um ano para conseguir sobreviver sozinho. Tem crescimento rápido e, portanto, necessita de grande quantidade de alimentos. A dieta é exclusivamente carnívora. No período de incubação do ovo e nas primeiras semanas do filhote, a mãe não se ausenta do ninho, sendo o macho responsável pelo aporte de alimento para ela e o filhote. Após o filhote alcançar três meses de idade, a mãe passa também a se ausentar do ninho para caçar. Apesar do tamanho e da força dessa espécie, os pais são incrivelmente carinhosos com suas crias. Poder observar um ninho de Gavião Real ativo é uma raríssima oportunidade. Contratei os serviços de uma empresa de turismo que explora a obsevação e documentação de vida selvagem,


investindo em estruturas específicas para tal, como uma torre de observação na altura do ninho. Desta torre, pude presenciar a mãe chegando com um tatu no final da tarde, após permanecer mais de 11 horas fora do ninho. Nesse intervalo, também preocupei-me com as peripécias do desajeitado e curioso filhote, que esporadicamente se aproximava a passos trôpegos da beirada de um abismo de 24m de altura. Estar à espreita, aguardando os acontecimentos que se sucedem durante um dia de vida desta família, gera tanto encantamento quanto uma descarga de adrenalina surreal para quem gosta de vida selvagem. Quando a mãe chegou

com o tatu nas garras, arfava de cansaço. Surgiu por entre as árvores, nenhum ruído anunciou sua presença. Demorou vários minutos para recuperar o fôlego. O olhar do filhote alternava-se da mãe para a presa e ele permanecia em silêncio. Quando recuperou o fôlego começou a alimentar o filhote, lhe oferecendo as partes mais tenras do tatu. De tempos em tempos ela engolia partes menos nobres da presa, deixando o melhor para o filhote. Ele vocalizava insistentemente após engolir cada pedaço, pedindo mais comida, já ensaiando o poder de sua voz ecoando na floresta! Os raios de sol ao cair da tarde tingiam de dourado mãe e filho, numa atmosfera quase surreal ao meu olhar, me enchendo de alegria pela oportunidade única de vivenciar aquele momento. No dia seguinte, o tatu da véspera já havia sido praticamente consumido, restando pouca comida para os dois. Quanto mais convivo com a natureza e observo as relações da vida selvagem, mais me encanto com a sabedoria dos seres. A exemplo, como o Gavião-real alimenta-se de carne fresca e sobram diversos resíduos de carcaças no ninho, é natural que sejam atraídos diversos tipos de insetos, principalmente moscas e abelhas. A presença desses invertebrados incomoda principalmente o filhote, podendo inclusive comprometer sua saúde, causando problemas que podem levá-lo a morte prematura. Incrivelmente, a mãe tem um conhecimento intuitivo impresso em sua memória

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ancestral sobre algumas plantas da floresta, cujas essências espantam os insetos e diminuem o calor, utilizando suas garras e bico poderosos para quebrar galhos destas plantas e as transportar para o ninho. Por volta do meio-dia, surgiu repentinamente o macho trazendo nas garras um outro tatu recém capturado. Foi uma cena espetacular ver esta família reunida! Ele é um pouco menor que a fêmea, mas não menos impressionante. Pousou no ninho onde estavam mãe e filhote e dividiram o tatu em duas partes. Surpreendentemente, começou a alimentar o filhote (eu acreditava que apenas as fêmeas o faziam). Esta atitude proporcionou à mãe uma certa tranquilidade, não sendo ela a oferecer o alimento à cria. Tempos depois, o macho pulou para o galho ao lado do ninho e vocalizou! Só quem já ouviu os sons emitidos por uma criatura tão magnífica pode entender a emoção que senti neste momento. Por sua vez, a fêmea e o filhote respondiam e os sons ecoavam mata adentro como a agradecer ou demonstrar a grandiosidade e o poder da maior águia do mundo, na árvore mais alta da floresta, com o canto mais imponente... Ficaram ali por algum tempo nesta conversa magistral e eu... muda! Me sentindo a um só tempo insignificante e privilegiada. Em seguida, ele alçou voo rumo a imensidão verde e desapareceu. Acreditando já ter visto mais do que eu havia imaginado, comecei a me preparar para ir embora. Mas ainda fui agraciada com uma cena de despedida que jamais esquecerei! Numa fração de segundo, a fêmea saiu do ninho e pousou no galho ao meu lado. Olhava o horizonte para onde o macho voou. Vocalizou insistentemente como a pedir sua presença. Estava tão perto que eu via cada detalhe de suas penas, seu topete, suas garras, um pequeno resíduo de carne fresca no bico... Lágrimas encheram meus olhos! Neste instante ela me olhou. Nem nas minhas maiores expectativas para este encontro, eu não teria sido capaz de imaginar uma cena destas! Como digo frequentemente “Vale emocionar, vale o vice-versa!” Naquele momento éramos num átimo de segundo, apenas eu e ela, o grande Uiraçu! Como não houvesse mais nada ao nosso redor e até mesmo o tempo houvesse parado. Um momento mágico só nosso! As duas impressionantemente perto! Como rezam antigas lendas, metade abutre, metade mulher, a grande mãe da floresta! Olho no olho!

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Foto: Jau Sobral

INCLUSÃO

Indígenas da Comunidade Pium, em Roraima.

LENTES INDÍGENAS Um relato das experiências do projeto Fotografia Inclusiva com povos indígenas do Distrito Federal, Paraná e Roraima. POR JOÃO RIOS

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meu primeiro contato com os povos originários deu-se em janeiro de 2015, durante uma oficina de fotografia voltada para os associados do Luz Na Lente com o fotógrafo Guy Veloso. Dedicado às causas étnicas e religiosas, ele passou quase duas décadas de sua vida viajando por 13 estados brasileiros e registrando os rituais dos penitentes, irmandades secretas e místicas que

durante a Quaresma e a Semana Santa saem à noite em procissão rezando pelos espíritos sofredores. Sua pesquisa foi contemplada pelo projeto Rumos Itaú Cultural e deu origem ao livro Penitentes – dos ritos de sangue à fascinação do fim do mundo. Sua proposta educativa consistia em uma imersão na aldeia Guajajara, localizada no Setor Habitacional Noroeste, no coração de Brasília.

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Foi muito inusitado conhecer uma aldeia indígena urbana bem no centro da capital do país, o passeio pegou a todos de surpresa. O local é considerado de passagem e descanso, pois até hoje os indígenas deslocam-se a pé entre as regiões do Brasil e param ali para repousar e reabastecer os seus mantimentos antes de seguir viagem. Uma placa de identificação na entrada da aldeia, desenhada com figuras geométricas indígenas, funcionava como um portal de acesso a outra realidade. E era! Éramos dois grupos de grandes curiosos: nós com eles e eles conosco. Tivemos a oportunidade de explorar a comunidade com acesso irrestrito, adultos e crianças posavam sem cerimônia para as nossas lentes, ouvimos relatos sobre a luta praticamente perdida contra as construtoras e até cobraram-me alguns trocados para pintarem-me com traços geométricos... Senti-me pronto para a Guerra! Também fomos introduzidos ao local sagrado onde reverenciavam os mortos. O espaço lembra uma pequena oca com uma janela no teto, para a entrada de luz, e é enfeitado com uma galha de chifre de veado e uma boneca com trajes indígenas. É um ambiente sombrio, lembra uma catedral e faz o visitante se sentir perto de Deus. Ali, os entes falecidos são velados antes de serem enterrados. O impacto dessa experiência reverberou ao longo de dois anos, até que, em 2017, fui convidado para ministrar uma oficina de fotografia às crianças indígenas da etnia Xeta, na Terra Indígena São Jerônimo, no Paraná. Esse povo estava sendo reunido ali graças ao trabalho da Dra. Maria Angelita da Silva, que o “redescobriu”, pois constava como extinto pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Eu e a equipe passamos três dias ouvindo as histórias de covardia dos fazendeiros que invadiam aquelas terras e os obrigavam a se dispersar pelo país. Nossa revolta só não foi maior do que o entusiasmo das crianças, alvoraçadas ao descobrirem o universo de possibilidades da fotografia. Reunidas no espaço comunitário de eventos, elas aprenderam sobre composição, regra dos terços, contraste de cores, valor artístico da foto em preto e branco e sugestões para o exercício criativo. Após a aula teórica, cada uma delas foi realizar uma exploração prática dos arredores, agora com um novo olhar. Em seguida, tivemos um momento de troca, reflexão e devolutiva, no qual cada foto apresentada foi comentada do ponto de vista técnico e artístico, com sugestões de melhoria conforme o caso. Naquele mesmo ano, também participei da elaboração do programa Fotografia Inclusiva, juntamente com o fotógrafo Cláudio Cunha e a servidora Célia França, do Serviço de Acessibilidade do Senado Federal, com o intuito de ensinar

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Ao lado, foto feita por Taina, indígena Xeta em Umuarama. Abaixo, Indígenas da Comunidade Nova Esperança, Roraima. Em seguida, cacique Francisco, da comunidade indígena Guajajara, em Brasília. Foto: João Rios

Foto: João Rios


Foto: Tainá Xeta

técnicas básicas de fotografia aos servidores e prestadores de serviços que possuem deficiências físicas. O cerne do projeto, contudo, foi além da democratização do conhecimento fotográfico, proporcionando uma inclusão reversa e um exercício de empatia, para que os integrantes pudessem vivenciar o mundo das minorias e populações vulneráveis. Não demorou muito até sermos convidados a visitar outras cidades, como Maringá (PR) e Ponta Porã (MS), e incluirmos os povos indígenas como parte do nosso público-alvo. Em 2018, retornamos ao Paraná para outra oficina junto ao povo Xeta, dessa vez residentes em Umuruama, e depois fomos até Roraima, na Comunidade Indígena do Pium. Foram momentos de intensas descobertas e experimentações, pois adicionamos à programação algumas técnicas básicas de introdução à fotografia digital. Também ficamos até tarde da noite em

volta de fogueiras, ouvindo e contando histórias para as crianças, ávidas para conhecerem todos os segredos da câmara escura e vislumbradas com as possibilidades, tanto de diversão quanto profissionais. Novamente a fotografia mostrou-me outros encantamentos. Quatro anos depois, em um momento pós pandemia da Covid 19, o projeto voltou a Roraima, na Comunidade Nova Esperança da Terra Indígena São Marcos, e estão sendo programadas oficinas com indígenas do Pará e do Tocantins. Este ano, retornei à comunidade do Setor Noroeste, que descobri ser originária do Maranhão. A aldeia finalmente foi demarcada pelo Governo Federal e esquecida pelas empreiteiras, o que deixou-me extremamente aliviado. Na ocasião, levei alguns retratos que fiz durante a primeira oficina, nos quais as crianças reconheceram seus pais e parentes, exibindo sorrisos encantadores que apenas a

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fotografia é capaz de provocar. Busquei me aprofundar nos costumes culturais desse povo, nas suas dificuldades com o poder público e suas necessidades mais urgentes. Meses depois, retornei com alguns membros dos Fotoclubes Candango e Luz na Lente com a proposta de realizar uma ação social para arrecadação de alimentos e cobertores, e oferecer uma iniciação fotográfica para jovens e crianças, na qual cada voluntário ficou responsável por um pequeno grupo de troca. O encontro extrapolou tanto as expectativas quanto a finalidade. A interação entre indígenas e fotógrafos foi de tal cumplicidade e empatia, que houve convite para retornarmos com mais temas sobre fotografia, enquanto alguns colegas se voluntariaram para resolver problemas como falta de água, orientação escolar, auxílio com deveres de casa e educação ambiental. Encerrando o evento, o cacique Francisco reuniu seu povo e os convidou para formarem uma roda

e, em agradecimento ao esforço dos participantes, dançaram ao som do maracá e música cantada em tupi-guarani. Naquele momento, tive uma percepção mágica da humanidade sob o prisma da simplicidade, revelando a nossa condição divina, independente de qual ‘tribo’ pertencemos. A intenção de cada uma dessas visitas é implantar a semente da curiosidade nas crianças e jovens dessas comunidades, possibilitando que eles descubram e encantem-se com novos ângulos e olhares diante de paisagens já familiares. Os fotógrafos saem com uma ampla gama de informações únicas e exclusivas de cada uma dessas culturas, mas, principalmente, com a esperança de que a semente para o despertar da arte floresça e, com ela, surjam novas referências na fotografia, com cor, cheiro e identidade indígena. Esse grupo de voluntários está atento ao surgimento de novos talentos e dispostos a caminhar com eles rumo ao mundo encantado da câmara escura.

Foto: Taylor Ribeiro

Foto: João Rios

Acima, ‘O Risonho’, de Taylor Ribeiro, foto vencedora do concurso interno da Oficina. À direita, indígenas da Comunidade Nova Esperança, Roraima. Logo abaixo, crianças Xeta, no Paraná, avaliando as fotografias delas.

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Foto: Maria Angelita da Silva


FOTOLIVRO

UMA QUESTÃO DE IDENTIDADE VISUAL E ANCESTRAL POR MARIANA ALMADA (TEXTO E FOTOS)

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BUNTU é um trabalho de 2 anos de construção e reflexão que resultou num fotolivro autobiográfico e nos convida a uma retomada da nossa ancestralidade. Quem são seus ancestrais? Você não está sozinho/sozinha no mundo: são dois pais, quatro avós, oito bisavós, 16 trisavós...2048 decavós de muitas gerações. Já parou para pensar quantas memórias afetivas chegaram até nós? Suas tristezas, angústias, sofrimentos... mas também suas coragens, forças, suas alegrias. Podemos nos permitir nas páginas desse fotolivro fazer, como diz Chiodetto, um “transporte atemporal”, um mergulho em suas memórias afetivas, inclusive se questionando, por meio dos movimentos e técnicas presentes nas imagens, que emoções chegam até você. Entrar nesse campo foi olhar para minha identidade negra, que pode ser sua, ser nossa. Descobrir quem fui, aquilo que sou... porque nós somos. Eis a filosofia de um sistema familiar ou de uma comunidade! E que possamos, na mesma trilha do “UBUNTU”, olhar com honra para nossa ancestralidade!

Mariana Almada é arteeducadora, fotógrafa e psicanalista. Entre em contato através do Instagram @profmariana.almada

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“A fotografia de Mariana Almada é esse transporte atemporal, uma imersão corajosa e necessária na sua história pessoal que é a história de todos nós. Ubuntu! A dor e a firmeza, o lamento e a plenitude em sermos a soma, a sombra, a chama.” Eder Chiodetto

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