Sociedade Portuguesa de Farmacologia - 50 Anos de História

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Editores:

SOCIEDADE PORTUGUESA DE FARMACOLOGIA

50 ANOS DE HISTÓRIA

Prof. Doutor Félix Carvalho

Prof. Doutora Maria José Diógenes

Prof. Doutora Cláudia Cavadas

EDITORIAL

A Sociedade Portuguesa de Farmacologia (SPF) comemorou 50 anos de atividade em 2020. Esta é uma data de grande júbilo e orgulho para os seus membros, pelo papel singular e fundamental que a SPF tem desempenhado na promoção da excelência da investigação, ensino e na divulgação da ciência nas áreas da Farmacologia Experimental, Farmacologia Clínica e Toxicologia. Para este fim muito têm contribuído as reuniões anuais da SPF. Estas reuniões constituem um fórum de discussão científica, com um formato único composto exclusivamente por apresentações orais. Este formato permite a discussão participada e construtiva de cada trabalho e o treino e estímulo para a excelência, principalmente dos membros mais jovens.

Ao longo deste meio século de história, a SPF tem sido a principal representante da Farmacologia e Toxicologia a nível nacional, cooperando ativamente e de múltiplas formas com as autoridades de saúde nacionais, centros de investigação, institutos politécnicos, universidades e as suas faculdades ligadas às áreas de saúde, bem com as organizações congéneres nacionais e internacionais. A nível internacional, destaca-se a sua filiação nas sociedades

EPHAR, IUPHAR, EACPT, EUROTOX e IUTOX, onde os seus membros se dedicam de forma expressiva nos respetivos corpos dirigentes e/ou nas assembleias gerais e eventos científicos, contribuindo para a disseminação e impacto global da Farmacologia e Toxicologia.

O livro SOCIEDADE PORTUGUESA DE FARMACOLOGIA - 50 ANOS DE HISTÓRIA, pretende dar a conhecer o percurso de grupos/instituições que têm contribuído para a SPF, muitos desde a sua criação. Os primeiros dois capítulos de introdução dão início à viagem, desde as origens ao seu desenvolvimento através dos tempos, e foram escritos por dois fundadores da SPF, o Professor Serafim Guimarães e o Professor Walter Osswald. Os capítulos seguintes são da autoria dos responsáveis de vários laboratórios e da Indústria Farmacêutica Bial, que participaram nesta viagem. Nestes capítulos podem ler-se narrativas que reforçam a nossa identidade única e sentido de pertença à comunidade da Farmacologia e Toxicologia em Portugal. Pretende-se que este livro permaneça

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aberto, dinâmico e em constante atualização, quer no número de capítulos quer no seu conteúdo, pois a história da SPF continuará a dar-nos muitas e boas razões de orgulho e memórias que valem a pena registar. A história da SPF ainda agora começou e será registada neste livro “vivo” de todos nós.

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SOCIEDADE PORTUGUESA DE FARMACOLOGIA

Breve nota histórica - 1993

aInstituto de Farmacologia e Terapêutica, Faculdade de Medicina do Porto bInstituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa, Porto

Os inícios

Há 25 anos, mais precisamente nos dias 27 e 28 de Dezembro de 1968, realizou-se, na Faculdade de Medicina de Lisboa, uma "Reunião Farmacológica" (sub-intitulada "Curso para Post-Graduados de Farmacologia Experimental”, por razões de ordem administrativa, interna), na sequência de vários contactos previamente estabelecidos pelo então Professor de Farmacologia e Director do Instituto de Farmacologia, Doutor José Toscano Rico, com os professores e investigadores da área. Tratava-se da primeira reunião a congregar os cientistas que se reclamavam do título de farmacologistas e, para além da apresentação de resultados obtidos nos diferentes laboratórios, o programa incluía uma sessão destinada à discussão da organização de uma Sociedade de Farmacologia, sonho acalentado desde há muito pelo organizador da reunião e que encontrou eco na decisão unânime dos presentes que logo ali delegaram no Professor José Toscano Rico o encargo de proceder a tudo quanto para tal fosse necessário. Na realidade, e de um ponto de vista histórico, esta pode ser considerada como a hora da concepção (senão do nascimento) da nossa Sociedade.

O programa revela alguns dados significativos e que tiveram reflexos na vida inicial da Sociedade. Em primeiro lugar, a contribuição fundamental de 3 escolas (Lisboa, Oeiras, Porto) para o arranque dos trabalhos; em segundo lu gar, a revelação de algumas linhas-força na temática desenvolvida a nível experimental (efeitos a nível de receptores, farmacologia bioquímica, permeabilidade vascular); em terceiro lugar, a presença de um tema de farmacologia clínica; e em quarto lugar, a intervenção de um convidado estrangeiro (J. G. Hilton). Quanto aos restantes participantes, alguns já só

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vivem na memória dos actuais sócios, mas a maioria, felizmente, continua viva e actuante.

As reuniões da Sociedade Ultrapassadas várias dificuldades de natureza burocrática e administrativa (o regime vigente olhava com suspeição a formação de qualquer associação, mesmo que com objectivos declaradamente científicos), que consumiram um ano, a Sociedade Portuguesa de Farmacologia reuniu, pela primeira vez, sob a presidência de José Toscano Rico, unanimemente eleito para o cargo, no Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras (2 e 3 de Outubro de 1970). O convidado estrangeiro foi P. A. Van Zwieten e foram apresentadas 17 comunicações; pela primeira vez se realizou a Assembleia Geral Ordinária.

A 2ª Reunião teve lugar no Porto, em 5 e 6 de Novembro de 1971 e foi organizada pelo Laboratório de Farmacologia da Faculdade de Medicina. J.R. Vane (mais tarde distinguido com o Prémio Nobel) e David de Wied foram os convidados estrangeiros, proferindo lições; 22 comunicações foram apresentadas, três delas resultantes de colaboração com investigadores estrangeiros, facto que se viria a verificar em quase todas as reuniões posteriores.

Em Coimbra, e a cargo do Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental da Faculdade de Medicina, realizou-se a 3ª Reunião, em 1 e 2 de Dezembro de 1972, sendo apresentadas 28 comunicações. Lester Packer era co-autor de uma comunicação.

O Laboratório de Farmacologia do Instituto Gulbenkian de Ciência volta a acolher a Sociedade para a sua 4ª Reunião (Oeiras, 26 e 27.1.73), que registou 29 comunicações e 2 conferências por colegas estrangeiros (K. Greeff e F. Lembeck).

Os eventos dramáticos verificados em 1974, com as profundas modificações políticas e sociais que acarretaram, paralisaram momentaneamente a actividade da Sociedade, que se reúne uma vez mais no Porto no ano seguinte (Laboratório de Farmacologia da Faculdade de Medicina, 20 de Dezembro de

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1975), embora de forma mais modesta, quer no âmbito, quer na forma (19 comunicações; programa e resumos em folhas soltas).

A 7ª Reunião (resolveu-se adoptar esta numeração, correspondente aos anos de existência da Sociedade) teve lugar em Lisboa, em 27.11.76 e foi organizada pelo Instituto de Farmacologia da Faculdade de Medicina. O número de comunicações apresentadas foi de 19.

A 8ª Reunião leva a Sociedade de novo ao Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental da Faculdade de Medicina de Coimbra, em 17.12.77, para a apresentação de 29 comunicações.

De novo no Porto, em 16 de Dezembro de 1978, a Sociedade reúne pela 9ª vez: 19 comunicações são apresentadas.

Em Oeiras teve lugar a 10a Reunião, em 17 de Dezembro de 1979. A conferência inaugural foi proferida por K. Repke, seguindo-se-lhe 22 comunicações.

Em Lisboa, e pela primeira vez na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova, a 12 e 13 de Dezembro de 1980, realiza-se a 11ª Reunião. São apresentadas 15 comunicações e a grande maioria dos resumos é apresentada em português e em inglês (por decisão da Assembleia Geral).

A 12ª Reunião (18 e 19.12.1981) decorre novamente em Lisboa, no Instituto de Farmacologia da Faculdade de Medicina. 20 comunicações e uma conferência por um convidado estrangeiro (M. J. Daly) preenchem o programa.

No Porto, em 17 e 18 de Dezembro de 1982, o Laboratório de Farmacologia da Faculdade de Medicina organiza a 13ª Reunião. 21 comunicações (uma das quais apresentada pelo convidado G. Marcelon) preenchem o programa.

Em 1983, não houve Reunião autónoma, já que a Sociedade entendeu que, por nesse ano se realizar em Coimbra (25-28 de Maio) a II a Reunião LusoEspanhola de Farmacologia, esta deveria ser considerada como constituindo a sua 14ª Reunião.

Assim, foi a 15ª Reunião que teve lugar no Laboratório de Farmacologia do Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras (14 e 15 de Dezembro de 1984). T.

W. Stone proferiu a lição inaugural, à qual se seguiram 29 comunicações (uma delas por convidados estrangeiros - J. P. Buts et al).

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A 16ª Reunião foi organizada pelo Laboratório de Farmacologia da Faculdade de Ciências Médicas em 13 e 14 de Dezembro de 1985. Simultaneamente, realizou-se a 4ª Reunião de Farmacologia Clínica (as 3 primeiras, igualmente organizadas pela Sociedade, tiveram lugar em Maio de 1981, Maio de 1982 e Novembro de 1983). A partir desta data, todas as reuniões passaram a ter dupla numeração, correspondente à Reunião ordinária e à da Farmacologia Clínica. 26 comunicações, acrescidas de 13 de Farmacologia Clínica, foram as apresentadas a esta Reunião.

No Instituto de Farmacologia da Faculdade de Medicina de Lisboa, a 12 e 13 de Dezembro de 1986, realizou-se a 17ª Reunião e 5ª de Farmacologia Clínica: 26 comunicações e 6 de Farmacologia Clínica, para além de uma conferência pelo convidado estrangeiro B. Vargaftig, preencheram o programa.

A Sociedade volta ao Porto (Laboratório de Farmacologia da Faculdade de Medicina) para aí realizar a sua 18ª Reunião (e 6ª de Farmacologia Clínica), a 11 e 12 de Dezembro de 1987. São apresentadas 24 comunicações, deixando de existir um agrupamento de acordo com a sua índole de Farmacologia experimental não clínica ou clínica.

A 19ª Reunião (7ª de Farmacologia Clínica) foi organizada pelo Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental da Faculdade de Medicina de Coimbra, em 9 e 10.12.1988. José Garrett proferiu a lição inaugural ("História da Farmacologia em Portugal") e foram apresentadas 44 comunicações (4 por convidados estrangeiros - Van Nueten, Martinez e Laorden e respectivos colaboradores).

O Laboratório de Farmacologia do Instituto Gulbenkian de Ciência encarregouse da organização da 20ª Reunião (8ª de Farmacologia Clínica), realizada em Oeiras em 15 e 16 de Dezembro de 1989. Foram apresentadas 43 comunicações e uma conferência (pelo convidado estrangeiro Van Belle).

O Laboratório de Farmacologia da Faculdade de Farmácia de Coimbra foi (pe1a 1ª vez) a instituição organizadora da 21ª Reunião (10ª de Farmacologia Clínica), que teve lugar em 13 e 14 de Dezembro de 1991. Na sessão inaugural houve uma intervenção de Aranda da Silva, Director Geral dos Assuntos

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Farmacêuticos, sobre política do medicamento, e uma conferência de J. Van Nueten. 47 comunicações foram em seguida apresentadas. O Instituto de Farmacologia da Faculdade de Medicina de Lisboa organizou a 22a Reunião (11a de Farmacologia Clínica). Houve três conferências por convidados (por M. Borgers, H. van Wilgenburg, B. Leonard) e a apresentação de 31 comunicações orais e 26 posters.

Reuniões conjuntas com Sociedades estrangeiras Desde muito cedo que os corpos gerentes se esforçaram por estabelecer contactos com Sociedades congéneres estrangeiras, no sentido de estabelecer intercâmbio científico e de realizar reuniões conjuntas, sempre do maior proveito para os participantes, pelo alargamento de horizontes, contactos pessoais, discussão informal, confronto de qualidade e início de colaborações que permitem. Por razões de dimensão e de situação geográfica, a Asociación Española de Farmacólogos é, naturalmente, aquela com quem de forma mais regular se tem mantido colaboração. Até ao momento houve 4 reuniões conjuntas:

I - Na Faculdade de Medicina de Santiago de Compostela, de 21 a 23 de Maio de 1979, com a participação de três dezenas de sócios;

II - Na Faculdade de Medicina de Coimbra, de 25 a 28 de Maio de 1983, com a participação das Sociedades de Farmacologia da Bélgica, França e Suiça, e numerosa representação da Sociedade;

III - Na Universidade do País Vasco, em Leioa, em 29 e 30 de Setembro e 1 de Outubro de 1987 (cerca de 30 participantes portugueses);

IV - Organizado pelo Laboratório de Farmacologia da Faculdade das Ciências Médicas da Universidade de Nova Lisboa, em 28 de Fevereiro e 1 e 2 de Março de 1991 (43 comunicações de sócios).

Mas a primeira reunião conjunta foi a realizada em Graz (Áustria), com as Sociedades de Farmacologia Alemã, Húngara e Iugoslava, no verão de 1974 e sob a presidência de F. Lembeck, que no ano anterior fora conferencista convidado para a reunião da nossa Sociedade.

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Em 1981 realizou-se em Toulouse, sob a presidência de P. Montastruc, uma reunião conjunta de farmacologistas franceses, espanhóis e portugueses (17 a 19.9.81).

De 7 a 9.9.88, em Nottingham, teve lugar a reunião conjunta das Sociedades Britânica e Portuguesa de Farmacologia.

Em contraste com estas realizações, prestigiantes para uma Sociedade de reduzidas dimensões, frustraram-se todas (e foram muitas) as tentativas até hoje levadas a cabo para uma reunião internacional que falasse português: a reunião conjunta com os colegas brasileiros, que chegou a ter datas propostas, continua a aguardar concretização.

Outros contactos internacionais

Reflectem-se nas actas das assembleias gerais da Sociedade as preocupações que os seus sócios sempre manifestaram, no sentido de imprimir uma orientação aberta e de colaboração com a ciência farmacológica de todos os quadrantes. Já em 1973 se advogava o contacto e colaboração com outras Sociedades e em 1975 se aprovava a atribuição da categoria de sócios correspondentes aos cientistas convidados pela Sociedade. Coerentemente, a Sociedade filiou-se na IUPHAR (União Internacional de Ciências Farmacológicas) e elegeu delegados seus para que tomassem parte nas reuniões e assembleias daquela União (desde 1977 que a Sociedade tem representação nesta instituição). Por seu turno, a Federação das Sociedades Europeias de Farmacologia nasceu com a participação da nossa Sociedade, nela representada desde o início (1987)

Para permitir maior difusão aos resumos das comunicações, estes passaram (desde 1978) a ser acompanhados de uma versão inglesa, a qual, desde 1992, passa a ser a única aceite. A partir de 1979, a Sociedade subsidia os sócios que apresentem comunicações a reuniões internacionais, organizadas pela IUPHAR ou satélites destas, ou ainda aquelas em que haja intervenção da Sociedade, de acordo com regras e critérios definidos e aprovados em Assembleia Geral.

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Outros aspectos da vida e actividade da Sociedade

Não é fácil tarefa a de identificar e dar tratamento adequado aos múltiplos reflexos da vida e da actividade de uma Sociedade que, concebida voluntariamente como pequena sociedade científica, resistiu às tentações de obtenção de prestígio e poder que o seu crescimento inflaccionário talvez lhe viesse a dar. Inicia-se esta pequena selecta de temas significativos precisamente com o dos seus sócios, já que destes depende, obviamente, a vida da Sociedade. Sócios - A admissão de novos sócios mereceu aos fundadores uma tomada de posição clara e firme (na Assembleia de 1973) sempre de novo reafirmada: há o maior rigor nessa admissão, já que se não deseja como sócios senão aqueles que são de facto farmacologistas, exigindose-lhes provas curriculares dessa qualidade, nomeadamente através da publicação de trabalhos de índole farmacológica em revistas estrangeiras com sistema de árbitros. Da mesma forma exigente, a Sociedade retirou o título de sócios aqueles que deixaram de participar nas reuniões e de pagar as suas cotizações.

Relações com a indústria farmacêutica - Já em 1973 se reconheceu a necessidade de abrir a Sociedade à colaboração com a indústria de medicamentos, criando-se a categoria de sócios agregados para as firmas. Conseguiu-se na verdade uma adesão de grande parte das companhias prestigiadas que, para além de serem garantes da estrutura financeira sã da Sociedade, pelas suas cotizações, representam interlocutores válidos e interessantes nos aspectos da investigação e da área do medicamento. Não admira pois que a Sociedade se tenha mais de uma vez ocupado das suas relações com os médicos da indústria, tenha organizado reuniões de Farmacologia Clínica com toda a regularidade (sendo que é nestas mais evidente a participação dos colegas ligados indústria farmacêutica) e apoiado os Cursos de Actualização em Farmacologia Clínica (organizados por Andresen Leitão no Instituto de Farmacologia da Faculdade de Medicina de Lisboa).

Alguns sócios agregados solicitaram o patrocínio da Sociedade para reuniões por si organizadas; a Sociedade estabeleceu regras estritas para a concessão

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deste patrocínio, que constitui um aval da qualidade científica e do rigor organizativo das reuniões em causa.

Relações com as autoridades de saúde responsáveis pelo medicamento - Desde 1976 que a Sociedade debateu os problemas do medicamento e da sua regulamentação, oferecendo os seus préstimos às autoridades e exigindo a sua audição nas matérias em que se considera, com legitimidade, como perita. Com a Direcção Geral de Saúde, mais tarde com a Direcção Geral dos Assuntos Farmacêuticos, actualmente com o Instituto Nacional de Farmácia e do Medicamento tem a Sociedade mantido algum diálogo e emitido um ou outro parecer (embora sócios seus tenham tido permanente actividade em comissões várias e desempenhado funções nas referidas estruturas). Em 1986 foi a Sociedade solicitada a emitir um parecer sobre redimensionamento de embalagens de medicamentos e, mais recentemente, foi a Sociedade convidada a nomear um representante seu para a comissão encarregada de elaborar um projecto de decreto-lei sobre ensaios clínicos (que se encontra agora em apreciação no Conselho de Ética para as Ciências da Vida) . Chamou ainda a atenção do Ministério da tutela para as consequências da adesão de Portugal à Directiva Europeia sobre Experimentação Animal (1992) e desencadeou um processo, ainda não terminado, de salvaguarda da ciência. Outros grandes temas - A Sociedade tem discutido grandes temas da especialidade e até da Biologia, no que concerne às linhas de orientação, quer nacionais quer comunitárias. Assim, já em 1983 se preconizava a criação de Comissões de Ética, ao menos nos grandes hospitais, e se insistia na necessidade de institucionalizar a farmacovigilância; em 1986 deliberou a Sociedade criar uma Secção de Toxicologia quando sócios seus, dedicados a essa problemática, o viessem a solicitar. O facto de até hoje tal não se ter verificado não retira validade à decisão, sabendo-se que a evolução desta área se faz, usualmente, a partir da ciência-mãe, a Farmacologia.

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CONCLUSÃO

A leitura dos programas, dos livros de resumos e das actas existentes não pode dar senão um pálido retrato da vida de uma Sociedade, com suas vicissitudes e eventuais êxitos e insucessos. Todavia, a nossa Sociedade oferece algumas características curiosas, pouco vulgares e que estão porventura na base da sua resistência e relativa unidade:

É ainda uma Sociedade pequena, apesar de quase ter triplicado o número dos seus sócios; isto permite um bom conhecimento e relacionamento interpessoa1, garantia de clima próprio à actividade científica e defesa contra dissensões e divisões;

Tem dado provas de grande perseverança, realizando com toda a regularidade as suas reuniões nacionais e fazendo o esforço periódico de reuniões conjuntas com congéneres de bem maiores dimensões;

Elaborou doutrina sobre admissão de novos sócios, relações com sócios agregados e com as autoridades; estabeleceu critérios e tem-nos seguido;

Tem sabido gerir o crescimento (17 comunicações apresentadas em 1970, 57 em 1992): não se aumentou apenas o número, velou-se pelo crescimento qualitativo e usou-se sempre de crítica e discussão, respeitosa mas franca. A "crise de crescimento", que a obriga a rever a duração das reuniões e o modo de apresentação (comunicações, posters) só traduz a sua vitalidade.

A Sociedade pode, pois, entrar nos próximos 25 anos de actividade sem complexos nem arrogância; tem sido, como lhe compete, espaço de criação e discussão científica, escola de apresentação de resultados científicos, representação digna da ciência que serve de lugar de encontro de pessoas que a cultivam.

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Corpos Gerentes

Anexo 1

Sociedade Portuguesa de Farmacologia

1970-1972

1973-1976(2)

1977-1979

1980-1982

1983-1985

1986-1988

1989-1991

1992-1994

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Secretário
Presidente VicePresidente
Tesoureiro
J.
J. Toscano Rico(1)
Garrett
F.
S.
J. Garrett
Peres Gomes
Guimarães
F.
W.
M.
V.
Peres Gomes
Osswald
Silva e Sousa
Durão
W.
JMG
Rico J.
Tavares Tice
Osswald
Toscano
Castro
Macedo
JMG
Rico S.
V.
F.
Toscano
Guimarães
Durão
Teixeira
S.
Tice
I.
M.
Guimarães
Macedo
Azevedo
Caramona
Tice
J.
Ribeiro Fontes
M.
Macedo
Alexandre
Ribeiro
Caramona
J
P.
M.
Gonçalves Dulce
Alexandre Ribeiro
Soares da Silva
Lourdes
Cotrim

Notas

(1) Eleito, por aclamação, Presidente Honorário em 1983

(2) Estes corpos gerentes serviram um quadriénio, em vez de triénio regulamentar por não ter sido possível realizar a reunião de 1974 e o Presidente e o Secretário terem sido objecto de "saneamento" (decisão unânime da Assembleia Geral de 1975).

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OS CINQUENTA ANOS

DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE FARMACOLOGIA

Serafim Guimarães

Instituto de Farmacologia e Terapêutica, Faculdade de Medicina do Porto

A Farmacologia, como verdadeira área científica, não é muito velha; nasceu na Alemanha em meados do século dezoito. De Halle e pela mão de Friederich

Albrecht Karl Gren (1760-1798) surgiu a primeira descrição de Farmacodinamia e, de Johann Christian Reil (1759-1813), quase ao mesmo tempo, a primeira noção de Farmacocinética.

Da Alemanha veio, também, em 1873, a primeira revista científica de Farmacologia, com a designação de Archivfür experimentelle Pathologie und Pharmakologie, hoje designada Naunyn-Schmiedebergs Archives of Pharmacology, onde tantos dos trabalhos portugueses têm sido publicados. É de origem alemã, ainda, a primeira Sociedade de Farmacologia de um País (1923).

Não é, portanto, de estranhar que a história vinda da Alemanha neste domínio científico tenha sido bem recebida no nosso País e que a Farmacologia Portuguesa, como a sua Sociedade, denote, através de testemunhos variados, a marca clara dessa influência germânica.

Durante dezenas de anos, sob a designação de Matéria Médica, escondeu-se a indefinição da Farmacologia em geral e a inexistência da Farmacologia portuguesa.

Se não se reconhecer Bernardino António Gomes como farmacologista, nem qualificar como farmacológicos os seus trabalhos, pode considerar-se que a investigação farmacológica feita em Portugal se iniciou em 1932. Tudo o que no nosso país até então, tinha a designação de farmacologia, tem apenas a ver

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com a ciência feita pelos outros, ciência importada, traduzida, passivamente aceite. O triste viver de colonizados.

Foi assim que, por não haver qualquer tradição de investigação no centro onde se formou como docente universitário, nem em qualquer outro centro nacional, José Toscano Rico foi estagiar dois anos em Berlim, no Instituto dirigido por Paul Trendelenburg, membro de uma sonora família alemã que tanto haveria de vir a beneficiar a Farmacologia Portuguesa. Que a aprendizagem nesse centro científico foi fecunda, mostra-o o facto de que, dois anos após o regresso de Toscano Rico, já Lisboa exportava créditos dessa estadia em terra germânica. Dela, imediatamente beneficiou Alberto Malafaya-Baptista, que em 1934 partiu para Lisboa, onde foi buscar a Farmacologia experimental para o Porto.

E foi este um começar que nunca mais parou. Em breve seriam já três centros (Lisboa, Porto e Oeiras- Fundação Gulbenkian) e, logo depois, quatro, porque Coimbra começou a produzir, também, ciência farmacológica. E a Farmacologia Portuguesa começou a ver-se nas revistas internacionais mais cotadas da especialidade, a ouvir-se nos aerópagos mais adequados e a fazer sentir-se em todos os seus efeitos teóricos e práticos, a nível nacional e internacional.

Pouco tempo depois já nos era permitido escrever: aferida por padrões internacionais será que a investigação feita em Portugal, pelos farmacologistas, atingiu o limiar da credibilidade científica? A avaliar por certos índices que constituem a base do critério universal para a valorização do mérito dos autores de todos os países, não é arriscado concluir pela afirmativa: as revistas onde eles publicam os seus trabalhos são as mesmas onde publicamos os nossos. Os "juízes" que decidem sobre a validade dos nossos manuscritos são os "réus" que nós julgamos quando é a vez de apresentarem os deles; os autores que citamos são, muitas vezes, os mesmos que nos citam; os centros onde fomos procurar aquilo que não tínhamos, são os mesmos de onde nos chegam quem vem procurar nos nossos, aquilo que lhes falta! Uma grande circulação comum cumpre-se sem esforço, levando e trazendo!

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Sob a influência poderosa desse impulso afirmativo, a Sociedade Portuguesa de Farmacologia nasceu quando tinha de nascer. Foi a partir dos meados dos anos sessenta do século passado que a produção científica dos farmacologistas portugueses começou a ser notada pelos grandes nomes mundiais da ciência farmacológica e a ter presença digna nos principais palcos internacionais dessa especialidade científica.

Por outro lado, intensificava-se a participação de farmacologistas portuguesas em reuniões internacionais e essas grandes montras passaram, naturalmente, a exibir e a sublinhar nomes e a exaltar resultados. Estas referências que de lá se recebiam eram empurrões preciosos que nos entusiasmavam e que garantiam que as fronteiras externas estavam vencidas com essa contínua e crescente acumulação de "dividendos". Começava a sentir-se a falta de uma entidade que nos desse um corpo visível e colectivamente nos representasse.

Cientificamente, portanto, a situação estava madura para que fossem ultrapassadas, também, as fronteiras internas criadas por uma legislação que não era favorável à constituição de associações, ainda que fossem claramente científicos os seus objectivos. Felizmente, do lado dessas fronteiras internas começaram, também, a sentir-se sinais de abrandamento que poderiam enfraquecer as restrições embaraçosas que bloqueavam o atendimento à nossa ambição e aos nossos propósitos.

Mesmo tendo em conta esses sinais de aparente desanuviamento, foi, ainda, com a consciência de um certo atrevimento que em 27 e 28 de Dezembro de 1968, sob o patrocínio de Toscano Rico, teve lugar uma reunião dos professores e investigadores da área da Farmacologia em que se discutiu a criação de uma Sociedade que representasse todos os seus docentes e investigadores. Em face da justeza desse desejo e da unanimidade das opiniões manifestadas, o passo necessário, o da formulação do pedido de constituição de uma Sociedade científica que nos representasse, foi apresentado e acabou por ser atendido. E a primeira reunião oficial da Sociedade Portuguesa de Farmacologia teve lugar em Oeiras em 2 e 3 de Outubro de 1970, acontecimento a que o Jornal de Notícias dia 4 dá uma informação detalhada, no dia seguinte (Figura 1).

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No Centro de Bioquímica do Instituto de Ciência da Fundação Gulbenkian, em Oeiras, terminaram ontem os trabalhos da primeira reunião anual da Sociedade Portuguesa de Farmacologia.

Os trabalhos do dia iniciaram-se às 9.30 com demonstrações práticas e visita ao Centro de Biologia da Fundação Gulbenkian após o que se realizou uma

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Figura 1. Notícia sobre a primeira reunião oficial da Sociedade Portuguesa de Farmacologia, publicada no Diário de Notícias, em 4 de Outubro de 1970.

sessão durante a qual foram apresentadas e discutidas as seguintes comunicações. «Influência do método de determinação sobre a inclinação das curvas dose-efeito» pelo dr Serafim Guimarães «Intoxicação digitálica. Sua modificação por indutores enzimáticos em diferentes espécies animais» pelos drs F Peres Gomes Ema Fonseca e João Galvão «metabolismo da digoxina no rato – Seu estudo em cápsulas supra-renais», pelos drs Ema Fonseca ML Gonçalves e F Peres Gomes.

Da parte da tarde com início às 15 horas houve nova sessão no decorrer da qual se discutiram mais as seguintes comunicações. «Sobre algumas acções farmacológicas da oxifedrina» do prof W Osswald «Depressão da estimulação nicotínica pela noradrenalina nos gânglios simpáticos cardíacos do cão» pelos drs A Silva Graça e A Jorge Silva «Acção antiarrítmica da atropina» do dr A Pereira Viana «A acção dos inibidores da monoaminoxidase e de algumas aminas adrenérgicas no aumento da permeabilidade vascular produzida pela serotonina» do prof José Toscano Rico «Variações da calemia desencadeada pela infusão de adrenalina no cão. Comparticipação do fígado» do dr J Castro

Tavares «Modificação dos efeitos cardiovasculares da ubaína no gato pela administração intraventricular de depressoras do SNC» dos drs F Pereira Gomes e Ema Fonseca «Proteção dos efeitos tóxicos do magnésio pela ubaína» do dr Luís Valente «Ribonuclease ribossomal e indução enzimática» dos drs MC Lecher e CR Pousada e «Sobre o emprego do tri-hidroximethylaminomethane TRIS como tampão no estudo do receptor muscarínico no músculo liso» do dr JM Toscano Rico.

Ao fim da tarde reuniu-se a assembleia extraordinária da Sociedade Portuguesa de Farmacologia que resolveu vários assuntos de ordem administrativa e aprovou novos sócios e resolveu que a próxima reunião anual da Sociedade se realize no Porto.

E as reuniões nunca mais deixaram de se fazer todos os anos, alimentadas por uma participação de cada vez mais numerosa e animadas por um entusiasmo crescente. Inicialmente foram quatro os centros responsáveis pela organização

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das reuniões: Centro Gulbenkian de Ciência, Instituto de Farmacologia da Faculdade de Medicina de Lisboa, Laboratório de Farmacologia da Faculdade de Medicina do Porto e Laboratório de Farmacologia da Universidade de Coimbra e as apresentações eram arrumadas num espaço geral único — o de Farmacologia - e cabiam num único dia. O claro crescimento do entusiasmo pela investigação farmacológica, o correspondente aumento do número de investigadores e a abertura do âmbito das apresentações à Farmacologia Clínica, levaram à necessidade de desdobrar as reuniões, que, a partir de 1981, passaram a ter sessões de índole básica e sessões de índole clínica em salas separadas. Com esta abertura à área clínica o crescimento do número de apresentações foi, ainda, mais notório e as reuniões passaram a ter de ocupar dois dias. Mais tarde, em consequência do alargamento da importância do seu campo de intervenção e dos seus cultores, houve necessidade de abrir a Sociedade e as suas reuniões ao seu ramo toxicológico. A primeira vez em que a Toxicologia entrou no novo alinhamento da reunião foi em 2001, em Coimbra.

Assim chegamos ao ano de 2020, à 50ª Reunião realizada em Coimbra, que durou três dias e deu lugar a 154 apresentações: 121 de Farmacologia Geral, 10 de Farmacologia Clínica, 18 de Toxicologia e 5 sobre o ensino da Farmacologia e da Toxicologia. Todas as alterações feitas ao longo dos anos estão, plenamente, justificadas. O crescimento seguiu, mesmo, um ritmo fisiológico!

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LABORATÓRIO DE FARMACOLOGIA E NEUROBIOLOGIA

INSTITUTO DE CIÊNCIAS BIOMÉDICAS DE ABEL SALAZAR

UNIVERSIDADE DO PORTO

Paulo Correia de Sá

A. O início do ICBAS…e a colaboração com o Instituto Gulbenkian de Ciência

Após a criação do Instituto de Ciências Biomédicas de Abel Salazar

(ICBAS) em 5 de Maio de 1975 mercê do espírito visionário de Corino de Andrade, Nuno Grande e Ruy Luís Gomes (Reitor da Universidade do Porto), membros da Comissão Instaladora à qual se juntaram Neves Real (da Faculdade de Ciências), Pereira Guedes (em representação do Hospital de Santo António), Aloíso Coelho (da Escola Nacional de Saúde Pública) e João Monjardino (membro do Royal Free Hospital de Londres), iniciaram uma verdadeira luta para estabelecer a nova faculdade. O êxito deste empreendimento foi alicerçado em dois pilares principais. O primeiro, a ideia da criação de uma escola inovadora para o ensino das Ciências da Vida e da Saúde. O conceito pioneiro de Saúde Global (“One Health”) subjacente à criação do ICBAS mantém a sua atualidade mais de 40 anos volvidos da sua criação. O segundo, o cuidado no recrutamento dos seus colaboradores/docentes, os melhores entre os melhores onde quer que eles de encontrassem. Naturalmente, muitos vieram do estrangeiro, aos quais se juntaram outros provenientes das Universidades de Luanda (Angola) e Lourenço Marques (Moçambique) na sequência do processo de descolonização. A partilha de docentes com a Faculdade de Ciências da Universidade do Porto foi um processo natural, muito facilitado pela co-habitação juntamente com o Instituto

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Superior de Educação Física (ISEF) no edifício da “antiga” Escola Médica no Largo Abel Salazar, em frente ao Hospital Geral de Santo António.

Mantendo-se fiel aos princípios inspiradores das ideias de Abel Salazar e, posteriormente, desenvolvidos por Corino de Andrade e Nuno Grande, estes cedo constataram a necessidade de alargar competências ao ensino de áreas emergentes das Ciências da Vida e da Saúde, só possíveis de atingir através da colaboração de cientistas de craveira internacional que, por razões óbvias, não estivessem vinculados ao ensino universitário. Foi assim que surgiu a ideia de solicitar a colaboração de investigadores do então prestigiado Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), em Oeiras. É neste contexto que, em 1983, surge o convite por parte de Nuno Grande, para que o Professor Joaquim Alexandre Ribeiro (MD, PhD) venha dirigir os destinos da Farmacologia do ICBAS em regime de acumulação com as suas funções enquanto Diretor do Laboratório de Farmacologia do IGC.

Figura 1 –

Professores Joaquim Alexandre Ribeiro (esq) e Paulo Correia de Sá (dta) à entrada para o XVI Congresso Latino-Americano de Farmacologia / XXXII Congresso Brasileiro de Farmacologia e Terapêutica Experimental / II

Congresso Ibero-Americano de Farmacologia / VII Congresso Interamericano de Farmacologia Clínica e Terapêutica (Águas de Lindóia, São Paulo, Brasil, 2000).

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Ao contrário da dinâmica científica a que vinha habituado e das instalações amplas (“atafulhadas” de equipamentos) do laboratório que dirigia em Oeiras, o Professor Joaquim Alexandre Ribeiro encontrou no ICBAS um laboratório exíguo (não mais de 30 m2), uma infraestrutura antiquada e parcos recursos técnicos, onde o financiamento também não abundava. O capital humano resumia-se a 1 assistente estagiária (Graça Lobo) e 2 técnicas superiores (Alexandrina Timóteo e Teresa Magalhães Cardoso) todas Licenciadas em Farmácia, às quais se juntavam 3 técnicas de laboratório (Suzete Liça, Helena Costa e Silva e Laura Pinto) e 5-6 monitores, habitualmente selecionados de entre os melhores estudantes da disciplina.

Aproveitando a disponibilidade do Professor Joaquim Alexandre Ribeiro para se deslocar ao Porto, as aulas teóricas de Farmacologia passaram a ser lecionadas à 6ª feira, das 13 às 15 horas, tradição que se manteve quase até aos nossos dias. O novo diretor da Farmacologia do ICBAS encontrou já em funcionamento um conjunto de aulas práticas laboratoriais que tinham sido montadas pelas técnicas superiores com o auxílio de investigadores do IGC sob a supervisão dos anteriores regentes (não farmacologistas) da cadeira, Professores João Coimbra (Fisiologia Geral) e Nuno Grande (Anatomia).

Não obstante as condições que encontrou no ICBAS não serem as mais favoráveis para a atividade que pretendia desenvolver, o Professor Joaquim Alexandre Ribeiro estava determinado em constituir uma equipa docente e um grupo de investigação em Farmacologia no novo instituto seguindo os padrões científicos que encontrara em Edinburgo, onde se doutorara, e no seu próprio Laboratório de Farmacologia do IGC, em Oeiras. Cedo tratou de encontrar condições e incentivar todos os seus colaboradores a realizarem estágios científicos de curta duração no seu laboratório em Oeiras, dos quais resultaram colaborações científicas profíquas e muito douradoiras com alguns dos investigadores do seu grupo (e.g. Maria de Lurdes Gonçalves, Ana Sebastião, Emília Monteiro, Alexandre de Mendonça, Rodrigo Cunha)

De forma abenegada, esteve sempre na mente do Professor Joaquim Alexandre Ribeiro criar condições para que o desenvolvimento das capacidades

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científicas e técnicas dos seus colaboradores do Porto viessem a repercutir-se na incorporação efetiva de conhecimento no novo Laboratório de Farmacologia do ICBAS. Apesar da distância (na altura muito maior do que se pode imaginar com os meios informáticos hoje disponíveis!...), esta estratégia permitiu que o seu “novo grupo do Porto” começasse a dar os primeiros passos no estudo do (então ainda pouco conhecido) sistema purinérgico e, com isso, desenvolvesse as capacidades científico-pedagógicas e de transmissão do conhecimento necessárias aos desafios impostos pela atividade universitária que estavam a iniciar.

B. No meio do fogo…os primeiros doutorados em Farmacologia do ICBAS

É neste contexto institucional que surgem os primeiros doutorados em Ciências Biomédicas (especialidade de Farmacologia) do ICBAS – Universidade do Porto. Em abono da verdade, a primeira doutorada em Farmacologia pelo ICBAS sob a orientação do Professor Joaquim Alexandre Ribeiro foi a Doutora Maria Emília Monteiro, que em 1994 era investigadora do Laboratório de Farmacologia do IGC, hoje Professora Catedrática de Farmacologia na Nova Medical School – Universidade Nova de Lisboa. Certamente que o seu extraordinário trajecto científico-pedagógico e relevância para a Farmacologia portuguesa serão reafirmados em capítulo análogo deste livro dedicado aos presidentes da Sociedade Portuguesa de Farmacologia (SPF) e à Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, como até há bem pouco tempo era designada.

A 1 de Junho de 1995, defende a sua tese de doutoramento em Ciências Biomédicas (especialidade de Farmacologia), o Doutor Paulo Correia de Sá, um jovem médico licenciado pelo ICBAS (1988), que cedo (no 3º ano da faculdade) aceitou o desafio do Professor Joaquim Alexandre Ribeiro para dispender os meses de férias de verão (1985-1988) em atividades de iniciação à investigação científica no Laboratório de Farmacologia do IGC, em Oeiras. Contemplado com uma bolsa da JNICT e convencido da possibilidade de sucesso na realização da

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tese de doutoramento no tema que já vinha desenvolvendo, pede uma licença sem vencimento por 3 anos no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia e interrompe o internato complementar de Ortopedia e Traumatologia (1990-93) para desenvolver o seu trabalho. O sucesso desta tese, bem com a que se lhe seguiu em 1996 da Doutora Maria da Graça Lobo, licenciada em Farmácia pela Universidade do Porto e única assistente do Laboratório de Farmacologia do ICBAS, só foi possível porque no início dos anos 90 o Professor Joaquim Alexandre Ribeiro conseguiu montar uma infraestrutura laboratorial mínima e obter o financiamento (nacional e europeu) necessário para alavancar definitivamente a investigação científica do seu grupo no ICBAS.

A determinação inabalável do jovem grupo de Farmacologia do ICBAS liderado pelo Professor Joaquim Alexandre Ribeiro e a manutenção do apoio do IGC em termos de colaboração intelectual e da realização de algumas experiências foi crucial para resistir à destruição parcial da ala Sul do edifício da velha Escola Médica pelo fogo na madrugada de 5 de Março de 1992. À destruição causada pelo incêndio, seguiu-se um período de vários meses sem electricidade e/ou aquecimento nos laboratórios resistentes (incluindo o da Farmacologia) por se encontrarem protegidos pela grossa parede corta-fogo que separava as divisões mais próximas da área afetada. É curioso realçar que foi o próprio Professor Joaquim Alexandre Ribeiro, preocupado ao ouvir as notícias matinais, que alertou a partir de Oeiras os restantes membros do laboratório para a ocorrência. É possível, ainda hoje no novo Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia, agora situado no complexo ICBAS / FFUP junto ao Pavilhão Rosa Mota (ex-Palácio de Cristal), ver as marcas do incêndio nos livros de registo de algumas experiências e em alguns equipamentos, como por exemplo um HPLC pertencente ao Laboratório de Bioquímica que foi salvo de um fim certo pela vontade da Dra Teresa Magalhães Cardoso em prosseguir os seus trabalhos; de realçar que o equipamento em causa ainda se mantem em condições de funcionamento.

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C. A extensão do ensino da Farmacologia, a passagem de testemunho e a expansão do corpo docente

O cumprimento do desígnio antecipado pelos fundadores do ICBAS relativo à criação de uma escola multidisciplinar destinada ao ensino das Ciências da Vida e da Saúde no âmbito da ideia de Saúde Global (“One Health”) só foi concretizado em 1994 com a abertura da Licenciatura em Medicina Veterinária, curso acrescentado aos previamente existentes de Medicina Humana, Ciências do Meio Aquático e Bioquímica (1º curso com tutela partilhada, com a FCUP, na Universidade do Porto). O aumento do número de estudantes e a necessidade de se criarem competências no âmbito da administração de medicamentos veterinários a animais de companhia e de produção, justificaram o recrutamento de um Médico Veterinário para a Terapêutica e a abertura de um concurso público para preenchimento de uma vaga de Professor Auxiliar Convidado (a 30%) de Farmacologia, que foi ocupada pelo Professor Paulo Correia de Sá em finais de Dezembro de 1997. A sua experiência como monitor de Farmacologia no ICBAS, cargo que ocupou de 1987 a 1991, bem como o seu conhecimento profundo do funcionamento do Laboratório de Farmacologia do ICBAS, que ajudou a desenvolver enquanto estudante de doutoramento e, posteriormente, como investigador independente, revelaram-se essenciais para a firme prossecução dos objectivos científicos e pedagógicos do grupo. A mudança da estratégia organizativa do IGC coincidiu com a possibilidade do Professor Joaquim Alexandre Ribeiro se transferir para o recém-criado Laboratório de Neurociências da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL), que passa a dirigir a partir de 1997.

O desejo do Professor Joaquim Alexandre Ribeiro assumir a tempo integral a sua posição como Professor Catedrático do quadro da FMUL retiraram-lhe algum fôlego para que se pudesse deslocar ao Porto com tanta assiduidade. Esta situação coincidiu com o fim do internato de especialidade em que o Professor Paulo Correia de Sá estava envolvido no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia e com a possibilidade deste ser contratato pelo ICBAS a

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tempo integral em regime de exclusividade, abdicando da atividade clínica. Estava, então, encontrado o novo Diretor do recém-designado Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia do ICBAS, posição que o Professor Paulo Correia de Sá ocupa desde finais de Dezembro de 1999 até aos dias de hoje. Pouco tempo após a sua nomeação como diretor de laboratório, o Professor Paulo Correia de Sá passou a acumular funções de Diretor do Departamento de Imuno-Fisiologia e Farmacologia em virtude da morte prematura do Professor Mário Arala Chaves, insigne Imunologista; manteve-se nesta situação de acumulação de funções durante os 19 anos seguintes (2000-19).

Figura 2 – Membros do Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia no início de 2000. Da esquerda para a direita: em baixo, Alexandrina Timóteo e Laura Oliveira; em cima, Suzete Liça, Helena Costa e Silva, Teresa Magalhães Cardoso, Paulo Correia de Sá, Belmira Silva, Catarina Prieto da Silva (estagiária) e Maria Graça Lobo.

A equipa liderada pelo Professor Paulo Correia de Sá aproveitou os ventos de mudança do novo milénio na política científica e das universidades portuguesas para apostar na construção de uma infra-estrutura laboratorial moderna e bem equipada capaz de garantir competitividade, autonomia científica, atração de investigadores, e incorporação de tecnologias

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tradicionalmente pouco vulgares no contexto da farmacologia (e.g. microdissecção a laser, imagiologia em tempo real, microscopia confocal) em complementaridade com as metodologias clássicas pré-existentes para avaliação da atividade de fármacos. Para além deste salto qualitativo nas ambições do Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia do ICBAS, seguiu-se uma forte e necessária aposta na expansão da equipa docente e do grupo de investigação, através da introdução de jovens provenientes de múltiplas áreas disciplinares que foram atraídos pela disponibilidade de metodologias de investigação avançadas. Estas estratégias permitiram encarar com mais facilidade as exigências do ensino e investigação no âmbito das novas áreas de formação pré- (Medicina Veterinária e, posteriormente, Bioengenharia) e pósgraduada (Programas Doutorais em Neurociências e Farmacologia e Toxicologia Experimentais e Clínicas) entretanto criadas no ICBAS e na Universidade do Porto.

A expansão do grupo embora lenta foi sustentada no tempo, tal como seria de prever ao pretender desenvolver-se um corpo docente jovem com caraterísticas multidisciplinares próprias capaz de responder aos desafios científicos e pedagógicos de uma instituição de ensino e investigação como o ICBAS nos tempos modernos. Neste contexto, foi admitida no ano 2000 como Assistente Estagiária a Doutora Margarida Duarte-Araújo, médica veterinária com formação na UTAD, que se veio a doutorar em Ciências Biomédicas no ICBAS, em 2011, defendendo uma tese sobre a relevância do papel das purinas no funcionamento do sistema nervoso entérico na saúde e na doença.

A Doutora Laura Oliveira foi contratada em 2006 já como Professora Auxiliar de Farmacologia, após uma ligação prolongada ao laboratório desde 1999 como estagiária da Licenciatura em Bioquímica do ICBAS / FCUP e, posteriormente, como bolseira da FCT; concluiu o seu doutoramento em 2005, com uma tese sobre a interação dos receptores muscarínicos e da adenosina no controlo da transmissão neuromuscular, ao qual se seguiu um período em que trabalhou para demonstrar a relevância do receptor A2A da adenosina como alvo terapêutico singular no controlo da eficácia das sinapses imunológica e

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neuromuscular com possível impacto na Miastenia gravis (doença neuromuscular autoimune).

O aumento progressivo do numerus clausus e as especificidades impostas ao ensino da Farmacologia Veterinária determinaram, em 2008, a contratação de uma nova médica veterinária para o grupo, a Doutora Ana Patrícia Fontes Sousa, que vinha com um doutoramento da Universidade de Trás-os-Montes e Alto-Douro onde defendeu uma tese sobre mecanismos neuro-humorais e endoteliais na insuficiência cardíaca sob a orientação do Professor Adelino Leite Moreira da Faculdade de Medicina do Porto. Desde então, tem desenvolvido esforços para avaliar a possibilidade de interferir com a remodelação cardíaca secundária à hipertensão arterial pulmonar manipulando a sinalização purinérgica.

Por último, foi admitido como Professor Auxiliar o Doutor José Bernardo Noronha-Matos em Janeiro de 2019, cuja ligação ao Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia do ICBAS se iniciou durante a sua tese de Mestrado em Bioquímica (2008) e culminou com a realização de uma tese de doutoramento (2014) sobre o papel dos receptores P2 e das NTPDases na osteogénese de mulheres pós-menopáusicas. O Professor Noronha-Matos e a jovem equipa que conseguiu atrair têm explorado a importância do “purinoma” no envelhecimento das células tronco mesenquimatosas da medula óssea humana por diversas metodologias, bem como a possibilidade da reabilitação destas células “ex vivo” utilizando estimulação mecânica e/ou agentes farmacológicos de nova geração, nomeadamente anticorpos monclonais e tecnologia de ARN de interferência, aplicada à engenharia de tecidos, cujos trabalhos estão a ser desenvolvidos por dois novos doutorandos, Rui Pinto Cardoso e Catarina Andrês.

O corpo docente e o pessoal técnico acima referido asseguram a lecionação das unidades curriculares de Farmacologia I e II aos Mestrados Integrados de Medicina e Medicina Veterinária, bem como as disciplinas de Neuroquímica/Neurobiologia e Farmacologia Molecular e Celular do Mestrado em Bioquímica. É, ainda, da sua responsabilidade a unidade curricular de Ensaio

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Pré-Clínico e Investigação Clínica do Mestrado em Bioengenharia. No seu conjunto, estas unidades curriculares de pré-graduação envolvem um universo de aproximadamente 300 estudantes por ano. Os docentes do Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia participam também em diversos cursos de pósgraduação, dos quais se destacam pela sua relevância estratégica os Programas Doutorais em Farmacologia e Toxicologia Experimentais e Clínicas (PDFTEC) e em Neurociências (PDN), lecionados em conjunto por várias unidades orgânicas (e.g. ICBAS, FMUP, FFUP) da Universidade do Porto.

D. A formação pós-graduada e o contributo dos investigadores doutorados

Para além dos já mencionados docentes, muitos foram os estudantes de licenciatura, mestrado e doutoramento que contribuíram para o desenvolvimento metodológico e produtividade científica do Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia do ICBAS nos últimos 20 anos. Seria impossível mencioná-los a todos e talvez se corresse o risco de esquecer alguns, pelo que se opta por referir apenas aqueles com trabalhos realizados no âmbito da Farmacologia e/ou Toxicologia e que tiveram uma ligação mais duradoira ao laboratório; por maioria de razão, os estudantes de doutoramento e os investigadores pós-doutorados.

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A contribuição da Doutora Fátima Ferreirinha (Pós-Doc, 2008-11) foi essencial para a dinamização da unidade de microscopia confocal avançada e imagiologia funcional implementada no Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia do ICBAS, que permitiu trazer para a Farmacologia uma dimensão imagiológica distinta da abordagem habitual. A Doutora Fátima Ferreirinha faz parte dos quadros do laboratório como Técnica Superior, desde 2011, após o términus do protocolo de cooperação de I&D entre o ICBAS e a Olympus Portugal, SA. que suportou a sua contratação inicial. De 2009 a 2014, o grupo contou com a colaboração do Doutor João Miguel Cordeiro, o último estudante de doutoramento do prestigiado Professor Yves Dunant (Farmacologia, Universidade de Genebra – Suiça; 1937-2019), que se tornou conhecido no seio da Sociedade Portuguesa de Farmacologia (SPF) pelos seus ensaios muito curiosos sobre o controlo da neurotransmissão colinérgica rápida no órgão eléctrico do torpedo (Torpedo marmorata).

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Figura 3 – Membros do Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia no final do tradicional Almoço de Reis, em Janeiro de 2011. Escadaria da entrada principal do ICBAS no Largo Professor Abel Salazar (Porto).

No âmbito da colaboração com o Brasil, o intercâmbio com o grupo dos Professores Marcos Mattos Fontes e Márcia Gallacci na UNESP – Campus de Botucatu permitiu que o Doutor Walter Cavalcante passasse várias temporadas no Porto para avaliar o efeito farmacológico/toxicológico de certos componentes do veneno de cobras que constituem o património genético do Brasil (e.g. jararaca ou Bothrops jararacuçu, cascavel ou Crotalus durissus terrificus) nas terminações nervosas motoras da junção neuromuscular por métodos radioquímicos e vídeo-microscopia em tempo real. Ainda em colaboração com colegas brasileiros se destacam os trabalhos conjuntos com o grupo do Professor Wilson Alves-do-Prado (Universidade Estadual de Maringá, Paraná) sobre o papel da adenosina, da L-citrulina, dos corticosteroides e dos relaxantes musculares na eficácia da transmissão neuromuscular, e da Professora Patrícia Castelucci (Universidade de São Paulo, São Paulo) em estudos sobre a influência da sinalização purinérgica na sinapse tripartida do plexo mioentérico em situações de insquemia/reperfusão intestinal, realizados maioritariamente pela Doutora Cristina Eusébio Mendes

Quem privou de perto o Doutor Miguel Faria no dia-a-dia do laboratório e nas reuniões da SPF, jamais pode esquecer a sua enorme disponibilidade e boa disposição contagiante. Este nosso colega, cuja relação pessoal não deixava ninguém indiferente, lamentavelmente deixou-nos cedo de mais, ainda não tinha 50 anos (1969-2018). Veterinário conceituado, Diretor do Hospital Veterinário da Univesridade do Porto (UPVet), no âmbito da Farmacologia era conhecido pelos seus trabalhos sobre o papel das purinas no tecido cavernoso de doentes com disfunção eréctil (Tese de Doutoramento, 2011) em colaboração com o Professor LaFuente de Carvalho (urologista do Centro Hospitalar Universitário de Porto), tendo sido ainda pioneiro no estudo da relevância do ATP na hiperatividade vesical em homens com hiperplasia benigna da próstata. O Doutor Miguel Faria esteve, também, envolvido nos primeiros ensaios para caracterizar o efeito cronoselectivo da adenosina em aurículas isoladas, que parece ser responsável pela ação terapêutica deste nucleósido na reversão da taquicardia supraventricular, tal como veio a demonstrar o Dr.

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Bruno Bragança no decurso do doutoramento que se encontra a realizar. No início da sua carreira docente, Doutor Miguel Faria foi ainda responsável pela demonstração de que a depressão tetânica (inibição de Wedenski) se deve ao bloqueio de receptores nicotínicos pré-sinápticos contendo subunidades a3b 2 que apresentam propriedades farmacológicas distintas das subunidades a 1 existentes nos receptores da placa motora visadas para obtenção do efeito relaxante neuromuscular (Provas de Aptidão Pedagógica e Capacidade Científica, 2003).

A Doutora Ana Rita Pinheiro, chegou ao laboratório com uma licenciatura em Fisioterapia e desenvolveu uma tese de doutoramento (2008-14) sobre o papel do purinoma em fibroblastos to tecido subcutâneo humano, abrindo novas perspectivas sobre os mecanismos celulares e moleculares da acupunctura e sobre a fisiopatologia da dor miofascial / fibromialgia. Os seus trabalhos estão a ser prosseguidos pela Dra. Carina Herman de Sousa, com um doutoramento em curso no laboratório. Em 2016, doutoraram-se três estudantes no seio do grupo: (1) a Doutora Cátia Vieira, bióloga conhecida pelos seus trabalhos sobre o purinoma como alvo terapêutico das doenças inflamatórias intestinais; (2) a Doutora Aurora Barros-Barbosa, bioquímica com uma tese sobre a influência das purinas, designadamente do receptor P2X7, no transporte de amino-ácidos (GABA e Glut) em doentes com epilepsia mesial temporal resistente aos antiepilépticos; e (3) a Doutora Mariana Certal, bioquímica/médica com um trabalho sobre o efeito dos nucleótidos de adenina e uracilo em fibroblastos cardíacos ativados como preventivo da remodelação cardíaca.

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O médico urologista, Miguel Silva-Ramos, defendeu em 2017 uma tese de doutoramento sobre o papel das purinas (ATP e adenosina) em disfunções do trato urinário inferior; os seus resultados foram pioneiros na utilização do ATP urinário como biomarcador não invasivo da hiperatividade vesical e/ou da competência do detrusor no diagnóstico diferencial entre situações de obstrução e hipotonia vesical. Doutorada mais recentemente (2018), importa referir o contributo da Doutora Isabel Silva (mestre em Genética e Biotecnologia, UTAD) para o reconhecimento do grupo na área da Farmacologia Urológica alémfronteiras em virtude dos seus estudos demonstrando inequivocamente que o efeito terapêutico dos agonistas dos receptores β3 adrenérgicos, designadamente o mirabegron, em situações de bexiga hiperativa é mediado indiretamente pela libertação de adenosina do detrusor através de um processo dependente dos transportadores equilibrativos de nucleósidos, que envolve a ativação da via da EPAC, e a ativação retrógrada dos receptores inibitórios A1 nos nervos colinérgicos da bexiga.

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Figura 4 – Membros do Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia no final do tradicional Almoço de Reis, em Janeiro de 2014. Escadaria do complexo ICBAS/FFUP na R. Jorge Viterbo Ferreira (junto ao Pavilhão Rosa Mota, exPalácio de Cristal, Porto).

E. Da antiga Escola Médica para o novo complexo ICBAS / FFUP

O “velhinho” Laboratório de Farmacologia do ICBAS, que o Professor Joaquim Alexandre Ribeiro encontrou quando começou a dar aulas ao Porto em 1983, era separado da vizinha Citogenética por tabiques de contraplacado (e uma janela!...) onde não podia haver confidências. Tudo se transmitia de um lado para outro, devido ao elevado pé direito da antiga construção. Ouviam-se os passos de “borracha” do professor de Farmacologia à chegada ao laboratório, mas também os saltos altos da Professora Isabel Malheiro (Diretora da Citogenética) no soalho de madeira exótica revestido a linóleo que forrava o chão dos dois laboratórios geminados. A voz da D. Suzete Liça vibrava através das grossas paredes de granito e transmitia-se a toda a nave central do instituto adivinhando a sua presença. Também não era possível contar as últimas (anedotas) da noite de urgência sem contagiar os “vizinhos do lado”. Ah…à 6ª feira, por volta das 10 horas, o som erudito da banda da GNR ecoava pelas janelas “panorâmicas” que que distavam escassos metros da sala de ensaios do Quartel do Carmo. Por sinal a banda tocava bem e não repetia as partituras, mas era impossível conversar sem elevar o tom de voz durante os ensaios. O cheiro do instituto nos dias quentes de verão era característico e não deixava ninguém indiferente, mercê da proximidade das cavalariças do Quartel do Carmo que ficavam no rés-do-chão paredes meias com o ICBAS. Apesar de tudo, ficaram saudades desse tempo…talvez porque todos éramos todos mais jovens.

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A ciência fazia-se apesar de tudo… e ai de quem pensasse ocupar aquele espaço do 1º andar do ICBAS, convenientemente localizado em frente ao laboratório de aula práticas e a

Finalmente em 2006, a conquista de 2 dos 15 projetos de re-equipamento científico atribuídos para a área da saúde a nível nacional permitiu encontrar o financiamento necessário para a remodelação completa e expansão das instalações do Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia do ICBAS. O laboratório manteve a mesma localização ganhando espaço à custa da ocupação da área deixada pela Citogenética, que também beneficiou de novas instalações. O pé direito elevado foi convenientemente aproveitado através da construção de um “mezzanine” que permitiu acomodar as secretárias dos docentes e dos técnicos libertando a área inferior para a componente laboratorial. Tudo foi adequadamente definido ao milímetro e preenchido com bancadas de trabalho, cuja ergonomia foi determinada pelos investigadores (uma raridade digna de nota no nosso país!...) atendendo às características das metodologias experimentais e dos equipamentos disponíveis. A sala de aulas foi também renovada e adequadamente equipada para servir de laboratório de trabalho em períodos

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Figura 5 – Atividades da Semana do Cérebro em 2007 (esq) e 2011 (dta) no Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia do ICBAS (edifício da antiga Escola Médica). escassos metros da biblioteca.

não letivos. A Farmacologia passou, então, a ocupar lugar de destaque no antigo ICBAS por ter sido a primeira intervenção de melhoria das condições laboratoriais operada no instituto em dezenas de anos. O sucesso da obra realizada serviu de modelo para as remodelações operadas posteriormente nos laboratórios de Citogenética e de Química.

Nessa altura viveram-se períodos de grande expansão. As instalações dependentes do Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia do ICBAS foram ocupando outros espaços no velho instituto. No piso intermédio entre o rés-dochão e o 1º andar foi criado um Laboratório de Culturas Celulares sob a responsabilidade da Professora Maria Adelina Costa (Departamento de Química), que se juntara à equipa de investigação da Farmacologia e Neurobiologia há vários anos. A sua vasta experiência em culturas celulares esteve na origem dos trabalhos de osteogénese em culturas primárias de células tronco mesenquimatosas da medula óssea humana, uma técnica hoje considerada rotineira no laboratório. No entrepiso por cima do Laboratório de Culturas Celulares, foi criada de raiz uma sala escura com temperatura controlada para acomodar o Laboratório de Microscopia Confocal Avançada e Imagiologia Funcional. Este laboratório foi equipado com o sistema de imagiologia em tempo real, o microdissector a laser e o recém-adquirido microscópio confocal. Na contiguidade é, ainda, destinado um pequeno laboratório para o sistema de electrofisiologia (“patch-clamp”), dotado hoje de um sistema automatizado de vídeo-microscopia que permite sincronizar os sinais electrofisiológicos com imagem em tempo real.

O processo de renovação do Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia no antigo ICBAS serviu de balão de ensaio para o viriam a ser as características das novas instalações do laboratório no novo complexo ICBAS / FFUP da R. Jorge Viterbo Ferreira, junto ao Pavilhão Rosa Mota (antigo Palácio de Cristal).

A mudança para as novas instalações deu-se durante o Carnaval de 2012. Não foi fácil tendo em conta a complexidade dos equipamentos que era necessário transferir. Tudo foi minuciosamente etiquetado, desmontado e encaixotado para facilitar a mudança e re-instalação. O transporte dos componentes mais frágeis

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foi acompanhado individualmente pelos investigadores, que foram inexcedíveis neste processo de forma a garantir sucesso na re-instalação de todo o material. Felizmente, tudo decorreu como previsto e nada se perdeu na mudança.

O Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia coabita agora com os Laboratórios de Fisiologia e Imunologia que constituem no seu conjunto o Departamento de Imuno-Fisiologia e Farmacologia localizado no 4º andar do edifício 2 do complexo ICBAS/FFUP. Os espaços são mais amplos, existindo áreas comuns (e.g. secretariado, sala de reuniões, corredores, sanitários) e maior número de gabinetes. Os espaços laboratoriais foram convenientemente organizados seguindo a mesma lógica operada em 2006, aquando da renovação do laboratório do antigo ICBAS. O ambiente é mais frio e distante e existe menor interação, talvez seja o preço a pagar pela modernidade das instalações.

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Figura 6 – O processo de mudança para as novas instalações (Fevereiro de 2012).

F. A aproximação das Farmacologias na Universidade do Porto

O nosso muito querido e para sempre lembrado Professor Daniel Moura teve o sonho (e o ensejo) de conseguir implementar na cidade do Porto o primeiro programa doutoral na área da Farmacologia e Toxicologia em Portugal. Com o espírito afável que o caracterizava e a tenacidade de quem quer levar por diante uma missão, desdobrou-se em múltiplos contatos pessoais e institucionais até conseguir convencer os farmacologistas / toxicologistas e as direções da FMUP, FFUP e ICBAS do interesse que seria a implementação do Programa Doutoral em Farmacologia e Toxicologia Experimentais e Clínicas (PDFTEC). As boas relações pessoais e qualidade das valências existentes entre os vários grupos de farmacologistas / toxicologistas da Universidade do Porto serviram de argumentos inabaláveis e garantia de sucesso na implementação deste programa. O “nosso” Professor Daniel Moura teve a felicidade de, ainda, conseguir ver este seu seu empreendimento implementado no ano de 2014.

Não será demais relembrar que o mesmo Professor Daniel Moura (FMUP), juntamente com o então Presidente da SPF, Professor Jorge Gonçalves (FFUP), conseguiram organizar no Porto dez anos antes o primeiro congresso da Federação Europeia de Farmacologia (EPHAR 2004) em Portugal, tendo contado com os mesmos intervenientes da FMUP, do ICBAS e da FFUP.

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Figura 7 – O novo complexo ICBAS / FFUP na R. Jorge Viterbo Ferreira (junto ao Palácio de Cristal). O Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia fica no lado Sul do Piso 4 / Edifício 2.

A criação do PDFTEC consolidou a ideia de que era possível reunir os farmacologistas e toxicologistas da Universidade do Porto na mesma unidade de investigação organizada em torno de interesses comuns. O conhecimento profundo dos seus membros nesta área do conhecimento garantia qualidade e a obtenção da cooperação científica necessária entre laboratórios de investigação, serviços de saúde e empresas da região. Neste contexto, foi criado em 2015 o Centro de Investigação Farmacológica e Inovação Medicamentosa (MedInUP), que tem como instituição de acolhimento o ICBAS em estreita articulação com a FMUP a quem pertence o seu Diretor, o Professor Patrício Soares da Silva. O contacto entre a Farmacologia das duas escolas médicas incentiva a cooperação científico-pedagógica e a partilha de conhecimentos e infra-estruturas num ambiente muito saudável de colaboração que se prevê dê frutos num futuro muito próximo.

Figura 8 – Jantar de Gala da SPF (Vila Nova de Gaia, Fevereiro de 2013). À esquerda, equipa do Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia do ICBAS responsável pela organização da reunião da SPF 2013. À direita, a passagem do testemunho da presidência da SPF da Professora Emília Monteiro (2009-13) para o Professor Paulo Correia de Sá (2013-16) nessa mesma reunião.

Por último, e não menos importante, não seria poderia terminar esta breve nota da história do Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia do ICBAS sem mencionar o papel chave da Sociedade Portuguesa de Farmacologia

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(SPF) na difusão científica de qualidade nesta área do conhecimento, bem como o empenho de todos os seus membros (dos mais idosos aos mais novos) na partilha de saberes e verdadeira amizade que tem feito escola entre todos nós. Relembro com muita saudade o nervosismo das primeiras apresentações públicas dos jovens do Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia do ICBAS nas reuniões da SPF. Trata-se de uma verdadeira escola que todos associam ao rigor, à ética e à excelência das apresentações científicas produzidas. A “família farmacológica portuguesa” está de parabéns por se saber adaptar aos cambiantes da Ciência actual e, ano após ano, ter a capacidade de mobilizar cada vez mais investigadores nas suas reuniões anuais, certamente um exemplo a seguir pelos nossos parceiros internacionais que se encontram aparentemente em contraciclo. A juventude dos participantes nas reuniões anuais da SPF augura um futuro risonho para a nossa sociedade, afirmando com alguma certeza que o Laboratório de Farmacologia e Neurobiologia do ICBAS se mantém empenhado em contribuir para o engrandecimento da sociedade

Bem hajam todos os que dirigiram a SPF ou que, de uma forma ou de outra, contribuíram para sucesso da “nossa” sociedade ao longo destes 50 anos!...

Porto, 10 de janeiro de 2020.

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Testemunho pessoal de homenagem ao Professor Joaquim Alexandre Ribeiro por ocasião da sua jubilação.

Porto, 6ª feira (13:00 horas), 28 de Setembro de 1984.

Quem é o Professor de Farmacologia? Perguntam alunos do 3º ano do curso de Medicina do ICBAS interessados em “despachar” a aula de 6ª feira à tarde, para partirem de “fim-de-semana”…

Parece que vem de Lisboa, … do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC).

Mas isso não é em Oeiras? Já tivemos professores da Gulbenkian no ano passado. Claro que o IGC era em Oeiras e que a colaboração do ICBAS com o IGC era frequente (e.g. Fisiologia, Biologia Molecular, Etologia, etc.)… e repetida ininterruptamente até fim dos anos noventa.

Mal sabia eu (aluno ordinário daquele curso – o segundo do Professor Alexandre Ribeiro como Responsável pela disciplina de Farmacologia no ICBAS) que a minha vida pessoal, académica e profissional seria marcada indelevelmente por aquela primeira aula de Farmacologia e pelo exemplo científico deste professor.

Coincidências felizes, fizeram com que o meu aproveitamento na disciplina fosse meritório do convite do Professor Alexandre Ribeiro para estagiar no Verão (em Agosto… pois claro!) no Laboratório de Farmacologia do IGC (em Oeiras), facto que me deixou muito feliz, tanto mais que a estadia “em casa das tias de Lisboa” tornava o processo bem mais simples. Este foi apenas o primeiro

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de muitos ensinamentos que retirei do contacto próximo com o Professor Alexandre Ribeiro, já na época um cientista reconhecido a nível internacional pelos trabalhos pioneiros sobre o efeito neuromodulador da adenosina. Ainda hoje mantenho o seu exemplo vivo de convidar na última aula os melhores alunos do curso de Farmacologia para realizarem investigação científica no nosso grupo… um dos grupos “filhos” do Professor Alexandre Ribeiro, tal como ele gosta de referir aos inúmeros “descendentes científicos” deixados por (quase) todas as universidades portuguesas.

Ora pois… adenosina Professor! Exclamei eu sem saber bem quais seriam as repercussões do meu acto. É verdade, disse ele pacientemente. Já estava habituado a que o “grupo da adenosina” fosse equiparado ao dos ”impressionistas”!... Bem-vindo ao clube. A contaminação foi tal que hoje, passados 25 anos, ainda não me refiz da influência purinérgica incutida naquela primeira conversa e em muitas outras tidas nas circunstâncias mais diversas que constituem uma vida (e.g. no laboratório, no café, ao jantar, no avião, etc.), e que espero merecer ainda o seu crédito por mais longos anos. Bem haja por isso!...

Fique o Senhor Professor a saber (acho que nunca lho tinha dito!) que passei ao lado de uma carreira como Imunologista incitado quase na mesma altura pelo seu (nosso) saudoso amigo Professor Arala Chaves. Dele, retirei a admiração que tinha por si (incentivando-me a escolher o estágio de Farmacologia sob a sua orientação quando soube com quem ia trabalhar) e, anos mais tarde, a Direcção do Departamento de Imuno-Fisiologia e Farmacologia ao qual dedicou parte da sua vida.

Espero que a partilha desta (minha) experiência lhe sirva de tónico para continuar a apreciar a vida e sentir-se confortável com o legado científico que deixou no Porto, e que muito lhe devemos.

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Grande abraço deste seu (discípulo) amigo, Paulo Correia-de-Sá

ICBAS e Porto, 30 de Abril de 2011

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farmacologia

Faculdade de Medicina, Universidade de Lisboa,

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LISBOA

O ENSINO E A INVESTIGAÇÃO EM FARMACOLOGIA NA FACULDADE

DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE LISBOA: BREVE SÚMULA DAS

ORIGENS E ACTUALIDADE DO INSTITUTO DE FARMACOLOGIA E NEUROCIÊNCIAS

Ana M. Sebastião e J. Alexandre Ribeiro

Instituto de Farmacologia e Neurociências, Faculdade de Medicina, e Instituto de Medicina Molecular, Universidade de Lisboa

A transversalidade da Farmacologia (da clínica para o laboratório e viceversa) imprimiu nesta ciência, desde a sua criação, uma singularidade própria. A partir do doente pressiona a Fisiologia (uma vez que se destina a corrigir disfunções fisiológicas) e a Patologia (neste caso combatê-la) para compreender a melhor forma de o ajudar. Para se desenvolver, assenta em conhecimentos oriundos da Química, Bioquímica, e Fisiologia, entre outros. Como escreve Osswald (2013), “a Farmacologia nunca teve um estatuto epistemológico inteiramente convincente”. Por outro lado, a Farmacologia constitui-se ela própria como fonte de ferramentas para estudar a Fisiologia. Ao interferirem com a função, os fármacos permitem perceber a importância dessa função no organismo vivo, seja a nível da célula, do sistema ou de todo o organismo. Disto são exemplo os estudos pioneiros de Claude Bernard (1813-1878), pai da Medicina Experimental, sobre a acção do curare na comunicação nervo-músculo (ver Ribeiro, 1979). Pelo uso de fármacos pode-se obter a consequência verificável da hipótese, paradigma do método experimental. Também como demonstrou o discípulo de Claude Bernard, Alfred Vulpian (1826-1887), pelo uso de fármacos se podem conceber novas hipóteses e realizar experiências que permitem o refinamento, ou mesmo a correcção, de interpretações anteriores. Goodman e Gilman, no prefácio da 1.ª edição (1940) do seu extenso

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tratado escreveram: “Embora a Farmacologia seja uma ciência médica por mérito próprio, ela vai pedir emprestado o assunto, a matéria e a técnica a muitas outras disciplinas, clínicas ou preclínicas, e contribui generosamente para elas»” (tradução de Osswald, 2013).

A necessidade de ajudar o doente após o diagnóstico, através do uso de substâncias bioactivas, constituiu o ponto de partida para o desenvolvimento da Farmacologia no nosso país, que tem a peculiaridade de ter desenvolvido mais precocemente a Farmacologia que a própria Fisiologia (ainda não há uma Sociedade Portuguesa de Fisiologia a funcionar regularmente). Este facto contrasta com o que em geral aconteceu noutros países, em que as sociedades de Farmacologia emergiram das sociedades de Fisiologia (caso da Sociedade Britânica de Farmacologia). Em consequência a Farmacologia em Portugal teve um desenvolvimento mais acelerado que a própria Fisiologia. Nos anos sessenta do século passado é criada a Sociedade Portuguesa de Farmacologia (SPF). Os seus membros, através da interacção não apenas com a Fisiologia, mas também com a Biologia Molecular, a Genética a Imunologia e, muitas outras disciplinas, recorrem à utilização de métodos e técnicas em expansão na altura. Como é natural, contudo, a Farmacologia nasceu em Portugal muito antes da criação da SPF.

Os farmacologistas portugueses iniciaram-se na Farmacologia experimental na Alemanha, caso de Silvio Rebello (1879-1938), professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL) e justamente considerado por Garrett (2008) e Osswald (2018), o pai da Farmacologia Portuguesa. Para uma descrição da influência da ‘escola’ de Farmacologia alemã na Farmacologia Portuguesa, ver The roots of Portuguese Pharmacology, por Walter Osswald, relatada a esta Sociedade em 2018.

Em Lisboa, na segunda metade do século XX, a influência predominante foi a da ‘escola’ britânica, com Fernando Peres Gomes, que estagiou no Departamento de Farmacologia em Edinburgh, então liderado por John Gaddum, JMG Toscano Rico nos anos sessenta em Oxford no Departamento de

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William D.M. Paton, e J. Alexandre Ribeiro, nos anos setenta no Departamento de Farmacologia de Edinburgh, na altura chefiado por Eric Horton.

Âmbito e objectivos na origem da Farmacologia

O que hoje designamos por Farmacologia, surgiu em três etapas sucessivas. Após 1) a Matéria Médica, essencialmente sistematizadora e descritiva, surge 2) a Farmacoquímica devotada a identificar os princípios activos contidos nas plantas ou obtidos por síntese; e por último, 3) a Farmacologia Experimental cujo objectivo principal é estudar os efeitos e mecanismos de acção dos fármacos nas células, tecidos e no organismo.

A Matéria Médica entre nós, desenvolveu-se em grande parte, em consequência dos descobrimentos, através do estudo das plantas trazidas dos vários pontos do Mundo. Amato Lusitano (1511-1568) terá sido dos primeiros a identificar as propriedades farmacológicas em plantas. Também são de destacar as contribuições de Garcia da Horta (1501-1568) com os seus “Colóquios dos Simples e Drogas he Cousas Medicinais da Índia” e de Cristóvão da Costa (1525-1594) com o seu “Tratado das Drogas e Medicinas das Índias Orientais”. Ainda no século XVI, outros, como os jesuítas José de Anchieta e Fernão Cardim, descreveram as propriedades medicinais das substâncias biologicamente activas do Brasil (ver Garrett, 1988).

A Matéria Médica foi ensinada na Régia Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa até 1911, ano em que foi criada a Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa.

Existia em Portugal, nas primeiras décadas do século XX, a convicção fundamentada de que os progressos científicos na área das ciências biomédicas tinham em grande parte a sua origem no rigor metodológico dos alemães e no progresso tecnológico que se verificava no país. Na Alemanha, país emergente de uma unificação então ainda recente, a Farmacologia tinha já mais de 150 anos de existência. O isolamento de substâncias activas como é o caso da morfina a partir do ópio em 1806 por Frederick Sertürner (1783-1841), representa um marco – é a primeira substância a ser isolada de uma planta.

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Iniciou-se então uma actividade ligada aos progressos da química farmacêutica, indispensáveis para o desenvolvimento da síntese e isolamento de substâncias químicas com eventual potencialidade como agentes farmacológicos.

A criação do primeiro Laboratório de Farmacologia Experimental por Rudolf Buchheim (1820-1879) em Dorpat modificou radicalmente o que até aquela altura se ensinava nas Escolas de Medicina, que tal como entre nós tinha por título genérico Matéria Médica, baseada nos conhecimentos emergentes da Botânica.

O primeiro Instituto de Farmacologia foi criado em Estrasburgo por um discípulo de Buchheim, Oswald Schmiedeberg (1838-1921). Constituiu um ponto de viragem marcante no uso da metodologia cientifica proveniente dos avanços da Fisiologia que, conjuntamente com os conhecimentos providenciados pela Química Farmacêutica, estão na origem da criação da Farmacologia como ciência. Daí que a primeira geração de farmacologistas, tanto na Europa como nos Estados Unidos, tem as suas raízes em Estrasburgo, e como sabiamente escreve Walter Osswald (2013): “Buchheim é o criador da Farmacologia e Schmiedeberg o seu profeta”

A Farmacologia Experimental vai permitir o aparecimento de uma terapêutica de base científica fundamentada nos princípios essenciais da actividade dos fármacos. São eles: o (1) principio da dose-efeito, i.e., quanto maior a dose maior o efeito dentro de determinadas concentrações, (2) o princípio da selectividade já que quando utilizadas doses muito elevadas surgem efeitos laterais indesejados e eventualmente tóxicos, (3) o principio da afinidade dos fármacos para receptores, princípio aliás na raiz da selectividade, (4) o princípio de intervir sobre a causa e não sobre os sintomas e (5) o princípio da necessidade do ensaio clínico, ou seja da evidência fundamentada da eficácia terapêutica, processo fundamental para a transformação de um fármaco em medicamento.

O sistema terapêutico baseado na Farmacologia Experimental vem assim opor-se aos sistemas terapêuticos anteriores, tais como a Alopatia baseada na

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ideia de que a doença estava contida nos fluídos e, portanto, seria possível tratar as doenças através de sangrias, eméticos e purgantes. A Alopatia já tinha sido posta em causa pela introdução de um novo sistema terapêutico designado Homeopatia que, também em contraste com a Farmacologia Experimental, se fundamenta nos princípios do vitalismo, da semelhança, e na mais valia da diluição das moléculas, cuja propriedades supostamente se transferem para os seus solventes.

O conhecimento baseado nos progressos da Farmacologia Experimental só teve lugar entre nós praticamente em fins do Sec. XIX, e sobretudo após a reforma de 1911, com a criação, na Faculdade de Medicina de Lisboa da disciplina de Farmacologia, obrigatória nos curricula dos licenciados em Medicina.

Antes de descrevermos o que acontece no actual Instituto de Farmacologia e Neurociências, gostaríamos de mencionar, ainda que resumidamente, o passado que contribuiu para o papel que actualmente desempenha quer no ensino quer na pesquisa científica da nossa Escola.

A Farmacologia na Faculdade de Medicina de Lisboa: breve história

Silvio Rebello

Inicia actividade de investigação no Instituto Câmara Pestana em 1905, portanto ainda antes da reforma do ensino aquando do advento da República em Portugal. Tendo sido nomeado Professor de Farmacologia em 1911, foi obter nos laboratórios com maior reputação internacional treino específico na área a que haveria de dedicar a vida académica. Procurou, pois, no Instituto de Farmacologia de Estrasburgo, dirigido por Oswald Schmiedberg, a inovação resultante das investigações em Farmacologia Experimental. Vai depois trabalhar com Tappeiner (adepto da terapia fotodinâmica), em Munique, e com Benedicenti discipulo deste, também dedicado aos estudos sobre a fototerapia

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em Génova (ver Garrett, 1988). Regressado a Portugal, iniciou estudos de Farmacologia Experimental em diversas áreas, sendo reconhecido quer a nível nacional quer internacional como o primeiro “verdadeiro” farmacologista português. Com o seu regresso à Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, transporta as novas metodologias e é assim o criador da Farmacologia Experimental entre nós. Instituída em 1911 a Cadeira de Farmacologia, e reconhecido o Instituto de Farmacologia na Escola Médica de Lisboa, quando do seu regresso a Portugal, Sílvio Rebello reorganiza o ensino da Farmacologia de acordo com os programas dos países então considerados mais avançados nesta área na Europa. Poderemos dizer que o homem certo na altura certa soube estar no lugar certo para fazer História na Farmacologia portuguesa.

Outros acompanhavam, nesta época, Silvio Rebello na curiosidade pela Ciência. Palco privilegiado foi o Instituto Câmara Pestana (que após transferência para o campus da FMUL/Hospital de Santa Maria, passou a ser designado como Edifício Reynaldo dos Santos, recentemente inaugurado). Em geral, todos os que nessa época desejavam dedicar-se à investigação científica eram acolhidos nesse Instituto, onde a ideia da “coisa biológica”, como Sílvio Rebello designava (à semelhança do que hoje alguns neurocientistas designam, relativamente ao sistema nervoso, por “neuro-coisa”), emergia associada ao fascínio pela investigação científica. Partilhavam os nossos pioneiros a convicção do fisiologista Claude Bernard que já em meados do século XIX escrevia: “Considero o Hospital só como o vestíbulo da medicina científica, como primeiro campo de observação em que deve entrar o médico; mas o verdadeiro santuário da medicina científica é o Laboratório”. Esta convicção fundamenta hoje, mais do que nunca, toda a Medicina (ver Ribeiro, 1979) Impregna a transformação ocorrida nas Escolas Médicas, já que cada vez parece ter mais sentido a ideia da “coisa biológica” como a essência da aprendizagem das ciências ditas Biomédicas, mais do que apenas de ciências Médicas. É, pois, através das Ciências Biomédicas, que efectivamente se introduz, tal como Sílvio Rebello tinha reconhecido há um século, inovação e modernidade nas Escolas Médicas. Segundo Garrett (1988) Silvio Rebello,

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continuou na medida do possível o embrião deixado pelo Professor Pinto de Magalhães, e no seu Laboratório realizou os primeiros estudos de Farmacologia Experimental, em moldes modernos, no nosso país.

Nos trabalhos que publicou nota-se o seu interesse pela sifilis, então com grande prevalência, temática que desenvolve na sua Tese de Licenciatura em 1905 com o título: “O perigo da sífilis”. Seguiram-se as publicações no Comptes Rendus des Séances de la Société de Biologie, sobre a “L’action biologique des substances fluorescentes“, e sobre “Les mouvements rythmiques des muscles squelettiques dans les solutions salines”. Devotou vários anos à farmacocinética e farmacodinamia das metaloproteínas. Pioneiro em Neurofarmacologia, dedicou-se ao estudo do curare, portanto a ações colinérgicas, incluindo inactivação de neurotransmissão em preparações que hoje sabemos colinérgicas. Segundo Walter Osswald, uma das hipóteses levantadas por Sílvio Rebello com base nas suas observações foi que a adrenalina libertada pela medula supra-renal actuaria reflexamente sobre o tecido nervoso causando uma redução do tónus simpático. Foi, pois, um precursor em Portugal em estudos de modulação pré-sináptica a que tantos neurofarmacologistas portugueses se dedicaram e dedicam ainda. De destacar ainda a sua publicação em 1927 intitulada “Bases farmacológicas da terapêutica medicamentosa”. Não sabemos se o título dado em 1941 ao livro por Goodman & Gilman’s: “The Pharmacological Basis of Therapeutics”, teria de alguma maneira a inspiração do farmacologista português. Segundo Garrett (1988), entre as investigações de Sílvio Rebello destacam-se as realizadas sobre a aferição biológica de antihelmínticos, cujo método, por ele proposto, foi citado pelos mais conceituados tratados de farmacologia então publicados. Dedicou-se à Hidrologia Médica, e também como marco importante da sua actividade pedagógica fez, segundo Garrett (1988), uma adaptação portuguesa, que não uma mera tradução, do célebre livro de Farmacologia Experimental e Terapêutica de Paul Trendelenburg.

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Sílvio Rebello teve vários continuadores com destaque para o seu sucessor, José Toscano Rico na Escola Médica de Lisboa e Malafaya Baptista na Escola Médica do Porto.

José Toscano Rico

José Toscano Rico, discípulo directo de Sílvio Rebello, está, segundo Garrett (1988), na origem da hoje “pujante” Farmacologia Portuguesa. Após ter efectuado um estágio em 1929 em Berlim, com Paul Trendelenburg, veio a ser nomeado Professor Catedrático de Farmacologia e Terapêutica Geral na Faculdade de Medicina de Lisboa e, mais tarde, de Hidrologia Geral, dirigindo o respectivo Instituto de Investigação de 1935 até à sua jubilação, em 1971.

No fim dos anos sessenta José Toscano Rico foi o impulsionador da Sociedade Portuguesa de Farmacologia (SPF), tendo criado o seu “embrião” em reunião havida na Faculdade de Medicina de Lisboa em 1968. Partilhavam este entusiasmo outros farmacologistas da Grande Lisboa, de que destacamos Fernando Peres Gomes (ver Ribeiro, 2008), Director do Laboratório de Farmacologia do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC), onde os autores deste breve texto tiveram a sua iniciação em projectos de investigação na área da Farmacologia, um dos quais (JA Ribeiro) sob orientação de Fernando Peres Gomes. No Porto Garrett e colaboradores foram igualmente cruciais na fundação da SPF (ver Garrett, 2008). Desde então a Sociedade Portuguesa de Farmacologia reúne anualmente, aumentando progressivamente o número de associados e conseguindo o devido reconhecimento internacional.

Para Garrett (1988), é de José Toscano Rico que descende, em grande parte, a ‘escola’ de Lisboa, que se expandiu em diversas direcções para lá da Faculdade de Medicina de Lisboa. Deu origem aos grupos em Oeiras (Instituto Gulbenkian de Ciência), iniciados por Peres Gomes, discípulo de José Toscano Rico. A Farmacologia em Coimbra, com Tice Macedo recebe influência quer de Oeiras quer do Porto. Já a ‘escola’ de Farmacologia portuense, de que Malafaya Baptista é a figura iniciática, ‘descende’ directamente de Silvio Rebello.

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Os interesses científicos de José Toscano Rico estão em grande parte ligados ao seu interesse sobre o ião magnésio em preparações neuromusculares.

Licenciado em Medicina em 1959. Entre 1964 e 1965 foi investigador no Departamento de Farmacologia da Universidade de Oxford. Doutorou-se em 1969 na FMUL. Nomeado professor catedrático em 1974, dirigiu o Instituto de Farmacologia e Terapêutica Geral da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa até à sua reforma em 2003. Entre os vários trabalhos publicados internacionalmente, cumpre destacar os relacionados com o papel do cálcio na actividade do musculo liso, nomeadamente nos receptores muscarínicos, e dos antagonistas do cálcio na permeabilidade vascular.

Objectivos na actualidade

O Instituto de Farmacologia e Neurociências resultou da fusão de duas estruturas previamente existentes. Em 1997, o grupo do Laboratório de Farmacologia do Instituto Gulbenkian de Ciência, dedicado à NeuroFarmacologia, deslocou-se para a FMUL, a convite do Professor João Lobo Antunes, na altura presidente do seu Conselho Cientifico, para criar o Laboratório de Neurociências. Este laboratório existiu até 2004, altura em que se fundiu com o Instituto de Farmacologia. Em 2000, o professor responsável pelo instituto de Farmacologia, o Professor José Manuel Toscano Rico, solicitou a sua reforma. Em consequência, o ainda Presidente do Conselho Científico, Professor João Lobo Antunes solicitou a Joaquim Alexandre Ribeiro (co-autor deste texto) para assumir a Direcção do Instituto de Farmacologia. Quando se deu a passagem para o Edifício Egas Moniz, espaço primordialmente dedicado ao ensino e investigação das áreas pré-clínicas da Faculdade de Medicina, considerou-se de importância estratégica, para a investigação em Farmacologia na Faculdade de Medicina, fundir o Instituto de Farmacologia e o Laboratório de

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Neurociências, criando-se assim, desde 2004, o Instituto de Farmacologia e Neurociências.

Actividade de Investigação

A investigação científica foi o nosso grande propósito quando se criou o Laboratório de Neurociências. Nesse âmbito, a contribuição para o ensino reflectiu-se na criação de um programa de Mestrado e depois de Doutoramento em Neurociências, ambos pioneiros, na altura, no país. No propósito de impulsionar a investigação científica, empenhámo-nos na orientação de alunos de Mestrado e de Doutoramento e na integração das suas propostas de investigação na actividade científica do grupo. Sempre foi nosso objectivo que a actividade de investigar permeasse a actividade docente mesmo a nível prégraduado, tendo-se criado no início um Curso Livre Experimental em Neurociências, à semelhança do que fez Claude Bernard na Sorbonne no Séc XIX. Ainda hoje, a orientação e acompanhamento de alunos de mestrado e de doutoramento, e mesmo de alunos em pré-graduação no Mestrado Integrado em Medicina com projectos de iniciação à investigação científica, ocupa uma parte considerável do tempo de todos os que fazem parte do Instituto de Farmacologia e Neurociências.

O Instituto incorpora uma unidade de investigação do IMM, a Unidade de Neurociências actualmente rebaptizada como ‘Unidade de Comunicação

Neuronal e Sinaptopatias’. Esta Unidade, actualmente dirigida por Ana M Sebastião, está organizada em cinco grupos independentes mas interdependentes na sua capacidade de complementaridade de saberes, de crítica e colaboração recíproca; e os seus responsáveis intervêm também na docência, todos na pós-graduação e vários na pré- e pós-graduação. Cada grupo tem, além do seu responsável, investigadores doutorados, estudantes de doutoramento, estudantes de mestrado, bolseiros de investigação inseridos nos projectos em curso; incorpora também regularmente estudantes de medicina

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que pretendem realizar projectos de investigação, necessariamente limitados no tempo, mas que lhes permitem contactar com a realidade da investigação na primeira pessoa.

O nosso grande interesse científico é compreender os mecanismos moleculares e celulares envolvidos na actividade das células nervosas, os neurónios e as células da glia, e perceber como a actividade destas células é controlada a nível molecular, a nível celular e, também, sempre que pertinente, a um nível mais integrado, que vai de aspectos de natureza comportamental à translação para modelos de doença. Estamos convencidos que só compreendendo os fundamentos da actividade sináptica, da sua regulação e causas de desregulação, se poderá almejar à identificação de ferramentas farmacológicas mais eficazes, i.e., ao melhor uso dos fármacos dirigidos para doenças neurológicas ou psiquiátricas.

Interessados em obter informação útil sob a forma de proteger os neurónios contra agressões externas que poderão culminar em doenças neurológicas ou psiquiátricas, procurámos saber como impedir a morte de neurónios e impedir as disfunções sinápticas. Como estratégias temos recorrido à investigação da função de moléculas neuromoduladoras capazes de inibir as acções de neurotoxicidade resultantes das disfunções do sistema nervoso central. Entre estas têm-nos interessado os factores neurotróficos, o GABA, a adenosina e, mais recentemente os endocanabinóides e agentes moduladores da função serotonérgica.

Na procura de mecanismos de neurodegenerescência, descobrimos que agentes promotores de morte neuronal, como o péptido beta-amiloide, induzem clivagem do receptor para o factor neurotrófico derivado do cérebro (BDNF –Brain Derived Neurotrophic Factor), o receptor TrkB. Esta clivagem gera não só uma perda de função, mas também muito provavelmente um ganho de função ‘tóxica’ através do fragmento intraceulular resultante da clivagem do receptor. Este fragmento tem capacidade de fosforilar diversas proteínas axonais e do corpo celular e, ao migrar para o núcleo modifica a expressão de diversos genes

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que codificam para proteínas relevantes ao funcionamento normal dos neurónios.

Com a finalidade de conhecermos as relações ‘hierárquicas’ entre os diversos neuromoduladores, temos vindo a constatar que os receptores A2A da adenosina são imprescindíveis para a acção de neuromodulação sináptica exercida por factores neurotróficos como o BDNF ou o GDNF (‘Glia Derived Neurotrophic Factor’ - factor neurotrófico derivado da glia). Identificámos alterações precoces na actividade e expressão de receptores da adenosina bem como de moléculas envolvidas no controlo dos níveis de adenosina extracelular em patologias degenerativas como a esclerose lateral amiotrófica. Identificámos processos semelhantes de desregulação de sinalização mediada pela adenosina em patologias cuja expressão é a desregulação da excitabilidade neuronal devida a alteração da acção ou expressão de BDNF. Este é o caso do Sindrome de Rett, uma doença grave de neurodesenvolvimento, bem como de uma outra patologia também rara e igualmente de raiz genética, cuja expressão mais notável são as convulsões associadas a stress. A relação entre receptores de adenosina e receptores de BDNF ou de canabinoides em modelos de patologias degenerativas como esclerose múltipla, tem-nos também interessado recentemente.

Na senda da identificação pré-clínica de novas possibilidades terapêuticas, desenvolvemos um modelo de epilepsia ‘ex vivo’ que permite testar a acção de vários fármacos na hiperexcitabilidade resultante de híper-sincronia neuronal. Neste contexto estamos interessados em perceber a relação entre a neuroinflamação e epilepsia com o objectivo de esclarecer a relação de causa ou de consequência associada à neuroinflamação em síndromes epilépticos.

Nesta linha de investigação pretendemos identificar fármacos que ao prevenir a neuroinflamação possam travar o ‘ciclo-vicioso’ entre inflamação e hiperexcitabilidade.

Descobrimos que o bloqueio dos receptores A2A da adenosina previne a disfunção de memória exercida pela toma, quer crónica quer aguda, de canabinoides exógenos. Provámos também que o consumo crónico de

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canabinoides altera o metabolismo e conectividade entre diversas áreas cerebrais relevantes para a função mnésica. Identificámos uma importante função dos endocanabinoides sobre a plasticidade sináptica - facilitar a plasticidade induzida por estímulos fortes e inibir a plasticidade induzida por estímulos fracos e assim, muito provavelmente, permitir a codificação de traços de memória relevantes eliminando os menos relevantes. Temos como hipótese que a alteração de memória induzida pelo consumo de canabinoides exógenos se deve à interferência nesta acção de regulação da plasticidade sináptica mediada por endocanabinoides. Sabemos que os receptors de canabinoides heteromerizam com receptores A2A da adenosina em neurónios e estamos a avaliar se tal também acontece em células da glia. Dado o seu potencial de prevenção de acções secundárias indesejadas associadas ao potencial terapêutico dos canabinoides, pretendemos perceber os mecanismos sinápticos, celulares e moleculares envolvidos na capacidade que os antagonistas de receptores A2A da adenosina têm de prevenir a disfunção de memória mediadas pelo consumo crónico de canabinoides exógenos.

Actividade Docente

Na Academia, a nossa missão principal é a formação dos médicos, formar bons médicos, os melhores médicos, e estamos convictos que o melhor médico é também o melhor cientista, isto é, aquele que tem um espírito crítico e científico mais aperfeiçoado. Daí a necessidade de os futuros médicos estarem inseridos numa atmosfera em que a investigação científica é privilegiada.

Parte considerável da investigação em curso no Instituto de Farmacologia e Neurociências é dedicada à Neurofarmacologia. Na docência o Instituto é responsável pelo ensino da Farmacologia, que compreende os mecanismos básicos da acção dos fármacos, a neurofarmacologia e a intervenção farmacológica sobre os restantes órgãos e sistemas, sendo que no último dos 3 semestres o ensino da Farmacologia é feito em interligação com a Fisiopatologia. Igualmente, o ensino da Neurofarmacologia é feito em

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coordenação com o da Neuroanatomia, Fisiologia do sistema nervoso, e Psicologia, numa grande Unidade Curricular denominada - Tronco de Neurociências; a sua coordenação está a cargo do Instituto de Farmacologia e Neurociências. O Instituto intervém também na coordenação do Mestrado Integrado em Engenharia Biomédica, curso que a FMUL partilha com o Instituto Superior Técnico, na convicção que os avanços futuros da medicina dependerão em grande parte da sua interligação com os avanços da Engenharia. Estamos também fortemente convictos que o ensino Universitário deve assentar cada vez mais em colaborações inter-escolas. Fomos promotores do Colégio MenteCérebro da Universidade de Lisboa, de que Ana M Sebastião foi a 1ª Directora, o qual congrega investigadores e estudantes de pós-graduação de 9 Escolas da Universidade de Lisboa. Participamos activamente nos cursos de Mestrado e de Doutoramento em Ciência Cognitiva, que engloba 5 Escolas da Universidade de Lisboa. Coordenamos um Programa Doutoral em Neurociências Integradas que tem a participação de 5 Escolas da nossa Universidade. Coordenamos e intervimos intensamente nos Programas de Mestrado e de Doutoramento em Neurociências da FMUL. Com o objectivo de proporcionar vivências de investigação aos alunos de Medicina, para além da abertura para a sua inclusão em projectos de investigação, oferecemos também 4 unidades curriculares opcionais, de permanência intensiva no laboratório durante 1 semana cada. Nestas opcionais os alunos tomam contacto directo com técnicas de laboratório inseridas em contexto científico.

Em resumo, o Instituto de Farmacologia e Neurociências da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa procura desenvolver interfaces coerentes e produtivas entre a docência e a investigação numa perspectiva aberta e transversal, que nos posiciona entre líderes devotados à investigação em Neurofarmacologia em Portugal, situando-nos também numa rede de investigadores com o mesmo tipo de objectivos em múltiplos países. Pretendemos assim honrar, ampliando, o legado de Sílvio Rebello e dos nossos antecessores com os quais partilhamos a paixão pela Farmacologia nas suas múltiplas vertentes.

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Referências:

Bernard, C.. (1947). Principes de Médecine Expérimentale, éd. PUF, Paris.

Garrett, J. (1988). Esquisso Histórico da Farmacologia em Portugal. Arq. Inst Terap Exper, Coimbra, 7, 26-32.

Oswald, W (2018). The Roots of Portuguese Pharmacology. 48ª Reunião da SPF, Lisboa

Osswald, W. (2013), Terá a Farmacologia um Futuro?, Rev Port Farmacoter, 5:128-129.

Goodman & Gilman’s (1940): The Pharmacological Basis of Therapeutics 1st edition.

Equipa da Biblioteca-CDI da FMUL coordenada por J. Martins e Silva, Victor Oliveira e Luís da Silveira Botelho (2011). Perfil Biográfico dos Professores Catedráticos da Faculdade de Medicina.

Ribeiro, J.A. (1979). Claude Bernard (1813-1878). Revista Medicina, Série III, Vol 1, 101-105.

Ribeiro, J.A. (2008). Como a ubaína uniu o grupo do professor Fernando Peres Gomes no Instituto Gulbenkian de Ciência. Um Tributo à Professora Tice Anastácio de Macedo. In Tice dos Reis Anastácio de Macedo; Lição de uma Vida dedicada à Farmacologia Memórias e Homenagem. Coimbra.

Anexo: Listagem de directores ao longo dos tempos

De ‘Matéria Médica’ na Régia Escola Médico-Cirurgica de Lisboa (18371911)

• Francisco António Barral, transferido em 1837 da antiga Régia Escola da Cirurgia para a então criada Régia Escola da Médico-Cirurgia

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• Bernardino António Gomes, leccionou até Abril de 1857, e publicou o livro de texto “Elementos de Pharmacologia Geral”

• Caetano Maria Ferreira da Silva Beirão leccionou até Dezembro de 1871,e publicou em 1862, o “Compêndio de Matéria Médica e Therapêutica”.

• Pedro Francisco da Costa Alvarenga leccionou até Julho de 1883, e publicou em 1883 o livro “Fragmentos da Pharmacotherapialgia Geral ou de Matéria Médica e Therapêutica”.

• Eduardo Augusto Motta leccionou até 1906, e publicou em 1886 as suas lições com o título “Pharmacologia e Therapêutica Gerais”

De Farmacologia na Faculdade de Medicina de Lisboa (1911- 2020)

• Silvio Rebello leccionou entre 1911-1933, e traduziu e adaptou o livro pedagógico de Paul Trendelenburg intitulado “Bases de Terapêutica Medicamentosa” publicado em 1927.

• José Toscano Rico leccionou entre 1933 e 1974.

• José Manuel Gião Toscano Rico leccionou entre 1974 e 2003.

• Joaquim Alexandre Ribeiro, Director Instituto Farmacologia e Neurociências entre 2003 e 2011 (Foto: Outubro 2008)

• Ana Maria Ferreira de Sousa Sebastião, Actual Directora do Instituto de Farmacologia e Neurociências, inicio em 2011 (Foto: 2008)

Os autores escrevem de acordo com a antiga ortografia

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BREVE HISTÓRIA DA FARMACOLOGIA E DA TERAPÊUTICA

NA FACULDADE DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA

Frederico Teixeira

Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Medicina de Coimbra

A Universidade de Coimbra, criada pelo rei D. Dinis em 1 de Março de 1290 (e confirmada pela Bula Papal de Nicolau IV, datada de 9 de Agosto de 1290), é a mais antiga de Portugal e uma das mais antigas da Europa(1) , contando desde a sua fundação com uma escola de estudos médicos- a Física (2). Tal escola manteve-se como a única escola médica de Portugal até 1825, altura em que foram criadas as Escolas Médico-Cirúrgicas de Lisboa e do Porto. Tais Escolas foram transformadas em Faculdades de Medicina com a Reforma Universitária de 1911.

Na Faculdade de Medicina de Coimbra, a Cátedra de Farmacologia, bem assim como a de Terapêutica Geral, foram criadas com essa Reforma Universitária de 1911.

Tais cátedras foram então assumidas pelo lente de Matéria Médica (19021911), o Professor Lúcio Martins da Rocha (1864-1950) – Figura 1- que, a partir de então, passou a ser também: Director interino do Laboratório de Farmacologia (1911-1913) e, depois, seu Director (1913-1916); Director da Clínica de Terapêutica Médica (1911-1917), depois chamada Serviços Clínicos de Terapêutica (até 1927) e Director do entretanto criado Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental (até finais de 1926)

(https://www.uc.pt/org/historia_ciencia_na_uc/autores/ROCHA_luciomartinsda) (3) - (em 7.6.2022).

Tendo passado, no seu percurso académico anterior, pelo Gabinete de Anatomia Patológica e pelos Laboratório de Microbiologia e Química Médica e Laboratório de Histologia e Fisiologia Geral, onde se foi familiarizando com a investigação laboratorial, o Professor Lúcio da Rocha desde o início começou a

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organizar um Laboratório de Farmacologia, ao mesmo tempo que foi catalogando um valioso e raro espólio existente disperso pela Faculdade e que

(1) – Criada em 1290, por D. Dinis, a Universidade viria a sofrer diversas transferências entre Lisboa e Coimbra, até que veio a fixar-se definitivamente em Coimbra em 1537, por Carta Régia de D. João III.

(2) – Está descrita a existência de um Ensino Regular de Medicina em Portugal no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, desde 1131 (data da sua fundação).

(3) – O Professor Lúcio Rocha regeu também cadeiras na Escola de Farmácia e, depois, na Faculdade de Farmácia (entre as quais, História Natural das Drogas, Farmacologia, Farmaco-dinâmica) e, a partir de 1931, regeu a cadeira de Fisioterapia do Curso de Climatologia e Hidrologia”. ali juntou naquilo a que chamou “Museu de Matéria Médica”(4). Para tal, contou com o auxílio de Vicente Henriques de Gouveia (doutorado em 1925 com a tese “Coriza espasmódico: suas relações com a asma”, e assistente de Farmacologia e Terapêutica Experimental de 1926 a 1931,

entrando em licença ilimitada a seu pedido em 1932) -

https://www.uc.pt/org/historia_ciencia_na_uc/autores/GOUVEIA_vicentehenriq uesde (em 7.6.2022) - e de Feliciano Guimarães (bacharel em Filosofia em 1909 e em Medicina em 1912, logo assistente de Farmacologia e, com uma dissertação elaborada naquele recém-criado Laboratório de Farmacologia, doutorado em Medicina em 1914, regente da Cadeira no ano seguinte e professor catedrático de Farmacologia de 1918 a 1955).

(Quadro existente no Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra)

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Fig. 1 – Professor Lúcio Martins da Rocha (1864 1950)

(4) – No Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental de Coimbra, sito no 2ª andar do Edifício da Faculdade de Medicina de Coimbra, então na Rua Larga, Polo I da Universidade de Coimbra, existiam duas salas onde estavam 4 ou 5 móveis de madeira envidraçados, todos referenciados, ao centro e em cima, com uma placa em louça esmaltada, dizendo “Museu de Matéria Médica”: Um deles, continha um bem catalogado herbário de mais de cem plantas medicinais; um outro, continha algumas centenas de formulações galénicas, devidamente etiquetadas e com a data da sua produção; outro, expunha cerca de meia centena de vasos de cerâmica e de vidro, pintados com desenhos dourados, do século XIX (?!); um outro ainda, continha já produtos farmacêuticos, entre os quais me recordo de um frasco rolhado com “aspirina em pó” (e, por isso, só possível de ser datado de finais do século XIX!... de ser um dos primeiros produtos de “aspirina” à venda!...) e um frasco de litro cheio de mercúrio; existia uma caixa rotulada de “teriaga”; num outro, havia material cirúrgico antigo, seringas, e material de laboratório antigo!

Quando o Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental da Faculdade de Medicina de Coimbra se mudou para o novo edifício no Polo 3 (em 2006), alguém determinou que este espólio não acompanharia o Instituto, mas seria recolhido para ficar disponível para a criação de um “Museu da Faculdade de Medicina”! Já lá vão 16 anos!...

Feliciano Augusto da Cunha Guimarães (1885-1960) leccionou diversas cadeiras, nomeadamente Farmacologia, Química Fisiológica, História da Medicina e Terapêutica Hidrológica e Climatérica, passando a ser o director do Laboratório de Farmacologia (Instituto de Farmacologia e Terapêutica

Experimental a partir de finais de 1926 (a partir de 1934, Instituto de Investigação Científica de Farmacologia e Terapêutica Experimental – Abreu, 2008) e https://www.uc.pt/org/historia_ciencia_na_uc/autores/GUIMARAES.feliciano augustodacunha (em 7.6.2022) – Figura 2.

Para além de inúmeros trabalhos de investigação e divulgação sobre Farmacologia(5) e sobre Hidrologia(6), deve-se-lhe a criação do Laboratório de Hidrologia e Climatologia da Universidade de Coimbra, a fundação da revista Arquivos do Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental (publicada de 1931 a 1994), do Boletim da Biblioteca da Faculdade de Medicina (em 1935) e da revista Publicações do Instituto de Climatologia e Hidrologia da

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Universidade de Coimbra (em 1934). Da compilação dos textos contidos nos volumes XIII (1954), XIV e XV (1955) desta revista, resultaria o livro Hidrologia Médica: Águas Minerais

(5)– De realçar: Medicamentos bioetiotropos. Coimbra, 1925; Action de l’essence de chenopodium sur les vers de terre.,1927; Farmacoterapia do paludismo. Conceitos actuais, Coimbra, 1951; Aspectos da farmacologia moderna. Coimbra, 1944; A Farmacologia e o pensamento médico em meio século. Coimbra, 1954;

(6)– De realçar: Água de Grichões: aspectos da sua acção farmacológica. Porto, 1936; Francisco Tavares, Hidrologista. Coimbra, 1947; Hidrologia Médica: águas minerais de Portugal. Coimbra, 1955.

de Portugal (1955), organizado por Feliciano Guimarães e Lobato Guimarães. Homem dedicado às artes, tem também diversos trabalhos sobre “Azulejos de figura avulsa” (1932), “Ferros de Coimbra“(1949) e sobre pintores clássicos (“Sobre um quadro de Rubens. Notícia descritiva e crítica”, 1938). Ele próprio deixou algumas dezenas de aguarelas, das quais se poderão salientar as constantes na Figura 3.

De Feliciano Guimarães, disse o Professor Augusto Vaz Serra no seu elogio fúnebre: “Cientista, historiador, crítico de arte e ele próprio artista…”. “A organização do seu Laboratório, o interesse que toda a novidade lhe merecia, o calor que punha nos seus trabalhos, o método e a ordenação que presidiu a

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Figura 2 – Professor Feliciano Augusto da Cunha Guimarães (1885-1960) (Quadro existente no Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra)

todos os seus actos e gestos …”.”Era um filósofo sem dar por isso” (In Memoriam, 1959). E, se cito estas passagens proferidas no seu elogio fúnebre,

é porque dezenas de vezes ouvi de um dos seus mais próximos colaboradores como preparador de Laboratório, José Chorão Vinhas (o “Senhor Vinhas”), referências saudosas aos “trabalhos que se faziam naquele tempo” no Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental de Coimbra!

Atingido o limite de idade em 1955, sucedeu ao Professor Feliciano Guimarães o seu filho, João José Lobato Guimarães.

O Professor João José Lobato Guimarães (1916-1975) licenciou-se em Medicina na Faculdade de Medicina de Coimbra em 1941, sendo contratado como segundo assistente de Farmacologia e obtido o doutoramento em 1950, com uma dissertação sobre “Aferição Biológica de Digitálicos” (que o Professor José Garrett, professor catedrático e Director do Laboratório de Farmacologia da Faculdade de Medicina do Porto, classificaria como “um notável trabalho”).

Depois de um estágio em Oxford com o Professor Burn e seus colaboradores (1950-1951), regressou a Coimbra, aqui continuando a desenvolver uma significativa actividade investigacional e tendo papel importante na transferência (em 1956) do Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental das velhas instalações para o novo edifício construído pelo Estado Novo na Rua Larga, da zona universitária (hoje, Polo I). Viria a ser

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Figura 3 – Professor Feliciano Guimarães
-
FELICIANO GUIMARÃES – Nora outrora existente no Rio Mondego (Aguarela – Não assinado, não datado) Encontrado em 2000, a forrar as duas capas de um livro de Farmacologia e que haviam sido deitadas ao lixo - FELICIANO GUIMARÃES – Lavadeiras Ponte de Lima (Aguarela – Não assinado, não datado)

nomeado, após concurso em provas públicas, Professor Extraordinário em 1957 e Professor Catedrático de Farmacologia em 1960.

É sobretudo a partir de então que o Professor Lobato Guimarães é solicitado pela sua Universidade para múltiplas tarefas, entre as quais: a remodelação do ensino da enfermagem em Coimbra e, depois, a direcção das Escolas de Enfermagem Dr. Ângelo da Fonseca e Rainha Santa Isabel (as duas escolas de enfermagem então existentes em Coimbra) e a integração da equipa reitoral, como Vice-Reitor. Fervoroso defensor da moral e da ética médicas, exerceu notável actividade na Associação dos Médicos Católicos e na Ordem dos Médicos, de que foi Bastonário de 1962 a 1967 (Fig.4)(7) .

(Galeria dos Bastonários da Ordem dos Médicos. Sede da Ordem dos Médicos, Lisboa)

– Após a fundação, em 1898, da Associação dos Médicos Portugueses, com sede em Lisboa, viria esta a dar lugar à Ordem dos Médicos, em 1938 (Decreto-Lei nº 29 171de 24 de Novembro de 1938, revogado e substituído pelo Decreto-Lei nº 40 651, de 21 de Junho de 1956 com alterações em 1968 e 1969 e, mais tarde, após a “Revolução de Abril”, com objectivos e regulamentação totalmente diferentes, fixados pelo Decreto-Lei nº 282/77, de 5 de Julho e a Lei nº 117/2015, de 31 de Agosto).Os primeiros bastonários da Ordem dos Médicos foram: Elysio deAzevedo e Moura, de Coimbra (1939), António José Pereira Flores, de Lisboa (1940-1943), Fernando de Freitas Simões, de Lisboa (1944-1946), Manuel Cerqueira Gomes, do Porto (1947-1955), Jorge Augusto da Silva Horta, de Lisboa (1956-1961) e João José Lobato Guimarães, de Coimbra (1962-1967). Pouco depois de deixar de ser Bastonário da Ordem dos Médicos, e quando começava a reorganizar a investigação no Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental de Coimbra, é convidado para organizar e dirigir a

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Figura 4 – Professor João José Lobato Guimarães ( (1916-1975)
(7)

Faculdade de Medicina dos Estudos Gerais Universitários de Lourenço Marques, depois, Universidade de Lourenço Marques (hoje Universidade Eduardo Mondlane, Maputo) e orientar a abertura do seu novo Hospital Universitário, para onde se deslocou de finais de 1968 a finais de 1970. Aí foi também o professor da Farmacologia, coadjuvado pelo assistente Frederico Teixeira (que viria a convidar para o acompanhar em Coimbra).

Regressado à Metrópole(8) , o Professor Lobato Guimarães retoma a direcção do Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental e as regências das Cadeiras de Farmacologia e de Terapêutica Geral e Hidrologia, sendo também, em Janeiro de 1971, nomeado Director dos Hospitais Universitários de Coimbra. No desejo de continuar a reorganização da investigação no Instituto, contratou como assistente Tice dos Reis Anastácio de Macedo, para quem diligenciou de imediato o respectivo estágio de preparação da Tese de Doutoramento no Instituto de Ciência Gulbenkian, de Oeiras (sob a Orientação do Professor Peres Gomes) e o que fora seu assistente em Lourenço Marques e aí colaborara na criação do respectivo Laboratório de Investigação em Farmacologia, Frederico José Teixeira (entretanto a prestar serviço militar obrigatório em Moçambique e que, por isso, só viria a iniciar funções em Coimbra em Setembro de 1973).

Infelizmente, em plena época de conturbação urniversitária, que acompanhou o chamado “período revolucionário” que se seguiu à “Revolução do 25 de Abril de 1974”, o Professor Lobato Guimarães viria a falecer num trágico acidente de viação que sofreu no Porto em 1975.

Será nesse período de conturbação universitária que é extinta a Cadeira de Terapêutica Geral e Hidrologia, logo em 1975/1976, ano em que é leccionada apenas a Farmacologia, mas integrada naquilo a que se chamou “Curso do Ciclo Biomédico da Faculdade de Medicina” (perante o muito elevado número de alunos que então ocorreu, as aulas eram quase totalmente dadas por sistema vídeo, simultâneamente em várias salas, com um programa apenas de aulas

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(8)- Porque ausente em Lourenço Marques (de finais de 1968 a finais de 1970), o Professor Lobato Guimarães não pôde colaborar proximamente com os Professores José Toscano Rico (F.M. de Lisboa), José Garrett (F.M. do Porto) e Peres Gomes (I.C.Gulbenkian, Oeiras) na criação da Sociedade Portuguesa de Farmacologia – a considerada 1ª Reunião da S.P.F. e a sua 1ª Assembleia Geral Ordinária realizou-se em Oeiras, em Outubro de 1970. A 2ª Reunião da S.P.F. teria lugar em 1971 na Faculdade de Medicina do Porto, mas o Professor Lobato Guimarães foi já o organizador da 3ª Reunião Anual da S.P.F., em Coimbra, em Dezembro de 1972.

teóricas e teórico-práticas, mas cujos textos eram disponibilizados aos alunos pelos respectivos docentes).

Em 1976/1977 e 1977/1978 voltou-se ao sistema anterior, mas agora adoptando os nomes de Farmacologia I (assim designada a antiga Farmacologia, leccionada no 3º ano da licenciatura de Medicina) e Farmacologia II (designação que passou a assumir a agora reposta cadeira de Terapêutica

Geral, leccionada no 4º ano da licenciatura de Medicina), voltando-se, nos anos seguintes, às designações de Farmacologia Geral e de Terapêuica Geral (esta última, agora sem “e Hidrologia”).

Em 1975, após o fatídico falecimento do Professor Lobato Guimarães, foi nomeada directora do Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental, bem assim como regente da cadeira de Farmacologia, a Professora Tice dos Reis Anastácio de Macedo.

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(Quadro

A Professora Tice Macedo (1938 - …) – Figura 5 - licenciou-se em Medicina na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra em 1962, ingressando então na carreira docente em Química Fisiológica, embora acompanhando o Professor João José Pedroso de Lima no aí recém-criado Serviço de Radioisótopos. Algum tempo depois, porém, e usando as palavras do Professor José Garrett (1988), o Professor Lobato Guimarães, “com a sua perspicácia e inteligência”, descobriu “as qualidades da Professora Tice Macedo, cuja vocação para a Farmacologia em boa hora soube despertar”. Como atrás já se disse, após estágio realizado no Instituto de Ciência Gulbenkian, em Oeiras, e sob a orientação do Professor Peres Gomes, fez o seu doutoramento em Farmacologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra em Janeiro de 1974. Assumindo as funções de directora do Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental e a regência da Cadeira de Farmacologia, após o falecimento do Professor Lobato Guimarães, viria a aceder

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Figura 5 – Prof ssora Tice dos Reis Anastácio de Macedo (1938 - …) existente no Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra)

a Professora Catedrática de Farmacologia em 1985, após provas públicas de agregação em Farmacologia – funções que manteria até à sua jubilação em 2007/2008.

Entretanto, dando cumprimento aos projectos claramente expressos pelo Professor Lobato Guimarães (e que motivara a sua vinda em 1973 para a Faculdade de Medicina de Coimbra), o assistente Frederico José Teixeira (nós próprios) iniciou, em 1975, o programado estágio com vista a doutoramento no Laboratório de Farmacologia da Faculdade de Medicina do Porto, cujo Director era o Professor José Garrett, mas sob a orientação do Professor Walter Osswald.

Medicina na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em 1968, sendo quase de imediato convidado para assistente dos Estudos Gerais Universitários de Lourenço Marques (pouco depois, Universidade de Lourenço Marques), pelo seu Reitor, Professor Veiga Simão. Por coincidência, aí acompanhou toda a comissão do Professor Lobato Guimarães que, como se disse já, entretanto o

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Figura 6 – Professor Frederico José Teixeira (1940 - …) Frederico Teixeira (1940 - …) – Figura 6 - licenciara-se em

convidou para ingressar na sua equipa de Coimbra. Na sequência da investigação realizada no Laboratório de Farmacologia da Faculdade de Medicina do Porto, fez provas de doutoramento em Farmacologia e Terapêutica pela Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra em 1979, ascendendo, nesse mesmo ano, à categoria de Professor Auxiliar e, no ano seguinte, à de Professor Associado, com a responsabilidade da Regência da Cadeira de Terapêutica Geral. Após provas públicas de agregação em Terapêutica, foi nomeado Professor Catedrático de Terapêutica Geral em 1986. Entretanto, desde 1984/1985, foi também o encarregado da Regência da Cadeira de Farmacologia Clínica, disciplina opcional entretanto criada na Faculdade de Medicina de Coimbra, por sua proposta.

Após a jubilação da Professora Tice Macedo, em 2008, o Professor Frederico Teixeira foi nomeado Director do Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental – direcção que, para além das Regências de Terapêutica Geral e de Farmacologia Clínica, manteve até ao fim do ano lectivo de 2009/2010, altura da sua jubilação –, enquanto o Professor Carlos Alberto Fontes Ribeiro, mantendo-se na Cadeira de Farmacologia, assumiu a sua Regência.

Entretanto, e porque o período de estágio no Laboratório de Farmacologia da Faculdade de Medicina do Porto apenas se realizava nos três primeiros dias da semana, nos restantes três dias (de quinta-feira a sábado), Frederico Teixeira manteve as suas actividades escolares na Faculdade de Medicina de Coimbra, ao mesmo tempo que dava continuidade ao projecto de reestuturação dos laboratórios do Instituto de Farmacologia, que Lobato Guimarães desejava para as aulas práticas e, depois, desenvolvimento da investigação científica na área da Farmacologia.

Neste aspecto, a plétora de alunos resultante do período conturbado atrás referido (cada ano lectivo tinha entre 400 e 500 alunos), justificou a contratação de maior número de assistentes (até então, a quase totalidade era de médicos hospitalares, contratados como “assistentes convidados a tempo parcial”, não exercendo qualquer investigação laboratorial e, logo que especialistas, passando a dedicar-se apenas às actividades hospitalares). Por

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isso, foram alguns dos novos asssitentes que se vieram a destacar na recuperação investigacional: Carlos Alberto Fontes Ribeiro, Carminda Parente, Maria Teresa Costa, mas onde foram excepcionais os auxiliares de laboratório: Chorão Vinhas, Manuel Falcão, António Catarino, Fernando Rovira, Manuela Andrade, Cacilda Santos. Foi assim que se começou a desenvolver uma equipa de investigação no Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental, e foi assim que, logo em 1977, na VIII Reunião da Sociedade Portuguesa de Farmacologia, realizada em Coimbra, se apresentaram 3 comunicações científicas com investigação realizada no Instituto (assinadas por Tice Macedo, Frederico Teixeira, C. Fontes Ribeiro, C. Parente e M.T.Costa) e, depois, se esteve presente em todas as seguintes Reuniões da S.P.F., no 3rd Meeting on Adrenergic Mechanisms de 1978 e nos que se lhe seguiram (1980, 1983) e em Reuniões ou Congressos de outras Sociedades Científicas.

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Figura 7 – Sessão de Abertura da II Reunião Luso-Espanhola de Farmacologia (Auditório da Reitoria da Universidade de Coimbra, 25-28 de Maio de 1983)

Inclusivamente, depois de participarmos na I Reunião HispanoPortuguesa de Famacologia, realizada em Maio de 1979, em Santiago de Compostela (com uma comunicação científica assinada por F. Teixeira, T. Macedo, C.F. Ribeiro e C. Parente), viríamos a ser os organizadores da II Reunião Luso-Espanhola de Farmacologia, realizada em Coimbra de 25 a 28 de Maio de 1983 – Figuras 7 e 8 -, agora com diversas comunicações científicas, algumas assinadas já por nomes que a seguir se referem.

Iniciada assim a investigação no Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental, outros colaboradores se foram juntando, podendo citar-se, apenas com exemplos: Luís Marques de Almeida, Américo Figueiredo, Luís Maldonado, Frederico Pereira, António Manuel Gaspar, Lívia de Sousa, Belmiro Parada ou, já como investigadores ou técnicos superiores, Maria Teresa Morgadinho, Teresa Alcobia, Paula Tavares, Flávio Reis. Tal aumento de colaboradores e a motivação científica mais por um determinado tema ou mais por outro, bem assim como a necessidade de concorrer a projectos de investigação (nacionais ou internacionais), começou a desenhar, no Instituto, a existência de duas linhas de investigação (todavia, muitas vezes, colaborantes), particularmente a partir de 1983: Uma mais ligada ao Grupo da Farmacologia (orientada pela Professora Tice Macedo e, depois do respectivo doutoramento, com a activa co-orientação do Professor Fontes Ribeiro), outra mais ligada ao

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Figura 8 – Medalha comemorativa da II Reunião Luso-Espanhola de Farmacologia (Coimbra, 25-28 de Maio de 1983)

Grupo da Terapêutica (orientada pelo Professor Frederico Teixeira e, depois do respectivo doutoramento, com a activa co-orientação do Doutor Flávio Reis).

Será definidor do que passou a ser a investigação no Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental da Faculdade de Medicina de Coimbra, mais do que a referência às centenas de publicações efectuadas, em revistas nacionais e internacionais, dizer-se que 16 (dezasseis) Teses de Doutoramento foram aqui realizadas.

Após a jubilação do Professor Frederico Teixeira (em 2010), o Professor Carlos Alberto Fontes Ribeiro assumiu a Direcção do Instituto de Farmacologia e Terapêutica Experimental. É uma época em que vinha já a fazer-se a transição para a plena entrada em vigor da chamada “Reforma de Bolonha”, com o Curso de Medicina a tomar a designação de “Mestrado Integrado em Medicina”, e a ocorrer uma significativa modificação dos respectivos planos curriculares. Simultaneamente com essas modificações no campo docente, acontece na Faculdade de Medicina de Coimbra uma profunda reorganização em termos de investigação científica, nomeadamente com a extinção de todos os até então denominados “Institutos”. Naturalmente que já não nos cabe a nós (professor jubilado em 2010), qualquer relato sobre tais modificações ou pronúncia sobre a situação actual.

ALGUMAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

• Abreu,João Gomes (coord). (2008). Figuras Limianas: Ponte de Lima. Município de Ponte de Lima. pp 330-332.

• Editorial (1959). Professor Doutor Feliciano Augusto da Cunha Guimarães. In Memoriam. Coimbra Médica, Fasc. X (Dezembro): 981984.

• Garrett, José (1988). Esquisso Histórico da Farmacologia m Portugal. Conferência na XIX Reunião da Sociedade Portuguesa de Farmacologia, Coimbra, 9-10 de Dezembro de 1988. Publicado por Soares da Silva, P. em 1997 in spfarmacologia.pt/index.php/a-spf/documentos-historicos2/161-esquisso-historico-da-farmacologia-em-portugal

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• https://www.uc.pt/org/historia_ciencia_na_uc/autores/ROCHA_lucioma rtinsda(em 7.6.2022).

• https://www.uc.pt/org/historia_ciencia_na_uc/autores/GOUVEIA_vicen tehenriquesde (em 7.6.2022).

• https://www.uc.pt/org/historia_ciencia_na_uc/autores/GUIMARAES_fel icianoaugustodacunha (em 7.6.2022).

• hhhps://biblioteca.cmpontedelima.pt/cmpontedelima/uploads/writer_file/document

• /2813/Exposi__o_Feliciano_Guimaraes.pdf (em 7.6.2022).

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A FARMACOLOGIA E A INDÚSTRIA FARMACÊUTICA – O CASO BIAL

Luís Portela

Presidente de Bial

Nos anos sessenta e setenta do século XX era vulgar as empresas farmacêuticas portuguesas terem um ou mais farmacologistas como consultores. Esses técnicos apoiavam a seleção de produtos-cópia que eram disponibilizados às empresas por fornecedores de matérias-primas; e supervisionavam, sob o ponto de vista científico, a elaboração de material promocional e, por vezes, a formação dos comerciais do setor (delegados de propaganda médica, depois chamados delegados de informação médica). Em situações raras, apoiavam as tentativas de síntese de produtos-cópia.

A legislação dos diferentes países europeus, especialmente nos países do sul, permitia a comercialização de medicamentos inovadores, mas também de cópias desses medicamentos, produzidas por empresas que eram apelidadas pelas multinacionais farmacêuticas de empresas-pirata. A legislação portuguesa permitia a comercialização de quatro marcas do mesmo princípio ativo. Nessa época, as empresas nacionais nunca apostaram em terem investigação própria, limitando-se a introduzir no mercado produtos-cópia.

Bial seguiu essa linha até final dos anos setenta, altura em que começou a obter licenças de empresas multinacionais para comercializar medicamentos inovadores em Portugal e, mais tarde, também noutros países. Este foi um movimento comum a outras empresas nacionais dos países do sul da Europa que, não tendo investigação própria, procuravam obter produtos inovadores sob licença de empresas multinacionais, que não tinham presença comercial nesses países ou que pretendiam reforçar essa presença. Alguns desses medicamentos inovadores licenciados a Bial tiveram bastante sucesso, como foram os casos de

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Reumon-gel (Bayer – 1978), Gastridina (GSK – 1982) e Clavamox (GSK –1987).

Nessa época, foram vários os farmacologistas da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto que foram consultores de Bial. Entre eles: Prof. José Garrett, Prof. Serafim Guimarães, Prof. Eduardo Rodrigues Pereira, Prof. Daniel Moura e Prof. António Albino Teixeira.

Mas, no início dos anos oitenta, Bial fez uma grande opção pela inovação, desejando criar condições para sintetizar, produzir e comercializar medicamentos inovadores. Nessa altura essa opção era considerada por muitos como impossível de ser concretizada. Colegas da indústria, académicos diversos e membros da administração pública consideravam muito difícil, ou mesmo impossível, que uma empresa farmacêutica portuguesa algum dia conseguisse proporcionar à humanidade soluções terapêuticas inovadoras e aconselhavamnos a não investirmos nesse sentido.

Lembro-me de, em meados dos anos oitenta, conversar o assunto com o Prof. Serafim Guimarães – que então colaborava com Bial e com quem fiz amizade, que dura até aos dias de hoje –, que, de uma forma delicada, me procurava desincentivar, afirmando que ele próprio não tinha disponibilidade para tal projeto. E, como ele, muitos outros amigos e conhecidos me diziam que não seria possível, aconselhando-me a não investir no caminho da inovação terapêutica.

De facto, não havia tradição de inovação industrial em Portugal, as Universidades e as empresas não tinham hábitos de diálogo e de troca de experiências, o enquadramento económico-financeiro do país era desfavorável e a forte tradição burocrática e burocratizante também não ajudaria. Durante alguns anos, todos os técnicos e peritos externos consultados se pronunciaram negativamente.

Até que, em 1985, resolvi colher a opinião do Prof. José Garrett, que tinha sido meu professor de Farmacologia na Faculdade de Medicina e que era uma pessoa que eu muito considerava. Depois de me ouvir longamente, em silêncio,

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no seu gabinete, disse-me: “você tem razão; será muito difícil, mas se você procurar reunir todas as condições, tiver muita paciência e muita persistência, penso que é possível e até será muito bonito de realizar”. Fiquei excitadíssimo. Fui para casa e qu

Prof. José Garrett e Diretor de I&D de No dia seguinte voltei a t ir para me receber de novo. Ele mostrou se surpreendido e algo relutante em voltar a conversar comigo, mas lá condescendeu. E eu fui lhe dizer que, uma vez que, durante vários anos, , e ele era a primeira pessoa a dizer para seguir esse caminho, eu gostaria muito que ele deixasse a Faculdade e viesse montar o Departamento de Investigação e Desenvolvimento de Bial.

O Prof. José Garrett resistiu uns dias, mas terminou por aceitar o meu convite. Deixou a Faculdade aos 66 anos, numa altura em que os professores catedráticos costumavam sair só aos 70, e veio para Bial, em janeiro de 1986, como Diretor Médico. Nos anos seguintes fomos preparando tudo para conseguirmos montar o referido Departamento de Investigação e Desenvolvimento, nomeadamente ao ouvirmos especialistas portugueses, internos e externos, e ao contratarmos, por seis meses, dois peritos norteamericanos reformados – um químico-farmacêutico e um técnico de marketing

, ambos com cerca de 60 anos de idade e com um excelente currículo ao

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serviço de empresas multinacionais farmacêuticas. Com eles definimos a estrutura que tínhamos de montar e as áreas terapêuticas a que nos iríamos dedicar: sistema nervoso central e área cardiovascular.

Em julho de 1992 o Departamento Médico passou a chamar-se de Investigação e Desenvolvimento, contando com um químico-farmacêutico de síntese sénior e uma jovem química, ambos portugueses, que, sob a orientação do Prof. Garrett, começaram a tentar sintetizar novas moléculas, com fins terapêuticos, beneficiando da colaboração, como consultor, de um professor de química francês. Mas fomos todos percebendo rapidamente que precisávamos de enriquecer a equipa, nomeadamente com a contratação de pessoas que tivessem experiência do setor e criatividade para apresentarem e desenvolverem projetos verdadeiramente inovadores.

Foi marcante a contratação, em finais de 1993, do químico checo Jan Beneš, então Diretor no Research Institute for Pharmacy Biochemistry de Praga e, no início de 1993, do jovem farmacologista Patrício Soares da Silva. A contratação do primeiro resultou de uma pesquisa que resolvemos fazer em alguns países do leste europeu, procurando encontrar alguém com uma boa experiência e cuja contratação fosse financeiramente possível. A contratação do segundo surgiu por minha sugestão, depois de termos conversado sobre diversos farmacologistas portugueses que, aparentemente, não estariam interessados em fazer uma grande aposta no projeto inovador de Bial. Quando eu sugeri o nome do agora Prof. Soares da Silva, o Prof. José Garrett respondeu-me que sobre essa pessoa não queria opinar (nem propor o seu nome), por ser seu genro. Ele (Prof. Garrett) era – como aqui se constata – um profissional de grande competência, mas também um homem de grande caráter.

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Prof. Patrício Soares da Silva: Investigador desde 1993.01.01; Diretor de I&D desde 1995.07.01 e Administrador da Área I&D desde 2017.04.03

Durante os anos noventa a equipa de investigadores foi aumentando, começando Bial a conquistar diversos profissionais de empresas multinacionais e de universidades europeias, mas também da Universidade do Porto, como os farmacologistas Prof. Manuel Vaz da Silva, Prof. Maria Augusta Vieira Coelho e Prof. Nuno Borges. Alguns vinham por alguns anos e depois regressavam aos seus países, outros vinham e ficavam. Alguns que entraram nessa época, ainda hoje trabalham em Bial.

Mas, foi a partir de uma ideia do Prof. Patrício Soares da Silva, que o Doutor Jan Beneš e os seus colaboradores conseguiram sintetizar em 1994 o antiepilético Zebinixâ /Aptiomâ (acetato de eslicarbazepina), produto patenteado em 1996, desenvolvido ao longo dos anos seguintes, aprovado pela EMA e pela FDA e lançado a nível global, a partir de 2009, como o primeiro medicamento inovador de origem portuguesa. Foi um investimento de cerca de €350M. É atualmente vendido em dezenas de países, nomeadamente em toda a Europa, nos EUA e no Canadá.

Foi muito importante para Bial ter lançado o primeiro medicamento inovador de origem portuguesa. Mas não foi menos importante, a partir de 2016, ter lançado o segundo produto – o antiparkinsoniano Ongentysâ (opicapona) –, sintetizado em 2005 e com um investimento semelhante. Este segundo produto inovador – da autoria dos Doutores Patrício Soares da Silva, David Learmonth, László Kiss, Nuno Palma e Humberto Ferreira – terá

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confirmado a capacidade inovadora da nossa equipa de investigação e desenvolvimento. O Ongentysâ já está disponível nos maiores países europeus e, brevemente, estará também em muitos outros países, nomeadamente nos EUA, Japão, China e Austrália.

Esta equipa de I&D agora trabalha em cinco outros medicamentos inovadores, de um conjunto de cerca de 15.000 novas moléculas, sintetizadas por si nos últimos 25 anos. Prevê-se que o próximo produto inovador, a chegar ao mercado provavelmente em 2023, será da área cardiovascular. Com o lançamento dos seus dois primeiros produtos inovadores, Bial tornou-se numa das 28 instituições da União Europeia que na última década proporcionou novas soluções terapêuticas à humanidade.

Nos últimos trinta anos, trabalharam em Bial 57 farmacologistas, dos quais 29 se mantêm. A maioria trabalha no Laboratório de Investigação Farmacológica, mas alguns trabalham em outras áreas, como: farmacocinética, investigação clínica, desenvolvimento de negócios, informação médica e investigação de mercado farmacêutico.

Instalações de BIAL na Trofa: os dois edifícios mais próximos (à direita) são exclusivamente dedicados a investigação e desenvolvimento.

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Durante esse período, contratámos serviços de investigação e desenvolvimento a cerca de 150 instituições europeias e de outros continentes – muitas delas universitárias –, nas quais trabalhava um número indeterminado de farmacologistas. Só assim, a nossa equipa de investigação e desenvolvimento – atualmente com cerca de 150 pessoas – pôde superar as muitas dificuldades que sempre surgem e concretizar os projetos que permitiram a Bial ser atualmente uma empresa farmacêutica inovadora e, por via disso, uma empresa internacional, com filiais em 10 países, mas levando os seus medicamentos à população de 58 países, sobretudo da Europa, de África e das Américas. Entre as instituições que nos apoiaram, gostaria de destacar o CNC – Centro de Neurociências e Biologia Celular – e o Laboratório de Farmacologia da Faculdade de Farmácia, ambos da Universidade de Coimbra, por constituírem excelentes e profícuos exemplos da relação entre instituições universitárias e o meio empresarial.

Foram vários os projetos de colaboração que Bial estabeleceu com o CNC, inicialmente pela mão do Prof. Arsélio Pato de Carvalho, versando temáticas relacionadas com a neurofarmacologia do acetato de eslicarbazepina (Zebinixâ/Aptiomâ ) e outros produtos análogos, de que resultaram diversas publicações científicas conjuntas e a elaboração de dissertações de doutoramento. O primeiro desses doutoramentos foi do Prof. Francisco Ambrósio, com o qual se vieram a realizar outras investigações farmacológicas, em áreas diversas da primeira.

Relativamente ao Laboratório de Farmacologia, a partir do ano 2000, o Prof. Amílcar Falcão tem vindo a colaborar com Bial, na qualidade de consultor em farmacocinética, tendo participado em muitas investigações com medicamentos Bial (Zebinixâ /Aptiomâ e Ongentysâ) e novos fármacos ainda em regime de investigação clínica (ensaios Fase I e II). Esta interação científica tem sido muito frutuosa.

A nossa Área de Investigação e Desenvolvimento é superiormente liderada pelo Prof. Patrício Soares da Silva, que sucedeu como Diretor ao Prof. José Garrett, em 1995, e que, em 2017, foi nomeado Administrador de Bial. Entre os

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nossos 155 colaboradores nesta área (15% do total de colaboradores do grupo) estão profissionais de catorze países diferentes, quase todos europeus, sendo que 62 são doutorados.

A equipa de investigação e desenvolvimento de Bial é verdadeiramente multidisciplinar, com médicos, químicos, farmacêuticos, biólogos, bioquímicos, engenheiros químicos, matemáticos, estatistas e técnicos de computação. Mas, naturalmente, os farmacologistas e os farmacologistas clínicos tiveram e têm um papel preponderante no desenvolvimento dos projetos de investigação de Bial. A todos estamos muito gratos pelo excelente trabalho, que permitiu o redimensionamento da empresa, no contexto farmacêutico internacional, e que nos abre bonitas perspetivas de desenvolvimento para os próximos anos. Sempre ao serviço da Saúde das pessoas.

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