Käthe Kollwitz: entre a luta proletária e a angústia humana

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Käthe Kollwitz

entre a luta proletária e a angústia humana

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2 Flora Cassettari Chiaratto | Nº USP 4687199 Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo AUH 310 - História da Arte II Prof. Dr. Ricardo Marques de Azevedo
Käthe Kollwitz
Altorretrato em perfil para a direita (Selbstbildnis im Profil nach rechts)
litografia
físicas: 64,3 x 484 cm
de criação: 1938
Artista:
Título:
Técnica:
Dimensões
Data
3 Sumário Introdução...............................................................4 Biografia.................................................................6 O Expressionismo...................................................12 Xilogravuras...........................................................16 Produção tardia.....................................................28 Influência no Brasil..................................................32 Conclusões............................................................40 Bibliografia............................................................44 Acervos de imagem................................................45

Introdução

[...] nós temos os artistas sociais, aqueles que se movem ao proletariado e, em uma antecipação intuitiva de sensibilidade, são capazes de discernir a síntese do futuro da natureza e da sociedade, finalmente desvinculados dos idealismo de educadores e das convulsões místicas de mitologias apodrecidas. Isso é o que explica o realismo do proletariado e os artistas que expressam isso. Como é o caso de Käthe Kollwitz (PEDROSA, 1933, in FERREIRA; HERKENHOFF, 2015, p. 235, tradução minha)

A arte é um fazer político. Em diversos momentos da história o meio artístico foi um grande questionador do status quo, levando suas indagações para a sociedade através das obras.

O poder comunicador da arte extrapola a palavra e o racional, gerando reflexões no espectador com a suscitação de sentimentos. Todavia, essa é uma visão contemporânea da relação entre arte e política. Durante um longo período, a arte engajada era aquela que retratava de maneira crítica a realidade, em especial a da classe trabalhadora. É esse o caso de Käthe Kollwitz, uma importante gravurista alemã.

A temática de suas obras gira em torno, principalmente, da miséria, da guerra e das dificuldades da classe operária em meio a tudo isso. Se utiliza de técnicas de gravura, em especial em pedra (litogravura) e em madeira (xilogravura), para retra-

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tar a dramaticidade da realidade dessas pessoas, e a desumanidade que assola a sociedade em que vivemos. Sua poética está em forte diálogo com o Expressionismo, movimento estilístico que teve grande força entre artistas alemães nas primeiras décadas do século XX.

Apesar de atualmente não ser muito conhecida no Brasil, a artista foi uma referência importante para muitos gravuristas brasileiros, em especial para os que produziram entre 1930 e 1950. Nesta monografia, serão apresentados como exemplos Lívio Abramo e Renina Katz. Para além da introdução, o texto foi dividido em seis partes. A segunda traz uma breve biografia de Käthe Kollwitz, apresentando o contexto histórico e pessoal da artista, e a terceira aborda a relação de sua produção com o movimento expressionista. Na quarta, são analisadas algumas de suas xilogravuras, técnica que marcou sua produção, e na quinta parte são analisadas algumas obras de sua fase final de produção. Na sexta parte analisam-se obras de Abramo e Katz, relacionando-as com as de Kollwitz, e na sétima, por fim, são apresentadas as conclusões do trabalho.

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Biografia

Começa a surgir, sobretudo na classe intelectual e artística no final do século XIX, um movimento de reação ao ritmo industrial e uma tentativa de resgatar a dimensão humana que havia se perdido em meio ao aglomerado de máquinas. No âmbito das artes, todo esse processo se reflete na busca de novos elementos que promovam o aumento da sensibilidade (FURTADO, 2008, p. 7).

Käthe Kollwitz (1867 - 1945) nasceu na Prússia, região que tornou-se parte da Alemanha após a Unificação em 1871. As últimas gerações de sua família haviam tido educação liberal, porém eram comunistas, o que impediu alguns de exercerem a profissão para a qual estudaram. Seu pai, por exemplo, havia se formado em Direito, mas trabalhava com construção. Käthe também recebeu educação liberal, e aos 16 anos foi estudar na Academia de Arte em Berlim, entrando mais uma vez em contato com o movimento socialista. Sua trajetória política e artística se tornaram inseparáveis, sendo forte a presença de um viés social em boa parte de sua produção. Logo no início de sua carreira artística optou por fazer gravuras em preto e branco. Em um texto sobre a artista, a gravurista brasileira Fayga Ostrower fala sobre essa escolha. A cor, em si, representa um elemento extremamente sensual, enquanto a gravura se caracteriza mais por contrastes de preto e

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branco, de claro/escuro. Portanto, a própria linguagem gráfica propõe uma certa dramaticidade e um tratamento mais intelectual (OSTROWER, 1988, p. 3).

Em 1983, Kollwitz assiste à peça Os tecelões, de Gerhart Hauptmann. A temática da miséria e da revolta dos trabalhadores em relação a sua condição instigou a artista, que produziu nos cinco anos seguintes a série A revolta dos tecelões. Para além da conjuntura de forte exploração dentro das fábricas, e insurgência de revoltas operárias, a vida de Kollwitz foi permeada pela guerra. Perdeu um filho na Primeira Guerra Mundial e um neto na Segunda, ambos mortos no front de batalha. Assim, torna-se muito presente em suas obras não só a temática de guerra, mas também a de morte. Este era um assunto muito abordado entre os artistas românticos, que retratavam a morte não mais pelo viés religioso como em outros momentos da história, mas sim humano. Esse aspecto do Romantismo foi retomado pelo Expressionismo, movimento estilístico que teve muita força na Alemanha nas primeiras décadas do século XX. Kollwitz não participou diretamente desse movimento, mas seu trabalho se aproxima bastante da poética e da estética expressionista.

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A obra Necessidade (Not), primeira folha da série, retrata a cena de desespero de uma mãe perante a morte iminente de seu filho. No primeiro plano, uma criança com aspecto cadavérico está deitada sobre a cama, a qual sua mãe se debruça. Seus cotovelos se apoiam sobre seus joelhos e a cama, e suas mãos seguram sua cabeça, em um gesto de desespero. Ao fundo, os móveis da casa se dispõem desordenadamente sobre o cômodo, parecendo entulho. À esquerda, seu marido, com semblante triste, segura uma outra criança no colo. A janela parece estar parcialmente tampada, e a luminosidade do ambiente é escassa, dando a entender que a família vive em situação de miséria. A artista trabalha com contrastes, sendo a cama com a criança o ponto de maior luminosidade. Evidencia-se o estado moribundo do pequeno; e as sombras sobre os rostos dos pais ressaltam a tristeza destes, colaborando para a construção da dramaticidade da cena.

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9 Artista: Käthe Kollwitz Título: Necessidade (Not) Técnica: litografia Dimensões físicas: 23,0 x 21,2 cm Data de criação: 1897

A obra Tempestade (Sturm), quinta folha da série A revolta dos tecelões, mostra uma cena de revolta dos trabalhadores em frente à fábrica em que trabalham. Em primeiro plano, vê-se um homem de pé segurando uma pedra e uma mulher se levantando, também segurando uma pedra, que tirou do ladrilho do chão. Uma outra mulher, meio curvada, anda em direção ao portão da fábrica, segurando sua criança pela mão. Em segundo plano, outros homens retiram pedras do chão, e um grupo brada furiosamente contra o portão de ferro. Os ornamentos do muro e do portão contrastam com a simplicidade dos trabalhadores revoltados, que utilizam vestimentas simples e chinelos, por vezes sem calçado sequer. Essa revolta não é apresentada como algo romântico, esperançoso, mas sim violento. É uma resposta agressiva para uma realidade desumana dos operários explorados. Todavia, o portão e o muro são muito maiores do que o grupo de revoltados, mostrando-se intransponíveis. Assim, a artista apresenta uma visão pessimista, apontando que a revolta vai falhar.

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11 Artista: Käthe Kollwitz Título: Tempestade (Sturm) Técnica: gravura em metal Dimensões físicas: 24,6 x 30,5 cm Data de criação: 1897

O Expressionismo

Na obra seminal Arte moderna, Giulio Carlo Argan define o Expressionismo em oposição ao Impressionismo, movimento estilístico anterior a esse que também teve muita força na Europa.

A impressão é um movimento do exterior para o interior: é a realidade (objeto) que se imprime na consciência do sujeito. A expressão é um movimento inverso, do interior para o exterior: é o sujeito que por si imprime o objeto. [...] O Expressionismo se põe como antítese do Impressionismo, mas o pressupõe: ambos são movimentos realistas, que exigem a dedicação total do artista à questão da realidade, mesmo que o primeiro resolva no plano do conhecimento e o segundo no plano da ação. [...] Somente a primeira (tendência expressionista [arte engajada]) coloca o problema da relação concreta com a sociedade e, portanto, da comunicação; a segunda (a tendência simbolista [arte de evasão]) o exclui, coloca-se como hermética ou subordina a comunicação ao conhecimento de um código (justamente o símbolo) pertencente a poucos iniciados (ARGAN, 1970, p. 227, grifo meu)

É relevante destacar dois pontos dessa definição. O primeiro é a preocupação em falar sobre a realidade, sobre questões que assolam a sociedade, de maneira que o incômodo seja comunicado de alguma forma ao espectador. Assim, as obras são sempre figurativas e engajadas politicamente, buscando romper paradigmas sociais. O segundo ponto relevante é a im-

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portância da subjetividade para os artistas expressionistas. As obras não são nem devem ser totalmente fiéis à realidade, pois expressam a subjetividade humana, a forma como o indivíduo encara, recebe, entende a realidade. As figuras representadas são distorcidas, atribuindo-se mais ou menos peso às características consideradas relevantes para que o artista comunique o que deseja.

O Expressionismo teve duas correntes principais: a dos fauves (feras), predominante na França, e a Die Brücke (a ponte), predominante na Alemanha.

Die Brücke propõe a união dos “elementos revolucionários e em efervescência” para constituir uma frente comum contra o ‘Impressionismo’. [...] O Expressionismo alemão pretende ser precisamente uma pesquisa sobre a gênese do ato artístico: no artista que o executa e, por conseguinte, na sociedade a que ele se dirige (ARGAN, 1970, p. 237).

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Um exemplo de obra expressionista é a tela Mãe morta I, de Egon Schiele. A cena é representada em apenas um plano, em que uma mulher deita sua cabeça e abraça um objeto circular escuro, com uma criança dentro. O aspecto cadavérico da mãe e a larga utilização do preto revelam a temática fúnebre da tela, interpretando-se que estejam retratados a mãe e seu bebê, ambos mortos. Sabe-se que Schiele perdeu sua esposa durante o parto, e seu filho nasceu morto, uma tragédia que o levou a realizar essa obra. O bebê retratado tem olhos azuis, assim como o artista: através da cena da morte de pessoas queridas, é retratada sua própria morte. Todavia, mesmo narrando uma história pessoal, o pintor trata de uma tragédia humana, da dor da perda. A distorção das figuras, tanto da mão quanto do bebê, enfatizam o tom dramático da obra, tornando-a quase desagradável aos olhos.

Como visto anteriormente, a dramaticidade e tragicidade das cenas, assim como a temática de morte também estão muito presentes nas obras de Kollwitz. Apesar de nunca ter se ligado diretamente às produções expressionistas, é inegável a contribuição destas para sua obra.

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Artista: Egon Schiele Título: Mãe Morta I Técnica: óleo sobre madeira Dimensões físicas: 257 x 320 cm Data de criação: 1910

Xilogravuras

As técnicas utilizadas por Kollwitz são a água-forte, a litografia e a xilogravura e algumas incursões pela escultura. Quaisquer delas apresentam as características da clareza, dos traços simples, sem rebuscamentos. Isso respondia a seus anseios de tornar a arte popular, acessível àqueles que dela não poderiam fruir em outros espaços, como os museus” (FURTADO, 2008, p. 3) Por volta de 1920, a artista inicia sua produção de gravuras em madeira (xilogravuras). Esta técnica teve grande importância para muitos artistas expressionistas. “A técnica da xilogravura é arcaica, artesanal, popular, profundamente arraigada na tradição ilustrativa alemã. Mais do que uma técnica no sentido moderno da palavra, é um modo habitual de expressar e comunicar por meio da imagem” (ARGAN, 1970, p. 238). Outra característica importante é a reprodutibilidade possibilitada por essa técnica. A tiragem múltipla de uma obra permite com que mais pessoas tenham acesso a ela, não só pelo simples fato de haverem mais unidades circulando, mas também por torná-la economicamente mais acessível (em comparação a uma tela à óleo, por exemplo). Além disso, o contraste e nitidez dos traços na xilogravura podem ser de grande contribuição para a construção de tom dramático para a obra, buscado pelos artistas expressionistas e por Käthe Kollwitz.

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A obra Em memória de Karl Liebknecht (In Memoriam Karl Liebknecht) inaugura sua incursão sobre a técnica. Liebknecht havia sido membro importante do Partido Comunista, e foi morto em Berlim no levante de janeiro de 1919. Sua família encomendou com Kollwitz uma obra que o retratasse em seu leito de morte, para honrar sua vida e sua história de militância. No primeiro plano, Liebknecht encontra-se deitado em um caixão, sendo vista apenas sua cabeça. Alguns homens se debruçam sobre o corpo, carregando uma expressão de tristeza em suas faces. Ao fundo, se vê outras pessoas com expressões parecidas, que, pela simplicidade das vestimentas, interpretam-se que sejam operários. Para além do luto pela morte em si, sentem a dor da perda de um companheiro de luta. O preto predomina sobre a gravura, em um tom homogêneo e chapado.

As linhas de são duras, bem definidas, dando mais dramaticidade aos semblantes retratados. Esses dois elementos estéticos e poéticos estão diretamente ligados à técnica utilizada pela artista (xilogravura), que possibilitou o alcance desse resultado. Nota-se também que, nesta obra de Kollwitz, as figuras foram muito mais distorcidas do que nas litogravuras apresentadas anteriormente. A desproporção dos rostos e mão humanas, grandes em relação ao resto do corpo, permitem o melhor detalhamento desses elementos, que ganham traços fortes e dramáticos.

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19 Artista: Käthe Kollwitz Título: Em memória de Karl Liebknecht (In Memoriam Karl Liebknecht) Técnica: xilografia Dimensões físicas: 34,9 x 49,9 cm Data de criação: 1920

Entre 1922 e 1923, Kollwitz desenvolveu a série de xilogravuras Guerra (Krieg). Sua motivação central foi a Primeira Guerra Mundial, e os impactos que esta trouxe tanto para sua vida pessoal quanto para a sociedade alemã. A primeira folha é O sacrifício (Das Opfer), gravura que apresenta figuras apenas no primeiro plano. Uma mulher nua carrega seu bebê nos braços, talvez tenha acabado de parir-lo. Seu gesto indica que está prestes a entregá-lo para alguém, que vem de cima. Kollwitz retrata sua situação e a de tantas outras mães, que tiveram de oferecer seus filhos ao Estado para que fossem à guerra, em um sacrifício compulsório.

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21 Artista: Käthe Kollwitz Título: O sacrifício (Das Opfer) Técnica: xilografia Dimensões físicas: 47,6 x 65,3 cm Data de criação: 1922

Os voluntários (Die Freiwilligen), segunda folha da série, também contém figuras apenas no primeiro plano, que estão sobre fundo preto com traços brancos em arco. Retrata jovens seguindo a Morte, que os guia tocando um tambor em direção à guerra. Peter Kollwitz, filho de Käthe, é um deles, e tem seu pescoço enlaçado pelos braços da Morte. Os jovens parecem carregar um olhar convicto, indo cumprir seu dever sem perceber que caminham para seu fim. Fica muito clara a postura da artista em relação à guerra: não leva a nada além de mortes e destruição.

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23 Artista: Käthe Kollwitz Título: O sacrifício (Das Opfer) Técnica: xilografia Dimensões físicas: 47,6 x 65,3 cm Data de criação: 1922

Em A Viúva I (Die Witwe I), folha quatro da série, há apenas uma figura em um fundo branco com alguns traços pretos finos. É uma mulher grávida, que carrega um semblante de sofrimento. Abraça a si mesma e a sua barriga, como se tentasse amparar-se da solidão de não ter mais seu marido, que morreu na guerra. Para além do luto, Kollwitz se preocupa em relatar o sofrimento particular das mulheres em meio à guerra. Evidencia-se a situação extremamente solitária em que precisam enfrentar a perda de uma pessoa querida, e talvez de seu único companheiro.

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Artista: Käthe Kollwitz Título: O sacrifício (Das Opfer) Técnica: xilografia Dimensões físicas: 47,6 x 65,3 cm Data de criação: 1922

A última obra da série que optou-se por analisar é As Mães (Die Mütter), outra gravura que possui apenas figuras em primeiro plano e um fundo branco. Mulheres se abraçam, em um ato de solidariedade. Tentam, simultaneamente, amparar-se das dores da guerra e proteger seus filhos, que aparecem olhando para fora entre os braços e saias das mulheres, como se quisessem fugir. Assim, Kollwitz retrata a angústia vivida por ela e tantas outras mães: o medo de perder os filhos. No entanto, essa obra traz uma visão um pouco mais acalentadora que as demais. Sendo a dor coletiva, lidar com ela junta as demais que a compartilham pode ser uma forma efetiva de aparar esse sofrimento.

Observa-se algumas características comuns a todas essas obras, para além da temática motivadora (a guerra). Assim, como a obra Em memória de Karl Liebknecht, exploram as potencialidades da xilogravura para intensificar a dramaticidade das cenas. apresentam traços fortes, duros e bem marcados. Em todas há áreas significativas ocupadas pelo preto chapado, reforçando o luto trazido de alguma forma nelas. No entanto, outro elemento, que não havia aparecido na outra xilogravura, se destaca nessa série: a presença da figura feminina. Kollwitz tira a mulher do lugar de passiva, submissa, adereço, e a coloca como protagonista da narrativa.

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27 Artista: Käthe Kollwitz Título: As Mães (Die Mütter) Técnica: xilografia Dimensões físicas: 47,2 x 66,4 cm Data de criação: 1921/1922

Produção tardia

No fim da década de 1920, Kollwitz decide retomar o tema da morte com força em seus trabalhos. Assim, entre 1934 e 1937 (uma década antes de seu falecimento), a artista desenvolve a série Morte (Tod), porém dessa vez utilizando a litografia. Todas as gravuras são compostas por figuras em um fundo branco ou preenchido de preto, mas sem traços elaborados. Diferentemente da série Guerra, em que o falecimento estava diretamente ligada ao conflito bélico, na série Morte as interpretações sobre os motivos da chegada da morte tornam-se mais abertas e subjetivas. Comparada à xilogravura, a litogravura permite uma maior exploração da indefinição das figuras, dando mais abertura para interpretações subjetivas. Assim, compreende-se a opção da artista pela litogravura para essa nova poética.

Na obra Morte agarra uma mulher (Tod packt eine Frau), folha quatro da série, uma figura, que esconde o rosto, agarra uma mulher por trás. O caráter esquelético do ente aponta que seja a morte, e a mulher parece extremamente assustada. Há um certo aspecto sensual na forma como a morte segura seu corpo, como se a violência que infere sobre aquele corpo não fosse apenas fatal, mas também sexual. Aqui, Kollwitz retrata a chegada repentina, inesperada, da morte, porém não se sabe ao certo o porquê daquela vida estar sendo retirada.

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Artista: Käthe Kollwitz Título: Morte agarra uma mulher (Tod packt eine Frau) Técnica: litografia Dimensões físicas: 64,1 x 53,1 cm Data de criação: 1934

Em Morte é reconhecida como amiga (Tod wird als Freund erkannt), um homem (visto de frente) olha para uma figura encapuzada (vista de costas), que entende-se como sendo a morte. Sorri e a abraça carinhosamente pelo pescoço, como se não a reconhecesse como uma ameaça. É possível interpretar a imagem de duas formas: é um retrato da ingenuidade do ser humano, que não consegue enxergar quando está em uma situação de perigo de vida, ou é uma visão mais niilista da morte, que não seria uma opção tão ruim em meio à conjuntura catastrófica. De qualquer forma, enquanto na outra litografia a morte é retratada como algo violento, nesta é algo tranquilo, quase carinhoso com o ser humano. É possível afirmar que, ao longo dos anos, a artista buscou ampliar a temática de suas obras. “Se no início ela fala em termos de operários, deixando muito claro que é esta classe que está sofrendo, mais tarde ela é capaz de elevar o sofrimento para um conteúdo da própria condição humana” (OSTROWER, 1988, p. 8). Não abandona, portanto, a narrativa da realidade humana, mas procura fazê-lo de maneira que não se restrinja a determinados grupos sociais.

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Artista: Käthe Kollwitz Título: Morte é reconhecida como amiga (Tod wird als Freund erkannt) Técnica: litografia Dimensões físicas: 31,5 x 32,8 cm Data de criação: 1934/1935

Influência no Brasil

Como dito na introdução, o trabalho de Käthe Kollwitz influenciou diversos gravuristas brasileiros. Suas obras circularam em veículos da imprensa comunista do país, como os jornais A Classe Operária, Voz Operária, Tribuna Popular, Imprensa Popular, Momento Feminino e a revista Fundamentos. Além disso, algumas delas foram trazidas por imigrantes europeus, sendo exibidas em diversas exposições pelo Brasil. Foi através de uma delas que Lívio Abramo (1903-1992), filho de imigrantes nascido em Araraquara/SP, entrou em contato com as gravuras da artista. Estas, somadas ao envolvimento do jovem Abramo com a luta comunista no Brasil, levaram-o a realizar gravuras que traziam, simultaneamente, a tragédia social e humana. “Desenvolveu um espírito internacionalista e uma ‘atitude inconformada ante os fatos sociais que o induziram à luta sindical e à atividade política’ (Abramo, 1976: 34)” (SALVATORI, 2013, p. 267). O artista teve também influência de outros artistas alemães contemporâneos a Kollwitz, em especial os expressionistas. Para Lívio o expressionismo, mais que um estilo, é um modo de sentir próprio dos momentos de profunda crise. A angústia humana é revelada em todos os momentos da história da arte, e teve sempre ‘a mesma forma de manifestação sensível: a expressão forte e dramática dos sentimentos humanos’ (Abramo, 1983: 8) (SALVATORI, 2013, p. 269)

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Capa da revista Fundamentos de abril de 1949, ilustrada por Käthe Kollwitz.

Fonte: Biblioteca Nacional Digital.

Uma obra em que se evidenciam as influências expressionistas e de Kollwitz é a xilogravura Guerra-Medo. Em primeiro plano, duas pessoas se abraçam, olhando para a esquerda com o semblante aterrorizado. Parecem ser um pai e seu filho, mas isso não fica muito claro. Ao fundo, alguns traços finos brancos desenham o que aparentam serem prédios. Mais perto das bordas da gravura concentram-se traços claros mais grossos, que lembram imagens de explosões e fogo. Como aponta o próprio título, a obra retrata o pavor dos civis com a guerra, que pela data pode ser a Guerra Civil Espanhola, sobre a qual se ouvia relatos de outros militantes comunistas. “Suas primeiras séries de gravuras têm como inspiração a luta contra o fascismo, greves, brigadas internacionais. Estes acontecimentos se revestiam de formas e símbolos (SALVATORI, 2013, p. 268)”. Nota-se algumas características comuns à xilogravura de Abramo e as de Kollwitz. Ambas apresentam traços duros, bem marcados. O preto também é bastante presente, mas na de Abramo é menos homogêneo do que nas de Kollwitz. Não é possível saber se essa foi uma escolha do artista ou simplesmente uma falta de melhor domínio sobre a técnica utilizada. A temática de guerra, retratada em uma cena dramática, também é compartilhada pelos dois. Todavia, há uma diferença marcante: em Kollwitz, as figuras femininas protagonizam a maioria das cenas, enquanto que para Guerra-Medo não é possível fazer essa afirmação.

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35 Artista: Lívio Abramo Título: Guerra-Medo Técnica: xilografia Dimensões físicas: 47,9 x 45,0 cm Data de criação: 1937

Renina Katz, importante gravurista carioca, teve como referência ambos os artistas. “Katz destacou a importância da artista alemã, dizendo que ‘era uma gravadora fantástica na xilo, no metal e na litografia também. Essa escolha de técnica tem muito a ver com isso, com o projeto artístico e claro com o estético’ (KATZ apud ABRAMO, 2003, p.3)” (TORRES, 2011, p. 6). Nasceu em 1925 no Rio de Janeiro, de pai e mãe imigrantes. Cursou a Escola Nacional de Belas Artes, tendo tido como um de seus professores Axl Leskoschek, um xilógrafo renomado. Ao longo de sua trajetória artística, seus trabalhos foram ficando cada vez mais abstratos. Todavia, os primeiros tinham forte caráter figurativo, e sobretudo social. Entre 1948 e 1956, motivada pela grande migração vinda das regiões Norte e Nordeste para o Sudeste, produziu a série Retirantes de xilogravuras. A partir de observações da estação Central de Brasil, realizou a obra homônima à série (Retirantes). Em primeiro plano, próximo à lateral inferior, caixas e sacos estão dispostos pelo chão. Ao centro, um homem realiza um movimento para levantar um saco do chão, e outro anda em direção à saída da estação, ao fundo da imagem. À esquerda, uma mulher está sentada no chão, com uma postura curvada, e um homem organiza uma pilha de sacos. Em segundo plano, outros homens, também de costas, carregam sacos, andando em direção à saída. é desta que irradia a luz que ilumina toda

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Artista: Axl Leskoschek Título: O mendigo invejoso [ilustração para o poema ‘Odisséia’ de Homero] Técnica: xilografia Data de criação: 1946

a cena, havendo um grande contraste entre a luminosidade do centro e a penumbra das laterais.

Os chapéus, as roupas simples e as trouxas sobre as cabeç as deixam claro que se trata de um retrato da classe trabalhadora, que caminha em busca de um futuro mais próspero. Todavia, mesmo com a utilização de linhas fortes e grande presença do preto, não há dramaticidade na cena, tão explorada por Kollwitz e Abramo. Em uma entrevista com Radhá Abramo, Katz fala sobre essa fase de seu trabalho, e a opção por não explorar temáticas trágicas. “Eu estava na minha juventude militante e aquilo foi de extraordinária importância para mim. É muito interessante, porque hoje, ao analisar aquelas gravuras, vejo que elas não são expressionistas. Certamente porque não têm a contundência típica do expressionismo” (KATZ, 2003, p. 291).

Nota-se assim que Käthe Kollwitz influenciou esses gravuristas brasileiros não somente por tratar de temáticas sociais, mas principalmente pela maneira particular com que o fazia. Em Abramo e Katz, assim como em Kollwitz, o retrato da classe trabalhadora incita a consciência, mas também outros sentimentos que dizem respeito não só à luta de classes, mas à vida humana.

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39 Artista: Renina Katz Título: Retirantes Técnica: xilografia Dimensões físicas: 23,0 cm x 29,0 cm Data de criação: 1948/1956

Conclusões

Sua atitude frente às massas populares é mais do que uma orientação estética. É um imperativo social ao qual ela não consegue escapar, um sistema de vida. Já é uma atitude política. Tudo isso é contido dentro desse trato permanente de fidelidade de classe. Todas as escolas desapareceram; a estética revolucionária seguiu uma atrás da outra. O Naturalismo cumpriu sua função e desapareceu. A onda romântica do Expressionismo se alastrou pelo país, inaugurando a literatura de apelos e manifestos socializada através da guerra. Depois, a tempestade se recolheu silenciosamente, e os indivíduos voltaram para seus lugares. Todos os “ismos” da estética moderna vão e vêm contemporânea e sucessivamente, do Futurismo e do Cubismo ao Dadaísmo e, o mais recente, Neorrealismo. Ainda sim, Käthe Kollwitz continua seu curso, inalterado e inalterável (PEDROSA, 1933, in FERREIRA; HERKENHOFF, 2015, p. 238, tradução minha)

Em 1933, Mário Pedrosa, importante crítico brasileio de arte e arquitetura, publicou o artigo As tendências sociais da arte e Käethe Kollwitz. Nesse, realiza uma série de elogios à artista, em especial ao teor social de sua obra. Extremamente engajado com a luta comunista, para o crítico era essencial que a arte exercesse um papel político explícito, o que de fato Kollwitz fez em boa parte de sua trajetória artística. No entanto, seus trabalhos não se restringem ao mero retrato da classe tra-

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balhadora, ponto levantado nas análises das obras e defendido por muitos autores contemporâneos. “[Käthe Kollwitz] Extrapola a poética do realismo social, movimento estilístico desenvolvido na União Soviética e que ganhou força durante o regime stalinista. Acreditava-se que a arte deveria ser “orientada socialmente, nacionalista e objetiva [...]” (GOLDMAN, 1978, apud MOTTER, 2013, p. 33).

A contestação da artista ao modelo político que dilacera o humano, sobretudo no cotidiano da fábrica, explicita o potencial narrativo de sua obra que denuncia o Estado e sua indiferença para com o proletário que fica reduzido a um nada, um sem lugar. A ausência de elementos da natureza, o vazio de detalhes no espaço povoado pela dor e o sofrimento, retrata uma ausência plena de sentido, uma ausência que quer significar nos traços fortes, no contraste do claro-escuro, nas linhas secas das litogravuras” (FURTADO, 2008, p. 9).

Assim, a obra de Kollwitz ultrapassa os movimentos estilísticos que a influenciaram. Do Naturalismo, mantém sua preocupação com retratar a realidade, porém não se prende a representações literais. Adiciona dramaticidade e subjetividade aos seus quadros como forma de comover o espectador, que desenvolve algum tipo de identificação ou empatia com os indivíduos retratados.

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Partidária de uma arte dinâmica, suas imagens trazem a marca da humanidade que carrega as dores do mundo. Seu caráter particular - retratos de situações reais - assume a dimensão universal pela identificação com seu propósito perscrutante, que a aproxima cada vez mais de seus espectadores” (FURTADO, 2008, p. 4).

Essa dramaticidade é uma das heranças do Romantismo e, sobretudo, do Expressionismo. Explorou a subjetividade humana através de cenas grotescas, trágicas e dramáticas. No entanto, a obra de Kollwitz ultrapassa o período expressionista, pois sua preocupação com as causas sociais e as dores humanas transpassam toda a sua trajetória. Através de imagens extremamente sensíveis e tocantes, busca despertar a consciência do espectador sobre as injustiças de uma uma realidade extremamente violenta, a qual ele já estava acostumado.

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Artista: Käthe Kollwitz Título: Duas mulheres conversando com duas crianças (Zwei schwatzende Frauen mit zwei Kindern) Técnica: litografia Dimensões físicas: 50,1 x 35,8 cm Data de criação: 1930

Bibliografia

SALVATORI, Maristela. Lívio Abramo: anotações sobre vida e obra. Revista: Estúdio, v. 4, n. 7, p. 267-271, 2013.

TORRES, Juliana Dela. A gravura como recurso visual na imprensa comunista brasileira (1945/1957). Anais do III Encontro Nacional de Estudos da Imagem, v. 3, p. 1627, 2006.

FURTADO, Rita Márcia Magalhães. A arte como recorte do real: a condição humana em Käthe Kollwitz. Visualidades, v. 6, n. 1 e 2, 2008.

ABRAMO, Radhá. Renina Katz e sua arte. Estudos Avançados, v. 17, n. 49, p. 287-302, 2003.

FERREIRA, Glória; HERKENHOFF, Paulo; PEDROSA, Mário. Mário Pedrosa: Primary Documents. Museum of Modern Art, 2015.

OSTROWER, Fayga. Käthe Kollwitz: uma vida e obra, 1988. Disponível em https://faygaostrower.org.br/images/files/kathe-kollwitz-uma-vida-e-obra.pdf. Acesso em 12 Fev. 2021.

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