Hércules: A saga do maior herói da humanidade

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HÉ RC UL

A saga do maior heroi da humanidade



É a Héracles, filho de Zeus, que vou cantar, ele que é de longe o maior dentre os que habitam a terra. Aquele a quem Alcmena, na Tebas de belos coros, deu a luz, após unir-se ao Crônida de sombrias nuvens. Errou e sofreu, primeiro, sobre a terra e no mar imensos; em seguida triunfou, graças à sua bravura, e, sozinho, executou tarefas audaciosas e inimitáveis. Agora, habita feliz a bela mansão do Olimpo nevoso e tem por esposa a Hebe de lindos tornozelos.

Hino de Homero a Herácles


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Chagas, Filipe, 1978Hércules: A saga do maior herói da humanidade / Filipe Chagas. - Rio de Janeiro, 2016. (Hercules: The saga of the greatest hero of humanity). [2016]

Aproveito para registrar meu agradecimento a algumas pessoas: meus pais, que me introduziram desde cedo aos universos mitológicos; a minha irmã que, além de sempre me acompanhar, teve o meu sobrinho que me inspira cada vez mais; a Renato Kress, por sua sabedoria e interminável biblioteca mitológica; e, é claro... EAVM.

S M R


SU MÁ RIO

Apresentação...................................................................................7 I. Em nome da glória......................................................................9 II. Genealogia divina.....................................................................10 III. Implacável perseguição..........................................................12 IV. Atitudes e consequências.........................................................15 V. Muito mais do que doze............................................................18 1. O Leão da Nemeia................................................................20 2. A Hidra de Lerna..................................................................23 3. A Corça da Cerineia..............................................................26 4. O Javali do Erimanto............................................................28 5. As cavalriças de Augias.........................................................30 6. As Aves do Lago Estínfale....................................................32 7. O Touro de Creta..................................................................34 8. As Éguas de Diomedes..........................................................36 9. O Cinturão de Hipólita.........................................................39 10. Os Bois de Gerião................................................................42 11. Os Pomos das Hespérides....................................................47

Hespérides........................................................................48

12. Cérbero...............................................................................52

VI. Vingador expedicionário.........................................................56

Gigantomaquia.................................................................61

VII. Uma nova escravidão.............................................................64 VIII. O fim trágico e a ascensão divina.........................................67 IX. Os Heráclidas.........................................................................71 X. Referência e associações mitológicas.........................................73 XI. Outas mídias...........................................................................75 XI. Arte hercúlea..........................................................................81 Lista de Imagens e Referências Bibliográficas e Virtuais...............85


6 O que você vê nesta página são os desenhos do meu afilhado de quatro anos que só aumentaram minha vontade de fazer tudo isso: (1) O Leão da Nemeia; (2) A Hidra de Lerna; (3) A Corça da Cerineia; (4) O Javali do Erimanto; (5) As Cavalariças de Augias; (6) As Aves do Estínfale; (7) O Touro de Creta; (8) As Éguas de Diomedes; (9) O Cinturão de Hipólita; (10) Os Bois de Gerião; (11) Os Pomos das Hespérides; e (12) Cérbero.

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A E N Ç


APR ESE NTA ÇÃO

Homero escreveu em oito versos o que prometi por 5 anos, desde que comecei o blog MITO+GRAPHOS: contar toda a história de Hércules, o grande herói grego. Inspirado pelo interesse do meu sobrinho de quatro anos (veja ao lado), atravessei a falta de tempo e me concentrei em fazê-lo. Foram meses de pesquisa para chegar a um resultado satisfatório. Do nascimento à morte, passando pelas serpentes do berço, pelos Doze Trabalho (é claro)... e olha... é extremamente difícil encontrar uma ordem racional e cronológica coerente nesta saga épica que evoluiu ininterruptamente, da época pré-helênica à antiguidade grecoromana. Creio que ainda encontrarei muita coisa interessante e farei as devidas atualizações (tanto no blog quanto neste documento) caso isso aconteça. No blog, as postagens entravam toda segunda-feira à meia-noite, começando em 30 de agosto de 2015 e terminando em 8 de fevereiro de 2016. Por fim, resolvi diagramar esta publicação virtual para que toda a informação estivesse disponível em um único lugar. Espero que todos curtam e se aventurem como eu.

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I Em nome da glória Hércules é o nome em latim dado pelos antigos romanos ao herói da mitologia grega Héracles, o mais célebre de todos os heróis. Pode ser uma modificação do nome do herói etrusco Hercle. Um juramento invocando Hércules (Hercle! ou Mehercle!) era uma interjeição comum no latim clássico. Héracles - que significa “em glória à deusa Hera” ou “aquele que serve gloriosamente” - foi o nome que ele usou para apaziguar a fúria da deusa, mas só foi efetivamente considerado após o término dos famosos trabalhos. No entanto, o nome real do famoso herói é Alcides, em homenagem a seu avô Alceu, pai de Anfitrião e filho de Perseu. Em grego, alké significa vigor, e alkéides, força em ação. Era um símbolo do homem em luta contra as forças da Natureza, exemplo de masculinidade e ancestral de diversos clãs reais (os Heráclidas). Tornou-se renomado por deixar o mundo mais seguro, um paladino da ordem olímpica contra os perigosos monstros ctônicos. Em obras de arte greco-arcaicas, romanas, renascentistas e pós-renascentistas, Hércules pode ser identificado por seus atributos, como a barba, a pele de leão e a clava. Em alguns mosaicos, era mostrado com a pele bronzeada, quase negra, um aspecto considerado viril. Foram encontradas representações imberbes do herói feitas no século IV, quando sua popularidade foi reduzida e seu lado humano mais explorado.


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II Genealogia Divina Antigas histórias colocam Zeus e Io como pais de Hércules, mas, na versão clássica, ele é filho do deus com a princesa mortal Alcmena (Alcmene), filha de Electrião (Eléctrion), rei de Micenas, que por sua vez era filho de Perseu e Andrômeda. Alcmena era alta e imponente, por muitos considerada a mais sábia e formosa mulher de Micenas. Suas trancas grossas e sedosas emolduravam um rosto encantador e seus longos cílios escuros adornavam olhos grandes e expressivos. Electrião teve seu poder ameaçado por assaltantes da Táfia (os teléboas, homens com voz de trovão) que roubaram o gado e lhe mataram seus nove filhos homens. Seu sobrinho Anfitrião, general de Tirinto, encontrou o gado a salvo nos campos do rei da Élida e o comprou. Quando Electrião soube que ele teve que pagar para voltar a ter seus animais, ficou furioso com o sobrinho. Anfitrião atirou sua clava em um touro com tanta força que ela ricocheteou e acertou Electrião, matando-o. Banido do reino, levou sua amada prima Alcmena para se casar em Tebas, onde foi purificado pelo Rei Creonte. A jovem aceitou o pedido com a condição de que o noivo deveria primeiro vingar seus irmãos mortos. Creonte aceitou ajudar Anfitrião se ele libertasse Tebas da Raposa de Têumesso, um animal sanguinário que, para conter sua selvageria, recebia mensalmente dos tebanos uma criança do sexo masculino para devorar. Como a raposa era protegida de Poseidon e jamais poderia ser pega, Anfitrião pediu para Céfalo, rei de Atenas, emprestarlhe Lélape, o cão de Zeus que jamais perdia uma presa. Na disputa entre o animal que não pode ser pego e o animal que não perde sua presa, Zeus decidiu transformá-los em pedra e ascendê-los às constelações de Cão Maior e Cão Menor. Anfitrião teve, então, seu exército para se vingar dos teléboas. Foi justamente quando Anfitrião se encontrava ausente, no cumprimento da tarefa imposta pela noiva, que Zeus pôs em marcha seu plano para seduzir Alcmena (que, em grego, significa “assediada por dois”) e dar ao


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mundo um herói como jamais houvera, aquele que uniria os Estados Helênicos. Metamorfoseado como Anfitrião, Zeus apresentou-se à jovem contando-lhe detalhes da batalha empreendida, dos golpes certeiros e apresentando como prova definitiva de sua identidade a taça de ouro utilizada pelo monarca derrotado, a qual inclusive ofertou à amada. Durante três dias consecutivos, Helios não percorreu o céu com o carro do sol, e durante essa longa noite - na qual a deusa da lua Selene permaneceu em atividade -, o deus dos deuses amou ardentemente Alcmena. Nesse período, Hermes pediu para Hipnos colocar o mundo todo para dormir e, assim, não suspeitar da longa noite. Depois, metamorfoseado em Sósia, um escravo de Anfitrião, Hermes guardou o portão. Ao retornar, Anfitrião estranhou a reação da noiva, que o tratou com relativa indiferença, visto que esta acreditava já tê-lo encontrado nas noites anteriores. Anfitrião consultou o adivinho Tirésias que lhe revelou o ocorrido1. Irado, colocou Alcmena numa enorme pira e ateou fogo, mas foi detido por uma chuva torrencial enviada por Zeus para apagar as chamas. Compreendendo o sinal divino, Anfitrião reconsiderou e casou-se com Alcmena. Essa compreensão acabou por transformar Anfitrião numa personificação do bom acolhimento. De marido traído e pai não-reconhecido, o rei se tornou aquele capaz de suportar as dificuldades das missões divinas impostas.

1. Em inglês, padrinho é godfather. Esse termo pode ter vindo desse mito, uma vez que a primeira noite de núpcias competiu ao deus e, portanto, o primogênito não pertence ao pai biológico.


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III Implacável Perseguição Por ser deusa do casamento, Hera não podia ser condescendente com as traições de seu marido. Sendo assim, seu ciúme resultava em constates maus tratos às amantes e bastardos de Zeus. Quando o deus declarou que o primeiro filho nascido dentre os Perseidas (descendentes de Perseu) se tornaria o rei que dominaria os irmãos2, Hera antecipou em dois meses o nascimento de Euristeu - filho do perseida Estênelo com Nicipe - que veio a se tornar Rei de Micenas, Mideia e Tirinto. Além disso, a deusa enviou sua filha Ilítia3 como parteira para dificultar o parto e aumentar as dores de Alcmena e pediu às Parcas para retardarem o nascimento do filho de Zeus (elas se sentaram na porta da jovem de braços e pernas cruzadas). Somente após uma jovem tebana chamada Galintia enganar as Parcas e Ilítia dizendo que o bebê nascera, que Alcmena, enfim, conseguiu dar à luz, após dez meses de gestação, tanto a Alcides, filho de Zeus, quanto a Íficles, filho de Anfitrião. Alcmena ficou tão assustada por estar metida no meio de uma briga entre deuses que abandonou Alcides fora de Tebas. Zeus pediu que Atena levasse Hera a encontrar o bebê e, sem reconhecê-lo, a deusa apiedou-se e o amamentou, salvando sua vida inconscientemente. Posteriormente, Atena devolveu o bebê a Alcmena, que decidiu criálo. Uma outra versão desta história conta que Zeus pediu a Hermes a para fazer Hera amamentar o bebê. O deus esperou que ela dormisse e levou Alcides ao seio divino, que começou a se amamentar como planejado, mas, depois de um tempo, sugou com tanto força que

2. Alguns registros dizem que Zeus ficou furioso com os atos de Hera. Assim que viu sua esposa conversando com Até, deusa da fatalidade e das ações impulsivas, percebeu que havia sido enganado: pegou a deusa alada pelos cabelos e a arremessou para fora do Olimpo, nunca mais podendo retornar.

3. Ilítia, deusa do parto, pode não ser filha de Hera, mas sim uma instância em particular da própria rainha dos deuses.


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acordou a deusa. Assustada, Hera empurrou Alcides: um esguicho saiu de seu seio e criou a Via Láctea, enquanto as gotas que pingaram na terra se transformaram em flores-de-lis. Alcides não bebeu o suficiente para se tornar imortal, mas ganhou força descomunal e resistência sobre-humana. Alcides teve que se defender das perseguições de Hera desde sua tenra infância. Depois do episódio da amamentação, ela o transformou em seu principal alvo. Zeus nomeou sua filha Atena protetora de seu meio-irmão semideus. Ela mandava sua coruja da sabedoria abanar o berço nas noites quentes de verão. Certo dia, a coruja foi atrás de um rato que estragara o bordado mais fino de Atena, mas não sem antes falar para Alcmena proteger as crianças. Ela colocou doze bordadeiras no quarto. Porém, assim que elas adormeceram, Hera enviou duas terríveis serpentes com escamas azuis e olhos flamejantes para envenenar a criança adormecida. No entanto, pela manhã, o choro do bebê Íficles e a gritaria das


14 criadas levou Anfitrião de espada em punho e Alcmena desesperada ao quarto dos dois, onde encontraram Alcides sentado, gargalhando e segurando as duas serpentes que ele estrangulara com as próprias mãos. Foi a prova final para Anfitrião acreditar na origem divina do filho. Inclusive, alguns estudiosos creem que foi Anfitrião que levou as serpentes aos berços para saber qual das duas crianças era o filho de Zeus. Com olhos orgulhosos e força descomunal, Hércules cresceu tão alto que confundia-se a gigantes (dizem 3 metros!). Gostava de correr sob as estrelas, aprendeu a refletir e também a lutar. Porém, seu temperamento agressivo criou inúmeras situações constrangedoras e trágicas.


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IV Atitudes e Consequências Mais do que convencido da origem divina de Alcides, Anfitrião providenciou-lhe a melhor educação da época: condução de carros de guerra (ele mesmo o ensinou), lutas, armas (por Castor), música (por Eumolpo) e canto, sendo estas duas últimas as habilidades que o rapaz não conseguia ser o melhor. Durante o ensino da escrita e da lira por Lino, filho de Apolo com a musa Urânia, Alcides matou seu professor. Conta-se que os dedos grossos do rapaz sempre arrebentavam as cordas do instrumento e, certa vez, Lino começou a praguejar e bater em Alcides. Foi o suficiente para ele arremessar a lira quebrada na cabeça do professor com uma força letal. Alcides foi levado a um tribunal, mas seus conhecimentos do política (“aquele que é atacado tem o direito de retaliar”) o livraram da punição. Após essa explosão de ira, Anfitrião decidiu enviá-lo para um treinamento com pastores e caçadores. Ensinado por Êurito, rei da Ecália, rapidamente dominou o arco e suas flechas nunca erravam o alvo. Num pastoreio, fui visitado por duas ninfas que lhe ofereceram duas escolhas de vida: uma confortável e fácil, a outra gloriosa e brutal. Ele teria decidido pela segunda opção. 4. Téspio prometera a Alcides que sua primogênita, Prócris, o esperaria na cama enquanto a caçada pelo leão durasse. Porém, o herói chegava tão fatigado que não percebia que o rei mandava uma filha diferente por noite, objetivando uma poderosa descendência. A potência sexual de Hércules tornou-se mitologicamente incomparável.

Sua primeira façanha deu-se aos 18 anos quando se dirigia a Beócia: perseguiu e matou (partindo-lhe a espinha) um enorme leão que devorava os rebanhos de Anfitrião e de Téspio. A caçada durou cinquenta dias consecutivos no Monte Citéron, durante os quais o herói foi hóspede de Téspio e se uniu a cada uma das cinquenta filhas do rei. Posteriormente, isso iria criar uma aguerrida descendência entre os Tespíadas, que se espalharam até a Sardenha.4


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Alcides, seu sobrinho Iolau e seus amigos Hilas e Poias participaram da jornada pelo velocino de ouro a bordo do navio Argo. Durante uma parada dos Argonautas em Mísia (na Ásia menor), Hilas foi atraído por náiades para as profundezas de um lago. Alcides voltava do bosque onde fora buscar madeira para refazer seu remo partido, quando tomou conhecimento do sumiço de seu amigo. Abandonou, então, a expedição para procurá-lo e o navio acabou zarpando sem ele. De volta a Tebas5, Alcides decidiu livrar a cidade do tributo de cem vacas anuais a ser pago por antigos conflitos com Ergino, rei dos Orcômenos. Ao encontrar-se com os cobradores, o jovem semideus arrancou-lhes as orelhas e os narizes, pendurou-os em torno do pescoço de cada um e os enviou de volta a Ergino, que declarou guerra contra Tebas. Durante o combate, Anfitrião foi morto, deixando Alcides furioso: matou Ergino a flechadas, desviou um rio e afogou o exército inimigo. Por fim, ele inverteu e dobrou o pagamento do tributo. O rei de Tebas, Creonte, em agradecimento, entregou sua filha Megara à aliança com o herói, que se tornou, assim, o soberano de Tebas. Com Megara, Alcides teve três filhos6: Terímaco, Creontíades e Deicoon. Anos mais tarde, Alcides detinha-se diante de uma lareira prestes a sacrificar um cordeiro em oferenda aos deuses quando Hera enviou Lýssa (a raiva) e Anóia (a demência) para exacerbar seu temperamento explosivo. Transtornado e enlouquecido, o herói acaba substituindo os cordeiros por seus filhos, lançando-os na fogueira. Lançou-se, em seguida, contra os filhos de Íficles e matou dois deles,

5. Diz-se que a caminho de Tebas, Hércules teria encontrado duas belas mulheres, Hedoné (o Prazer, ou teia sido Kakía, o Vício) e Areté (a Virtude). Hedoné tentou seduzi-lo com seus olhos gulosos, mas as palavras centradas da modesta e pudica Areté o convenceram e, a partir da quele momento, o herói seguiria uma vida sofrida porém virtuosa.

6. Segundo Apolodoro, Hércules e Megara tiveram três filhos, porém, conforme Píndaro, foram oito e outras versões dizem que foram cinco ou sete. Independente da quantidade, o gênero sempre foi masculino, numa reflexão de “homem gera homens”.


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7. Alguns dizem que Iolau era não só sobrinho, filho de Íficles, mas também o jovem amante (eromenos) de Alcides e, por essa razão, avançou sobre seus filhos. Existem versões desta história que Iolaus salva Megara da fúria de herói. Posteriormente, ele permitiu que seu sobrinho se casasse com sua mulher num rito de passagem para a vida adulta.

8. Apolo também foi aconselhado por Atena, protetora de Hércules, e, assim, foi garantido perdão e imortalidade no fim das tarefas. Esta imortalidade pode ser uma reflexão sobre a eternidade do mito e não exatamente longa vida.

9. Existem outras variantes dessa submissão de Hércules a Euristeu. Uma delas relata que o herói abandonou Tebas e pediu para retornar a Argos. Euristeu concordou com a condição que ele libertasse o Peloponeso de determinados monstros. Uma outra apresenta Hércules como amante do rei e estava somente realizando os caprichos de seu amado.

enquanto seu irmão Íficles retirava Megara, seu primogênito Iolau e todos os outros do palácio. Passado o rompante, Alcides adormeceu. Ao despertar e tomar conhecimento de seus atos, entregou Megara a Iolau7 e decidiu partir ao Oráculo de Delfos em busca de uma possível forma de purificação para um crime tão hediondo. Hera queria dar uma punição bem severa ao bastardo, então, procurou aconselhar Apolo8, deus responsável pelo oráculo. Então, a pitonisa de Delfos disse que Alcides precisaria se submeter humildemente às ordens de seu primo Euristeu9. Adorador de Hera e por ela induzido, o covarde Rei Euristeu começou a dar tarefas impossíveis e mortais para que o herói sucumbisse. Outra versão conta que a loucura de Alcides é ação de Até a mando de Hera. A deusa traiçoeira sobrevoou a cabeça do herói com um véu invisível que transformou seus filhos em dragões. Usando mesas e cadeiras, ele destruiu todo o salão e esmagou a cabeça dos dragões. Quando Até retirou o véu, Alcides chorou. Creonte o baniu de Tebas e Megara o abandonou. O rei Téspio recebeu o arrependido herói até que um mensageiro de Micenas apareceu com uma mensagem de Euristeu ordenando que Alcides passasse a servi-lo, confirmando a profecia de Zeus. Téspio aconselhou Alcides a procurar o Oráculo de Delfos para ter certeza de suas próximas ações. A resposta afirmativa aliviou o herói e, assim, aconteceram os famosos Doze Trabalhos.


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V Muito mais do que Doze Cada trabalho do herói se tornou uma aventura singular, pois aconteceram outros episódios que são até chamados de trabalhos secundários. Ao todo um vastíssimo plano, cheio de labirintos, desvios, descidas, subidas, quedas, acessos, uma viagem em meio a muitas trevas para que, ao final, um novo ser pudesse surgir. Simbolicamente, os acontecimentos representam o trânsito do Sol pelas doze constelações zodiacais, uma proposta de autotransformação, o caminho da libertação. O interessante é que inicialmente eram dez tarefas, mas Euristeu passou para doze por duas razões: o herói contou com a ajuda do seu sobrinho Iolau para derrotar a Hidra e utilizou um rio para limpar os estábulos de Augias. A pedido de Zeus, alguns deuses olimpianos ofereceram presentes10 e conselhos a Alcides: de Atena recebeu um peplo (túnica presa nos ombros); de Poseidon, cavalos velozes; de Hefesto, uma couraça de bronze para proteger seu coração; de Hermes, uma espada de bronze; de Helios, uma biga; de Apolo, um arco com flechas de bronze que, segundo as palavras do deus, o herói só dominaria o tiro a partir do nono trabalho; e do próprio Zeus, um escudo. De um bosque próximo a Argos, retirou um tronco de oliveira selvagem e fez uma clava como presente para si mesmo. Com certa impaciência ouviu conselhos, afastou os professores e renunciou ao nome Alcides, passando a se chamar Héracles, “em glória à deusa Hera”. Existem muitas variações na ordem dos trabalhos designados ao herói. Umas versões utilizam a ordem dos metopes (relevos esculpidos na arquitrave do entablemento) do Templo de Zeus, em Olímpia, enquanto outros seguem os textos antigos. Mas, independente da ordem, o conteúdo é bem semelhante. A ordem mas tradicional é:

10. Alguns dizem que Alcides agradeceu os presentes, porém, só ficou com a espada e o arco, deixando os outros guardados no bosque. Outros dizem que esses presentes foram dados por ocasião de seu casamento com Megara.


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1. Leão da Nemeia

7. Touro de Creta

2. Hidra de Lerna

8. Éguas de Diomedes

3. Corça da Cerineia

9. Cinturão de Hipólita

4. Javali do Erimanto

10. Bois de Gerião

5. Cavalariças de Augias

11. Pomo das Hespérides

6. Aves do Estínfale

12. Cérbero

Os mitógrafos helenísticos dividiram os trabalhos em duas séries de seis: os seis primeiros foram realizados na própria Grécia, mas especificamente na região do Peloponeso, e os seis últimos levaram Hércules a diversas partes do mundo, inclusive a lugares míticos, de Creta ao Hades.


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O Leão da Nemeia Euristeu decidiu (após um sonho enviado por Hera) que o primeiro trabalho do herói seria livrar a planície da Nemeia, no Peloponeso, de um enorme, selvagem e feroz leão de pele dourada e impenetrável. O animal é geralmente considerado filho dos monstros Tifão e Equidna, mas existem textos que dizem que ele é filho de Equidna com seu filho Ortros, o cão de duas cabeças. Uns ainda dizem que ele seria filho de Cérbero com a Quimera, ou até mesmo de Zeus e Selene, a deusa da noite enluarada, que o amamentou e lhe deu invulnerabilidade.


21 Hércules partiu para a Argólida com seu arco e flecha (versões do período clássico dizem que ele também carregava uma espada de bronze) em busca do covil do leão. Na cidade de Cleonae, hospedou-se na casa de Molorchus, um pobre trabalhador que perdera seu filho para o leão e ofereceu fazer um sacrifício para que o herói tivesse uma boa caçada. Mas Hércules pediu que ele esperasse 30 dias: se ele conseguisse realizar a tarefa, Molorchus deveria fazer um sacrifício a Zeus. Se ele fracassasse, o sacrifício seria feito em seu nome. No meio da floresta da Nemeia, Hércules ouviu um estrondoso rugido e, ao virar na direção do som, se deparou com a criatura partindo para cima dele. Tirou, então, seu arco e disparou uma flecha que rebateu no corpo do leão. Disparou outra flecha e nada: o herói não sabia da pele impenetrável da criatura. O leão saltou sobre Hércules, mas o herói usou sua clava de oliveira para atordoá-lo com um único golpe. Percebendo que nenhuma arma poderia matar o monstro, o herói envolveu seus grandes braços ao redor do pescoço do leão e, com uma força incrível, o estrangulou até a morte (daí o nome “mata-leão” para o golpe de estrangulamento em lutas marciais). Al-


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gumas lendas, colocam esse combate dentro da caverna do leão, que tinha duas entradas, mas uma teria sido bloqueada com pedras por Hércules para encurralar a criatura. No fim da luta, Hércules usou as garras do animal para esfolá-lo e vestir sua pele dourada invulnerável como armadura. Desde então carregou o epíteto de Leontothýmon, “o coração de leão”. O dramaturgo Eurípedes escreveu que a pele do leão “veio do bosque de Zeus, santuário na Nemeia”. Alguns escritores discordam disto e dizem que a pele usada por Hércules era do leão que matara aos 18 anos na Beócia. Hércules levou os restos do leão até a casa de Molorchus e ambos fizeram o sacrifício do cadáver a Zeus, que ascendeu o animal às estrelas, tornando-se a Constelação (e signo) de Leão. Ao ver Hércules entrar em Micenas com a pele do leão no corpo, o amendrontado Euristeu proibiu-o de entrar em seu palácio e passou a se comunicar com o herói a partir de um arauto (Copreu, filho de Pelops). Nemeia (hoje chamada de Heracléia) estabeleceu os Jogos Nemeus em homenagem a Zeus e Hércules. Semelhante aos importantes Jogos de Olímpia (resgatados pelo Barão de Coubertin como os Jogos Olímpicos), os Jogos Nemeus ocupavam o quarto lugar em importância, atrás do olimpiano, do Píticos (de Delfos, em homenagem a Apolo) e do Ístmicos (em Corinto).


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A Hidra de Lerna Filha dos monstros Equidna e Tifão (ou de Styx e do titã Palas), a Hidra vivia nos pântanos perto da antiga cidade de Lerna (também na Argólida), aterrorizando a vizinhança e se alimentando de rebanhos e moradores locais. Era um dragão com corpo canídeo, que possuía nove cabeças (uma delas praticamente imortal, pois não sofria dano de nenhuma arma) em pescoços serpentílicos, que se regeneravam logo que eram cortadas. O número nove de cabeças é o padrão geral, mas desvia de cinco até cem, porque em algumas versões ao invés da cabeça regenerar, ela se dividia em outras duas. Além disso, fala-se sobre o sangue venenoso da Hidra e o que poderia ser sua respiração sulfurosa ou um vapor letal que exalava de suas feridas.


24 Hércules viajou até Lerna em uma veloz carruagem que tinha seu fiel sobrinho Iolau como cocheiro. Quando finalmente chegaram, o herói pediu que o rapaz ficasse com os cavalos, enquanto ele atirava flechas em chamas para tirar a Hidra de seu covil. O monstro saiu e atacou imediatamente seu oponente. Com sua espada de bronze (em algumas versões, uma foice), Hércules corajosamente foi cortando as cabeças da Hidra em meio a seu bafo mortal, mas logo percebeu que novas cabeças cresciam no lugar das decapitadas. O herói pediu ajuda para Iolau, que ia cauterizando as feridas abertas com uma tocha em brasa retirada de um árvore que pegou fogo com as flechas flamejantes de Hércules. Para a cabeça invulnerável remanescente, Hércules desferiu um golpe atordoante com sua clava e arrancou a cabeça com as próprias mãos. Enterrou-a em um buraco profundo na terra e colocou uma enorme pedra em cima. Por fim, instruído por Atena, o herói banhou suas flechas no sangue da serpente para que ficassem envenenadas. Um relevo em mármore datado do século II a.C. encontrado em Lerna, mostra Hércules enfrentando a Hidra com um enorme caranguejo próximo aos seus pés. Isso ratifica a lenda que Hera teria enviado Karkinos, um enorme caranguejo, para atrapalhar as ações do herói, mas o animal


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acabou pisoteado. A deusa ascendeu seu casco às estrelas, convertendo-se na Constelação (e signo) de Câncer. Alguns estudiosos sugerem que essa adição ao mito tenha sido feita para que os trabalhos correspondessem ao zodíaco. A hidra também foi elevada às estrelas como a maior das constelações, vizinha à de Câncer. Euristeu não se impressionou com a façanha de Hércules, que levou as cabeças da Hidra como prova. Considerando a ajuda de Iolau, o rei não contabilizou esta tarefa dentro das dez previstas inicialmente. Essa tecnicalidade não impediu os escritores e artesãos de exaltarem o feito, mas outros, como Pausanias, não só o desconsideraram como reduziram a Hidra a uma grande serpente aquática. A Hidra simbolizava os vícios banais múltiplos capitaneados pela vaidade: enquanto ela não é dominada as cabeças, configuração dos vícios, renascem. Tudo que tem contato com os vícios, ou deles procede (o sangue venenoso), corrompe e se corrompe. A espada ou a foice representam a espada espiritual e a tocha, a purificação pela qual o herói precisava passar. Uma interpretação única deste trabalho diz que foi um aterramento do pântano. A hidra era, na verdade, o pântano em si e as cabeças do monstro eram os rios que o alimentavam. O bafo mortal era o cheiro de podridão do local. As “flechas envenenadas” foram mergulhadas no caldo séptico do pântano e matavam por infecção.


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A Corça da Cerineia Diz-se que a ninfa Taígete, para fugir do assédio implacável de Zeus, foi transformada pela deusa Ártemis em uma enorme corça (maior que um touro) com chifres de ouro maciço polido e pés de bronze, que corria com assombrosa rapidez e nunca se cansava. Sua velocidade era tamanha que era capaz de ultrapassar uma flecha e até mesmo conseguiu escapar da própria deusa, quando esta capturou um rebanho de cervos para puxar sua carruagem. Após essa fuga, Hera conduziu a corça para o Monte Cerineia.


27 Euristeu conferiu esse terceiro trabalho a Hércules, porque sabia que a corça era propriedade sagrada de Ártemis e Hera e isso colocaria o herói contra as deusas. Existem duas versões desta tarefa, que levou um ano para ser realizada e percorreu uma larga extensão de terra até os Hiperbóreos: 1. Hércules a perseguiu incansavelmente sem nunca alcançá-la, até que, exausta, a corça parou para beber água e foi ferida levemente por uma das flechas do herói. 2. O herói preparou uma armadilha no Templo de Ártemis com uma rede para não machucar a corça. Assim que o animal entrou no templo para descansar da perseguição, Hércules soltou a rede e o capturou. No caminho de volta a Micenas com a corça nos ombros, Hércules encontrou Apolo e uma furiosa Ártemis, que o acusou de sacrilégio e o sentenciou a morte. O herói contou aos gêmeos divinos a razão da captura e seu juramento ao rei Euristeu. A compadecida deusa curou, então, a corça e permitiu que ele levasse o animal sagrado com a condição que ela fosse libertada logo após que o rei a visse. Euristeu decidiu ficar com a corça, no momento que colocou os olhos nela, mas Hércules não podia permitir. Ele disse para o rei vir pegá-la e a soltou, porém ela correu de volta para o templo da deusa. A simbologia da corça apresenta dois aspectos de interpretação: por ser consagrada a Ártemis carregava pureza e virgindade acentuadamente, mas o bronze em seus pés poderia pervertê-la, fazendo-a apegar-se a desejos terrenos. O metal isolava o animal do mundo profano, mas, ao mesmo tempo, o aterrava, impedindo voos mais altos. Seus chifres de ouro representavam a força da alma, um vigor capaz de preservá-la de qualquer fraqueza espiritual. É como se toda a dificuldade na execução do trabalho fosse necessário para o herói usar de estratégia e delicadeza para lidar com a sensibilidade ambígua inerente ao indivíduo.


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O Javali do Erimanto Depois de matar dois monstros e trazer vivo um animal dócil como a corça, Euristeu decidiu que Hércules deveria capturar com vida o temível javali que devastava as florestas da escura montanha Erimanto, no extremo noroeste da Arcádia. Era um enorme porco selvagem, com grandes presas e um temperamento agressivo que ia destruindo tudo em seu caminho.


29 No caminho para cumprir sua tarefa, o herói encontrou boa hospitalidade na casa de seu amigo centauro Folo, que lhe ofereceu abrigo e carne cozida (centauros só comiam carne crua), no Monte Pélion, na Tessália. Durante a ceia, Hércules solicitou vinho a Folo, mas o centauro hesitou em servi-lo, pois a única garrafa estava prometida como oferenda a Dioniso. O herói conseguiu convencer o amigo e imediatamente o odor intoxicante do vinho atraiu os outros centauros das montanhas que queriam saber quem violou o sagrado presente. Armados com paus e pedras, atacaram Hércules num frenesi de raiva. O herói lançou uma saraivada de flechas contra os centauros, e os poucos que sobreviveram se acuaram e se esconderam na caverna do centauro Quíron, antigo professor de Hércules. Infelizmente, uma seta envenenada acabou atingindo o imortal Quíron, que sofreu um ferimento incurável. Folo, ao arrancar a flecha do corpo de um centauro morto, feriu-se no casco e veio rapidamente a morrer dias depois de forma agonizante por causa do veneno da Hidra contido na flecha. Hércules fez-lhe magníficos funerais, enterrando-o na montanha que passou a ter seu nome. Cheio de remorso, Hércules seguiu para rastrear o javali - o que não foi muito difícil pois o som do bufar e do bater dos cascos era audível em toda a floresta. Perseguiu o animal até encurralá-lo nos picos nevados do Monte Erimanto, onde aproveitou o terreno escorregadio para desequilibrá-lo e derrubá-lo. Com o javali desacordado, amarrou-o e o levou até o palácio de Euristeu, que, assustado ao ver o animal no ombro do herói, foi se esconder dentro de um caldeirão de bronze. O simbolismo do javali é antiquíssimo e está ligado à autoridade espiritual que desenterra do âmago seus nutrientes, assim como o animal tira raízes de árvores para se alimentar. Apoderando-se do poder espiritual, Hércules deu mais um passo em seu rito de perdão.


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As Cavalariças de Augias Vendo que a força de Hércules iria derrotar qualquer criatura, Euristeu começou a testá-lo com tarefas que exigissem outras habilidades. Para a quinta tarefa, ele ordenou que o herói limpasse os estábulos do Rei Augias, da Élida, em apenas um dia e, se falhasse, deveria ficar por lá para sempre11.

11. Alguns contadores de história gostavam de dizer que Euristeu começou a temer uma vingança mortal de Hércules. O pavor era tamanho que o rei não conseguia mais controlar seus intestinos quando sabia que o herói estava retornando de alguma das tarefas por ele impostas. E esse embaraço intestinal pode ter sido o que lhe deu a ideia para este trabalho.


31 Num primeiro momento, podia parecer um simples trabalho, mas dizia-se que o riquíssimo Augias recebeu de presente de seu pai - o deus solar Helios - mais rebanhos de gado, cavalos, cabras e ovelhas do que qualquer um em toda Grécia (outros relatos dizem que era um enorme rebanho de bois presenteados pelos deuses que jamais adoeciam: 300 touros negros de patas brancas, 200 vermelhos, 12 brancos e 1 dourado). Porém, em mais de 30 anos, nem os estábulos nem a área de pasto foram limpos. Toda noite dezenas de pastores ficavam responsáveis por organizar os milhares de animais em meio ao esterco e ao terrível odor. Hércules chegou a Élida sem citar Euristeu, garantindo que limparia os estábulos em um dia se o rei desse em troca um décimo do seu melhor rebanho. Como Augias não acreditava na possibilidade do herói concluir a tarefa, aceitou a aposta. Durante a noite, Hércules preparou sua estratégia que mesclaria força e inteligência. Primeiro, derrubou o muro que protegia a parte de trás dos estábulos. Em seguida, cavou largas valas com as próprias mãos e redirecionou os grandes rios Alfeu e Peneu, que passavam perto, para que fluissem pelo pátio. Em poucos instantes, as águas corredeiras limparam toda a sujeira. O solo da região coberto de esterco acabou adubado e se tornando fértil. Quando Augias descobriu que Euristeu estava por trás das ações de Hércules, não só se recusou a pagar a aposta feita como disse que não havia prometido nada. O herói exigiu um julgamento e chamou Fileu, o filho do rei, como testemunha. Como o príncipe falou a verdade (com medo dos rompantes coléricos de Hércules), Augias teve que pagar o combinado, mas baniu seu próprio herdeiro para a casa de familiares fora da cidade. Euristeu não aceitou o cumprimento da tarefa dos estábulos uma vez que o herói foi pago para fazê-lo. Na simbologia deste trabalho, o estábulo é o inconsciente e o estrume, a deformação banal, enquanto os rios são a própria vida em movimento. Lavar o estábulo significa purificar a alma, livrando o inconsciente da banalidade, através de uma vida ativa, sensata e dignificante. No retorno para Micenas, Hércules passou em Oleno, na corte de Dexâmeno, durante o banquete de núpcias de sua filha Mnesímaca com o arcádio Azane. O centauro Eurítion raptou a noiva, mas foi morto pelo herói. Uma versão dessa história, diz que Hércules esteve em Oleno antes de realizar o trabalho para Augias e teria cortejado a princesa. Em sua ausência para realizar a tarefa, o centauro violentou a princesa. Ao saber disso em seu retorno, o herói matou Eurítion.


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As Aves do Lago Estínfale Euristeu voltou a pensar numa tarefa que dificultasse o uso da força de Hércules. O Lago Estínfale, no extremo norte da Arcádia, havia sido invadido por uma revoada de enormes aves fugidas de um ataque de lobos. Como elas se reproduziam rapidamente, em pouco tempo, as aves de Ares dominaram a região pantanosa e destruíram as colheitas. Suas penas e bico eram de bronze, fazendo com que se tornassem intocáveis e mortais. Algumas versões, dizem que elas eram carnívoras com a ferocidade de um leopardo. enquanto outras a referenciavam como harpias - meio aves de rapina, meio mulheres. Euristeu ordenou que Hércules afugentasse o bando.


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O herói achou que seria fácil, mas seus problemas começaram quando a floresta próxima ao Estínfale foi ficando bem fechada e escura. Pensando numa forma de tirar as aves de seus ninhos, Hércules recebeu a ajuda da deusa Atena, que lhe deu um címbalo de bronze feito por Hefesto. O herói bateu o címbalo e as aves levantaram vôo, clareando a floresta e fazendo um barulho ensurdecedor. Com suas flechas envenenadas, Hércules começou a abater as aves. Existem referências pintadas em ânforas que o herói teria usado uma funda para cumprir a tarefa. As poucas aves que escaparam nunca mais voltaram à Grécia: foram atormentar as pessoas no Mar Negro. Uma interpretação mais realista deste mito faz das aves filhas de um certo herói Estínfalo. Hércules as matou, porque eram rudes e lhe negaram hospitalidade, concedendo-a, logo depois, a seus inimigos moliônides, Ctéato e Êurito. No caminho de purificação do herói, o lago refletia a estagnação e as aves simbolizavam os impulsos e desejos perversos saídos do inconsciente (semelhante ao ditado “cabeça vazia é terreno do Diabo”), que foram derrotadas pelas flechas da espiritualização.


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O Touro de Creta Euristeu tentava sempre dificultar as tarefas dadas à Hércules. Era hora de mandá-lo para longe, uma vez que o Peloponeso já estava salvo de seus monstros. Como sétimo trabalho, então, o herói deveria trazer o selvagem Touro que aterrorizava a ilha de Creta vivo até seu palácio, fazendo com que ele precisasse lidar com a fera enraivecida nas travessias pelo mar.


35 Conta a lenda que Minos, filho do Rei Astério, estava tendo sua sucessão contestada e pediu que Poseidon intercedesse a seu favor, fazendo surgir das águas um sinal de sua legitimidade. Do Mar Egeu, surgiu um belíssimo touro branco com chifres de ouro e cascos de bronze. Poseidon impôs a Minos a condição de que o touro seria sacrificado em seu nome. No entanto, encantado pela beleza do animal12, o rei misturou-o em seu rebanho e sacrificou outro para o deus. O touro divino imediatamente enlouqueceu e começou a devastar a ilha, personificando a fúria do deus dos mares (diziam até que saía chamas de suas narinas). Quando Hércules chegou pedindo autorização para levá-lo, o rei ficou contente. Assim que avistou o herói, o touro arremeteu com os chifres baixos. Hércules ficou firme em sua posição até o último momento, quando se jogou para o lado. O animal caiu se estatelou no chão, mas rapidamente se levantou e tornou a investir contra o herói. Dessa vez, Hércules segurou o touro pelos chifres e baixou sua cabeça até as narinas encostarem no chão. A luta de força continuou até o animal cansar: foi o triunfo sobre a força bruta dominadora, uma vez que o touro simboliza o poder descontrolado, o arrebatamento irresistível, a masculinidade impetuosa. Com um laço, facilmente o subjulgou e, montado em suas costas, atravessou o mar a nado até Micenas. Ao ver o belo animal, Euristeu decidiu sacrificá-lo à Hera, mas a deusa não queria que esse presente viesse de um feito do bastardo de Zeus. Euristeu, então, permitiu a soltura do touro, que correu livre pela Grécia até ser capturado por Teseu nas planícies de Maratona. O signo de Touro é associado a esse animal mitológico, porém, à lenda do rapto de Europa. Na constelação, as estrelas são representadas como um touro em posição de ataque, com os chifres abaixados, mas formam apenas a cabeça, ombros e membros anteriores do animal, pois sua parte posterior estava submerso tanto no rapto que levou Europa à Creta quanto na derrota para Hércules que o levou à Micenas.

12. Minos tem histórico com touros: sua mãe Europa teria chegado à Creta em um touro enviado por Zeus (ou o próprio deus transformado no animal); e, após recusar o sacrifício à Poseidon, o deus dos mares fez com que a princesa Pasífae se apaixonasse por seu touro e desse a luz ao Minotauro.


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As Éguas de Diomedes Cansada das vitórias de Hércules, Hera decidiu colocar o bastardo de Zeus contra seus netos, filhos de Ares, o deus da guerra e filho legítimo da deusa com Zeus. Inspirou, então, Euristeu a definir o oitavo trabalho: trazer as quatro éguas carnívoras de Diomedes, chefe dos Bistônios (povo não grego da selvagem e inóspita Trácia) e filho do deus Ares com uma mortal. Dizia-se que Diomedes dava seus inimigos e estrangeiros perdidos na costa do Mar Negro para suas éguas se alimentarem. De tão descontroladas, Podargo, Lâmpon, Xanto e Dino viviam presas por pesadas correntes no estábulo. Alguns diziam que as éguas tinham mandíbulas de bronze, soltavam fogo e fumaça pelas narinas.


37 A caminho da Trácia, Hércules passou por Feras para encontrar Admeto, que conhecera entre os Argonautas. Algum tempo antes, o rei tivera o privilégio de ter o deus Apolo sob suas ordens, que estava sendo castigado por Zeus por ter matado ciclopes em represália pela morte de seu filho Asclépio. Apolo afeiçoouse a Admeto e o ajudou a conquistar Alceste, filha de Pélias, que havia sido prometida àquele que fosse até ela num carro puxado por leões e javalis. O deus também pediu às Moiras que tecessem mais um fio de vida ao rei caso alguém concordasse voluntariamente em substitui-lo. Acreditando ser amado e ter servos lhe devendo favores, Admeto não se preocupou. Porém, nem mesmo seus pais se habilitaram, somente a jovem e apaixonada Alceste se ofereceu. Admeto se recusou a perdê-la, mas as Parcas aceitaram a troca. Enquanto Admeto ia recuperando as forças, Alceste adoecia. Hércules chegou à região e foi recebido pelo rei, que, para não perturbar o herói, fingiu que nada acontecia. Hércules comeu e bebeu além da conta, mas percebeu que ninguém acompanhava de sua alegria. Forçou um dos serviçais a contar o que acontecia. Chateado com seu próprio comportamento, decidiu esperar Tanatos, a Morte personificada, na porta do quarto da jovem. Com sua força e um laço de diamantes, o herói agarrou Tanatos e o obrigou a desistir do acordo. Alceste foi se recuperando e pode continuar a viver ao lado de seu amado Admeto. Outra versão dessa história, diz que, assim que Alceste aceitou morrer no lugar do amado, Perséfone se comoveu e desfez o acordo das Parcas com Apolo.


38 Hércules, então, navegou para a Bistônia com um grupo de voluntários, entre eles, Abderos, um jovem ousado da Lócrida a quem o herói tinha como companhia (outro eromenos). Rapidamente o grupo dominou os guardiões das éguas antropófagas e as roubou. No caminho para o navio, eles avistaram Diomedes e suas tropas. Hércules pediu que Abderos cuidasse das éguas enquanto ele enfrentava os bistones. O herói e seus amigos abriram um canal nas dunas que separavam a planície do mar e acabaram inundando a região formando um lago que separou e matou parte da tropa bistone. Diomedes ficou frente a frente com Hércules e foi derrubado. Em sua inexperiência, Abderos acabou sendo devorado pelas éguas. Furioso ao ver seu companheiro em pedaços, o herói resolveu dar Diomedes para que as feras o devorassem. Surpreendentemente, os animais se acalmaram como mágica e Hércules conseguiu dominá-las. Antes de voltar para Micenas, Hércules deu um enterro digno ao jovem com competições atléticas e fundou a cidade de Abdera ao lado do túmulo. Uma outra versão da história, conta que Hércules resolveu tudo sozinho. As éguas estavam atreladas a uma biga e o herói precisou levá-las junto com o carro para Euristeu. Outros dizem que Hércules atrelou os animais ao seu próprio carro para conseguir dominá-los. Elas representam a perversidade do homem que causa a morte da alma. Euristeu ofereceu os cavalos à Hera, que novamente pediu para soltá-los. As éguas viveram livres pelas planícies de Micenas e acredita-se que uma delas foi ancestral de Bucéfalo, o famoso cavalo de Alexandre, o Grande. Quando os animais chegaram aos pés do Monte Olimpo, os deuses ordenaram que elas fossem devoradas por lobos selvagens.


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O Cinturão de Hipólita Cada vez mais irritada, Hera soprou no ouvido de Admete, filha de Euristeu e sua sacerdotisa, que ela teria muito poder e sabedoria se obtivesse o cinturão de Hipólita, rainha das guerreiras Amazonas, filha de Ares. Euristeu resolveu fazer, então, com que o nono trabalho de Hércules fosse conseguir a peça. O cinturão é descrito como um cinto de couro dada a ela por Ares por ser a melhor guerreira entre as Amazonas. Acredita-se que Hipólita o usava cruzando seu peito para carregar sua espada e sua lança, mas não há representações dele.


40 Conhecendo as habilidades das Amazonas, o herói decidiu organizar uma expedição às misteriosas terras ao norte do Cáucaso, próximas ao Mar Negro, onde ficava Temiscira, capital do reino das guerreiras. Entre os voluntários, estavam Telamon, Teseu e Peleu. Na primeira parada na ilha de Paros, Hércules pediu que dois de seus companheiros fossem buscar água com o Rei Alceu. Os rudes filhos do Rei Minos (Nefálion, Eurimedonte, Crises e Filolau) que estavam hospedados na ilha desrespeitaram as leis que protegiam os estrangeiros e assassinaram os dois. Hércules viu a cena do convés e pulou pra terra e matou os quatro. Os habitantes da ilha se revoltaram e atacaram o herói e seus companheiros sem saber quem eram. Quando se deram conta, pararam de enfrentá-los e disseram para o herói escolher dois guerreiros para substituir os que foram mortos pelos filhos de Minos. Hércules chamou o Rei Alceu e seu irmão Estênelo. Viajando para o Norte, passaram pelo o Helesponto (estreito de Dardanelos próximo a Turquia) e pelo Bósforo e saíram no Mar Negro. Seguindo a costa da Ásia Menor, aportaram na Mísia, onde o Rei Lico os recebeu calorosamente com um grande banquete. Durante a celebração, os bébrices invadiram a nação, pilhando e destruindo tudo no caminho. Hércules e seus companheiros rapidamente se prontificaram e acabaram com os invasores, recebendo tantas provisões quantas couberam em seu navio como recompensa. Depois de mais uma longa jornada, finalmente chegaram a Temiscira. Armados até os dentes, ficaram surpresos com a recepção calorosa das Amazonas quando seu navio chegou à foz do rio Thermodon. Até mesmo Hipólita parecia estar encantada


41 com os heróis. Hércules contou à rainha a razão daquela expedição e Hipólita ofereceu o cinturão como presente. Ao ouvir isso, Hera tomou a forma de uma amazona e começou a espalhar o rumor que o herói queria sequestrar a rainha. A destemida Aela atirou suas flechas em Hércules, mas a pele impenetrável do Leão da Nemeia as fez ricochetear. Já a flecha de Hércules matou a amazona de uma vez. A saguinária Prótoe matou três companheiros do herói antes de ser morta por ele com um só golpe de sua espada. Hércules derrubou outras sete amazonas com sua clava. Teseu, Telamon, Alceu e Estênelo derrotaram outras guerreiras, mas o combate só chegou ao fim quando Hércules matou Hipólita com sua espada de bronze e tomou o cinturão. As amazonas derrotadas se viram abandonadas à sua própria sorte.13 Na viagem de volta, Hércules salvou Hesíone, filha de Laomedonte, de ser sacrificada por um monstro marinho enviado por Poseidon. Laomedonte, rei de Troia, havia se recusado a pagar aos deuses Poseidon e Apolo pela construção das poderosas muralhas ao redor da cidade. Apolo enviou uma praga e Poseidon um monstro marinho, que só cessariam suas destruições se Hesíone fosse sacrificada. Laomedonte chegou a tentar usar filhas de pessoas do povo, mas em um sorteio saiu o nome da princesa. Hércules passou pela cidade e se ofereceu para salvar a princesa e matar o monstro em troca dos dois corcéis brancos que andavam sobre as águas, dados ao rei por Zeus em troca do jovem Ganimedes. O herói chegou a ser engolido pelo monstro, permanecendo em seu estômago por três dias até rasgar seu caminho para a liberdade, mas o velhaco Laomedonte novamente não pagou o prometido e expulsou o herói, que jurou vingança. No porto de Tassos, Hércules e seus companheiros encontraram trácios selvagens que devastavam a ilha. Após expulsar os inimigos, o herói deixou a ilha nas mãos de Alceu e Estênelo como recompensa pela participação na jornada. Chegando a Micenas, cada um seguiu seu rumo e Hércules levou o cinturão para Admete.

13. Numa versão desta tarefa, Hipólita não é morta. A luta só termina quando Hércules faz a Rainha Melanipe como sua prisioneira. Ele a troca pelo cinturão. Teseu ainda rapta a Rainha Antíope, irmã de Hipólita, e se casa com ela. Em outra versão, Teseu, na verdade, rapta e estupra Antíope, o que marca o início da luta entre as amazonas e os guerreiros de Hércules. Essa versão é pouco utilizada por macular a aura de herói de Teseu. Percebam que eram três rainhas, pois acreditase em três tribos diferentes de amazonas, sendo Hipólita a governante-mor.


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Os Bois de Gerião Como décimo trabalho, Euristeu decidiu aumentar a dificuldade: Hércules deveria trazer por terra e mar todo o rebanho de Gerião (Gérion), que tinha duas pernas tal como as outras pessoas, mas, a partir da cintura, o corpo se ramificava em três troncos com três cabeças e seis braços. Diziam que o grito de Gerião equivalia ao de dez mil guerreiros e que ele gostava de urrar em meio ao temporal para abafar o ribombar dos trovões de Zeus. Ele também costumava subir numa pedra próxima ao mar para desafiar aos berros àqueles que tivesse coragem de enfrentá-lo; seu desafio ecoava à grandes distâncias e pode ter sido ouvido por um capacho de Euristeu, inspirando-o nesta tarefa.


43 Filho de Crisaor (descendente da górgona Medusa) e Calirrhoe (filha dos titãs Oceano e Tétis), vivia em uma mítica ilha próxima à Líbia chamada Erítia, com o pastor gigante Euritião e Ortro, o cão de duas cabeças e cauda de dragão (irmão do famoso Cérbero), que protegiam seus rebanhos. Seu gado era peculiar: de um tom vermelho profundo, com testas largas e pernas esguias. Em sua jornada solitária, Hércules defrontara-se com inúmeros perigos entre ladrões e animais selvagens. Diz-se que, ao chegar a Gibraltar, o herói trabalhou arduamente para abrir um largo canal entre o Mediterrâneo e o Oceano para permitir a passagem de navios14. Precisou atravessar o deserto da Líbia na continuidade do caminho. O calor era tão grande que o herói enfurecido começou a atirar flechas em direção ao sol. Helio, deus sol, implorou para que ele parasse (em algumas versões, é Apolo que pede), mas o herói disse que só o faria se ele emprestasse a barca (ou taça) de ouro que o ajudava a cruzar os mares de volta ao leste.

14. Algumas lendas dizem que Hércules usou sua força para separar o Monte Calpe do Monte Abília e, assim, abrir o estreito hoje chamado de Pilares de Hércules ou Estreito de Gibraltar.


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Com a barca, Hércules chegou rapidamente à ilha e foi logo recebido por Ortro, mas as histórias dizem que apenas um golpe de sua clava de oliveira derrubou o cão bicéfalo. O pastor Euritião levantou uma enorme pedra para arremessar no herói, que foi mais rápido e o flechou. A pedra erguida acabou esmagando o pastor. Ouvindo a luta, Gerião vestiu três armaduras, três capacetes e levou três escudos e três lanças para enfrentar o herói. Percebendo que seria complicado derrotar o monstro num combate corpo a corpo, Hércules puxou seu arco e matou Gerião com suas flechas envenenadas. Algumas versões dizem que Hércules rasgou Gerião em três partes após uma luta feroz, simbolizando a vitória sobre a vaidade, a devassidão e a dominação despótica. O retorno do herói a Micenas foi bem mais complicado do que conseguir o gado. Hércules colocou o gado na barca de ouro e precisou navegar ao Oceano Atlântico, considerado o fim do mundo para


45 os antigos gregos, para devolver a barca a Helio. No caminho a pé, ergueu duas colunas de pedras para lembrar sua passagem por Gibraltar, mas seus problemas apenas começaram...

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Em Pilos, o rei Neleu impediu a passagem de Hércules e ainda tentou confiscar o gado roubado.

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Na Ligúria, Hércules foi atacado por aborígenes belicosos. Após grande carnificina, as flechas do herói acabaram e ele invocou ajuda à seu pai Zeus, que enviou uma chuva de pedra para afugentar os inimigos. Ainda na região, dois filhos de Poseidon - Ialébios e Dercino - tentaram roubar-lhe os bois, mas foram mortos.

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No Lácio (onde posteriormente se ergueria Roma), Caco15, filho de Hefesto, roubou dois gados e quatro novilhos, enquanto o herói dormia na casa do Rei Evandro. Levou os animais para sua caverna no Monte Aventino sem deixar trilha ou pistas, porque os arrastou pela cauda. Ao acordar e dar pela falta do gado, Hércules saiu em busca do gado pastoreando o resto. Acabou passando próximo à caverna de Caco e o gado roubado, ouvindo o rebanho passar, começou a mugir bem alto como se pedisse socorro. O herói ouviu e encontrou Caco escondendo os animais. Matou o gigante com um rápido golpe de espada na garganta.

15. Caco (em latim: Cacus) é descrito na Divina Comédia, do poeta Dante Alighieri, como um dos centauros que guardam o Sétimo Círculo do Inferno. Alguns mitógrafos o descreviam ou como um gigante cuspidor de fogo ou um gigante de três cabeças. Segundo uma das versões desta história, a irmã de Caco teria se apaixonado por Hércules e revelado o paradeiro do gigante.


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Na Calábria, um dos bois se desgarrou do rebanho e nadou até a Sicília. Na língua nativa, touro era “italus” e, assim, deu-se o nome de Itália ao país. O touro fora encontrado pelo rei Eryx, filho de Afrodite. Hércules pediu para Hefesto cuidar do rebanho enquanto ele buscava o touro perdido. Ao encontrá-lo no meio do rebanho de Eryx, o herói o pediu de volta após explicar sua tarefa. O rei disse que só devolveria o animal se Hércules o vencesse três vezes em uma competição de boxe, pois acreditava que o herói perderia sua imortalidade se não levasse o rebanho de Gerião para Micenas. Acontece que o herói não só o venceu como o matou, enterrando-o no templo de sua deusa-mãe.

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Próximo ao Mar Jônico, quase no fim de sua jornada, Hércules teve muita dificuldade de manter todo o rebanho junto, pois Hera enviou mutucas para dispersá-lo até a Trácia e a Cítia (entre a Turquia e a Ucrânia). O herói teve que enfrentar um monstro metade mulher metade serpente para conseguir juntar o gado e, mesmo depois de conseguir dominá-los, precisou atravessar o rio Strymon, que teve seu nível de água aumentado pela deusa. Com pedras e árvores, Hércules fez uma ponte para os animais atravessarem. Algumas versões dizem que o herói, na verdade, aterrou o rio.

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Quase chegando a Micenas, Hercules foi atacado por Alcioneu de Corinto, um gigante que atirou pedras contra os rebanhos e destruiu doze carros de boi. O herói rebateu com sua clava uma das pedras atiradas por Alcioneu e o esmagou.

Hércules chegou com parte do rebanho ao reino de Euristeu um ano depois, acreditando que estaria livre de sua punição. O covarde rei sacrificou todo o gado à Hera e revelou ao herói que ele ainda deveria cumprir mais duas tarefas, pois não havia considerado a morte da Hidra (porque teve ajuda de Iolau) e a limpeza dos estábulos de Augias (porque ele foi pago).


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Os Pomos das Hespérides Como penúltimo trabalho, Euristeu pediu que Hércules trouxesse três pomos dourados do Jardim das Hespérides. O rei sabia que a deusa tinha tornado a tarefa quase impossível, mas não poderia imaginar que a jornada do herói seria tão ou mais complicada. Essa tarefa acabou por estabelecer Hércules como um defensor dos oprimidos e injustiçados.


48 As maçãs (ou laranjas) douradas da imortalidade foram dadas por Gaia para Zeus e Hera como presente de casamento (um versão diz que foi um presente Hera para Zeus pelo matrimônio). Hera plantou-as em um jardim perto do Monte Atlas, onde as Hespérides seriam responsáveis. Para mais proteção, a deusa enviou um monstro da prole de Equidna e Tifão: o dragão imortal de 100 cabeças chamado Ladon16.

16. Na maioria das representações artísticas, Ladon era somente uma serpente, provavelmente, uma alusão à Serpente do Paraíso. Mas, na mitologia, cinquenta cabeças permaneciam acordadas, enquanto as outras cinquenta dormiam.

Como a localização do jardim era duvidosa e cercada de perigos, Hércules partiu para o oeste em direção à Ilíria, onde conhecia algumas ninfas que poderiam ajudá-lo (alguns dizem que Atena disse para ele procurar as Parcas). Quando cruzou a Tessália, encontrou o cruel Cicno, filho de Ares, que matava viajantes e oferecia sua carne como sacrifício a seu pai. Hércules o confrontou e o matou. Algumas versões dessa história dizem que Ares lutou com o herói para se vingar pela morte de seu filho, mas Zeus teria jogado um raio para separar os dois ou Atena fez o herói se esquivar de um ataque divino. Ares chegou a ser ferido na coxa pelo herói e se recolheu por um tempo no Olimpo.

HESPÉRIDES A rigor, o termo Hespérides designa dois grupos distintos de divindades. O primeiro e mais antigo é o das três deusas primaveris que personificam a luz da tarde e o ciclo do entardecer, representando o espírito fertilizador da natureza. Eram filhas de Nix (a noite) e Érebo (a escuridão). Em outras versões, eram filhas de Éter (luz celeste) e Hemera (luz do dia). Egle (a brilhante), Eritia (a vermelha) e Hespéria (a crepuscular) passeavam pelos céus, encarregando-se de iluminar todo o mundo com a luz vespertina. O séquito celeste era regido por Helio (Sol), Eos (Aurora) e Selene (Lua). Portanto, o ciclo do dia se abria com Hemera, passando pelas Hespérides e finalizando com Nix. O outro grupo é o das sete ninfas do Poente mais comumente ditas como filhas do titã Atlas com Héspera, deusa do entardecer. Também são descritas com filhas de Zeus e Têmis ou de Fórcis e Ceto. Elas eram Aretusa, Cinosura, Ciparissa, Clete, Egéria, Hespéria e Hespéris. Elas possuíam o dom da profecia, da metamorfose e de controlar a vontade dos animais. Eram consideradas guardiãs da ordem natural, dos tesouros dos deuses, das fronteiras entre o dia e a noite e entre os três mundos (Terra, paraíso e mundo subterrâneo). São mais conhecidas por serem as guardiãs dos Jardins de Hera, situados no extremo ocidental do mundo (mais precisamente na Mauritânia, África Ocidental), morando em um palácio em frente à árvore dos pomos dourados. É possível perceber que a mitologia de Hércules se baseia em ambos os grupos para a penúltima tarefa do herói, quando diz que são três Hespérides, filhas de Atlas, que guardam os jardins.


49 Continuando a viagem, Hércules chegou ao rio Eridano (rio Pó), na Ilíria, onde encontrou suas amigas ninfas. Elas falaram que Nereu sabia a localização do jardim. Ao encontrar o velho deus do mar, o herói recebeu uma recusa na resposta e precisou segurá-lo, pressionando pela resposta. Nereu era capaz de mudar de forma, mas Hércules se manteve forte e acabou conseguindo as informações que precisava. Uma versão desse encontro, diz que o herói encontrou Nereu dormindo. Com um corda, foi amarando suavemente o velho deus do mar para não acordá-lo até que o apertou tanto que o despertou. Todas as formas que assumia se mantinham presas na rede construída por Hércules e só restou lhe dar a informação. Passando novamente pela Líbia, Hércules confrontou Anteu17, filho de Gaia e Poseidon, que tirava sua força do contato com a terra, sua mãe. O gigante desafiava os viajantes a derrotá-lo, mas sempre vencia e decorava o templo de seu pai com os restos mortais dos perdedores. Hércules percebeu que, logo após derrubar Anteu, ele se recuperava rapidamente e ficava ainda mais forte. O herói, então, levantou o gigante do chão, desconectando-o de sua fonte de força, e o enforcou assim que ficou enfraquecido. Diz-se que pigmeus amigos do gigante tentaram matar Hércules enquanto ele dormia como vingança. Mas o herói acordou, caiu em gargalhada e espantou-os com uma só mão.

17. A história de Anteu (Antaeus, ou Änti em língua berbere) tem sido utilizada como fábula que simboliza a força espiritual que é mantida pela fé nas coisas imediatas e factuais - as coisas terrenas. Na Divina Comédia, Anteu guarda o Nono Círculo do Inferno e leva Dante e Virgílio até ao fundo onde corre o rio gelado do Cocito. Plínio, o Velho, escreveu que um homem da família de Anteu, depois de escolhido por algumas pessoas, foi levado para um lago da Arcádia, onde pendurou as roupas num freixo para atravessar o lago a nado. Foi, por conseguinte, transformado num lobo por nove anos. Se conseguisse passar esse tempo sem atacar um ser humano, poderia voltar a atravessar o lago a nado e tomar a sua forma humana original. É um dos primeiros relatos sobre licantropia que se conhecem.


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18. Não há referência a Busíris em nenhuma dinastia faraônica. É possível que seu nome seja uma corruptela do deus Osíris. Existe uma versão que coloca este faraó como o grande vilão desta tarefa, pois ele teria mandado raptar as ninfas para fertilizar suas colheitas. Hércules matou os egípcios e devolveu as ninfas a Atlas, que lhe entregou os pomos em recompensa.

No Egito, Hércules foi preso pelo exército do terrível Busíris18. Frásio, um vidente cipriota, havia dito ao faraó que, se ele sacrificasse um estrangeiro aos deuses, a fome acabaria em suas terras. Azar o dele por ter escolhido Hércules: quando a cerimônia de sacrifício se iniciava, o herói estourou num rompante de fúria e matou não só o faraó como todos os seus sacerdotes. Amedrontados, os egípcios decidiram dar livre passagem para Hércules por suas terras. No caminho, Hércules encontrou Prometeu acorrentado no Monte Cáucaso por seu crime contra os deuses. O herói matou o abutre que comia o fígado imortal do titã e quebrou as correntes para libertá-lo. Como agradecimento, Prometeu aconselhou Hércules a pedir ajuda ao seu irmão Atlas, pai das ninfas que cuidavam do jardim.


51 Finalmente, o herói chegou ao Monte Atlas, que recebeu o nome do titã porque era lá que ele carregava os céus nas costas como punição divina por ser um dos líderes da revolta dos titãs. Hércules ofereceu ficar no lugar de Atlas, enquanto ele buscava os pomos. O titã concordou, considerando descansar os ombros. Ao retornar com as três maçãs, Atlas recusou voltar para seu posto, deixando Hércules com a carga pesada. O herói precisou usar sua lábia: disse que aceitaria ficar no lugar do titã se ele pudesse ajeitar seu corpo e, para isso, Atlas precisaria segurar por um momento. Ele aceitou e o herói saiu livre com as três maçãs. Há uma divergência entre os mitógrafos, que dizem que Hércules fez Ladon adormecer e as Hespérides deram os pomos ao herói. Hércules retornou à corte de Euristeu com os pomos e os apresentou a um espantado rei. Ele tinha tanta certeza que o herói não voltaria que nem pensou o que fazer com as frutas, deixando seu destino nas mãos de Hércules. Incerto do que deveria ser feito, o herói pediu orientação à Atena, sua constante protetora, que levou as maçãs de volta ao jardim porque elas deveriam permanecer por lá de acordo com as leis divinas.


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Cérbero Euristeu, sabendo que Hércules só ficaria mais um ano sob suas ordens, ordenou-lhe a tarefa que considerava a mais impossível de ser realizada: descer ao reino de Hades e trazer Cérbero (Kerberos, o “comedor de carne”), o cão tricéfalo que guardava as portas do inferno, impedindo a entrada de vivos no Mundo Subterrâneo. Algumas versões dizem que o cão - mais um filho de Equidna e Tifão - tinha de duas a cinquenta cabeças, mas o número três é a descrição mais comum. Possuía uma crina de cabeças de serpentes que terminava em uma cauda que poderia ser de cão, de leão ou uma serpente com cabeça de dragão na ponta. Para aclamar sua fúria, as almas dos mortos costumavam jogar os bolos de farinha e mel que seus entes queridos deixavam em seus túmulos.


53 Para a tarefa, Hércules precisava ser iniciado nos Mistérios de Elêusis rituais de iniciação ao culto de Deméter e Perséfone, sogra e esposa de Hades - pelo sacerdote Eumolpo. Ele acreditava que se fosse perdoado e purificado pelas mortes que cometera - principalmente a dos centauros - ele não teria problemas em sair do reino dos mortos. Mesmo assim, o herói ainda duvidava que conseguiria realizar essa temerária e perigosa façanha. Então, ofertou grandes sacrifícios aos deuses, pedindo sua proteção. Suas preces foram ouvidas: Zeus pediu que Atena (a sabedoria que ilumina as trevas) e Hermes (aquele que acerta o caminho) o acompanhassem ao longo do percurso que levava às portas do Mundo Subterrâneo, em Tênaro, na Lacônia.

Entrando por uma caverna nas encostas do Monte Taígeto, os três mergulharam profundamente na terra e, depois de horas andando por trilhas subterrâneas que jamais haviam sido pisadas por vivos, chegaram às margens do sagrado Rio Estige. Lá encontraram o barqueiro Caronte, que transportava as almas dos mortos até o reino de Hades. Embora não permitisse que Hércules subisse a bordo, obedeceu às ordens de Atena e Hermes. Quando chegaram do outro lado, Cérbero farejou o cheiro de carne humana viva e se colocou a rosnar, mas nada fez na presença dos deuses. No meio do reino sombrio, Hércules espantou a sombra de Medusa e se encontrou com a sombra de Meleagro, herói de Cálidon, que lhe contou sua história19 e pediu que desposasse sua irmã Dejanira. Em seguida, libertou Ascálafo (filho de uma ninfa do rio Estige com o rio Aqueronte) da

19. Uma profecia dizia que, assim que nascesse, Meleágro morreria quando a lareira de sua casa se apagasse. Sua mãe, então, apagou o fogo com água e escondeu a tora úmida. Anos mais tarde, quando Meleágro matou seus dois tios, irmãos de sua mãe, esta lembrou-se da profecia e jogou a tora novamente no fogo. Isso levou o rapaz a enfrentar Apolo, que nunca errava o alvo de suas flechas.


54 20. Uma versão dessa história diz que Teseu e Pirítoo foram convidados por Hades para jantar, mas, como não conheciam as regras eleusinas, ficaram presos às cadeiras onde sentavam. Após vencer Cérbero, Hércules pediu pela libertação dois dois, mas Hades só permitiu que o herói levasse Teseu. Pirítoo ficou na cadeira do esquecimento.

21. Antigos textos dizem que Hades não permitiu e acabou recebendo uma flechada de Hércules. Perséfone deu essa ideia ao marido para impedir o combate. Essa intervenção da deusa se deve ou ao fato de ser meia-irmã do herói (já que também é filha de Zeus) ou a Zagreu, filho dela com Hércules.

enorme pedra que se encontrava sobre ele. Porém, como Ascálafo havia sido punido por Deméter quando denunciou sua filha Perséfone e a fez ficar pra sempre com Hades, a deusa o transformou em coruja assim que fora libertado por Hércules. Mais adiante o herói encontrou dois homens vivos acorrentados à cadeiras e os identificou como Teseu e Pirítoo, rei dos Lápitas. Os dois haviam sido punidos por Hades por tentarem resgatar Perséfone20. Hércules quebrou as correntes de Teseu, mas, com o barulho, as três cabeças de Cérbero puseram-se a uivar em um som metálico e chamaram a atenção de Hades. Ao tentar libertar Pirítoo, um terremoto enviado pelo deus do subterrâneo o afastou.

Penalizado ao ver tantas sombras humanas, Hércules decidiu reanimá-los por alguns instantes através de sacrifícios de sangue. O herói encontrou o rebanho de Hades e precisou enfrentar seu pastor Menetes, que teve algumas costelas quebradas antes da intervenção de Perséfone. A deusa levou o herói ao palácio de Hades, que, ao ver o herói em companhia de dois deuses, questionou toda a jornada. Depois de receber as devidas explicações sobre as tarefas hercúleas, ele autorizou-o a levar Cérbero para a Terra sob a condição de conseguir dominá-lo sem usar as suas armas e devolvê-lo ileso.21


55 Hércules aproximou-se, então, do animal e o enfrentou só com sua força e a pele do Leão da Nemeia, que o protegeu das mordidas das serpentes do corpo de Cérbero. Usou da mesma tática contra o leão e sufocou as três cabeças de uma vez só até o cão desacordar, mesmo depois de levar uma mordida da cauda de dragão. Alguns textos, dizem que Hécate, deusa da magia negra, confrontou o herói na tentativa de proteger Cérbero. Porém, Hércules tinha um acordo com Hades: acorrentou o cão vencido e ergueu o animal aos ombros, retornando pelos Campos Elísios, onde ficavam os mortos que tinham agido de forma nobre22. Afinal chegou a Micenas. Euristeu ficou tão apavorado quando soube que Hércules trazia nos ombros o terrível cão tricéfalo, que se escondeu debaixo de uma cuba de bronze, mandando-lhe uma mensagem na qual lhe ordenava que se afastasse de Micenas para todo o sempre. Então, de coração leve, Hércules levou Cérbero de volta às portas do Inferno. Essa vitória simbolizou a força espiritual que derrota o terrível e mortal mal interior a partir de uma jornada que leva à uma morte simbólica, ao autoconhecimento e à transformação do indivíduo.

22. Dizem que, quando a luz do sol bateu no corpo de Cérbero, a fera começou a convulsionar e precisou ser novamente abatido por Hércules. A baba do animal que caiu no chão se tornou a planta venenosa chamada acônito.


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VI Vingador Expedicionário Livre. Finalmente Hércules podia seguir sua vida, sentindo-se perdoado pelos erros cometidos no passado. Dirigiu-se a Cálidon, na Etólia, para cumprir sua promessa feita no Hades à sombra de Meleagro. Acabou se apaixonando por Dejanira, filha do Rei Eneu, irmã do herói morto. No entanto, Hércules precisou disputá-la com o terrível deus-rio Aquelôo. A divindade aquática transformou-se em serpente e atacou, mas foi repelido. Virou um touro e Hércules quebrou seus chifres, derrotando-o. Aquelôo quis seus chifres de volta, mas lhe foi oferecido o cordo da cabra Amalteia, que despejava abundância em flores e frutos. Com Dejanira teve vários filhos, sendo Hilo, seu primogênito. Viveram algum tempo na Etólia, até que o herói matou acidentalmente Êunomo, copeiro e parente do rei Eneu. Mesmo perdoado pelo infortúnio, Hércules preferiu se exilar com sua família em Tráquis, na Fócida. No caminho para Fócida, quando ele e Dejanira estavam atravessando o rio Eveno, o centauro Nesso (um dos sobreviventes da fúria do herói na casa de Folo) ofereceu-se para transportar sua esposa. No meio da correnteza, o centauro tentou violentá-la. Com uma flecha envenenada certeira no membro de Nesso, Hércules o matou. Antes de morrer, Nesso, simulando arrependimento, incentivou Dejanira a pegar um pouco de seu sêmen misturado ao sangue envenenado de seu ferimento e guardá-lo: se Hércules algum dia parecesse cansado


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dela, deveria embeber um traje com o elixir e dá-lo para que ele o vestisse; após isso, ele nunca mais olharia para outra mulher. Em Tráquis, foram acolhidos por seu Ceix, seu primo, sobrinho de Anfitrião. Hércules viveu algum tempo na região e teve mais filhos com Dejanira antes de partir em quatro expedições vingadoras.

Contra Troia Sem se esquecer da traição de Laomedonte, partiu para sua vingança. Ajudado pelo exército de Telamon, rei de Salamina, conquistou a cidade, matou Laomedonte e seus filhos. A princesa troiana Hesíone foi dada a Telamon para casamento (ou escrava) e ela pediu que o caçula Podarces fosse poupado em troca de um véu de ouro bordado por ela. O pequeno ficou conhecido como Príamo, que significaria “comprado” ou “resgatado”, o futuro e mítico rei de Troia. No retorno a Grécia, uma curiosa história: conta-se que, com ajuda de Hipnos e Bóreas, Hera pôs Zeus a dormir profundamente e lançou uma tempestade sobre o navio de Hércules, que aportou na ilha de Kós. O herói encontrou Antágoras, filho do Rei Eurípilo, a guardar o rebanho real e, com fome, pediu-lhe um carneiro. O príncipe propôs o animal como prêmio de uma luta justa. Hércules e Antágoras estavam, então, em uma luta amigável, quando os habitantes acharam


58 que o combate era real e atacaram o herói. Para não causar nenhuma morte, o herói fugiu e saiu da ilha disfarçado como mulher. Uma variante desta história, diz que o barco de Hércules foi recebido de forma hostil pela população da ilha, achando que eram piratas. Zeus teria acordado no meio desta luta e visto Hércules sangrar. Ao perceber que tudo fora obra de sua esposa, desceu do Olimpo e tratou dos ferimentos de seu filho. Tomado de raiva, amarrou os braços de Hera com correntes de ouro e pendurou-a nas nuvens. Ainda colocou duas bigornas em seus pés para aumentar a agonia. Nenhum deus se atreveu a tirar Hera de seu sofrimento com medo da fúria de Zeus. Enquanto isso, o herói tomou o reino de Eurípilo e desposou a princesa Calciopeia. Após esse episódio, Hércules foi convocado por Zeus e Atena a participar da Gigantomaquia, onde, com suas flechas certeiras, auxiliou a vitória dos deuses sobre os gigantes da vingativa Gaia.

Contra Neleu e Augias Hércules havia se irritado com Neleu, rei de Pilos, por terem ajudado os Orcômenos contra os tebanos e por ter tentado roubar parte do rebanho de Gerião que ele levava para Micenas. Neleu tinha onze filhos, sendo Periclímeno o primogênito apadrinhado com poderes de metamorfose por Poseidon. Hércules investiu furiosamente contra Neleu e seus filhos com ajuda da deusa Atena, uma vez que o rei contava com ajuda de Poseidon, Hera, Apolo e Ares. A sabedoria estratégica da deusa, fez com que Hércules derrotasse e ferisse todos os deuses: uma flecha no seio de Hera, sua lança na coxa já ferida de Ares e cortes de espada tanto em Poseidon quanto em Apolo. Periclímeno se transformou em uma abelha para picar os cavalos da biga do herói, mas acabou esmagado entre seus dedos. Tomada Pilos, Hércules matou Neleu e seus filhos, deixando apenas o caçula Nestor para tocar o reino. Hércules também não esqueceu dos atos de Augias e seguiu com seu exército para destroná-lo em nome do honesto Fileu que o defendeu anteriormente. Alguns mitógrafos relatam que a primeira investida do herói foi derrotada pelos moliônides, com Íficles saindo gravemente ferido do combate. Somente em uma segunda expedição, Hércules matou Augias e seus aliados. Fileu lhe ofereceu um pedaço de terra perto do rio Peneu, onde o herói construiu um templo para Zeus e um grande estádio. Chamou o local de Olímpia e organizou uma competição atlética em homenagem a seu pai durante os festivais na Élida.


59 Todas as cidades gregas concordaram em honrar Zeus durante os jogos que ocorriam de quatro em quatro anos em disputas de corrida, corrida de carros, boxe, luta livre e pentatlo. Nos primeiros Jogos Olímpicos, Hércules competiu e ganhou todas as provas.

Contra Esparta Em Esparta reinava Hipocoonte e seus vinte filhos, os hipocoôntidas, após exilar seu irmão, Tíndaro. O motivo alegado para essa guerra foi de repor no trono o príncipe afastado, mas Hércules queria vingança por Hipocoonte ter ajudado Neleu e por seus filhos terem espancado Eono (Oeonus), sobrinho de Alcmena, até à morte pelo rapaz ter apedrejado o cão deles que o atacava. Com o exército da Arcádia, Hipocoonte e os hipocoôntidas foram mortos, porém a vitória sangrenta terminou de forma amarga: seu irmão Íficles, o Rei Cefeu e seus vinte filhos pereceram em combate. Após o reestabelecimento de Tíndaro no poder, Hércules se dirigiu ao templo de Deméter em Taígeto, onde foi curado por Asclépio de um grave ferimento na mão. Por fim, mandou erguer em Esparta dois templos, um em honra a Atena e outro em homenagem a Hera, que nenhuma atitude hostil tomara contra ele nesta campanha.


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Contra os Lápitas e os Dríopes Egímio, rei dos Dórios, pediu ajuda a Hércules para derrotar os violentos Lápitas comandados por Corono que ameaçavam seu reino. Como prêmio, Egímio prometeu 1/3 de tudo que tinha. O herói se prontificou a ajudá-lo porque os Lápitas estavam aliados aos Dríopes, cujo rei Teiódamas não só recusou comida para a família de Hércules durante sua saída de Cálidon como feriu Dejanira no embate. Hércules contou com a ajuda de Apolo que queria se vingar de Laógoras, novo líder dos Díopes, que havia profanado um de seus templos. Assim, o herói facilmente se livrou dos guerreiros, mas pediu que sua recompensa fosse dada a seu primogênito, Hilo, o que foi cumprido à risca posteriormente. Diz-se que no retorno à Lídia, Hércules ainda passou em Ormínion, no Monte Pélion, para tomar a cidade de Amintor pelo simples fato do rei não ter dado passagem ao herói. Uma variante dessa história, diz que Hércules pedira em casamento Astidâmia, filha do rei, que não consentiu as núpcias por estar o herói unido a Dejanira. Irado, Hércules tomou a cidade e a princesa, com quem teve Ctesipo e Lépreas. Enquanto Ctesipo aparece na Odisseia, diz-se que Lépreas desafiava constantemente o próprio pai, porém Hércules foi sempre vencedor. No entanto, num acesso de embriaguez colérica, acabou morto em combate pelo pai, que declarou legítima defesa dos desafios.


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GIGANTOMAQUIA Os Gigantes foram gerados por Gaia (a partir do sangue de Urano que caiu sobre ela após o castramento de Cronos) para vingar os Titãs, que Zeus havia lançado no Tártaro após a Titanomaquia. Eram seres imensos, prodigiosamente fortes, de espessa cabeleira e barba hirsuta, o corpo horrendo, cujas pernas tinham a forma de serpente. Mesmo tendo origem divina, eram mortais, porém só pereciam se fossem atacados simultaneamente por um deus e um mortal. Tão logo nasceram, começaram a jogar para o céu árvores inflamadas e rochedos imensos. os deuses prepararam-se, então, para o combate. Como Gaia havia produzido uma erva mágica capaz de curar os gigantes (pharmakon), Zeus pediu que Helio, Selene e Eos parassem de brilhar para dificultar a busca pela planta e colheu todas as mudas. O primeiro ataque partiu dos raios de Zeus e da lança de Atena. Porém, sabendo da impossibilidade de matá-los, os deuses convocaram Hércules para auxiliá-los. Os mitógrafos destacam catorze gigantes neste combate, mas seu número foi bem maior (entre quarenta e mais de cem):


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ÁGRIO

ENCÉLADO

Foi criado com Toas para se oporem às Moiras. Acabou morto pelas maças de bronze das três irmãs.

Era o menor e mais fraco dos gigantes, porém o mais inteligente. Usava três lanças e deveria governar o mar e desposar Atena se a vitória fosse sua. Chegou a ser queimado por Dioniso e eletrocutado por Zeus, mas nada o derrubava, até que enfrentou a própria Atena. Ao ver que não seria capaz de vencer seu nêmese, tentou fugir, mas a deusa jogou sobre ele a ilha de Sicília, aprisionando-o. Diz-se que, enterrado sob a ilha, o Encélado ainda se contorce e estremece causando terremotos.

ALCIONEU Atena aconselhou Hércules a empurrar o poderoso Alcioneu para longe de sua cidade natal, porque ele recobrava as forças por tocar a terra de onde nascera (assim como Anteu). Em seguida, um ataque conjunto dos meio-irmãos, derrubou o gigante que fora criado para se opor a Hades. Seu corpo foi enterrado sob o Monte Vesúvio. Se vencesse os deuses, receberia Ártemis como esposa. Alguns mitógrafos colocam Alcioneu em um encontro anterior com Hércules. Diz-se que o gigante teria tentado roubar do herói o rebanho de Gerião. Outros dizem que o gigante começou a guerra ao atacar Helio e levar seu gado solar. CLÍTIO Criado para drenar a energia de Hécate, terminou massacrado pela deusa com golpes de tocha. EFIALTES Esse gigante afugentou Ares, mas foi morto por um flecha de Apolo no olho esquerdo uma de Hércules no olhos direito.

ÊURITO Foi empalado pelo tirso de Dioniso com ajuda de seus sátiros. GRÁTION Opunha-se a Selene e terminou flechado por Ártemis e Hércules. HIPÓLITO Foi apunhalado por seu nêmese Hermes, que usava o capacete de invisibilidade de Hades. PALAS Foi esfolado por Atena que se serviu da pele do gigante como armadura (possivelmente daí vem o epíteto Palas Atena). O resto de seu corpo foi transformado em pedra pela cabeça da medusa presa no escudo da deusa.


63 PERIBEIA Giganta criada para derrotar Afrodite, mas a deusa desferiu um golpe mortal com seu espelho. POLIBOTES Após ser acertado por um raio de Zeus, Polibotes correu para a ilha de Kós. Poseidon atirou seu tridente mas errou o alvo, cortando um pedaço da ilha. O deus continuou perseguindo o gigante criado para se opor a ele, até pegar o pedaço da ilha e esmagá-lo (nascendo a ilha de Nísiro). PORFÍRIO Criado como um rei entre seus pares para se opor a Zeus, desposaria Hebe se vencesse os deuses. No entanto, Porfírio atacou Hera, uma vez que Zeus causou-lhe desejo ardente pela deusa. Enquanto rasgava-lhe as vestes para estuprá-la, Zeus o fulminou com um raio ao mesmo tempo que Hércules disparava suas flechas envenenadas. Nem mesmo essa ajuda fez com que Hera desistisse de perseguir o herói: pelo contrário, a deusa se sentiu humilhada e fortaleceu seu desejo de vingança. MIMAS Criado para se opor a Hefesto foi queimado com uma saraivada de ferro em brasa. Alguns mitógrafos dizem que foi incinerado por um raio de Zeus, e outros dizem que foi morto por Ares ou até mesmo Afrodite. Foi enterrado na Prócida. TOAS (TOON) Foi criado com Ágrio para se oporem às Moiras. Acabou morto pelas maças de bronze das três irmãs.

Hermes ainda derrubou quatro gigantes e Hefesto, dois. Sete outros que cercaram Afrodite foram mortos por Hércules. Percebendo que a derrota era iminente por causa da presença do herói, dez gigantes atiraramse em sua direção, mas foram todos mortos pelos raios de Zeus combinados às flechas de Hércules. A Gigantomaquia é o ápice da glória de Hércules no imaginário dos homens, que transformou o herói mortal no salvador de deuses.


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VII Uma nova escravidão O Rei Êurito da Ecália, mestre-arqueiro de Hércules, resolveu desafiar toda a Grécia a vencê-lo numa disputa de arco. O prêmio era sua filha Iole. O herói acabou por fazê-lo, mas o rei não quis que ele desposasse a princesa, porque, pessoalmente, ou por conselho de de seus filhos (exceto Ífito), temesse que Hércules viesse novamente a enlouquecer e matasse Iole. Acabou o próprio rei sendo morto e Iole levada. Pouco tempo depois, Autólico, filho de Hermes e considerado o maior ladrão da mitologia heroica, roubou o rebanho real da Ecália. Usando de astúcia, pintou os animais para que não fossem reconhecidos e, em Tirinto, vendeu-os a Hércules como se fora o dono. Os filhos do falecido Êurito se convenceram que fora Hércules em vingança que roubara o rebanho e novamente Ífito se colocou contrário, decidindo provar sozinho a inocência do herói. O príncipe seguiu as marcas dos cascos e encontrou Hércules em um estábulo onde, sem acusá-lo, perguntou se ele havia visto o ladrão de gado. O herói disse que seria mais fácil encontrar os animais do que o ladrão e subiram até o alto da muralha de um castelo em Tirinto para ver ao longe. Lá em cima, avistaram o gado da Ecália, mas como estavam de outra cor, Ífito não os reconheceu e se deu por convencido de que Hércules era inocente. Porém, naquele momento, Hera novamente enviou Lyssa e Anoia para enlouquecer o herói e, sentindo-se acuado, jogou Ífito muralha abaixo. Recuperada a razão, procurou novamente o Oráculo de Delfos para se purificar, porém, a pitonisa recusou-se a ajudar um homem que havia matado um inocente de forma covarde. Irado, o herói arrancou a trípode consagrada a Apolo e levou-a embora para fundar seu próprio templo. O próprio deus desceu furioso do Olimpo para enfrentá-lo e recuperar a trípode, mas Zeus interveio com seus raios e acalmou os ânimos. A resposta da pitonisa para o herói mais uma vez o colocou como escravo: devia ser vendido como escravo e o dinheiro de sua venda dado aos irmãos de Ífito como compensação mínima. Hermes se encarregou de vendê-lo a Ônfale, rainha da Lídia. Por dois anos, Hércules realizou tarefas servis de forma humilde, até que a rainha decidiu dar tarefas heroicas assim como fez Euristeu:


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Os Cércopes Os Cércopes eram Silo e Tribalo, dois altos e fortes salteadores de estrada, filhos da oceânida Teia, que assaltavam e matavam os viajantes. Sua mãe alertava para não cair na mão de um certo “Melampigio” (melampygos, homem de nádegas cobertas por pelos escuros, sinal de força para os antigos gregos). Certa vez, encontraram Hércules dormindo embaixo de uma árvore. Insultaram-no e o atacaram, mas foram facilmente dominados, ficando amarrados com os pés juntos de cabeça para baixo. Começaram a chorar, berrando que Hércules era tal homem de nádegas escuras. O herói se pôs a rir e os libertou com a promessa de não voltarem ao banditismo. Entretanto, o juramento não durou e ambos pilharam e mataram novamente. Só que dessa vez, irritaram Zeus e acabaram transformados em macacos.

Sileu Filho de Poseidon, Sileu obrigava aqueles que passassem por suas terra a trabalhar até à morte em suas vinícolas. Hércules colocou-se a seu serviço, mas, ao invés de cultivar as videiras, arrancou todas e matou Sileu com um golpe de enxada. Seu irmão, Diceu, hospedou Hércules, que ainda desposou sua filha. Esta mulher se apaixonou de tal forma pelo heroi que, em uma de suas ausências, morreu de amor.

Litierses Assim, como Sileu, Litierses (filho de Midas) era conhecido como Ceifeiro Maldito, uma vez que obrigava todo estrangeiro a debulhar o trigo de suas terra e os decapitava ao final. Hércules novamente se colocou à altura do desafio e matou o gigante vilão. O pastor Dafnis ficou com as terras de Litierses.

Os Itoneus Para livrar a Lídia dos Itoneus, Hércules contou com o exército de Ônfale. Em guerra sangrenta, o herói apoderou-se de Itona, cidade dos saqueadores e, após destruí-la, levou os sobreviventes como escravos.


66 Face a tanta coragem e vitórias gloriosas, Ônfale mandou investigar as origens de seu escravo. Ao saber que era filho de Zeus e da princesa Alcmena, libertou-o e se casou com ele, dando-lhe um filho, Lâmon, ou, segundo outras fontes, dois filhos, Agelau e Tirseno. Após esse período de servidão, Hércules viveu no ócio e na luxúria. Durante este tempo, Ônfale usava a pele do Leão da Nemeia, enquanto o herói trajava suas roupas reais femininas, fiando o linho aos seus pés.


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VIII

O fim trágico e a ascensão divina A morte terrena de Hércules foi extremamente dramática. Novamente livre e purificado de seus atos, o herói decidira erguer um altar em agradecimento a seu pai Zeus. Mandou, então, que o escravo Licas buscasse com Dejanira uma túnica nova que seria usada na consagração solene como praxe. O mensageiro, induzido por Hera, disse que Hércules pedira roupas para seu casamento com Iole e, assim, Dejanira lembrou do conselho de Nesso e enviou uma túnica com a mistura de sangue e sêmen do centauro. Ao vestir a roupa, o veneno da Hidra penetrou na sua pele e ele tombou em terrível agonia. Alucinado de dor, pegou Licas pelos pés e lançou-o ao mar. Cada tentativa de tirar a túnica, arrancava pedaços de pele, pois o tecido estava grudado em seu corpo. Pediu que fosse levado a Tráquis. Ao ver todo o sofrimento de seu marido, Dejanira se apunhalou de culpa na frente de Hércules que, aos prantos, nada pode fazer. Após entregar Iole a seu filho Hilo, pedindo que com ela


68 se casasse logo tivesse idade para tal, mandou erguer uma pira no Monte Eta para ser cremado. Escalou cambaleante ao seu destino final, porém, ninguém teve coragem de acender a fogueira. Somente o relutante jovem Filoctetes23 se disponibilizou e ganhou o arco e as flechas como presente. Compadecido pelas dores do herói da humanidade, seu pai Zeus assegurou sua imortalidade: em meio às chamas24, ouviu-se um trovão e um raio arrebatou Hércules para o Monte Olimpo, onde foi recebido por Atena. Assumiu seu lugar entre os olimpianos como Deus da Força, desposando Hebe, a deusa da juventude e copeira dos deuses, filha de Zeus e Hera, como acordo final de paz. A deusa rainha passou até mesmo a aceitar o epíteto do bastardo Alcides em seu nome.

23. Mestre de armas e amigo pessoal de Hércules, Filoctetes jurou solenemente nunca revelar o paradeiro das cinzas do herói. Foi convidado a navegar até Troia com Menelau para buscar Helena, porém foi deixado por Ulisses em Lemnos por causa de uma ferida infectada no pé, que possui duas versões: em uma, Hera enviou uma serpente para atacálo por ter ajudado Hércules; em outra, gregos o forçaram a falar o local das cinzas e, para não quebrar sua palavra, apontou a direção com pé, que foi ferido quando uma das flechas envenenadas da Hidra caiu da aljava.

24. Os poetas mais românticos dizem que o raio de Zeus iluminou toda a Terra e ninfas apagaram as chamas. Da pira surge um Hércules curado que é levado ao Olimpo por Atena e Hermes em um carro puxado por quatro cavalos alados. No entanto, existe uma variante nada poética dessa morte flamejante. Diz-se que o herói teria entrado em combustão em um ataque de Helios a ele. Para extinguir as chamas, lançou-se em um rio caudaloso e acabou se afogando. O rio passou a ter águas quentes, denominando Termópilas (águas termais) a região entre a Tessália e a Fócida.


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A saga de Hércules é a perfeita personificação da ideia grega do pathos, a experiência do sofrimento virtuoso que leva à glória e, no caso do herói, à imortalidade. Era fundamental que sua saga terminasse em fogo, o único elemento simbolicamente capaz de purificá-lo por inteiro. Melpômene, musa da tragédia, passou a carregar a clava de Hércules em razão de toda essa luta. O herói, inclusive, teve um altar em Roma ao lado das musas, colocando-o como um musagete, ou seja, um líder das damas. Sua ascensão ao Olimpo é a simbologia para a nomeação da Constelação de Hércules (Herculis, a quinta maior das 88 constelações modernas e uma das 48 constelações clássicas descritas por Ptolomeu), que está a mais de 25 anos-luz de distância da Terra. As representações o colocam segurando seja um ramo com os pomos dourados das Hespérides sejam serpentes que podem ser cabeças da Hidra ou aquelas que ele matou na infância.


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IX Os Heráclidas Ao longo das histórias, é possível perceber que Hércules teve várias mulheres e não somente as conhecidas Megara e Dejanira25. Com praticamente todas teve filhos, os quais recebem o nome de Heráclidas ou Heráclides. Alguns deles são (em alguma ordem cronológica):

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Os Tespíadas, filhos do herói com as cinquenta filhas de Téspio (Alópio, Améstrio, Antíades, ntifo, Antíleon, Antímaco, Arquédico, Arquêmaco, Astíanax, Astíbies, Átromo, Búcolo, Buleu, Cápilo, Celeustanor, Cleolau, Creonte, Dinastes, Erasipo, Estrobles, Êumenes, Eurícapis, Euríopes, Eurípilo, Euritras, Eutélides, Falias, Halócrates, Hipeu, Hipódromo, Hipózigo, Homolipo, Iobes, Laomedonte, Laômenes, Leucipo, Lêucones, Liceu, Licurgo, Mentor, Nefos, Nicódromo, Olimpo, Onesipo, Pátroclo, Polilao, Teles, Teleutágoras, Tígasis e Trepsipas).

25. É interessante dizer que esse lado infiel de Hércules é bastante contestado. Muitos estudiosos não acreditam que um herói que passou pela vida se punindo por seus atos em autorrenúncia seria capaz de tais violências. Acreditam que, por ser uma figura extremamente admirada, muitos quiseram reivindicá-lo como familiar e pai de seus filhos do sexo masculino. O número de filhos é, inclusive, um fator de medição da popularidade de um deus e, neste quesito, dizem que Hércules superou o próprio Zeus (cerca de 90 filhos).

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Terímaco, Deicoon e Creontíades, filhos de Megara. Tleptólemo, filho de Astíoque (Astiquéia). Everes, filho de Partenope do Estínfale.

Palêmon, filho de Ifínoe, esposa do gigante Anteu, violentada pelo herói.

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Téstalo, filho de Epicasta do Egeu. Téssalo, filho de Calciopeia da ilha de Kós. Télefo, filho de Auge da Arcádia.


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Hilo, Ctesipo, Gleno, Onites (Hodites) e Macária, filhos de Dejanira.

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Agelau e Tirseno, filhos de Ônfale (ou somente Lâmon). Ctesipo e Lépreas, filhos de Astidâmia de Ormínion. Antíoco, filho de Meda. Alexíares e Aniceto, filhos de Hebe.

Na mitologia romana, Aca Larência foi a amante de Hércules, sem registro de filiação, porém, ele teria tido Zagreu com Coré (Perséfone).

A tradição mitológica conta que os descendentes de Hércules foram exilados após a morte do herói. Encontraram refúgio em Atenas, onde enfrentaram um ataque dos exércitos de Euristeu e acabaram finalmente matando o covarde rei. Liderados pelo primogênito Hilo e Iolau, os heráclidas invadiram o Peloponeso, mas uma pestilência obrigou-os a desistir. Eles retrocederam até a Tessália, onde Egímio não só os recebeu como cumpriu sua promessa com Hércules e deu 1/3 de seu reino a Hilo. Após a morte do rei, os príncipes Pâniflo e Dimas se submeteram a Hilo, tornando-o regente dos Dórios. Em consulta ao Oráculo de Delfos, Hilo soube que deveria esperar até “o terceiro fruto” para retornar à Grécia a fim de recuperar o domínio que seu famoso antepassado estabeleceu. Três anos e três colheitas depois, os heráclidas marcharam contra Micenas, mas Hilo foi morto em combate. Duas outras tentativas foram mal sucedidas, até que Temeno, bisneto de Hilo, ficou sabendo que “o terceiro fruto” era, na verdade, “a terceira geração” e, portanto, responsabilidade dele liderar os heráclidas rumo à conquista do Peloponeso. Acabaram conquistando e destruindo a Civilização Micênica, o que corresponde às Invasões Dóricas.


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X Referências e Associações Mitológicas As mais antigas menções às lendas do herói estão na Ilíada e na Teogonia de Hesíodo, mas são breves. De modo geral, a maioria das referências textuais antigas se perdeu, restando um resumo tardio escrito pelo PseudoApolodoro no século II. Três tragédias gregas chegaram até os dias de hoje em forma de literatura: duas de Eurípedes (Héracles e Os heráclidas) e uma de Sófocles (As traquinianas). Os documentos iconográficos fornecem mais informações e algumas representam, até mesmo, episódios não relatados em fontes literárias. O culto ao herói existia em quase toda Grécia26 e em diversas partes da Eurásia. No panteão etrusco, Uni é a deusa suprema - identificada posteriormente com a grega Hera - e mãe do herói Hercle, possivelmente a origem de todos os mitos greco-romanos. Antigas fontes romanas indicam que o herói grego veio substituir um antigo pastor mitológico chamado pelos povos da Itália de Garanus (Recaranus), que era famoso por sua força. Enquanto o mito de Hércules incorporou muito da iconografia e da própria mitologia do personagem grego (como a morte de Caco), ele também tinha um número de características e lendas que eram marcadamente romanas. Chegou a ser considerado padroeiro das famílias por tudo que passou com as suas e diz-se que Carmenta (Carmentis), uma divindade romana e uma ninfa da Arcádia, filha do rio Lado, previu o futuro glorioso do herói. 26. Mesmo que escritores helenísticos do mito de Ícaro tenham dito que Hércules construiu um túmulo para o rapaz na ilha de Creta, o herói não era reverenciado por lá.

Na Gália, Segomo (“vitorioso, único poderoso”) era cultuado como um deus da guerra que, em tempos de religião gálico-romana, foi igualado a Marte e Hércules. O líder mítico Gálates, que constituiu parte da antiga população da Gália central, seria um heráclida.


74 Já os gauleses associavam Ogmios a um Hércules mais velho (ou Hermes). Essa divindade era descrita como um homem calvo com um arco e uma clava liderando um bando de homens aparentemente felizes ostentando correntes presas na língua e nas orelhas. Alguns estudiosos encaram isto como uma metáfora para eloquência, possivelmente relacionadas à práticas dos bardos e à capacidade de persuasão de Hércules. Os celtas na Irlanda acreditavam que seu ancestral Celto seria filho de Hércules. Acreditavam em Ogma, o campeão dos Tuatha de Dannan, que usava sua maça para defender o povo e teria inventado a linguagem rúnica dos druidas, o ogham. O historiador romano Tácito registra uma afinidade especial dos povos germânicos por Hércules associado a Thunaraz. Ele afirma que existia a memória do herói em celebrações antes de combates com cânticos que acendiam os ânimos. Maças de ouro com inscrições “ao deus Hércules” espalharam-se no período romano. Essas maças foram comparadas à clava de Donar e ao martelo de Thor como amuletos. A lenda de Hércules também avançou pela Ásia. Megástenes, um enviado grego à Índia, comparou a saga do herói aos feitos descritos no Mahabarata. Cites, personagem mitológico ancestral dos persas, seria um heráclida. Estudiosos das primeiras civilizações associam o herói mesopotâmico Gilgamesh e a divindade fenícia Melqart ao herói grego.


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XI Outras Mídias Inúmeros romances, contos, filmes, histórias em quadrinhos, minisséries de TV e desenhos animados que envolvem seres superpoderosos se inspiraram nas façanhas de Hércules. O herói tornou-se muito popular na Idade Média e no Renascimento, sendo referência, por exemplo, para o romance em prosa poética Le fatiche d’Ercole, de Pietro Bassi (1475), para o texto em prosa Los doze trabajos de Hercules, de Don Enrique de Villena (1483-1499), para o romance anônimo Les prouesses et vaillances du preux Hercules (1500), para o poema Dodeci travagli di Ercole, de J. Perillos (1544) e uma coleção de adágios e alegorias chamada Trabajos y afanes de Hercules, de Fernandez de Heredia (1682). A romancista Agatha Christie inspirou-se no herói não só para nomear um de seus principais personagens (Hercule Poirot) como também para nomear uma coletânea de doze contos policiais do detetive belga (The labours of Hercule). A seguir, uma lista significativa da presença do herói em várias mídias:

Cinema

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Hércules (Le fatiche de Ercole, 1958, 104’), primeiro filme italiano do americano Steeve Reeves como o herói. O ator ficou tão conhecido como o herói que muitos dos seus filmes receberam o nome de Hércules sem serem sobre o tema.

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Hércules e a Rainha da Lídia (Ercole e la Regina di Lidia / Hercules unchained, 1959, 98’), novamente com Steeve Reeves.

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Hércules na Conquista de Atlântida (Ercole alla Conquista de Atlantide / Hercules and the Captive Women, 1961, 101’), com Reg Park fazendo o herói.


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Hércules no Centro da Terra (Ercole al Centro della Terra / Hercules in the Haunted World, 1961, 91’), segundo filme de Reg Park com Christopher Lee sendo o vilão Rei Licos.

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A Fúria de Hércules (La Furia de Ercole, 1962, 97’), protagonizado por Brad Harris.

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Hércules e o Império dos Elefantes (Ercole l’invincibile, 1964, 85’), protagonizado por Dan Vadis.

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Os Tiranos da Babilônia (Ercole contro i Tiranni di Babilonia, 1964, 96’), protagonizado por Peter Lupus (Rock Stevens).

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Maciste e a Rainha de Samar (Maciste e la Regina di Samar / Hercules against the Moon men, 1964, 90’), protagonizado por Sergio Ciani (Alan Steel).27

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O Desafio dos Gigantes (La Sfida dei Giganti / Hercules the Avenger, 1965), com o retorno de Reg Park ao herói.

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Hércules em Nova York (Hercules in New York, 1970, 75’), protagonizado por Arnold Schwarzenegger).

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Hércules (Hercules, 1987, 98’), filme clássico protagonizado por Lou Ferrigno, o antigo Hulk.

27. Maciste é um dos personagens mais recorrentes do cinema italiano do gênero gladiador (peplum), precursor dos personagens de aventuras falsamente mitológicas (Conan), interpretados por atores com hipertrofia muscular, que apareceu pela primeira vez no filme italiano épico Cabíria, de 1914. Representa um homem mitológico muito similar a Hércules, que utilizava sua descomunal força para realizar feitos heroicos. Por essa razão, muitos filmes italianos de Maciste foram traduzidos para Hércules no mercado americano.


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Hércules e as Amazonas (The legendary journeys: Hercules and the Amazon Women, 1994, 91’), primeiro filme protagonizado por Kevin Sorbo.

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Hércules em busca do Reino Perdido (The legendary journeys: Hercules and the Lost Kingdom, 1994, 91’), segundo filme protagonizado por Kevin Sorbo.

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Hércules e o Círculo de Fogo (The legendary journeys: Hercules and the Circle of Fire, 1994, 91’), terceiro filme protagonizado por Kevin Sorbo.

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Hércules no Mundo dos Mortos (The legendary journeys: Hercules in the Underworld, 1994, 90’), quarto filme protagonizado por Kevin Sorbo.

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Hércules e o Labirinto do Minotauro (The legendary journeys: Hercules in the Maze of the Minotaur, 1994, 90’), quinto e último filme protagonizado por Kevin Sorbo antes da série de TV.

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Steve Byers faz o deus Hércules no filme controverso Imortais (Immortals, 2011).

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O Jovem Hércules (Young Hercules, 1998, 86’), prequel dos filmes e seriados de Kevin Sorbo, protagonizado por Ian Bohen.

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Hércules (Hercules, 2014, 98’), com Dwayne “The Rock” Johnson protagonizando.

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Hércules (The legend of Hercules, 2014, 99’), com Kellan Lutz protagonizando.

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Hercules reborn (2014, 95’), protagonizado pelo lutador de wrestle John Hennigan.


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TV

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Hércules (Hercules: The legendary journeys, 1995-9), seriado de TV com Kevin Sorbo na esteira do sucesso dos filmes que protagonizou. Teve 6 temporadas e deu no spin-ff de Xena: A princesa guerreira, onde Kevin fez dois episódios como o herói.

Animação

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The Mighty Hercules (1963-65), animação que teve três temporadas com Jimmy Tap fazendo a voz do herói.

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Hércules faz uma participação na animação de Thor, da Marvel em 1966.

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O filme O Jovem Hércules também gerou uma temporada de um seriado (1998-1999, 49 episódios) protagonizado por Ryan Gosling. Brian Thompson fez o herói em A vingança do gladiador (Jason and the Argonauts, 2000, 90’ cada), filme para TV em duas partes.

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Daniel Pierce e Jonathan Whitesell interpretam Hércules no seriado Once upon a Time.

Hércules (1995), animação feita numa parceria entre Japão e EUA. Hércules, clássico da Disney (Hercules, 1997, 93’), com Tate Donovan dublando o herói.

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Na esteira do sucesso do filme, a Disney lançou um seriado animado (Hercules - Zero to hero, 1998-9). Em 1999, a Disney lançou o filme desse seriado.

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Logo depois que a Disney faz sucesso com algum filme, costumam aparecer inúmeras animações de mesmo tema porém qualidade inferior. É o caso de Hércules (Hercules: Enchanted Tales, 1997, 50’, da Sony Wonder) e Hércules (1997, 50’, Marvista)


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Hércules e Xena - A Batalha pelo Monte Olimpo (Hercules & Xena - The Animated Movie: the Battle for Mount Olympus, 1998, 80’) uniu Kevin Sorbo e Lucy Lawless nas vozes de seus personagens de sucesso da TV.

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Mythic Warriors: Guardians of the Legend (19982000) foi uma animação com duas temporadas que contava a história de vários heróis gregos. Lawrence Bayne fez a voz de Hércules.

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Class of Titans (2006-7), animação sobre descendentes dos deuses que teve quatro temporadas, com Garry Chalk fazendo a voz do herói.

Quadrinhos

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A Marvel possui um Hércules entre seus personagens com características praticamente iguais às do herói mitológico. A DC Comics também tem seu Hércules, ligado às histórias da Mulher-Maravilha.

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O filme com Dwayne “The Rock” Johnson foi baseado na HQ The Tracian Wars, the Steve Moore.


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Videogame

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Hércules, jogo do filme da Disney.

O herói é um dos chefes/inimigos de fase do God of War 3.

Música

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George Frideric Haendel compôs em 1744 a ópera Hércules em três atos. Foi apresentada pela primeira vez no King’s Theatre em Londres em janeiro de 1745. Teve, pelo menos, outras cinco montagens.

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O herói é citado na música Holding out for a hero, de Bonnie Tyler.

Esta publicação será atualizada sempre que encontrar novas informações. Se você tiver alguma, mande para mitographos@gmail.com.


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XII Arte hercúlea

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Por ser talvez o heroi da mitologia clássica mais conhecido universalmente, Hércules é um dos que teve mais sorte entre os artistas desde a Antiguidade. Seus trabalhos, assim como outras lendas ligadas ao herói, são figurados já desde o começo do séc. VII a.C., quando surge na cerâmica grega a técnica da decoração em negro. As divindades e os herois eram representados em figuras negras e contornos entalhados contra o fundo alaranjado da argila, em composições inspiradas em obras pictóricas (madeira e afrescos) que se perderam, mas cuja existência é atestada por fontes literárias. Entre os muitos exemplos, destacamse uma ânfora ática do século VI a.C. com a Disputa pela Corça da Cerineia entre Héracles, Apolo e Ártemis, sob o olhar de Atena (Museu do Vaticano) e duas ânforas do início do século V a.C. (Museu do Louvre) que mostram Hércules golpeando a Hidra de Lerna com um machado (img.1) e Hércules luta contra as aves estinfálidas (img.2). Nestes dois exemplos, são bem visíveis os atributos tradicionais do heroi: a pele do Leão da Nemeia e a clava. Às vezes, o semideus também é representado com uma espada (presente de Hermes) ou com arco e flechas (dados por Apolo). Na segunda metade do século VI a.C., aparecem também os primeiros vasos com decoração invertida, ou seja, de figuras ver-


82 melhas que tem contornos negros no interior e se recortam sobre fundo negro. Durante cerca de um século os ceramistas usaram essa técnica não só para realizar o escorço das figuras, mas também mostram a profundidade espacial e a expressão psicológica dos personagens. Entre os exemplos mais importantes desse estilo aplicado à figura de Hércules, está vaso de grandes dimensões (cratera em cálice) de c. 510 a.C., do ceramista Eufrônio, com a representação da luta entre Hércules e Anteu (img.3), e o vaso de boca larga (canjirão) com a cena de O jovem Hércules estrangulando as serpentes, de c. 480 a.C. (img.4) Também são muitas as representações do heroi na estatuária antiga. Entre os exemplos mais interessantes, há dois: o Hércules Lansdowne e o Hércules de Farnese, ambos do século IV a.C. (ver págs. 8 e 9) Não faltam os exemplos de mosaicos greco-romanos ou de arte etrusca que tem como tema as gestas dele. A figura de Hércules se mantém como um tema preferido pelos artistas e pelos respectivos clientes até os primeiros séculos da era cristã, para depois desaparecer do horizonte artístico, junto com outros temas mitológicos, no decorrer dos séculos seguintes. Uma de suas representações tardias na arte antiga é a da pintura parietal (mural) do século I d.C. proveniente de Herculano, com Hércules estrangulando as serpentes (ver pág. 14). Outros herois e deuses da mitologia clássica reapareceram na arte durante o século XV, no Renascimento italiano. Já então visto como encarnação do bem que triunfa sobre o mal, segundo a interpretação neoplatônica da lenda, Hércules se torna mais uma vez um assunto popular, destinado a perdurar. O escultor e pintor Antonio del Pollaiolo foi um dos primeiros a utilizar temas exclusivamente mitológicos. Por volta de 1460 pintou, a pedido de Lourenço o Magnífico, três grandes telas sobre

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os trabalhos de Hércules, que infelizmente se perderam. Duas madeirinhas de Pollaiolo com Hércules e a Hidra (img.5) e Hércules e Anteu (Galleria degli Uffizi, img.6) são consideradas evocações dessas obras. Nelas, já não vemos o linearismo* e a bicromia das representações dos vasos antigos, mas uma restituição clássica da anatomia unida às poderosas figuras masculinas da estatuária antiga, que estava sendo redescoberta no decorrer do século XV pelos artistas humanistas. As cenas são impregnadas de energia, graças as nervosas linhas de contorno que compõe a figura de Hércules e as dos seus adversários. Em Hércules e a Hidra, a pele de leão se infla com o enérgico salto do heroi para a frente e a ponta do manto descreve uma curva, assim como os longos pescoços da Hidra e sua cauda que se enrola a uma perna de Hércules. Além disso, as cenas não se recortam mais sobre o fundo monocromático, abstrato, mas sobre um paisagem a perder de vista, conquista da pintura flamenga e dos estudos sobre a perspectiva.

* Linearismo se baseia na consistência mais expressiva e física da linha de cor e do chiaoscuro para uma definição mais clara e limpa da forma às custas da sensação de profundidade. Essa tendência artística se desenvolveu por volta do século XV e teve em Botticelli um de seus expoentes.

O mesmo Pollaiolo representa Hércules e Anteu num pequeno bronze de c. 1475 (img.7). Vicenzo de Rossi, escultor florentino do século XVI, dá sua versão do tema num grupo escultórico que hoje se encontra no Palazzo Vecchio, em Florença; em 1599, Giambologna realiza o grupo marmóreo com Hércules e o centauro Nesso (ver pág. 57). Alguns anos mais tarde, Rubens pinta Héracles estrangulando o leão da Nemeia (ver uma de suas versões na pág. 20) e Héracles no jardim das Hespérides (Galleria Sabauda, Turim); o pintor espanhol Francisco de Zurbarán fornece suas versões para os trabalhos de Hércules em telas (ver páginas 31, 43, 55 e 67). Mais tarde, nos primeiros anos neoclássicos do século XIX, o escultor Antonio Canova explorou o tema da cólera de Héracles executando um grupo escultórico de grande dramaticidade, no qual mostra o


84 herói arremessando no ar seu amigo Licas (ver pág. 67). Uma versão entre o fantástico e o fantasmagórico de um episódio da vida do herói nos é dada por Héracles e a Hidra de Lerna (img.8), de Gustave Moreau. Seria errôneo, contudo, atribuir a popularidade do heroi entre os artistas exclusivamente ao aspecto simbólico do bem que triunfa sobre o mal. Talvez, mais do que qualquer outra coisa, os artistas sejam atraídos pelo caráter dramático e exasperado de suas aventuras. IMG.8


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Lista de Imagens Todas as imagens foram retiradas da Internet. Caso haja alguma legenda errada ou crédito faltando, favor entrar em contato através do e-mail mitographos@gmail.com.

Capa. Hércules barbudo coberto por pele de leão. Estátua romana em mármore, séc. I, Metropolitan Museum of Art, EUA.

Páginas 18/19. Relevo romano com nove do dos Doze Trabalhos, séc. III a.C., s/l.

Página 28. Hércules e o Javali do Erimanto. Estátua em bronze de Louis Tuaillon, 1904, Berlim.

Epígrafe. Ruínas do Templo de Hércules em Agrigento, Itália.

Página 20. Hércules e o Leão da Nemeia. Óleo de Peter Paul Rubens, séc. XVIII, s/l.

Página 29. Hércules e Folo. Pintura em ânfora, cerca de 520 a.C., s/l.

Página 8. Jovem Hércules. Estátua romana em mármore, séc. I, Metropolitan Museum of Art, EUA.

Página 21. Hércules lutando contra o Leão da Nemeia. Estátua em mármore, séc. II, Roma.

Páginas 8/9. Hércules Farnésio. Estátua em mármore de Glykon, 216 a.C., s/l.

Página 21. Hércules e o Leão da Nemeia. Por ser um herói imberbe, pode ser a representação do leão morto na Beócia. s/d, s/l.

Página 10. Ilustração em estilo de cerâmica grega da Raposa de Têumesso e do cão Lélape. Página 11. Alcmena e Zeus. Gravura de Nicolas-Henri Tardieu, s/d, s/l. Página 12. O nascimento de Hércules. Ilustração de Jean Jacques François Le Barbier, s/d, s/l. Página 13. A origem da Via Láctea. Óleo de Tintoretto, 1575-80, s/l. Página 14. Héracles infante. Tela de Innes Fripp, s/d, s/l. Página 14. Hércules estrangula as cobras na frente de Anfitrião e Alcmena. Fragmento de afresco, s/d, Pompeia. Página 15. Jovem Hércules acerta cadeira em Lino. Pintura em cerâmica, s/d, s/l. Página 16. Hilas e as ninfas. Óleo de John William Waterhouse, 1896, s/l. Página 17. Hércules e Iolau. Mosaico romano, séc. I a.C, s/l.

Página 22. Constelação de Leão (Leo). Regulus (ou Cor Leonis, coração do leão) é a estrela mais brilhante. Página 23. Hercules e a Hidra de Lerna. Estátua em mármore de Lorenzo Mattielli, s/d, na fachada do Palácio Imperial de Hofburg em Viena, Áustria. Página 24. Hércules e Iolau derrotam a Hidra. Gravura, s/d, s/l. Página 24. Hércules e Iolau enfrentam a Hidra. Pintura em cerâmica, s/d, s/l. Página 25. Hércules e Iolau atacam a Hidra e os caranguejos em Lerna. Gravura, s/d, s/l. Página 25. Constelação de Câncer. Página 26. Hércules agarra a corça. Afresco de Adolf Schmidt, séc. XIX, s/l. Página 27. Ártemis e a Corça da Cerineia. Estátua em mármore, s/d, s/l. Página 27. Hércules e a Corça. Estátua em bronze de Giambologna, s/d, s/l.

Página 29. Hércules, o javali e Euristeu. Pintura em ânfora, cerca de 525 a.C., s/l. Página 30. Hércules abre caminho pra os rios. Ilustração de Frank Götz, s/d, s/l. Página 31. Hércules desvia o curso do Rio Alfeu. Óleo de Francisco de Zurbarán, 1634, s/l. Página 31. Mosaico romano mostra Hércules com um ancinho para desviar o curso dos rios, séc. III d.C. Página 32. Hércules atirando nas Aves do Estínfale. Tela de Albrecth Dürer, 1500, s/l. Página 33. Hércules e as Aves do Estínfale. Óleo de Gustave Moreau, 1872, s/l. Página 33. Címbalo chinês de bronze. (ilustrativo). Página 33. Mosaico romano mostra Hércules flechando as aves, em Valencia, Espanha. Página 34. Hércules domina o Touro de Creta. Estátua em mármore de Lorenzo Mattielli, s/d, na fachada do Palácio Imperial de Hofburg em Viena, Áustria. Página 35. Hércules dominando o Touro de Creta. Estátua em bronze de August Kriesmann, s/d, Alemanha.


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Página 35. Hércules e o Touro de Creta. Relevo no Templo de Zeus, 470-460 a.C., em Olímpia. Página 35. Constelação Taurus. Ilustração de Johannes Hevelius, s/d, s/l. Página 36. Dimoedes devorado por suas éguas. Óleo de Gustave Moreau, s/d, s/l. Página 37. A morte de Alceste. Tela de Pierre Peyron, 1785 s/l. Página 37. Hércules enfrenta a Morte por Alceste. Óleo de Frederic Leighton, 1870, s/l. Página 38. Diomedes e suas éguas. Ilustração de Freank Götz, s/d, s/l. Página 38. Mosaico mostra Hércules e as éguas de Diomedes, s/d, s/l. Página 38. Hércules e as éguas de Diomedes. Óleo, s/d, s/l. Página 39. Hércules obtém o cinturão de Hipólita. Óleo de Nikolaus Knüpfer, s/d, s/l. Página 40. Hércules contra as amazonas. Pintura em cerâmica, s/d, s/l. Página 40. Hércules vence Hipólita. Estátua em mármore de Lorenzo Mattielli, s/d, na fachada do Palácio Imperial de Hofburg em Viena, Áustria. Página 41. Hércules liberta a filha de Laomedonte. Óleo de Louis de Silvestre, s/d, s/l. Página 42. Hércules carregando os bois de Gerião. Xilogravura de Gabriel Salmon, s/d, s/l. Página 43. Moeda de bronze de Gerião e seus bois. Página 43. Hércules separa Calpe e Abília. Óleo de Francisco de Zurbarán, 1634, s/l. Página 44. Hércules enfrentando Gerião, com Ortro e Euritião abatidos. Pintura em ânfora, s/d, s/l.

Página 44. Ilustração de Hércules levantando um de seus pilares.

Página 55. Hércules e Cérbero. Pintura em cerâmica etrusca, séc. V, s/l.

Página 45. Hércules mata Caco. Gravura de Hans Sebald Beham, 1545, s/l.

Página 55. Hércules e Cérbero. Óleo de Francisco de Zurbarán, 1634, s/l.

Página 47. O Jardim das Hespérides. Tela de Edward Brune-Jones, s/d, s/l.

Página 55. Hércules entrega Cérbero a Euristeu, que se esconde no jarro de bronze. Pintura em cerâmica etrusca, séc. V, s/l.

Página 48. Ilustração de Ládon. Página 48. O Jardim das Hespérides. Tela de Frederic Leighton, 1892, s/l. Página 49. Hércules enfrenta Cicno. Pintura em ânfora, s/d, s/l. Página 49. Hércules luta com Nereu e nereidas ao redor. Pintura em cerâmica, s/d, s/l.

Página 55. Acônito. Página 56. Hércules lutando com Aquelôo em forma de serpente. Estátua de bronze, s/d, s/l. Página 56. Hércules e Dejanira. Óleo de Jan Gossaert, 1517, s/l.

Página 49. O combate de Hércules e Anteu. Pintura decorativa em teto de Auguste Couder, s/d, Museu do Louvre.

Página 57. Hércules derrota Nesso. Estátua em mármore de Giambologna, que é um clássico, porém, não retrata corretamente a lenda. s/d, s/l.

Página 50. Hércules matando Busíris e seus sudítos. Pintura em ânfora, 480 a.C., s/l.

Página 57. Hércules e Dejanira com Nesso aos seus pés. Estátua em terracota de Pietro Finelli, s/d, s/l.

Página 50. Prometeu e Hércules. Óleo de Christian Griepenkerl, 1878, s/l.

Página 58. Hércules e Antágoras. Estátua de bronze em Kós, s/d, s/l.

Página 51. Atlas e as Hespérides. Óleo de John Singer Sargent, 1924, s/l.

Página 58. Hércules mata os Moliônides. Gravura de Albert Dürer, s/d, s/l.

Página 51. Hércules e os Pomos de ouro. Estátua romana em bronze, séc. II a.C., s/l.

Página 58. Hércules atleta vitorioso. Estátua romana de mármore, s/d, s/l.

Página 51. Hércules encontra Atlas. Gravura, s/d, s/l. Página 51. Atlas traz os pomos para Hércules que segura temporariamente os céus. Relevo do Templo de Zeus, s/d, em Olímpia. Página 52. Hércules dominando Cérbero. Estátua em mármore de Lorenzo Mattielli, s/d, na fachada do Palácio Imperial de Hofburg em Viena, Áustria. Página 53. Atenas e Hermes acompanham Hércules à entrada do Reino de Hades e são recebidos por Perséfone e Cérbero. Gravura que reproduz pintura em cerâmica. s/d. s/l. Página 54. Cérbero. Aquarela de William Blake, s/d, s/l.

Página 59. Morte de Eono. Afresco em Florença, s/d, s/l. Página 60/61. A queda dos gigantes. Óleo de Francisco Bayeu, 1764, Museu do Prado. Página 60. Ilustração de gigante, s/d, s/l. Página 62. Atenas enfrentando gigantes. Relevo em mármore, s/d, s/l. Página 63. Hécate contra Clítio. Detalhe do Altar de Pergamo, s/d, Turquia. Página 63. Fonte de Encélado. s/d, Versailles, França. Página 63. Poseidon ataca Polibotes com seu tridente e a ilha no ombro. Pintura em cerâmica, s/d, s/l.


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Página 64. Apolo enfrenta Hércules que rouba a trípode. Pintura em cerâmica, s/d, s/l.

Referências Bibliográficas e Virtuais

Página 65. Hércules e os Cércopes. Relevo em pedra, s/d, Templo de Paestum, Itália.

BARTLETT, Sarah. A Bíblia da Mitologia: Tudo o que você queria saber sobre mitologia. Ed. Pensamento, 2012.

Página 66. Hércules e Ônfale. Óleo de François Lemoyne, 1724, s/l.

BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. vols. I, II e III. Ed. Vozes, 2004.

Página 66. Hércules e Ônfale. Óleo de Johann Heinrich Tischbein, 1754, s/l.

MAGALHÃES, Roberto Carvalho de. O grande livro da mitologia: a mitologia clássica nas artes visuais. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.

Página 67. A morte de Hércules. Óleo de Francisco de Zubarán, 1634, s/l.

SCARPI, Paolo. Politeísmos: as religiões do mundo antigo - Egito, Roma, Grécia, Mesopotâmia, Pérsia. Ed. Hedra, 2004.

Página 67. Hércules atira Licas. Estátua de Antonio Canova, s/d, s/l.

TEPHANIDES, Menelaos. Hércules. São Paulo: Odysseus, 2000.

Página 68. Hércules na fogueira e Filoctetes aos prantos. Ilustração de E. H. Montagny, s/d, s/l. Página 68. Filoctetes na Ilha de Lemnos. Gravura de James Barry, s/d, s/l. Página 69. A morte de Hércules. Gravura de Bernard Picart, 1731, s/l. Página 70. Casamento de Hércules e Hebe no Monte Olimpo. Tela, s/d, s/l. Página 70. Hércules e as musas. Óleo de Alessandro Allori, 1568, s/l. Página 70. Constelação de Hércules. Página 71. Hércules e Télefo. Estátua romana em mármore, séc. I, s/l. Página 73. Uni amamenta Hercle. Detalhe em espelho etrusco, séc. III a.C., Volterra. Página 74. Ogma. Detalhe numa porta de bronze por Lee Lawrie, 1939, EUA. Página 76/77. Filmes com Hércules. Página 78. Proramas de televisão com Hércules. Página 79. Animações com Hércules. Página 79. HQs com Hércules. Página 80. Hércules no jogo God of War 3. Página 80. Capa do disco da ópera de Haendel, Hercules.

WILKINSON, Philip. O livro ilustrado da mitologia: lendas e histórias fabulosas sobre grandes heróis e deuses do mundo inteiro. São Paulo: Publifolha, 2000. WILLIS, Roy. Mitologias: Deuses, heróis e xamãs mas tradições e lendas de todo o mundo. Coleção Referência. Publifolha, 2007. Enciclopédia Mitologia: Mitos e lendas de todo o mundo. Lisboa: Caracter Editora, 2011. Encyclopedia Mythica. Disponível em http://www.pantheon.org/ Godchecker. Diponível em http://www.godchecker.com/ Wikipedia. Disponível em http://pt.wikipedia.org



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