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ANO I - Nº 2 - ABRIL - 2013

GNARUS REALENGO

ELITE

HISTÓRIA ESCRITA BURKE

LUTERO

ARQUIVO

FEBVRE

CUBA

CINEMA

VENEZUELA

MILITARES

VACINA

MEMÓRIA

DITADURA

Revista de História - ISSN: 2317-2002

LITERATURA

POLÍCIA

HIERARQUIAS


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Sumário Ao leitor................................................................................................................................................................................................. 3

Fernando Gralha O ameríndio e a nação (re)inventada na obra do poeta e escritor Joaquim de Sousândrade: alcances e limites (1860 – 1900)...................................................................................................................................................................................................... 5

Ramon Castellano A ampliação do conceito de elite na historiografia pós-moderna............................................................................................ 13

Rodrigo Amaral Cuba ilhada: relações comerciais no período especial em tempos de paz: alianças entre cuba e uma venezuela bolivariana (1999 – 2005) .................................................................................................................................................................. 18

Rennan de Azevedo Ramos Cotidiano policial e revolta da vacina............................................................................................................................................. 24

Daniele dos Reis Crespo Rodrigues João O tridente de ferro: as forças políticas do comunismo brasileiro.............................................................................................. 34

Bruno Capalupo Entrevista: Perter Burke...................................................................................................................................................................... 41

Jessica Corais e Fernando Gralha Cinema, materialidade textual e história cultural: algumas ponderações críticas sobre a relação história, cinema, pesquisa e ensino................................................................................................................................................................................. 44

Alexander Martins Vianna Resenha: Um convite à leitura de “Martinho Lutero, um destino”............................................................................................ 50

Patrícia Woolley Cardoso O Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel no contexto da crise da memória social............................................ 54

Jordany Mouzer de Souza Augusto César Malta de Campos: Um Fotógrafo ......................................................................................................................... 58

Fernando Gralha


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AO LEITOR

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screver História. Desde que o homem começou a escrever entrou em um caminho sem volta no ato de elaborar com mais complexidade seus pensamentos, escrever é diferente de falar. Nos primórdios da humanidade todo o conhecimento era transmitido oralmente, no falar, neste tipo de conhecimento sempre predominou a mitificação do pensamento, mythos significa “palavra”, “o que se diz”, a palavra tinha como sustentáculo um ser vivo, que impregnava sua fala de todas as suas impressões e crenças, nada que a metodologia da História oral hoje não resolva, mas a questão aqui não é essa, e sim a importância da escrita como elemento importante na transição do pensamento humano do mito à razão. Ainda assim, a escrita tem suas origens no pensamento mágico, reservado aos sacerdotes e reis, “hieróglifos” significa “sinais divinos”. É, como sempre, na Grécia antiga, mais precisamente no período micênico, que surge uma escrita com objetivo de registrar as atividades administrativas da aristocracia palaciana, esta escrita desaparece com a invasão do Dórios no séc.

XVII a.C. para ressurgir somente no séc. IX ou VIII a.C. por influência dos fenícios. É neste ressurgimento que a escrita ganha os contornos que nos interessam aqui, pois ela não está mais ligada apenas ao pensamento esotérico e à classe dos escribas, sempre ligada ao poder, segundo Paul Vernant “a escrita não terá mais

por objetivo constituir para o uso do rei arquivos no recesso de um palácio; terá correlação doravante com a função de publicidade; vai permitir divulgar, colocar igualmente sob o olhar de todos, os diversos aspectos da vida social e política”.1 O que está em destaque é a dessacralização da escrita, que a partir de então origina uma nova idade mental porque exige de quem escreve uma atitude distinta daquele que apenas fala. A escrita fixa a palavra e logo o mundo para além daquele que a pronunciou e, portanto, exige máxima exatidão e 1

VERNANT, J.P. As origens do pensamento grego. 2. Ed. São Paulo. Difel, 1977. p. 25.


G N A R U S |4 clareza, o que incita o pensamento crítico. Além disso, a retomada posterior do que foi escrito, não só por coevos, mas por diversas gerações, abrem horizontes do pensamento, propiciando o distanciamento do vivido, o confronto das ideias, a ampliação da crítica. A escrita nasce como perspectiva maior de abstração, uma reflexão da palavra que tenderá a modificar a própria estrutura do pensamento.

Rodrigo Amaral, que nos apresenta uma ampliação do conceito de elite na historiografia pós-moderna através de uma longa pesquisa nos arquivos sobre a escravatura, a outra é da Professora Daniele Crespo, que tendo como pano de fundo a Revolta da Vacina discorre sobre as relações de poder entre a população e a principal força de repressão e controle do Estado, a polícia.

Refletir, olhar para trás e contar uma História, desde Heródoto, este é um dos ofícios do historiador, escrever a História, mas o que nos separa da ficção? O que faz de nosso discurso legítimo? Há muito tempo já abandonamos a ideia da verdade única, o paradigma rankeano de que os fatos falam por si caíram por terra, sabemos da impossibilidade de compreender todos os aspectos formadores de um grupo, comunidade, população, ações, gestos, e toda atuação humana, pois o passado passou, trabalhamos com o que sobrou dele. Fazemos escolhas, elegemos o aspecto do passado que nos interessa, sim, História é escolha do historiador, é ele que vai determinar a escrita da História. A partir daí entra a ciência, o método, trabalhar com imagens? Um método. História oral? Outro método. História política? Outro. Economia? Mais outro e assim por diante. Não esqueçamos do conselho básico da escola dos Annales, converse com outras disciplinas, a filosofia, a psicologia, a arqueologia, e tantas outras. Junte tudo isso a muita leitura da produção dos colegas historiadores, muitas horas nos arquivos e debates nos seminários, encontros acadêmicos nas Anpuh’s da vida e pronto, está aí um trabalho historiográfico, uma escrita da História.

Na área da teoria temos dois trabalhos diretamente ligados à escrita da História, na coluna “No escuro do cinema” o artigo do professor Alexander Martins trata o papel do discurso fílmico, sua função na historiografia e sua relação com o ensino de História, trabalho profundo e que vai gerar, com certeza, novos debates. Outro importante trabalho é o da Professora Patrícia Woolley, na seção “Resenha” a historiadora faz um retrato acurado da obra de Lucien Febvre “Martinho Lutero, um destino”, seu texto claro e consistente nos convida a leitura do clássico de forma quase irrecusável. Além destes temos outros exercícios da escrita da História muito bem relatados aqui, um deles é o da coluna do Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel, onde o professor Jordany Mouzer discute o cenário dos centros de memória e suas técnicas arquivistas nas relações entre História e memória. Finalizando temos dois artigos polêmicos sobre as questões das relações de poder na América Latina com personagens ainda muito importantes no contexto das relações políticas, Brasil, Venezuela, Cuba e E.U.A, que são, sem dúvida, ainda os grandes atores das Américas.

Este número está recheado destes exemplos, para começar temos na entrevista um mestre dos debates sobre a escrita da História, Peter Burke nos concedeu a honra de configurar em nossas páginas e fala com propriedade do ofício do historiador. Abrindo a revista temos a pesquisa do professor Ramon Castellano, resultado de um trabalho com a obra do poeta e escritor Joaquim de Sousândrade e a formação dos conceitos de nação no Brasil século XIX. Junto a esta temos mais duas pesquisas de fôlego, a do Professor

Enfim, esperamos que percebam que a escrita da História tem muitos rostos e que, para os historiadores alcançarem um trabalho consistente, devem escolher, dentre muitos, que aspectos da vida de uma coletividade irão pesquisar, sempre com muito cuidado. Que este número seja mais uma prazerosa viagem ao rio do conhecimento, o A-Letheia de nossa musa Mnemósyne.

Fernando Gralha


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Pesquisa

O AMERÍNDIO E A NAÇÃO (RE)INVENTADA NA OBRA DO POETA E ESCRITOR JOAQUIM DE SOUSÂNDRADE: ALCANCES E LIMITES (1860 – 1900) Por Ramon Castellano Ferreira

O

presente artigo tem por finalidade discutir a vida e o obra do poeta e escritor Joaquim de Sousândrade. A partir de sua vivência e através de sua criação poética, pretendemos discutir como este personagem pensou a nação e o ameríndio dentro de um contexto de perda de poder simbólico por parte do Reinado de Pedro II e da implantação do regime republicano no Brasil de fins do século XIX. Para tal objetivo serão utilizados alguns fragmentos selecionados de sua principal obra: O

O Poeta e Escritor Joaquim de Sousândrade

Guesa, poema em construção escrito entre o final da década de 50 até a morte do autor no início do século XX, este épico nos permitirá fazer uma análise sobre as escolhas estéticas, políticas e ideológicas feitas pelo poeta maranhense dentro deste período histórico. Uma grande parte dos estudos historiográficos que trabalha com fontes literárias e poéticas costuma enfatizar somente o caráter histórico das mesmas, tratando-as como mera ilustração de um dado período ou contexto. Embora não conteste tal concepção e a sua validade como um todo, o presente artigo pretende seguir um caminho diferente, qual seja: seguindo proposta de Roger Chartier (2005), num primeiro momento iremos analisar o nosso objeto num caráter diacrônico, dando ênfase à ressignificação da nação e do ameríndio dentro da obra do poeta maranhense e a sua relação com seus referentes anteriores (assim como discutiremos o modo como o poeta se posicionou nesse espaço social de relações); num segundo momento iremos levantar algumas questões relativas à complexidade e heterogeneidade do sincrônico, mas com atenção maior na diferença, discutindo os alcances e limites das construções e escolhas feitas por Joaquim de Sousândrade. Com base na proposta de Maria Regina Celestino de Almeida acerca do diálogo entre antropologia e história para aplicabilidade na relação entre agência e estrutura, iremos focar na capacidade da ação humana, relacionando-a às possibilidades e alternativas de determinadas estruturas sociais e culturais (2011). Para


G N A R U S |6 tal fim, utilizaremos os conceitos de campo e habitus do sociólogo francês Pierre Bourdieu. E complementando este aparato metodológico, lançaremos mão de um outro conceito, qual seja: o da transdiferença, “campo conceitual de altíssima complexibilidade e mobilidade, capaz de enxergar os modos de experiência vivencial nas sociedades contemporâneas a partir de seus próprios modelos de representação” (Olinto, 2010:31). Assim, para a consecução de tais objetivos, organizaremos o presente artigo em duas partes. Na primeira delas, discutiremos as construções poéticas feitas por Joaquim de Sousândrade dentro do contexto de acirramento das contradições políticas, sociais e culturais do Segundo Reinado, mostrando como o poeta se posicionou em relação ao grupo que cercava D. Pedro II, ao indianismo romântico e à política indigenista do império. Na segunda parte, analisaremos a relação entre estas construções poéticas e as novas teorias raciais poligenistas (assim como a constância de formas de afirmação e de repetição), dando especial atenção à vivência do poeta maranhense e à noção de diferença. Em ambas as partes os aportes teóricos serão discutidos dentro do próprio processo de construção e apresentação do nosso objeto de estudo.

JOAQUIM DE SOUSÂNDRADE E O CORO DOS CONTENTES

“Reservado é o mundo, em que o homem é o selo com as armas do autor” (Sousândrade)

Nicolau Sevcenko, no livro Literatura como Missão, incluiu o romantismo num tempo inelástico, estanque. Dando-lhe a palavra: “O romantismo representou bem um modelo de sociedade estável, mantida sob um sistema homogêneo de autoridade, como o do Segundo Reinado no Brasil. Supunha, por isso, um sistema único de valores e uma perspectiva de contemplação social privilegiada e também exclusiva, que é a que se orienta do topo em direção à base da pirâmide” (2003:275). Esta passagem do autor surge como um incômodo para os fins deste artigo. O plano de construção do Estado moderno brasileiro no século XIX se assentou em bases contraditórias. A partir da década de 60, o Segundo Reinado começou a perder legitimidade junto

às classes que o sustentavam. O indianismo romântico, antes um importante suporte simbólico da Monarquia, se voltou contra ela dentro de um processo que culminou na queda do Império em 1889. Segundo David Treece: “O final do Império produziu, pois, um breve eco do Indianismo trágico e ultrajado dos primeiros românticos, na medida em que abolicionistas e republicanos lutaram para romper com a herança colonial que o Império havia preservado” (2008:16). Voltemos um pouco. Depois das duas primeiras décadas que seguiram o processo de independência e da consolidação problemática do Estado moderno no Brasil, forjou-se um programa sistemático de construção de identidade nacional que visava à conquista de autonomia cultural em detrimento da antiga metrópole, da Europa. Encabeçada por uma elite ilustrada interiorizada na província fluminense, na corte, esse plano de autonomização foi complexo e contraditório. Se por um lado proclamava as particularidades locais, por outro, almejava estar a par da civilização europeia. Somando-se a isso, tendo em vista o caráter que assumiu o processo de independência no país, a rejeição ao legado colonial foi bem pequena, principalmente, quando comparada aos outros países latino-americanos. Dentro dessa diretriz de conformação identitária, o IHGB ocupou lugar de destaque, importante centro de debate das questões nacionais. Fundado em 1838, seus membros faziam parte da elite literária e política fluminense. Propulsora do projeto cultural oficial, palaciano, a instituição se pautou pela tradição iluminista, no ideal de civilização e progresso. A partir da década de 50 se tornou polo ativo de discussão e difusão do conhecimento, recendendo ares de cientificidade. Foi também a partir desse momento que D. Pedro II passou a participar ativamente do instituto e da vida política e cultural do país. Atrelado a essa trama em torno da afirmação de uma cultura autônoma e de constituição de uma memória nacional estava o romantismo. Esse “movimento” congregou poetas, dramaturgos, historiadores, publicistas e romancistas. Importante instrumento de positivação da jovem nação, através da estética romântica, fatos históricos foram narrados, mitos e lendas, criados. A maioria dos membros do grupo, pelo menos até a década de 60, pertencia ao IHGB e aos altos escalões do governo imperial, o que endossa o seu caráter oficial.


G N A R U S |7 Dentro desse contexto de criação de uma literatura independente e de uma memória e histórias nacionais, foram ressaltadas as particularidades locais, a fauna e a flora, a natureza brasílica. Nesse quadro, o índio ocupou lugar de destaque. Para Afrânio Coutinho, “o nacionalismo romântico assumiu um caráter muito próprio no Brasil, sob a forma do indianismo” (2002:24). Tanto no IHGB quanto no movimento romântico, o índio assumiu importante papel nessa comunidade imaginada. Presente na iconografia oficial e nos rituais do Império, se no Instituto Histórico, ele foi incluído na história oficial que se forjou, na literatura romântica o ameríndio foi elevado ao patamar de mito nacional, de herói fundador da nação. No entanto, a literatura nacional exaltou o índio extinto ao passo que o contemporâneo foi visto como degradado e decadente. Nas palavras de Carneiro da Cunha: “Até por uma questão de orgulho nacional, a humanidade dos índios era afirmada oficialmente, mas privadamente ou para uso interno do país, a ideia de bestialidade, de fereza, de animalidade dos índios, era comumente expressa” (1992:134). Assim, o indianismo romântico desenvolvido no momento de consolidação do Reinado de D. Pedro II tomou um viés preponderantemente conservador. Dentro da política de consenso das primeiras décadas do Segundo Reinado, exaltou o índio guerreiro aliado dos portugueses, capaz do autosacrifício em nome do colonizador. Nesse caminho, estavam as obras de Joaquim Manoel de Macedo, José de Alencar e Gonçalves de Magalhães, sendo que este teve o seu épico A Confederação dos Tamoios patrocinado pelo imperador. No entanto, ainda que sem questionar a legitimidade do regime monárquico, vozes dissonantes como a de Gonçalves Dias denunciaram o processo colonizador, violento e desleal, e fizeram uma defesa humanitária do

índio. Nas décadas seguintes, mais independentes da órbita em que giravam os asseclas do Estado imperial, escritores e poetas parodiaram, satirizaram e criticaram de modo mordaz o regime monárquico e seu projeto de nação. Como muito bem frisou Bosi: “Esse vetor da cultura como consciência de um presente minado por graves desequilíbrios é o momento que preside à criação de alternativas para um futuro de algum modo novo” (1992:17). Assim, imerso em contextos sociais e históricos específicos, essa elaboração cultural e política da nação não foi estática. Numa perspectiva diacrônica, se durante as décadas de 40 e 50 gozou de uma aparente estabilidade, a partir da década de 60, com o amadurecimento de uma classe média urbana e com a gradativa perda de poder simbólico do Reinado de D. Pedro II, surgiram grupos menos dependentes do Estado e de suas instituições, e, por isso mesmo, mais críticos. Segundo David Treece: “É quase como se, ao revisitar mais uma vez a história genocida dos anos coloniais, esta última geração estivesse, à sua própria maneira, desmascarando o idealismo conservador da mitologia alencariana de Conciliação que ajudara a sustentar a auto-imagem e a legitimidade do Império”(2008:292). O Guesa foi escrito de 1858 até a morte do poeta em 1902. Essa obra representou um importante ataque simbólico à Monarquia. A estética romântica, antes um veículo utilizado para a consolidação da imagem do Império, foi usada para criticá-lo. Sousândrade se valeu do principal aporte da invenção simbólica da nação, o índio, para atacar o Reinado de D. Pedro II e sua política indigenista. Através da sátira, do anti-discurso, da quebra da convenção romântica, o poeta inverteu o signo do indianismo, instrumentalizando o ameríndio para fins republicanos.


G N A R U S |8 No que diz respeito ao tratamento dado ao índio em sua obra, Sousândrade se pautou por uma visão realista – e, como frisou Costa Lima, “a visualização da realidade é a condição prévia para a descoberta do correspondente estético pelo artista” (In Campos, A e H., 2002:478). Numa perspectiva pan-americana, fragmentada, trabalhou com as comunidades précolombianas assim como com o ameríndio contemporâneo. Através da “tese decadentista” (Kodama, 2009), de um indianismo trágico, denunciou abertamente a política indigenista levada a cabo pelo Estado imperial. Por um viés humanitário, de crítica social, inovou tanto no tratamento dado ao índio quanto no caráter linguístico e estético – nesse quesito, Sousândrade utilizou diversas línguas para a composição do seu épico assim como se valeu dos mais diversos referentes culturais, tais como: o clássico, o americano e o indígena. Vamos a uns trechos do Canto II do poema, o qual ficou conhecido como Tatuturema, uma espécie de ritual sagrado corrompido no qual aparecem diversas personalidades, inclusive o imperador:

“Ministro portuguez vendendo títulos de honra a brazileiros que não teem) Quem de coito damnado Não dirá que vens tu? Moeda falsa és, esturro Caturro, D’excellencia tatú!” “(Moral educação práctica) A mulher, é Jovita; O homem, Bennettetão: Oh! Faz Hudson-manbusiness, Freeloves; Amazonas, poltrão!” “(KONIAN-BEBE rugindo) Missionario barbado, Que vens lá da missão, Tu não vais à taberna, Que interna Tens-n’a em teu coração!” “(2o Patriarcha) Bronzeo está no cavallo Pedro, que é fundador; Ê! ê! ê! Tiradentes Sem dentes, Não tem onde se pôr!”

(Trechos selecionados, O GUESA, 45, 46 e 47)

Nestas partes ficam bem claras as intenções do poeta. Satirizando a figura do imperador, dos missionários, e, por conseguinte, a política indigenista imperial, Sousândrade alterou o estado adocicado em que pairavam os arautos do Segundo Reinado. Reação do indivíduo à cultura na qual vive, esses trechos

selecionados demostram muito bem o caráter dinâmico da vida social e cultural (BOAS, 2012) – e, como muito bem frisou Sahlins, “a continuidade da ordem cultural é um estado alterado produzido por contingências da ação humana” (2006:19). Ao jogar com a sátira e a crítica, não temos dúvida que Sousândrade atomizou a estética romântica (entendida enquanto política), assim como desestabilizou o círculo no qual planavam os cantores da jovem nação. Neste estágio do artigo, acreditamos poder tecer alguns comentários sobre o conceito de habitus desenvolvido por Bourdieu. Entendido como incorporação das estruturas mentais nos indivíduos, essa noção operatória não pode, no entanto, ser compreendida como um fado, e, acreditamos que a produção poética do poeta maranhense demonstra muito bem esse ponto. Para esclarecer a questão, citemos o sociólogo: “(...) o habitus não é um destino; em vez de um fatum – de acordo com a afirmação que me é atribuída -, trata-se de um sistema aberto de disposições que estará submetido constantemente a experiências e, desse modo, transformado por essas experiências. Contrariamente às afirmações que me são atribuídas, é na relação com determinada situação que o habitus produz algo. Ele é semelhante a uma mola, mas é necessário um desencadeador; e, dependendo da situação, ele pode fazer coisas opostas” (Trechos selecionados, 2011:62). Nestes trechos, Bourdieu deixou bem clara a sua posição em relação ao caráter dinâmico das estruturas sociais e culturais. Outra noção do sociólogo francês importante para a composição deste estudo é o conceito de campo. Tendo em vista que o nosso objeto de estudo se encontra na ordem da representação e da relação, fazse necessário considerar as diversas tomadas de posição que os agentes assumiram dentro deste espaço social e histórico específico. Levando-se em conta que a obra poética de Joaquim de Sousândrade foi produzida numa sociedade de corte minada por graves contradições, é preciso considerar a estratégia e a vivência deste sujeito histórico, a posição que ocupou neste espaço de tensão, suas escolhas políticas e estéticas. Vamos a mais um trecho da obra do poeta e vejamos como ele se posicionou nesse jogo relacional de poder e representação:


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“(Côro dos contentes, TYMBIRAS, TAMOYOS, COLOMBOS, etc., etc.; musica de C. GOMES a Compasso da sandalia d’EMPEDOCLES) A mui poderosa e mui alta ‘Magestad do Grande Senhor’ - Real! = ‘Semideus’! - São Matheus! = Prostou-se o Himavata, o Thabor!”

(Trecho selecionado, O GUESA, 257)

POR UMA POÉTICA DA VIVÊNCIA E DA DIFERENÇA

“Tudo aperto e nada abarco, cheio de razão ardente, descarregado de mim ando no mundo” (Waly Salomão)

Joaquim de Sousândrade nasceu na fazenda da Vitória, no Estado do Maranhão, em 1832. Proveniente de família abastada, sua trajetória foi bem diferente da maioria dos intelectuais do Segundo Reinado. O poeta teve uma vida atribulada e andou por diferentes paragens. Passou a juventude em São Luís, a Atenas brasileira, como era conhecida. Aí travou contato com

figuras renomadas como Odorico Mendes, poeta e tradutor de várias obras clássicas. Durante 1854 e 1856, Sousândrade peregrinou pelo continente europeu, tendo estudado engenharia na Sourbone (fato nebuloso de sua biografia). Entre 1858 e 1860, o escritor fez uma viagem pelo rio Amazonas, onde manteve contato direto com a dura realidade de diferentes comunidades indígenas (LOBO, 2005; RÊGO, 2007). Mas o seu périplo não parou por aí. Em 1871, partiu junto de sua filha para Nova Iorque, retornando ao Brasil em 1878, de onde saiu para visitar a América Hispânica (Chile e Peru). Depois desta viagem, o poeta retornou aos Estados Unidos, onde trabalhou como jornalista do periódico de linha positivista O Novo Mundo até 1885, ano no qual retornou a São Luís, cidade da qual foi prefeito durante alguns meses e na qual faleceu em 1902. Como pode se observar, o poeta não teve uma vida nada provinciana, tendo travado contato com diversas realidades, o que, acreditamos, refletiu na consecução de sua obra poética assim como nas suas posições políticas. Porém, vamos tornar a questão mais complexa. Como


G N A R U S | 10 dissemos na primeira parte, a cultura é dinâmica. A partir da década de 60, “ideias que explicitavam mais enfaticamente a relação entre a nação brasileira e a racialização” (KODAMA, 2009) ganharam força. O poligenismo e o seu prisma negativo em relação à identidade da nação viram um futuro nada próspero para um país preponderantemente mestiço. Mas, como muito bem mostrou Lilia Schwarcz, o modelo evolucionista pautado nos ideais de civilização e progresso continuou a ter grande força, convivendo aqui com as novas teorias raciais. Nas palavras da autora, “o resultado foi uma interpretação que, apesar de monogenista, recorreu a conclusões darwinistas sociais quando se tratava de justificar, por meio da raça, hierarquias sociais consolidadas” (Schwarcz, 1993).

nacional. Sua composição poética e a utopia nela intrínsica de uma democracia republicana pautada nas noções de civilização e progresso abarcou uma tensão interna irresolvida, na qual é possível enxergar uma pulsação permanente entre elementos díspares e plurais (CATTANI, 2007). Para finalizarmos esta parte, vamos a uns trechos do Canto X, que ficou conhecido como O Inferno de Wall Street, no qual o poeta escarnece da figura do imperador quando da participação do Brasil na exposição internacional que aconteceu nos Estados Unidos, mostra sua verve moralista e critica a teoria eugênica de branqueamento da sociedade:

Nesse contexto, a poesia de Joaquim de Sousândrade parece algo meio que fora do lugar. Para muitos, a obra do poeta é tida como multiétnica (BOSI, 2006; CAMPOS, 2002). Porém, como mostrou Cláudio Cuccagna ao analisar a carta-artigo O estado dos índios:

“(Comissarios em PHILADELPHIA expondo a CARIOCA de PEDRO-AMERICO; QUACKERS admirados) - Antediluvio ‘plesiosaurus’, Industria nossa na Exposição... = Oh Ponza! que coxas! Que trouxas! De azul vidro é os sol patagão! (Detectives furfurando em MAIN-BUILDING; Telegram submarine) Oh! cá está ‘um Pedro d’Alcantara! O Imperador está no Brazil.’ - Não está! christova É a nova, De lá vinda em Septe de Abril! (GENERAL GRANT e DOM PEDRO) - Fazei-nos os cabellos brancos... Um filho das leis do amanhan! = Com Romanos... Papa; Satrápa, Com Gregos; Napóleon, com Grant! (Photophonos-estylographos direitos sagrados de defeza) - Na luz a voz humanitaria: Odio, não; consciencia e rasão; Não pornographia; Isaias Em biblica vivisecção! (Consciencias perante a historia substituindo aos destruidos NATURAES) - Chumbando Booths aos rêis-‘gorilas’, A raça melhoraram de côr: E o negro Africano, Amer’cano Já é peau-rouge! será brancor!” (Trechos selecionados, O GUESA, 255, 256, 265 e 267)

“A crítica que Sousâdrade movia contra a conquista e a colonização do ameríndio não punha, na realidade, em discussão a validade e a legitimidade desses dois processos de intervenção ocidental. Também o poeta, com efeito, considerava necessário realizar a colonização e a cataquese do indígena. Com particular referência à situação do índio amazônico contemporâneo, tinha assumido empaticamente a sua salvaguarda, pois o poder imperial desenvolvia sobre ele uma política colonizadora errada que, ao contrário, devia ser empreendida segundo uma conduta diferente da então cumprida com incapacidade e descuido” (2004:156). Assim, percebemos que a singularidade do nosso personagem é muito mais problemática do que parece, não podendo ser entendida somente pelo viés dicotômico. Um conceito interessante que pode nos ajudar a pensar essa questão é o da transdiferença. Segundo Heidrun Olinto, esta noção questiona o pensamento binário e “afasta-se tanto da visão de grupos culturais, como portadores de determinadas identidades culturais claramente distinguíveis, quanto da compreensão da contingência cultural limitada à perspectiva diacrônica, dando relevo a uma complexidade e heterogeneidade do sincrônico” (2010:29). Pensamos que Joaquim de Sousândrade foi capaz de elaborar uma visão muito própria da realidade

CONSIDERAÇÕES FINAIS Em 1889, o império ruiu, fruto de um processo que durou no mínimo três décadas. Ainda no final da


G N A R U S | 11 década de 50, surgiram as primeiras fissuras entre as classes políticas que sustentavam a monarquia constitucional. Com o fim do tráfico negreiro, a escravidão e o problema da mão-de-obra tornaram-se o centro das atenções. Principalmente por conta disso, a questão indígena passou a ser muito discutida. De mais a mais, depois da guerra do Paraguai, o Reinado de D. Pedro II se enfraqueceu visivelmente. Somandose a estas questões, uma nova “onda liberal” pairou no ar e uma nova classe média formada por profissionais liberais ganhou espaço no plano político e cultural. O movimento abolicionista e o republicano cresceram e se organizaram. Numa outra ponta, uma contra-elite se formou: a militar. No entanto, a reforma eleitoral de 1878, levada a cabo por um gabinete liberal, restringiu sobremodo a participação política. As novas teorias raciais começavam a pensar a identidade da nação dentro de outros padrões hierarquizantes. É neste cadinho cultural e político que Joaquim de Sousândrade construiu sua obra poética e defendeu suas ideias. A visão multiétnica de sua obra foi com certeza algo novo, como que fora do lugar. No entanto, o poeta maranhense também se pautou por uma visão progressista e civilizacional. Assim, partindo de sua vivência e criação estética, procuramos apresentar neste artigo algumas questões relativas a este personagem no que diz respeito ao ameríndio e à nação, mostrando como ele se posicionou em relação às mais diversas questões de seu tempo, sendo capaz de elaborar uma visão política e uma obra poética muito peculiar e complexa. Ramon Castellano Ferreira: É Graduado em Licenciatura em História pelas Faculdades Integradas Simonsen e Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFF.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. História e Antropologia. Ciro Flamarion Cardoso e Ronaldo Vainfas (Orgs.). In: Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Editora Campus, 2011. BOAS, Franz. Antropologia Cultural. Rio de Janeiro: Zahar, 2004. BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ___, História Concisa da Literatura Brasileira. 43ª ed. – São Paulo: Cultrix, 2006.

BOURDIEU, Pierre. As Regras da Arte: Gênese e Estrutura do Campo Literário. - 2ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 1996. ___, O Poder Simbólico. – 14ª ed. – Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010. ___, O Sociólogo e o Historiador. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. CAMPOS, Augusto e Haroldo. Re visão de Sousândrade. – 3ª ed. – São Paulo: Perspectiva, 2002. CATTANI, Icleia Borsa (Org.). Mestiçagens na Arte Contemporânea. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007. CHARTIER, Roger. El Mundo como Representación: Estudios sobre Historia Cultural. Barcelona: Gedisa Editorial, 2005. COUTINHO, Afrânio. A Literatura no Brasil. – 6ª ed. – São Paulo: Global, 2002. CUCCAGNA, Claudio. A Visão do Ameríndio na Obra de Sousândrade. São Paulo: HUCITEC, 2004. CUNHA, Manuela Carneiro da. Política Indigenista no Século XIX. In: Manuela Carneiro da Cunha (org.), História dos Índios no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras/Secretaria Municipal da Cultura/FAFESP, 1992, pp. 133-154. KODAMA, Kaori. Os Índios no Império do Brasil: A Etnografia do IHGB entre as Décadas de 1840 e 1860. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2009. LOBO, Luiza. Épica e Modernidade em Sousândrade. – 2ª ed. – Rio de Janeiro: 7Letras, 2005. OLINTO, Heidrun Krieger. Construção Identitária na Ótica da Transdiferença. In: L. Lopes e L. Bastos (Orgs.) Para Além da Identidade: Fluxos, Movimentos e Trânsitos. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. REGO, Josoaldo Lima. Cosmovisão e Modernidade: Sousândrade e a Formação do Campo Visual em O Guesa. São Luís: EdFUNC, 2008. SCHWARCZ, Lilia Moritz. As Barbas do Imperador: D. Pedro II, Um Monarca nos Trópicos. – 2ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 1998. ___, O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil – 1870-1930. São Paulo:


G N A R U S | 12 Companhia das Letras, 1993. SEVCENKO, Nicolau. Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República. – 2ª ed. – São Paulo: Companhia das Letras, 2003. SOUSÂNDRADE, Joaquim de. O Guesa. Organização

dos Editores do Selo Demônio Negro da Editora Annablume. São Paulo: Annablume, 2009. TREECE, David. Exilados, Aliados, Rebeldes: O Movimento Indianista, A Política Indigenista e o Estado-Nação Imperial. São Paulo: Nankin, 2008.

"Moema" de Victor Meirelles (1866)


G N A R U S | 13

Pesquisa

A AMPLIAÇÃO DO CONCEITO DE ELITE NA HISTORIOGRAFIA PÓS-MODERNA Por Rodrigo Amaral

N

o ano de 1753 Dona Antonia Roiz Pedroza ditava suas vontades em testamento. Começava contando ter recebido uma estranha mercê de Deus quando se encontrava:

“(...) molestada na cama de enfermidade que Deus me fez mercê, e temendo as contas que lhe hei de dar, estando em meu perfeito juízo (...) temendo as pessoas do inferno que por minhas culpas mereço das quais Deus pela sua divina misericórdia me livre.” 1 Encomendava sua alma a Deus e a alguns santos, rogava a potentados locais que fossem seus testamenteiros e distribuía – como de costume para pessoas de sua posição – boa quantidade de bens e dinheiro para assegurar missas em favor de sua alma que lhe afastasse das pessoas do inferno. Os receptores iam desde “todos os padres que houver na terra” até a 1

São Tomé, Cx. 20 doc. 48.

Igreja de Santo Antonio, na Ilha do Príncipe. Dona Pedroza Declarava ser natural da Ilha de São Tomé e não possuía herdeiros, apesar de ter sido casada três vezes e ao ditar suas vontades estar unida a Miguel de Souza Friz. Mas o que chama atenção neste testamento é a mobilidade social que as vontades da testadora promoveu. Passariam da condição de escravos a libertos dez mancípios: Maria Valério, Maria Benin, Maria Salvador, Martinho, Marcos, Antonia, Jorge e sua mãe, Agostinha e sua filha; Transferia a posse de dezoito escravos a afilhadas, pardas, pardinhos e a Domingos Friz. O testamento demonstra também o poder de Dona Antonia Pedroza e sua capacidade de organização da vida de seus outrora dependentes. Altiva, declarava que se Catherina Goular:

“quiser haver alguma coisa do meu casal, os meus Testamenteiros obrigarão a trazer tudo pertencente ao seu, para deles haver partilha, na forma das Ordens de Sua Majestade e não sendo


G N A R U S | 14

assim os meus ditos Testamenteiros que as terão toda a minha fazenda em defesa, porque de outra sorte não quero que coisa minha vá para sua casa”.2 Catherina Goular que anteriormente recebeu um adiantamento de Dona Antonia aparece numa lista populacional de 17713 da Ilha do Príncipe casada com o português e Sargento Mor Francisco Joaquim, dono de 180 escravos. Estranhamente Dona Antonia Roiz Pedroza declarava como dito acima, não possuir herdeiros. Dos agraciados com escravos, Quitéria Roiz Pedroza recebia sete. Esta, 18 anos depois estava casada com o “Pardo legítimo” Manoel Coelho Monteiro, dono de 26 cativos. O pardo ilegítimo Joaquim Roiz recebia dois moleques, e em 1771 ainda contava com dois escravos sendo anotado na lista populacional como “Ajudante”. À parda Catherina Roiz Pedroza deixava três escravos. Na lista de 1771 esta aparece casada com Antonio Alberto Ferreira, natural da Bahia. Os três escravos haviam sido prometidos quando de seu casamento. No ano de 1771 o casal somava seis mancípios. As doações e as imposições sobre as mesmas pretendiam colaborar para organizar a vida dos receptores, e ao cruzar as vontades de 1753 com os dados de 1771 observa-se que a partilha dos bens da testadora colaborou para pardos, pardinhos e afilhados entrarem no mercado matrimonial com alguma distinção. Ao herdar escravos e sobrenome algumas das suas pardinhas se casaram, inclusive com portugueses ou luso-brasileiros. O pardo legítimo Manoel Coelho Monteiro declarava em 1755:

O testamento de Dona Antonia pressupunha uma situação interessante para a escrava Maria Benin, que ficara forra, “por que tinha já comprado sua pessoa”, mas se Maria quisesse “comprar alguma de suas Negras o podia fazer”. Tal situação aponta para uma hierarquia dentro daquela senzala: Escravos continuavam escravos. Escravos se tornavam forros. Forros se tornavam senhores de escravos. Tudo isto costurado por alianças entre senhora e cativos. Marcos, por exemplo, ficaria forro, mas entre as condições para tanto estava a de se casar com a também alforriada Antonia. No ano de 1754 os escravos foram avaliados e devidamente alforriados.5

Ilustração de Jean Baptiste Debret. Há neste testamento, mais que uma circulação de bens, mas uma circulação de valores e de símbolos de prestígio. O nome Roiz Pedroza que alguns forros passariam a ostentar marcaria sua nova posição na sociedade, uma mudança de condição de escravos a

5

“Recebi da mão do Sargento Mor Antonio Friz de Castro como Testamenteiro da Defunta Dona Antonia Roiz Pedroza sete Escravos e a metade da Roupa do seu uso, que a dita defunta deixou a minha mulher Quiteria Roiz Pedroza, e por ter recebido e estar entregue, passei este por mim feito e assinado para clareza do dito. Ilha do Principe, 11 de Janeiro de 1755.”4

2

São Tomé, Cx. 20 doc. 48. "Lista dos moradores Brancos, Pardos e Pretos Forros, e Captivos que há na única Freguesia, e Matriz da Virgem Nossa Senhora da Conceição desta Cidade de Santo Antonio da Ilha do Principe." AHU - S.Tomé - cx 13 - doc. 4. 4 São Tomé, Cx. 20 doc. 48. 3

“Luis Carneiro de Siqueira desta Ilha do Príncipe, nela Escrivão do juízo eclesiástico em toda esta mesma, certifico e dou minha inteira e verdadeira Fé que revendo o inventário dos bens da defunta Dona Antonia Rodrigues Pedroza e nele achei os escravos que a dita defunta deixou no seu testamento por forros com as avaliações seguintes = um negro crioulo por nome Marcos avaliado em quarenta mil reis = um negro velho crioulo por nome Martinho avaliado em trinta mil reis = um negro sapateiro por nome Jorge crioulo avaliado em cinqüenta mil reis = uma negra maior por nome Maria Salvador, avaliada em vinte e cinco mil reis = uma negra de Maior por nome Maria Benin avaliada em quinze mil reis = uma negra arda por nome Agostinha avaliada em trinta e cinco mil reis = uma molequinha filha da dita por nome Leonor crioula avaliada em dezoito mil reis = uma negra de maior por nome Domingas avaliada em quinze mil reis = uma negra por nome Antonia Feliciana avaliada em trinta e cinco mil reis = uma negra crioula por nome Maria Valerio avaliada em trinta mil reis; que tudo faz a soma e quantia de duzentos e noventa e três mil reis e o que me consta do dito inventario com o qual me reporto a esta por me ser pedida e requerida e passei em cumprimento do despacho do reverendo vigário sendo aos onze dias do mês de junho; de mil e setecentos e cinqüenta e quatro anos”. São Tomé, Cx. 20 doc. 48.


G N A R U S | 15 libertos, e para alguns de libertos a libertos donos de escravos. No Rio de Janeiro, por volta de 1829 morria Domingos Alves de Azevedo, sua esposa e testamenteira Tereza Maria do Bonsucesso, cuidava para que suas vontades fossem respeitadas. Em uma de suas declarações afirmava que:

“deverá sair do monte [superior a 23 contos de réis] a quantia de 200$000 que foram dados pelo dito meu marido para a parda Adelaide filha de minha escrava Eva já falecida quando a mesma se casasse e igualmente a quantia de 100$000 que da mesma forma foram dados para a parda Eugênia, irmã da dita Adelaide, conforme declara a verba do Testamento com que faleceu o dito meu marido.”6 Vemos aqui mais uma vez um senhor concedendo – e escravos conquistando – alforrias e herdando bens. No testamento, Domingos Alves declarava que “dos escravos que possuo se acham alguns forros” que apesar de não ter passado papel a elas “Minha Testamenteira sabe muito bem quem são”.7 Ou seja, a questão das alforrias e bens herdados daquele senhor pelos ex-escravos fazia parte de relações sociais reconhecidas na comunidade. Reconhecidas a tal ponto de promover algumas “das escravas que possuo” a entrar com algum dote no casamento, ou seja, promover a mesma a alguma distinção para ter boas chances no mercado matrimonial. Outra declaração de Domingos Alves, esta feita em 20 de fevereiro de 1828, aponta para o peso que a prestação de serviços dos subalternos tinha na escolha dos futuros beneficiários de concessões:

“... e dado o caso que eu faleça na chácara, será assim meu corpo conduzido sendo possível pelos meus escravos [ao todo Domingos possuía 29, nem todos viviam na chácara, alguns serviam na cidade, na Rua da Misericórdia] e os que me conduzirem ficam logo forros e libertos como que de ventre livre nascessem...”8 Os dois casos acima abordam hierarquias que se formavam seja na América portuguesa, seja em São Tomé e Príncipe nos séculos XVIII e XIX. Apesar das 6

ANRJ, 1829, Cx.804, Nº 2.955 Idem, ibidem. 8 Idem, ibidem. 7

disparidades temporais e espaciais, os dois casos nos permite abordar o conceito de elite e discuti-lo à luz de uma revisão historiográfica sobre o conceito. Aplicando a noção clássica de elite teríamos apenas Dona Antonia e Domingos Alves, podendo incluir no grupo apenas a esposa deste, Tereza Maria do Bonsucesso e o amásio daquela Miguel de Souza Friz, como elites nas fontes coevas. Mas será que só mesmos os dois casais fazem parte deste grupo? Se ampliarmos a noção para o debate pós-moderno, pardinhas e pardinhos, escravos e escravas podem também fazer parte do grupo. Vejamos:

Casamento. Ilustração de Jean Batiste Debret O historiador inglês Keith Jenkins afirma no seu

manual de história 9 para o historiador do pósmodernismo que a história é um discurso cambiante, sempre em transformação e inspira: “mude o olhar, desloque a perspectiva, e surgirão novas interpretações”.10 Mudar o foco da análise e deslocar a perspectiva gerou uma revolução na análise sobre os subalternos na historiografia atual. Trabalhadores, camponeses, escravos, mulheres, forros, livres pobres e outros grupos subalternos foram alçados nas últimas décadas à categoria de atores sociais, o que significa dizer que sua história tem sido contada, ou na perspectiva de Jenkins, interpretada por historiadores. Esta interpretação discorre sobre os significados dos atos destes homens e mulheres que viveram no passado e o novo papel a que suas histórias foram alçadas.11 9

Chamo de manual pois o texto aborda uma discussão filosófica de como se deve tratar a interpretação sobre o passado. Questão mais importante para o ofício do historiador Cf: JENKINS, Keith. A História repensada. São Paulo, Contexto, 2001. 10 Idem, p.35. 11 Ver a este respeito as contribuições de E.P. Thompson. CF: THOMPSON, Edward. P. A formação da classe operária. A árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1987. THOMPSON, Edward


G N A R U S | 16 A história das elites tratada no campo do direito, como ensina Hespanha, sofreu de uma “monotonia formalista”, onde o poder era tratado no âmbito das instituições através dos homens que as dominavam. Posteriormente avançar-se-ia ao ponto de “dar rosto” a estes homens, mas a história das elites sofreria um segundo problema, o de ser interpretado através do marxismo vulgar, onde o poder poderia ser exemplificado na “luta de grupos”. É neste segundo aspecto que se encaixam os dois casais acima, mas António Manuel Hespanha explica que “a nova história do poder” tem superado estas noções e encontrado o exercício do poder não somente entre os ricos, poderosos, burgueses, suseranos, homens-bons, reis etc. Com esta nova noção tem se problematizado o conceito de elite.12

Dama com escravos (Anônimo, Bahia, c. 1860)

Nesta nova abordagem atores sociais que não governavam, não presidiam, não determinavam etc. mas que tinham liderança ou algum tipo de proeminência entre seus pares podem ser também descritos como uma elite. No caso da escravidão moderna já há trabalhos que tratam os forros como uma elite "vinda de baixo", dada sua escalada para cima na mobilidade social ou até mesmo escravos em melhores condições que outros dentro da mesma unidade produtiva sendo uma elite entre os próprios escravos.13 P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras. 1998. 12 HESPANHA, António Manuel. Governo, elites e competência

social: sugestões para um entendimento renovado da história das elites. BICALHO, Maria Fernanda Baptista & FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Modos de Governar: Idéias e práticas políticas no Império português. Séculos XVI a XIX. São Paulo, Alameda, 2005. pp.39-45. 13 FERREIRA, Roberto Guedes. Pardos: trabalho, família, aliança e mobilidade social. Porto Feliz, São Paulo, c. 1798 – c. 1850. Tese de

Para concluir, até mesmo autores que consagradamente foram apontados como próceres do conceito clássico de elite merecem uma releitura como é o caso de Freyre. Em seu clássico sobre a formação da cultura brasileira, Gilberto Freyre14 apresenta o escravo de forma muito mais diversa do que já se afirmou.15 E nessa diversidade pode-se perceber um leque de ocupações exercidas pelos negros16 no Brasil:

“O Brasil não se limitou a recolher da África a lama de gente preta que lhe fecundou os canaviais e os cafezais; que lhe amaciou a terra seca; que lhe completou a riqueza das manchas de massapê. Vieram-lhe da África ‘donas de casa’ para seus colonos sem mulher branca; técnicos para as minas; artífices em ferro; negros entendido na criação de gado e na industria pastoril; comerciantes de panos e sabão; mestres, sacerdotes e tiradores de rezas maometanos (...)”.17 A diversidade em Freyre não pára por aí, é na questão de gênero que ganha contornos mais nítidos, seja na vida mais suave das mucamas em relação aos homens escravos do eito, seja na maior maldade feminina no trato dos escravos: o chamado “sadismos das sinhás”. 18 Uma vida comparada não com a de escravos “mas de pessoas da casa. Espécie de parentes pobres nas famílias Europeias”, levariam essas mucamas, além das amas de criar, dos irmãos de criação dos meninos brancos. Mas este trecho em Freyre, lido nas entrelinhas e não na sanha crítica (importante, mas muitas vezes mal lidas e exageradas) da democracia racial, apresenta uma diversidade impressionante através de seu olhar. E estas "pretalhonas enormes" podem mesmo ser vistas como uma elite entre os escravos, bem como os cativos de São Tomé, no início deste paper que não só saíram da doutorado. Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2005; MACHADO, Cacilda.

A trama das vontades. Negros, pardos e brancos na produção da hierarquia social. (São José dos Pinhais – PR, passagem do XVIII para o XIX). Tese de doutorado. Programa de Pós-graduação em História Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2006. 14 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. 43ª edição, Rio de Janeiro, Record, 2001. p.362. 15 CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no

Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. 2 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra. 1977. 16

Utilizo a palavra negro em itálico pois o que Freyre viu como negro, eu vejo como africano e mais precisamente, mina, cabinda, angola etc. ou seus descendentes, para que não se confunda o que era ser negro no Brasil colonial com o significado de ser negro atualmente. 17 Idem.p.365. 18 Idem. pP.392-394.


G N A R U S | 17 escravidão, mas saíram da escravidão com legados testamentais do senhor do Rio de Janeiro ou da senhora são-tomense.

“Quanto às mães pretas, referem as tradições o lugar verdadeiramente de honra, que ficavam ocupando no seio das famílias patriarcais. Alforriadas, arredondavam-se quase sempre em pretalhonas enormes. Negras a que se faziam todas as vontades: os meninos tomavam-lhe benção; os escravos tratavam-nas de senhoras; os boleeiros andavam com elas de carro. E dia de festa, quem as visse, anchas e enganjentas entre os brancos de casa, havia de supô-las senhoras bem nascidas; nunca exescravas vindas da senzala.”19 Está aí uma nítida hierarquia entre os subalternos, diferenças que vão desde os escravos até as “pretalhonas enormes” que uma vez alforriadas ostentariam honra entre os seus, marcando assim a diferença entre eles. Diferença já existente quando eram escravas. O motivo destas diferenças, Freyre mesmo explica: a “promoção de indivíduos da senzala à casa-grande” seria resultado de “qualidades físicas e morais; e não á toa e desleixadamente”. Para subir nesta hierarquia a escrava seria escolhida pelo senhor entre “as melhores escravas da senzala”; Além de qualidades pessoais como asseio, beleza e força, Freyre coloca que a questão do tempo seria um fator preponderante quando da escolha de ladinas e não de boçais.20 Em suma, o novo conceito de elite incorpora grupos, pessoas e famílias que antes eram vistos como subalternos sem voz e sem lógica própria de atuação dada sua condição subalterna perante os poderosos membros das classes dominantes. 21 Um dos grandes ganhos da nova noção é vê-los exatamente na condição contrária: com voz, com suas lógicas próprias de atuação e como utilizavam sua condição subalterna para obter ganhos dentro das normas da sociedade.

19

Idem, p.406. Idem, PP.406-7. 21 MELLO E SOUZA, Laura. Os desclassificados do ouro: a pobreza mineira no século XVIII. Rio de Janeiro: Graal, 1986. 20

Rodrigo Amaral: É Doutor em História pela UFRJ e Professor do departamento de História das Faculdades Integradas Simonsen e da UCAM.

Para saber mais:


G N A R U S | 18

Ensaio

CUBA ILHADA: RELAÇÕES COMERCIAIS NO PERÍODO ESPECIAL EM TEMPOS DE PAZ: ALIANÇAS ENTRE CUBA E UMA VENEZUELA BOLIVARIANA (1999 – 2005)

Por: Rennan de Azevedo Ramos

Logotipo do “Convenio Integral de Cooperación (CIC) Cuba –Venezuela.”

A

Revolução

Cubana

foi

um

complexo

movimento armado que mudou a conjuntura

os interesses da principal potência internacional ligada ao antigo regime de dominação no país.

político mundial. Dentro de seu ideal, ela se

Com a vitória revolucionaria, Manuel Urrutía

mostra como a libertação de uma sociedade

assume o poder, como havia previsto o pacto de

1

asfixiada por uma corrente de exploração que já

Caracas3, porém logo é afastado do cargo, dando lugar

perdurava há séculos 2 . A luta revolucionária, que

para Fidel Castro. O novo governo tomou medidas que

inicialmente apresenta uma postura estritamente

caíram na simpatia da população, como a extinção da

democrata, aos poucos vem introduzindo em seu

polícia de Batista, a eliminação dos tribunais especiais

âmago uma realidade totalmente diferente. Assim que

criado pelo regime militar, a anulação dos acordos

se colocam em prática suas reformas, fica evidente um,

comerciais derivados da emenda Platt4, dissolução do

cada vez mais crescente, sentimento nacionalista, na medida em que as mudanças propostas se chocam com 3 1

Iniciada em 1492 com a colonização espanhola e posteriormente pelo domínio político e econômico mantido pelos Estados Unidos após sua intervenção na luta de independência Cubana 2 1492 -1959

Foi o acordo assinado pelas diversas frentes revolucionárias em Cuba, visando aliança contra Batista através das armas e definindo o futuro do movimento revolucionário, inclusive decidindo pelo primeiro presidente. 4 Emenda esta que estava em vigor desde a intervenção norteamericana no final da guerra contra a Espanha.


G N A R U S | 19 congresso e a volta da constituição de 1940, e uma

abastecer Cuba do armamento para montar suas

significante melhora no campo da educação.

defesas militares.”6

Das medidas pós-revolucionárias, certamente, a que

Podemos perceber a importância da aliança lendo,

mais causa impacto, foi à realização da reforma agrária.

as palavras do Presidente em chefe da ilha, na ocasião

Ela obteve forte apoio popular, todavia afetava

da visita do Líder soviético Gorbachov em 1989, nas

diretamente os interesses americanos, donos da maior

quais alega que:

parte dos latifúndios produtores de açúcar de Cuba.

“Eu não mencionei o que significou para o

Segundo Luis Fernando Ayerbe, no que diz respeito às

nosso país solidariedade soviética no campo de

mudanças implementadas pelo governo revolucionário,

fornecimento de equipamentos para a nossa

“previam-se

as

defesa. Nós não teríamos a segurança que temos

condições de vida do povo, tais como o aumento

hoje, não teríamos sido capazes de defender com

salarial, direitos trabalhistas, diminuição de alugueis

a eficiência que temos defendido nossa

residências ou diversificar o perfil econômico do país,

revolução e que sabe o preço que teria pago o

ações direcionadas

fortalecendo a industrialização.”

a melhorar

5

nosso país, se quando a invasão mercenária de

Os Estados Unidos respondem á nacionalização das

Girón não tivéssemos as armas, que havíamos

suas empresas em solo cubano através de vários tipos

recebido, precisamente, da União Soviética e

de boicotes e sabotagens, desde ao desembarque de

Tchecoslováquia. Se hoje temos um nível de

grupos contra revolucionários e ataques a navios e

segurança, a confiança, a capacidade de lutar

embarcações cubanas, à proibição da compra de

por nossa causa justa, por nossa liberdade, para a

qualquer produto que possuísse matéria prima derivada

nossa independência, foi também porque

da ilha as nações dependentes dos EUA.

recebemos a generosa ajuda da União Soviética” 7

O governo revolucionário vê como única saída viável para manter-se após o forte embargo norte americano um alinhamento com o bloco soviético:

As palavras de Fidel nos revelam que os acordos bilaterais realizados ultrapassavam a simples relação

“O governo cubano intensificou suas relações

comercial, contextualizando o discurso com o período

com a URSS. Primeiro vendendo para aquele país

da Guerra Fria, é de fácil compreensão os motivos que

o substancial de sua safra de açúcar, que os EUA

levam essa nova postura socialista de Cuba motivar sua

se negavam a seguir comprando. Depois,

expulsão da OEA8 e sua adesão de uma vez por todas ao

recebendo da URSS o petróleo que o vizinho do

bloco do “leste”, fazendo da URSS sua principal

norte deixava de fornecer e, posteriormente, se

parceira econômica.

abastecendo dos produtos que a interrupção brusca de seu intercâmbio com os EUA requeria. À proporção que as necessidades de defesa do regime cubano aumentavam, Diante da escalada de agressões dos EUA, A URSS se encarregou de

5

AYERBE Luis Fernando, A revolução Cubana. São Paulo: Ed. UNESP, 2004, P.61

6

SADER Emir, Cuba, Chile, Nicarágua: socialismo na America Latina. São Paulo: Ed. Editora Atual, 1992, P-18 7 Discurso pronunciado por Fidel Castro Ruz en la sesion extraordinaria y solemne de la Asamblea Nacional, con motivo de la visita del Mijail s. Gorbachov, secretario general del comite central del PCUS y Presidente del Supremo de la URSS el 4 de abril de 1989. Disponível em http://www.cuba.cu/gobierno/ discursos/1989/esp/f040489e.html . Acesso em 29/10/2011 8 Organização dos Estados Americanos


G N A R U S | 20

independente, que promove uma maior auto-

O Embargo econômico e o “Período Especial em

sustentabilidade e auto-suficiência.” 12.

Tempos de Paz” O embargo econômico surge como resposta

O derradeiro revés sofrido por Cuba encontra-se no

imediata dos Estados Unidos, abrange a aliança dos

desfecho da Guerra Fria, onde, com o término da URSS,

países da OEA. Aparece como uma forma de retaliação

há um declínio do mercado externo que chega a

a campanha de reforma agrária cubana e das

surpreendente marca de 85% do total de suas relações

constantes

anti-

comerciais. A crise se torna generalizada e atinge todos

imperialistas realizadas no arquipélago. Medidas como

os setores do país. O PIB cubano encolheu entre 40% a

a “suspensão e até supressão de quota de açúcar, do

50% no período correspondente a 1989-99,

bloqueio parcial e ao total contra a ilha caribenha”, 9

significando uma redução econômica expressiva. As

são apenas algumas das represarias realizadas pelos

exportações caíram de um total de US$ 5,4 bilhões em

estadunidenses a fim de reafirmar sua condição

1989 para apenas US$ 1,10 bilhões em 1993 e as

hegemônica no continente.

importações decrescem de US$8,1 bilhões para US$ 2

nacionalizações

claramente

13

bilhões em igual recorte temporal.14 A aproximação com o socialismo soviético

Com relação à produção açucareira, existe uma

surge para assumir a lacuna deixada pela grande

crise vertiginosa dos presos devido à concorrência com

potência das Américas. O acordo de compra do

Brasil e Austrália. Esta produção, entre os anos de 1989

açúcar assinado em janeiro de 1964 por URSS e

e 1990, chegavam a aproximadamente 8 milhões de

China, abriu novos mercados para o escoamento

toneladas caindo gradualmente até alcançar 3.5

da produção do principal produto da ilha. A

milhões de toneladas em 1995, nível mais baixo em 50

ajuda fornecida pelo bloco econômico no

anos.15

subsídio do petróleo e em créditos concedidos

Como

necessitou

da

crise,

o

governo

instaurar

o

chamado

na compra de equipamento bélico e industrial

revolucionário

ajudam a região, segundo dados de Rémy

“Período Especial em Tempos de Paz”, tomando

10

Herrera, a atingir um aumento anual médio de

medidas emergênciais, em resposta ao aumento de

5% do seu PIB em um recorte temporal que vai

problemas relacionados à alimentação, escassez de

11

de 1959-89, provando que ao mesmo tempo

combustível e falta de aparato médico16· Essas medidas

em que o bloqueio econômico apresenta um

segundo Fidel, em seu discurso na comemoração do

golpe para a economia revolucionaria ele ajuda

30º aniversario do CDR,17

"tem sido muito útil, contar com esses

em um processo de:

“fortalecimento

a

unidade

nacional

da

programas e planos para o período especial,

sociedade cubana, em lugar de fragmenta - lá e

porque o período especial foi concebido para

quebrar seu sistema político e social. Estimula um

caso de guerra, para caso de bloqueio total do

desenvolvimento econômico mais diversificado e

9

conseqüência

HERRERA Remy, Cuba, uma resistência socialista da América latina. 10 Idem. 11 Ibidem

12

FERNANDEZ Tábio, Las relaciones de Cuba com America Del Nortey El bloqueo de los Estados Unidos contra Cuba. Cuaderno de

nuestra America, v.XVI,n-31,P-52.Jun.2003 13 MESA-LARGO, Carmelo. “Hacia una evaluación de la actuación econômica y social em la transición cubana de los años noventa”. América Latina Hoy, Salamanca, n. 18, p. 19-22 marzo, 1998. 14 Idem, 1998, P.30 15 Idem, 1998, P.34 16 300 tipos de medicamentos, entre eles vacinas, materiais cirúrgicos, peças e equipamento médicos. 17 Comites de Defensa de La Revolucion


G N A R U S | 21

país em que não se entra ou sai nada daqui. O

lideranças cubanas encontram na redefinição dos seus

período especial, que se fala agora, surge como

interesses nacionais uma alternativa para a reinserção

um conceito frente aos problemas que havia

internacional. O fortalecimento dos laços econômicos

mencionado, ante aos problemas que ocorrem

com novos parceiros, principalmente na America latina,

na Europa Oriental e na União Soviética, é a

repensando suas estratégias de política externa seria a

ideia de um período especial em tempos de paz

única saída viável para manter viva a chama do ideal

e, quase inevitavelmente cair com tanto vigor

revolucionário.

que teremos que passar por essa prova."18

Essa mudança parte, em um primeiro momento, na

Mesmo com a tentativa de controle da crise por

redefinição da imagem diplomática de Cuba, uma

parte da ilha, as medidas encontradas não foram

tentativa de desconfigurar uma antiga imagem bélica e

suficientes para aliviar a situação da população, as

construir uma identidade pacífica visando melhorar

taxas de desemprego combinadas com a mão de obra

suas relações diplomáticas.

ociosa que recebia subsídios do Estado sobem de 7.9% da PAE em 1989 para 25.6% da PAE em 1992, representando um aumento de 346% dos níveis

A Diplomacia Social e a Aliança Bolivariana dos povos de nossa América (ALBA)

encontrados na década anterior.19 Com o objetivo de pressionar o governo cubano o

Com o fim da URSS, a nação cubana mergulha em

presidente americano Bill Clinton aprova a Emenda

uma forte crise no contexto econômico e nas relações

Torricelli (1992) que:

internacionais. Percebemos que ao mesmo tempo em

“Amplia a produção das companhias dos EUA

que o arquipélago caribenho perde seu principal

de realizar negócios com Cuba ás suas

aliado, seu rival do Norte fica mais forte e amplia os

subsidiarias no exterior, proíbe aos barcos que

embargos.

passam pelos portos cubanos de realizar

Com o objetivo de preservar seus ideais, Cuba

transações comerciais nos EUA e autoriza o

redefine sua forma de relação diplomática, visando

presidente dos Estados Unidos aplicarem sansões

angariar parcerias para sobreviver às duras sansões

a governos que promovem assistência a Cuba” 20

impostas pelo bloqueio. A utilização de uma

Em 1996, a Lei Helms-Burton, que permitia os

“diplomacia social” ajuda Cuba a realizar acordos

cidadãos dos Estados Unidos, proprietários de bens

bilaterais, onde em troca de serviços prestados: mão de

extraviados pela revolução cubana, processarem as

obra especializada21 e apoio nas áreas de necessidade

empresas estrangeiras que usufruírem destes e permite

básica, o país consegue os bens fundamentais para a

ainda o governo do país em questão de barrar os

necessidade de sobrevivência do povo.

executivos dessas empresas em solo americano.

No que diz respeito à Venezuela e Cuba, gerou-se

Com o crescente isolamento e a necessidade de se

uma relação positiva entre as nações, sendo as relações

encaixar a realidade sociopolítica do continente, as

diplomáticas entre elas divididas em duas etapas: “uma de caráter fundamentalmente bilateral e outra no

18

Discurso pronunciado por Fidel Castro Ruz em el acto central por El 30º aniversario de Los Comittes de Defensa de La Revolucion. El 28 de septiembre de 1990. Disponível em http://www.cuba.cu/gobierno/discursos/1990/esp/f280990e.html. Acesso em 29/10/2011 19 MESA-LARGO,Camelo ,1995 20 AYERBE Luis Fernando, A revolução Cubana. São Paulo: Ed. UNESP, 2004, P.95

contexto da criação da Aliança Bolivariana dos povos de nossa América (ALBA)” 22. 21

Em geral no âmbito da saúde e educação. ROMERO Carlos. A, A política externa da Venezuela Bolivariana, n-4, P-14, Jul.2010 22


G N A R U S | 22 recorte temporal estima-se que pelo menos 13.000 O acordo bilateral que envolve as duas regiões

trabalhadores cubanos tenham se transferido para

consistia no apoio cubano na estruturação venezuelana,

Venezuela, sendo “a maioria deles proveniente do setor

cedendo, principalmente, trabalhadores especializados

de saúde (médicos, enfermeiras e paramédicos) e do

da área de saúde e educação. E em contra partida,

setor esportivo, na forma de permuta, e desde 2003, na

cabia a Venezuela fornecer o petróleo subsidiado a

forma de pagamentos por serviços profissionais.”26

Cuba. Essa relação evoluiu de tal maneira que se pode

No ano de 2004 em uma declaração conjunta dos

falar de uma complementação econômica entre os dois

dois governos, visando uma “aspiração à hegemonia de

países, basta analisar o volume financeiro que

posições na esfera mundial”, 27 marca o início de uma

acompanha esta experiência, assim como o tipo de

nova etapa entre as relações diplomáticas dos dois

cooperação existente.

países, a criação da Aliança Bolivariana dos povos de

Segundo

Carlos

A.

Romero,

“o

interesse

nossa América (ALBA), permitindo o comércio bilateral

Venezuelano em Cuba parte do principio do

entre os países com tarifa zero a “implementação de

acoplamento e defesa de dois projetos políticos e ao

um total de 26 empresas mistas e 190 ainda em fase de

trabalho cooperativo comum para promover a

negociação” 28

revolução latino-americana” 23.

Desde o início do governo de Hugo Chávez a

Rapidamente, a Venezuela assume o papel de

conexão entre Cuba e Venezuela vem substituindo a

principal parceira econômica de Cuba fortalecendo

relação histórica entre Venezuela e EUA, uma vez que

essa aliança com o Convênio Integral de Cooperação

esse último encabeça as hipóteses de guerra nos planos

24

entre os dois países . A tabela a seguir apresenta a

de defesa venezuelanos. No campo militar é de certo o

relação comercial entre Cuba e Venezuela e nos

intercambio entre as forças cubanas e venezuelanas

permite acompanhar a evolução deste processo entre

uma vez que segundo dados de Romero entre 1999 e

as duas nações:

2008 ocorreram:

“colaborações

humanitárias

da

esquadra

venezuelana em decorrência de eventos naturais

Relações comerciais entre Cuba e Venezuela (1998-2005)25 1998 US$ 388,2 milhões 1999 US$ 464,1 milhões 2000 US$ 912,4 milhões 2005 US$ 2.5 bilhões

na ilha, e várias visitas de delegações oficiais e grupos de estudo militares venezuelanos a Cuba, a fim de manter intercâmbios profissionais e receber instrução militar. Em 2007, estabeleceu-

O comércio com a Venezuela atinge em 2005 um

se a Adidância Militar da Venezuela em Cuba, e

montante equivalente a 45% do total de bens e serviços

desde 2009 existe a Adidância Militar, Naval e

da ilha. Em 2002 a Venezuela, através do Convênio de

Aérea cubana e um Grupo de Coordenação e 17

Cooperação mandou para Cuba 53.000 barris de

União das Forças Armadas Revolucionárias de

petróleo, tendo esse número sido elevado para a

Cuba na Venezuela, cujo chefe é o general de

quantia de 97.000 no ano de 2005, 68% de todo o

brigada Frank Yánez.”

29

petróleo consumido pela ilha. Em oposição no mesmo 26 23

Id., P-14 24 Visando promover o intercâmbio de bens e serviços em condição solidária. 25 Ibid., P-15

Ibid., P-15 Trecho da declaração em conjunto dos Governos de Cuba e Venezuela de 14 de dezembro de 2004. 28 Ibid.,P-17 29 Ibid., P-16 27


G N A R U S | 23 Até agora não se tem informação confiável sobre a existência de um tratado militar entre os dois países, nem tampouco de compra de material bélico entre eles ou de outros envolvidos, ou mesmo sobre manobras militares conjuntas. O que se tem de concreto é a aliança entre as duas nações ameaças por um inimigo em comum, que juntas buscam força para manter vivos sua economia e seus ideais.

Rennan de Azevedo Ramos: É graduado em História pelas Faculdades Integradas Simonsen, e professor de História no Colégio São Francisco de Assis.

O presidente a Venezuela, Hugo Chávez, com o então presidente de Cuba Fidel Castro. Chávez foi o principal aliado político e sócio comercial da Havana nos últimos 14 anos. Fidel Castro o considerava como "um filho verdadeiro" (Fonte: Notícias UOL - 06/03/2013.)


G N A R U S | 24

Pesquisa

COTIDIANO POLICIAL E REVOLTA DA VACINA Por Daniele dos Reis Crespo Rodrigues João

S

e as reformas urbanas alteraram profundamente a

cheiro dos miasmas que exalavam por todo lugar que se

fisionomia do Rio de Janeiro no início do século

fosse. A modernidade não poderia se esquivar de tão

XX, a Revolta da Vacina interferiu da mesma

grave problema e a reforma urbana tinha que ser aliada

forma na história da cidade. Tal revolta, que parecia fora da nova lógica dos avanços científicos e da capital federal que se modernizava, perpetuou-se na história e no senso comum, seja como exemplo de ignorância ou de vitória popular. A balbúrdia gerada transformou o cotidiano naqueles dias de novembro: transportes destruídos ou sem poder circular, casas de comércio saqueadas, delegacias invadidas, iluminação precária, telefones mudos. Dias de guerra e de estado de sítio. O presente artigo se propõe a uma análise do cotidiano policial no Rio de Janeiro, tendo como fonte os dados colhidos dos registros de ocorrências da 6ª delegacia de polícia São José, nesse tão conturbado período. E através de dados comparativos, observaremos se a revolta, após seu término, influenciou/modificou de alguma forma a ação policial. A Revolta da Vacina O progresso chegava. Era impossível não ouvir a música que o anunciava a cada picareta que encontrava um prédio velho e carcomido, a cada parede que desabava, fazendo subir o adorável pó de onde nasceria a modernidade. Porém, misturado à poeira que construía a beleza e a civilidade havia também o cheiro fétido de valas podres que corriam a céu aberto, o

a uma reforma sanitária.


G N A R U S | 25

110.224 visitas domiciliares, 12.791 intimações, 626 interditos2.

Rodrigues Alves não desejava somente embelezar a capital. Precisava curar também a mazela epidêmica que tanto atrapalhava as relações comerciais1. Ao cargo do médico Oswaldo Cruz, nomeado como diretor do Serviço de Saúde Pública, ficou a assepsia da cidade, que unida ao esforço reformador de Passos, se tornaria uma capital de que a República poderia se orgulhar.

Apesar da truculência que foi utilizada, os resultados

da

campanha

foram

extremamente

satisfatórios e, em menos de dez anos, a febre amarela e a peste bubônica tinham sido praticamente

Oswaldo Cruz tinha como alvo principal o combate

erradicadas da cidade. Para traduzir em números o

a três doenças: a febre amarela, a peste bubônica e a

sucesso: em 1903, a mortalidade por peste bubônica

varíola. A erradicação da febre amarela dependia da

era de 48,74 por 100 mil habitantes; em 1909 esse

extinção dos mosquitos e do isolamento de doentes e,

número caiu para 1,73! A febre amarela, em 1902 havia

o da peste bubônica, dependia do extermínio de ratos

ceifado 984 vidas; no ano de 1908, apenas 4 3 .

e pulgas e da limpeza e desinfecção de ruas e casas. Para alcançar esses objetivos foram utilizadas as brigadas sanitárias, que se destacaram pela truculência que agiam. Nesse momento, a polícia é utilizada para obrigar os populares a acatarem

as medidas

governamentais e prevenir resistências.

Brigadas sanitárias (...) percorriam ruas e visitavam casas, desinfetando, limpando, exigindo reformas, interditando prédios, removendo doentes. Os alvos preferidos das visitas eram, naturalmente, as áreas mais pobres e de maior densidade demográfica (...). Para prevenir resistências dos moradores, as brigadas faziam-se acompanhar de soldados da polícia. Pode se ter uma ideia da dimensão do esforço através da seguinte estatística: só no segundo semestre de 1904 foram visitadas 153 ruas; foram feitas, no primeiro semestre,

A

dessas

doenças

dependia

principalmente da eliminação do seu vetor de transmissão. Em se tratando da varíola, não havia um vetor a ser eliminado. A extinção da doença dependia da vacinação e revacinação em massa da população. A vacinação não era uma novidade no Brasil assim como a obrigatoriedade; ambas, porém, na maioria das vezes, eram ignoradas. Para repetir o sucesso obtido com a febre amarela e a peste bubônica se fazia urgente reintroduzir,

regulamentar

e

fazer

cumprir

a

obrigatoriedade. Com a lei aprovada no Congresso em 31 de outubro de 19044, era necessário regulamentá-la. O projeto de regulamento, criado por Oswaldo Cruz, ganhou indevidamente o jornal “A Notícia” de 9 de Novembro de 1904, antes mesmo de ser discutido e aprovado.

Mais do que tornar obrigatória a vacina para todos os que não tivessem sido a ela submetidos nos últimos seis anos, ele definia que os vacinados deveriam se reapresentar aos médicos uma semana após a imunização. Passado um ano, teriam que comparecer novamente ao posto médico para realizar a

1

“Aos interesses da emigração, dos quais depende em máxima parte o nosso desenvolvimento econômico prende-se a necessidade do saneamento desta capital. É preciso que os poderes da República, a quem incube tão importante serviço, façam dele a sua mais séria e constante preocupação (...) A capital da República não pode continuar a ser apontada como sede de vida difícil, quando tem fartos elementos para constituir o mais notável centro de atração de braços, de atividades e de capitais nesta parte do mundo.” Manifesto de Rodrigues Alves a Nação em 15/11/1902. Jaime Larry BENCHIMOL. Reforma Urbana e Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janeiro. P. 255.

erradicação

2

José Murilo de CARVALHO. Os Bestilizados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. P. 94 -95. 3 Fonte: Almanaque Histórico: Oswaldo Cruz, o médico do Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Oswaldo Cruz, 2004. P. 22 -24. 4 José Murilo de CARVALHO. Os Bestilizados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. P. 96.


G N A R U S | 26

revacinação. Aos que se negassem a fazê-lo, a lei definia duras penas – que iam de pesadas multas ao impedimento de que fossem admitidos como empregados em serviços públicos ou privados, ou mesmo que se hospedassem em casas de cômodos ou de pensão, hotéis, pensionatos e similares. No caso da iminência de uma epidemia, a Diretoria Geral de Saúde Pública teria a prerrogativa de ‘efetuar a vacinação e revacinação em massa’, bastando para isso uma simples autorização do governo.5

Aos poucos, a luta se espalhou pelas ruas adjacentes, pela Sacramento e avenida Passos, pelo largo de São Francisco, ruas do Teatro, dos Andradas, da Assembléia, Sete de Setembro, Regente, Camões, São Jorge. (...). Os bondes começaram a ser atacados, derrubados e queimados. Foram quebrados combustores de gás e cortados os fios da iluminação elétrica da avenida Central. Surgiram barricadas, primeiro na avenida Passos e depois nas ruas adjacentes. Oradores subiam aos montes de pedra e incitavam ao ataque. Na rua de São Jorge, as prostitutas saíram à rua para aderir à luta(...). Começaram os ataques às delegacias de polícia e ao próprio quartel de cavalaria, na Frei Caneca. Verificaram-se também assaltos ao gasômetro e às companhias de bondes. Os distúrbios se espalharam, atingindo a praça Onze, Tijuca, Gamboa, Saúde, Prainha, Botafogo, Laranjeiras, Catumbi, Rio Comprido, Engenho Novo. (...) as colunas dos lampiões de gás foram quebradas e enormes chamas lambiam os ares. (...) as árvores recémplantadas forma arrancadas. (...) O tiroteio penetrou a noite (...)6.

É importante ressaltar que o que alcançou os jornais e foi o principal estopim para os acontecimentos de novembro não foi a regulamentação para a lei da obrigatoriedade da vacina e sim o projeto de tal regulamentação, que nem por isso deixou de tocar profundamente a alma da população que não queria, mais uma vez, sofrer com as medidas cerceadoras e repressivas. Foi necessário apenas uma semana – de

Nos dias que se seguiram, os conflitos foram ficando

guerra, é bem verdade - para que o projeto de regulamentação fosse revogado.

cada vez mais violentos e sangrentos até que no dia 16

Já no dia seguinte da publicação no jornal “A

foi decretado o estado de sítio na cidade e as tropas da

Notícia” de 9 de novembro de 1904, iniciaram-se os

Marinha e Exército assumiriam o controle da situação.

primeiros rumores no largo de São Francisco, onde

No dia 18, a cidade começava a voltar ao que poderia

manifestantes se chocaram com a polícia, que tentava

ser considerado “normal”, não fossem pelos os restos da

reprimir qualquer movimento contrário à vacinação

batalha que jaziam na cidade apaziguada pelas forças

obrigatória. No dia 11, a mesma cena se repetiu, tendo

federais: bondes revirados e quebrados, ruas sem

a força policial investido agressivamente contra o povo

iluminação, calçamento arrancado e revolvido, árvores

que se manifestava e que agora, já começava a se armar

arrancadas, latas de querosene, garrafas, colchões,

com materiais provenientes das obras de remodelação.

vitrines estilhaçadas7.

Os conflitos continuaram no dia 12, tendo um grupo de

Os conflitos obedeceram a um padrão

revoltosos atacado o carro do comandante da Brigada

estabelecido em outras oportunidades: a

Policial, general Piragibe (logo depois de terem

polícia foi atacada pelos populares e a

aplaudido o 9° Regimento de Cavalaria do Exército!),

multidão enfurecida só se acalmou quando a

que ordenava que os policiais mandassem “carga”. A

polícia deixou as ruas e o Exército assumiu o

partir do dia 13 o conflito já havia se generalizado por

patrulhamento das ruas. Isso não acontecia

toda cidade:

devido a diferentes abordagens do controle de perturbações da ordem, refletindo, antes, o

5

Leonardo Affonso Miranda de PEREIRA. As barricadas da saúde. Vacina e protesto popular no Rio de Janeiro da Primeira República . P.20.

6

José Murilo CARVALHO. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. P. 103-104. 7 Ibid. P. 101-113.


G N A R U S | 27

conceito negativo em que a polícia era tida

insondável do tempo, onde há esquecimento

pela população do Rio, em contraste com a

para tudo” 9. Já Lima Barreto, satisfeito com os

estima dispensada ao Exercito.8

acontecimentos, escreve em seu diário íntimo: “essa masorca teve grandes vantagens: 1ª )

O sucesso do Exército no apaziguamento da revolta

demonstrar que o Rio de Janeiro pode ter

não resultava apenas da simpatia da população por esta

opinião e defendê-la com armas na mão (...).

força, que realmente era verdadeira. Outros fatores

Pela primeira vez, eu vi entre nós não se ter

contribuíram tais como: um efetivo muito maior,

medo do homem fardado. O povo, como

melhor equipado e melhor preparado para lidar com

astecas do tempo de Cortés, se convenceu de

situações de grande porte. Ademais, por não participar

que eles também eram mortais”.10

do policiamento cotidiano, a população não tinha

Hoje, à luz do progresso da ciência, é difícil

domínio sobre como essa força reagiria a uma

compreender porque tamanha revolta contra a

resistência mais efetiva. A população, que já nutria uma

erradicação de terrível mazela. Na tentativa de

simpatia e um respeito pelo Exército e também por ter

entender a lógica existente nesse conflito, a

consciência de que não conseguiria resistir por muito

historiografia produziu diversos estudos, que chegaram

tempo a superioridade bélica, foi obrigada a sair das

a algumas conclusões divergentes, como veremos a

ruas e pôr fim à revolta. Além do mais, o regulamento já

seguir.

havia sido revogado no dia 17.

Ao tratar do tema, Sevcenko, aponta como motivo principal da revolta a exclusão diária vivida pela população, que pode ser observada na destruição dos símbolos de modernidade dos quais não podia desfrutar:

A revolta não visava o poder, não pretendia vencer, não podia ganhar nada. Era somente um grito, uma convulsão de dor, uma vertigem de horror e indignação(...). Quanto sofrimento é preciso para que um homem se atreva a encarar a morte sem medo? E quando a ousadia chega nesse ponto, ele é capaz de pressentir a presença do poder que o aflige nos seus menores sinais: na luz elétrica, nos jardins elegantes, nas estatuas, nas vitrines de cristal, nos bancos decorados dos parques, nos relógios públicos, nos bondes, nos carro, nas fachadas de mármore, nas delegacias, agencias de correio e postos de vacinação, nos uniformes, nos ministérios e nas placas de sinalização. Tudo que o constrange , o humilha,

Mulheres sendo vacinadas. Foto do acervo do Instituto Oswaldo Cruz. Olavo Bilac, defensor ilustre da causa de Passos e de Cruz, não consegue esconder o horror que os acontecimentos despertaram, maculando, antes mesmo do término, o grande projeto de modernidade e civilidade, registrando seu assombro com a frase: “Semana maldita, some-te, mergulha no grande abismo onde tudo cai, no abismo

8

Marcos Luiz BRETAS. Ordem na cidade. O exercício do cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro. 1907-1930.P. 46.

9

Olavo BILAC, In: Jaime Larry BENCHIMOL. Reforma Urbana e Revolta da Vacina na cidade do Rio de Janeiro. P. 275. 10 Lima BARRETO. Diário Intimo. P. 48.


G N A R U S | 28

o subordina e lhe reduz a humanidade. Eis os seus alvos, eis a fonte de sua revolta.11

restrito e específico – os discursos proferidos por

Pereira, utilizando-se de um número mais diverso de

não podendo assim ser considerado como eixo de uma

políticos positivistas no Centro das Classes Operárias,

historiográficos

revolta, que não teve apenas trabalhadores envolvidos.

produzidos, contesta Sevcenko, ao chamar atenção

Pereira reforça esse posicionamento, ao destacar que

para que, análises como essas, só são pertinentes se

os códigos de moralidade dos populares eram bem

forem olhados em conjunto os alvos da destruição

diversos daqueles propagado nos comícios14.

fontes

e

de

outros

trabalhos

popular (bondes, calçamento, postes de iluminação, etc enquanto

símbolos

da

modernidade);

olhados

isoladamente, a destruição desses alvos, constituem-se claramente em uma estratégia utilizada para dificultar 12

o trabalho da polícia em detê-los .

Para Chalhoub, a motivação da revolta se aproxima do desejo de continuar exercitando práticas de curandeirismo através do culto a Omolu, reforçado também pela necessidade incômoda de revacinação15.

revolta – tomada do poder dos militares, conjuntura

Sendo a etiologia da varíola de ordem sobrenatural, a cura teria de acontecer prioritariamente por meio de práticas rituais; por conseguinte, e seguindo a lógica do culto a Omolu, cabia a seus sacerdotes, mediante a procedimentos apropriados (...) aplacar a vingança de Omolu e obter dele a proteção contra peste reinante.16

econômica, reforma urbana, obrigatoriedade – conclui

Pereira, ao fazer uma análise minuciosa dos

Carvalho,

em

seu

afamado

livro

“Os

Bestializados”- leitura quase obrigatória - já aponta um outro caminho para a compreensão dos distúrbios de 1904. Após relativizar diversos fatores que poderiam ser considerados como responsáveis pela eclosão da

que o eixo principal da revolta, na verdade, girava em

distúrbios,

torno de uma questão moral como elemento de coesão.

descontentamentos, gerados por variados motivos, que

A justificativa se baseava tanto em valores modernos como tradicionais. Para os membros da elite, os valores eram os princípios de liberdade individual e de um governo nãointervencionista (...). Para o povo, os valores ameaçados pela interferência do Estado eram o respeito pela virtude da mulher e da esposa, a honra do chefe de família, a inviolabilidade do lar (...). Ao decretar a obrigatoriedade da vacina pela maneira como fizera, o governo violava o domínio sagrado da liberdade individual e da honra pessoal.13

demonstra

que

haviam

grandes

forneceram combustível à revolta. Entre eles estavam a proibição

das

formas

tradicionais

de

cura,

a

obrigatoriedade em si, a desconfiança da eficácia da vacina, os transtornos posteriores como a necessidade de revacinação e a apresentação do certificado de vacinação para conseguir empregos e hospedagens; e por conhecerem bem a violência com que o governo fazia cumprir suas medidas. Foram criadas redes de solidariedades entre os mais diversos grupos que se uniram para combater a lei.

Esse posicionamento vem a ser contestado por

Tratava-se, assim, de um protesto que, por caminhos diversos – fossem de base religiosa, moral ou profissional -, apontava para um descontentamento em relação ao projeto do

Chalhoub, que ressalta que o apelo moral destacado por Carvalho se baseia num apoio documental muito 11

Nicolau SEVCENKO. A revolta da vacina: mentes insanas em

corpos rebeldes. P. 68.

14

Vacina e protesto popular no Rio de Janeiro da Primeira República.

P. 99 -100. 15 Sidney CHALHOUB. Cidade febril; cortiços e epidemias na corte imperial. P. 114. 16 Ibid. P.151.

12

Leonardo Affonso Miranda de PEREIRA. As barricadas da saúde.

P. 95. 13 José Murilo de CARVALHO. Os Bestilizados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. P. 136.

Leonardo Affonso Miranda de PEREIRA. As barricadas da saúde. Vacina e protesto popular no Rio de Janeiro da Primeira República.


G N A R U S | 29

governo, baseado em saberes e práticas próprias dos revoltosos. Não sendo os manifestantes simples páginas em branco, aos quais só seria facultado espelhar concepções que lhes seriam exteriores ou reagir de forma inconsciente a uma lógica que seriam incapazes de entender, eles tiveram na luta contra o projeto de Oswaldo Cruz a chance de demonstrar sua capacidade de articulação e ação ante os arbítrios aos quais se tentava submetê-los17.

relacionamento desses elementos num período de conflito, o que gera equívocos, uma vez que em momentos como esse, ambos os lados tendem a agir com violência20. Ou seja, a manifestação de violência contra a polícia não pode ser entendida de forma categórica, como um momento de “vingança” das classes populares contra os policiais.

A única coisa que podemos concluir, com certeza, é de que a população não aceitou ser exposta aos mandos e desmandos do governo, uma vez que essa lei feria variados princípios estabelecidos: “havia-se

arraigado profundamente entre os populares em geral a ideia de que se podia, e até se devia, resistir a autoridade constituída todas as vezes que esta parecia se exceder claramente no exercício de suas funções”18 Independente dos motivos que fizeram-na eclodir, muitos historiadores chamam a atenção para os confrontos intensos que os revoltosos tiveram com a polícia

e

destacam

que,

desde

as

primeiras

manifestações, se ouviam os gritos de “Morra a Polícia”19. Os autores concluem que, apesar de ser desencadeada pela lei de obrigatoriedade, a revolta também seria, em seu âmago, uma resposta dos setores populares à violência como eram tratados nos tempos Capa da “Revista da Semana” de 1904

de paz. Precisamos, porém, considerar que estamos observando a ação de dois grupos distintos – policiais e populares – dentro de um momento específico - a revolta. Tal contexto explica, ainda que parcialmente,

O cotidiano antes e depois da Revolta da Vacina

os embates efusivos travados. Bretas nos adverte para o

Do dia 09 de novembro – data da publicação do

risco

em

se

analisar

o

comportamento

e

o

projeto de regulamento da lei de obrigatoriedade da vacina até o dia 17 de novembro – data da revogação

17

Leonardo Affonso Miranda de PEREIRA. As barricadas da saúde. Vacina e protesto popular no Rio de Janeiro da Primeira República . P. 104. 18 Sidney CHALHOUB. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Epoque. P. 298. 19 Os gritos de “Morra a Polícia” levados tão em conta pelos historiadores e utilizados para confirmar que o alvo da revolta também era a força policial não foram cunhados no momento da Revolta da Vacina. Esse grito era usado em outros momentos, sempre que se desejava manifestar oposição a ela, como já foi exemplificado na introdução.

de tal projeto, a cidade foi palco de um motim sem precedentes. A atuação da polícia não foi suficiente para conter os amotinados, sendo necessária a atuação de outras forças da ordem. Na pesquisa efetuada na 20

Marcos Luiz BRETAS. A guerra das ruas. Povo e polícia na cidade

do Rio de Janeiro.P. 94.


G N A R U S | 30 delegacia de São José, é possível perceber que até o

pois era sua atribuição zelar pela iluminação pública.

dia 11, a delegacia manteve suas atividades de forma

Essa foi a missão do delegado, que acompanhado de

corriqueira, embora com uma pequena variação nos

seus inspetores e praças, cinco horas após ter

índice de ocorrências (13,08) , uma vez que a média

dispersado o grupo de populares da frente da

geral por dia durante os meses pesquisados era de

delegacia, tratou de ir acender os lampiões.

Às 1 e 30 da noite o Sr. Dr. Delegado acompanhado de inspetores e praças, saíram pelas ruas desta Circunscrição, com o fim de acenderam os combustores de gás, ao chegarem em frente a Câmara dos Deputados, o Sr. Dr. Delegado mandou que um grupo de indivíduos duvidosos despersa-se (sic) tendo o referido grupo o agredido a tiros de revolvel (sic). Nesta ocasião passava Augusto Gomes de Queiroz o qual foi atingido por uma bala do mesmo grupo, ficando ferido no ventre, bem como o soldado n° 95 da 2ª Companhia do 3° Batalhão da Brigada Policial Antonio Gomes, que foi ferido na vista direita, com um tiro de revolver.23

11,02. Desta forma, os números não revelam nenhum traço de anormalidade e, até então a revolta parecia não ter chegado à delegacia de São José. A partir do dia 12, começam a aparecer nas ocorrências os primeiros reflexos do motim: nesse dia é registrado apenas uma: a expedição de uma guia para recolhimento na Santa Casa de Misericórdia de um homem indigente21. Esse número pode ser justificado pela necessidade de todo o efetivo estar envolvido na pacificação do motim. Ainda assim, no dia 13, se fizeram necessárias duas detenções: a de um bêbedo e a de um desordeiro. Somente a partir do dia 14 que a revolta começa a adentrar nos livros de registro de forma clara, no relato que conta sobre a tentativa de tomada da delegacia, fato este já ocorrido em outras delegacias como a de Santa Rita.

Às 8 e 30 da noite, um grupo de 200 indivíduos, poco(sic) mais ou menos, apagava e quebrava os combustores de gás, e quando chegaram em frente a esta delegacia vaiaram a polícia e tentaram agredir a estação sendo necessário o emprego da força, afim de repelilo (sic), o que foi conseguido.22

Os envolvidos nos distúrbios respondiam à bala os pedidos da polícia e, nesse momento do motim, os tiros faziam vítimas dos dois lados. No dia 15, a delegacia de São José teve muitos problemas a solucionar, a maioria, porém, não era ocasionado pela revolta, a não ser a prisão de Antonio Fernandes, no ponto das barcas, por estar arruinando lampiões. No dia seguinte, as “masorcas” trouxeram mais trabalho para o inspetor, que teve que anotar a prisão de Pedro Antonio de Almeida, que apagava combustores no Largo da Batalha e, logo depois, passar a guia para recolher ao Necrotério Público o cadáver de Ramiro Campos,

Os jornais da época e a própria historiografia

vitimado por uma bala no ventre.

Às 12 horas da tarde passei guia afim de ser recolhido no Necrotério Público o cadáver do nacional Ramiro Campos, com 35 anos de idade, solteiro operário da fábrica de vidro, de cor parda, residente à rua General Pruse n° 1 casa da referida Fábrica, o qual vinha com guia da 14ª Delegacia a fim de recolher-se a Santa Casa de Misericórdia por ter sido ferido no ventre por uma bala em caminho faleceu,

produzida sobre a Revolta relatam muito bem os ataques dos populares às obras, aos combustores, aos postes, as lojas e – resumidamente - a tudo mais que estivesse a sua frente e ao seu alcance. Especificamente no caso da quebra dos combustores, a polícia precisava, não só evitar, como também reparar os estragos feitos, 21

Esse número mínimo só irá se repetir mais uma vez durante todo período pesquisado, no dia 17 desse mesmo mês, com o registro de uma agressão. 22 Ocorrências, 6ª C.U./ São José, 13/11 – 14/11/1904.

23

Ocorrências, 6ª C.U./ São José, 13/11 – 14/11/1904.


G N A R U S | 31

aguardando exame cadavérico pelos médicos legistas da Polícia.24

peculiares. Daí se explica que do total de 157 vadios presos no mês, 134 foram presos nos poucos dias após a revolta. Para se ter uma idéia do número de “vadios”

Ainda no dia 16, encontramos registrado o apelo de um

negociante

que

desejava

defender

seu

estabelecimento do assalto dos revoltosos. Esse dado é curioso pois vem se contrapor aos relatos contidos em outras pesquisas, onde grande número de comerciantes fornecia de bom grado aos amotinados itens para o combate25.

Às 6 horas da tarde o Sr° David Silva, negociante à rua da Misericórdia n° 11B veio a esta delegacia pedir garantias afim de evitar um assalto ao seu negócio de ferragens e outros artigos, imediatamente foram dadas as providências, mandando colocar duas praças.

recolhidos, no dia 26 de novembro, tendo a delegacia tomado conhecimento de que, diversos vagabundos domiciliavam-se

em

diversas

hospedarias

da

circunscrição, o “Dr. Delegado”, acompanhado dos 1° e 2° suplentes, inspetores e praças, visitaram as mesmas hospedarias, prendendo, de uma só vez, mais de 40 indivíduos, sob a mesma acusação26. Desses “diversos vagabundos” que domiciliavam-se na circunscrição, 19 já haviam sido detidos em outras ocasiões dentro do período pesquisado. Dos outros que não encontramos referências, podemos supor que: já haviam sido detidos em outras vezes, mas com nomes diferentes; não haviam sido detidos nos três meses que antecederam a

O dia 17 apresenta, tal como o dia 12, a curiosa marca de um registro, sendo este gerado pelo

revolta ou que realmente foram apanhados pela condição miserável que se encontravam.

espancamento de um menor por Titto Hermenilgido do

Os alvos da perseguição policial não eram aqueles indivíduos que se poderia comprovar terem tido alguma participação nos distúrbios, mas sim, genericamente, todos os miseráveis, carentes de moradia, emprego e documentos, que eram milhares e cuja a única culpa era viverem numa sociedade caótica e serem vitimas de uma situação crônica de desemprego e crise habitacional que a própria administração havia desencadeado. A rigor, no contexto do processo da Regeneração, tratavase de livrar a cidade desse entulho humano, como uma extensão da política de saneamento e profilaxia definida pelo projeto de reurbanização.27

Nascimento, um trabalhador negro de 40 anos. O que é mais significativo aparece nos dias que se seguiram: ainda são encontrados registros referentes à prisão de arruaceiros “por terem tomado parte saliente

nos últimos factos” unidas a outras de caráter comum. Porém, o que mais chama atenção nos dias que sucederam à revolta, foi o crescimento das prisões onde o motivo era “vadiagem”, “dormindo ao relento” ou “vagando”. Isso é facilmente explicado, uma vez que, decretado o estado de sítio em 16 de novembro, a polícia tratou de reverter o amargo insucesso de não

Centenas de residentes pobres do Rio de Janeiro, se implicados ou não nos tumultos, foram presos e enviados para o Amazonas nas prisões fechadas dos navios costeiros(...) . Em batidas policiais noturnas, eles vasculhavam os bairros pobres, prendendo desordeiros

conter a revolta, promovendo uma “limpa” na cidade, usando como justificativa a prisão de supostos envolvidos, com o arbítrio e violência que lhes eram 24

Ocorrências, 6ª C.U./ São José, 15/11 – 16/11/1904. “Na rua, o entusiasmo transmudou-se em agressividade, e os manifestantes travaram conflito com a polícia. Não houve mais meio de conter o populacho. Tiraram ripas e varas de material das construções novas; arrancavam paralelepípedos, tomavam, de assalto, sacos de rolhas de cortiça na soleira dos armazéns, e vendeiros portugueses, forretas capazes de negar um pão por esmola, davam-lhe querosene, as latas, para os incêndios” José VIEIRA. O bota –abaixo. In: Sidney CHALHOUB. Trabalho, lar e 25

botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Epoque.P. 299.

26

Ocorrências, 6ª C.U./ São José, 25/11 – 26/11/1904. Nicolau SEVCENKO. A Revolta da Vacina: mentes insanas em corpos rebeldes. P. 71-72. 27


G N A R U S | 32

suspeitos, conhecidos criadores de problemas, assim como biscateiros.28

Um dos objetivos desse capítulo era observar se a revolta da Vacina havia alterado o cotidiano policial. Para isso, devemos observar atentamente os gráficos:

Utilizando-nos

dos

dados

encontrados

nas

ocorrências de vadiagem, foi possível compor o

OCORRÊNCIAS ATÉ A REVOLTA DA VACINA

seguinte gráfico: DISTRIBUIÇÃO DAS OCORRENCIAS DE VADIAGEM DURANTE OS MESES29

OCORRÊNCIAS APÓS A REVOLTA DA VACINA O gráfico ilustra o crescimento das prisões por vadiagem e vem a confirmar o que já foi sinalizado por diversos estudos: o amplo e não muito bem definido conceito de vadiagem foi utilizado pela polícia para embasar legalmente (uma vez que vadiagem era contravenção) as prisões arbitrárias de indivíduos considerados uma ameaça à ordem da cidade, sensivelmente abalada pela revolta, os quais muitas vezes sequer sabiam o motivo de sua prisão. A polícia

Até a eclosão do motim eram as ocorrências de

exercia dessa forma uma repressão que poucos tinham

embriaguez (e) desordem e assistência as que

chances de escapar.

ocupavam os primeiros lugares, representando 48% do

Depois de olhar mais detidamente como a 6ª

total de agosto a outubro. Ou seja: quase metade do

delegacia de São José vivenciou a semana de conflito, o

tempo da polícia fora ocupado nesses meses por uma

foco será ampliado para além das especificidades

importante prestação de serviço para população e pela

encontradas nessa semana, para que possamos observar

manutenção da ordem pública.

se uma revolta das proporções da ocorrida na cidade,

A vadiagem só conseguiu alcançar o maior total

trazia mudanças significativas nos meses que a seguiam.

geral devido ao crescimento exponencial dos números apresentados por ela após o motim de novembro, mês em que ela é absoluta. A seguí-la continuam as

28

recorrentes embriaguez (e) desordem em 2° lugar e

29

assistência, já em 3°. As duas primeiras, juntas,

June HARNER. Pobreza e política. Os pobres urbanos no Brasil. 1870-1920.P. 197. A pesquisa foi iniciada no dia 09 de agosto de 1904 e finalizada em 09 de fevereiro de 1905, dando-se provavelmente por esse motivo, a queda no número de prisões no mês de fevereiro. O mês de fevereiro não foi pesquisado por completo pois não queríamos adentrar no período de carnaval.

representam 56% do total de registros de novembro a fevereiro, onde o tempo do policial foi gasto


G N A R U S | 33 prioritariamente com a repressão, sem, porém, deixar

que Bittner já havia sinalizado: a missão da polícia

de lado a tão comum manutenção da ordem e

limita-se a impor soluções provisórias para emergências

prestação de serviços.

fora de contexto e não soluções permanentes31, até

Como já foi arrolado anteriormente, o crescimento das prisões por vadiagem representa a política seguida pela polícia após a revolta: havia a necessidade, a possibilidade e a chance de se livrar a cidade de todos

porque, se isso fosse possível, o trabalho da polícia com o tempo se reduziria sensivelmente e se esvaziaria. A polícia funciona como um paliativo social, que fornece soluções imediatas para problemas crônicos.

aqueles vadios, que segundo generalizações da época,

Excluindo-se o crescimento atípico das ocorrências

eram os principais responsáveis pelo motim. Essa

de vadiagem no período pós-revolta, vemos que o

atuação também visava evitar um caos ainda maior do

revezamento entre o número de registros que se

que o acontecido, sendo preciso intimidar através das

referiam a problemas causados por bêbados e

prisões

tivessem

desordeiros e os pedidos de auxílio feitos, em geral,

consciência de que o motim havia alcançado seu

continuavam a ocorrer tal como no período pré-

objetivo, sendo assim estimulados a fazer novas

revolta.

reivindicações. Era preciso dar resposta negativa a

“extermínio” da vadiagem, a polícia tinha que

todos aqueles acontecimentos.

continuar pacientemente a expedir guias para Santa

aqueles

que

possivelmente

Quando lidamos com ordem pública, é muito comum perceber a definição de um ‘problema’ varia consideravelmente para diferentes grupos sociais. Mas além desta questão da definição existe, do ponto de vista da administração, o problema de avaliar o quão perturbador pode ser um determinado comportamento e em que quantidades ele pode ser aceitável ou não. A vadiagem, por exemplo, tem definições diversas através do espectro social e pode ser mais ou menos tolerável de acordo com as circunstâncias. Em vez do temor a vadiagem aumentar porque seus índices cresceram, na maioria dos casos é o aumento do índices que reflete a existência do temor. 30

Apesar de todo esforço dirigido para o

Casa de Misericórdia e fornecer hospedagem aqueles que se excediam nas bebidas e nos modos. A revolta alterou o cotidiano da polícia no momento em que aconteceu e alguns dias após. Depois, temos a volta do padrão anterior. De mudança, só a certeza de que o povo não era tão pacífico assim...

Daniele dos Reis Crespo Rodrigues João: É mestre em História pela UFJF e Doutoranda em História pela UERJ. Professora do Departamento de História das Faculdades Simonsen e da UCAM. Para saber mais:

Mas tal forma de ação teve uma curta duração e já em fevereiro a situação volta à normalidade, ou melhor, ao mesmo resultado encontrado nos meses anteriores à revolta, com assistência e embriaguez e desordem ocupando os primeiros lugares.Isso vem a confirmar o

30

Marcos Luiz BRETAS. Ordem na cidade. O exercício do cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro. 1907-1930. P. 61.

31

Egon BITTNER. Aspectos do trabalho policial. P. 20.


G N A R U S | 34

Artigo

O TRIDENTE DE FERRO: AS FORÇAS POLÍTICAS DO COMUNISMO BRASILEIRO. Por Bruno Capalupo


G N A R U S | 35

O

presente trabalho apresenta um estudo sobre

participação da classe média nessa resistência, pois, dos

repressão sofrida pela população e os partidos

4.476 réus, 2.491 possuíam grau universitário. Em um

políticos de oposição ao regime Militar

país onde 1% da população alcançava o nível

imposto em 1964. É feita uma análise dos processos

universitário, os dados mostram como foi grande a

políticos encontrados na justiça Militar no recorte

participação da classe média contra o regime militar,

temporal de 1964 até 1979. Foram encontrados 695

mostrando que a massa em si, em comparação com a

processos referentes à repressão política realizada

classe média, pouco fez para resistir ao regime,

pelos militares, deste total de inquéritos encontrados

podendo associar esse fato a falta de escolaridade e

são citados 7.367 nomes de pessoas que foram levadas

entendimento dessa classe popular, que estava sendo

1

ao banco dos réus .

enganada e alienada, em boa parte pela mídia. Um dos

Através desse número de processos estudados

grandes emblemas desse período foi à criação da AERP

fica claro como ocorreu à distribuição desses casos ao

(Assessoria Especial de Relações Públicas) em 1968, que

longo do regime militar. O primeiro grande momento

tinha como objetivo legitimar o Governo e interferir no

dessa perseguição ocorreu entre os anos 1964-1966,

padrão

esse foi o momento de uma radicalização da repressão

propaganda vinculada pela AERP valorizava virtudes

que se explica pelo fato de o golpe civil-militar ter

como trabalho, amor, compreensão, compromisso,

acabado de ocorrer, havendo a clara necessidade de

fraternidade, entre outras, além de colocar no seio da

controlar toda e qualquer tipo de oposição ao novo

sociedade a ideia de manter a ordem, ou seja, manter o

sistema imposto, nesse período foram contabilizados

poder nas mãos dos militares4. A AERP construía as

2.127 nomes relacionados aos processos. Já a segunda

propagandas para o governo, sem que a população

fase dessa perseguição aconteceu no período de 1969-

achasse que era propaganda política, isso ajudou e

1974, quando a linha dura da repressão radicaliza

muito nos objetivos do Governo Militar, segundo Carlos

decretando o AI-5 e acirrando o controle sobre os

Fico foi um dos maiores sistemas de propaganda

oposicionistas, nesta fase foram registrados 4.460

política de governos autoritários contemporâneos 5 .

nomes de relacionados aos processos.

Outro fator na qual a mídia tinha grande influência era

Através

dessa

documentação,

de

comportamento

do

brasileiro,

essa

podemos

na desmoralização desses opositores marxistas, e em

destacar a forte participação dos jovens nessas

grande parte contava com a ajuda da moralidade cristã.

2

atividades de resistência militar, pois 38,9% tinham

Para os cristãos, os comunistas iriam trazer ao

idade igual ou inferior a 25 anos, e neste montante não

país a fome, tortura e miséria, isso iria ocorreria devido

estão contabilizados 91 nomes em que são citadas de

à nova organização social proposta pelos bolchevistas,

pessoas que se quer atingiram a maioridade. Na

que defrontava com a moralidade cristã implantada no

Argentina, em comparação, 70% dos quase 30 mil

mundo após a solidificação do poder da Igreja no

desaparecidos pela Ditadura, tinham entre 16 e 30

mundo ocidental, os comunistas eram caracterizados

anos

3

. É possível perceber também a grande e a ditadura militar: 40 anos depois. Bauru: Edusc, 2004,

1

"Brasil Nunca Mais", dossiê da tortura preparado pela equipe BNQ-Brasil Nunca Mais. 18ª edição, Petrópolis, Editora Vozes, 1987. 2 Que correspondem a 2.868 Processos. 3 MORAES, Maria Lygia Quartim. O golpe de 1964: Testemunho de uma geração. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; RIDENTI, Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. (orgs.) O golpe

p.15-28. 4 ALVES, Ronaldo Sávio Paes. Legitimação, Publicidade e Dominação Ideológica no Governo Médici (1969/1974) Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade Federal Fluminense. Niterói. 2001. 5 FICO, Carlos. Reinventando o Otimismo - ditadura, propaganda e imaginário Social no Brasil. Rio de Janeiro. Fundação Getúlio Vargas. 1997.


G N A R U S | 36 como “Cria de Satanás”. Segundo os anticomunistas,

oposição ao regime militar, fato que acarretaria em

essas ideias eram as últimas artimanhas do demônio

problemas para manutenção da ordem, portanto nada

para desviar os homens dos bons caminhos, e Moscou

mais lógico do que exterminar e proibir esses partidos.

era chamada de “Império do poder das trevas” e

Importante ressaltar também que em grande parte

“Cidade de Satanás”.6

dessas organizações são difundidas com ideias

Enquanto o Governo alienava a população com

marxistas em suas doutrinas e algumas delas recebiam

suas propagandas e a Igreja desmoralizava e

ajuda internacional. Para a direita, era a prova da

caracterizava esses grupos de orientação marxista de

interferência do comunismo internacional nos rumos

demoníacos, os que lutavam contra o regime eram

internos do país. O golpe segundo os militares decorreu

reprimidos pelas forças do Governo, a maioria dessas

através de fatores conjunturais como

prisões eram realizadas pelo Exército, 7 que foi o

econômico-financeira,

principal órgão da repressão contra esses opositores,

movimentos operários e camponeses que estavam se

angariando cerca de 1.900 prisões, em associação com

politizando, um movimento contra as reformas sociais e

o DOI-CODI, comandado também por oficiais dessa

políticas, um golpe contra o rico debate ideológico e

força.

cultural que acontecia no período9, crise do sistema

o

a crise

fortalecimento

dos

Os partidos políticos foram os que mais

partidário, a ampla mobilização das massas populares

sofreram perseguições pelo regime após o golpe de 64.

em razão de projetos divergentes para o país e

É de certa importância relatar aqui que existia uma

principalmente o avanço dos partidos de orientação

relação entre as ligas camponesas e Cuba, antes de

Marxistas no Brasil que tinham grandes contatos com

1964, essa associação traduzia-se em informação para a

organismos Internacionais, 10 isso gerava um imenso

implantação da guerrilha e fornecimento de armas e

receio por parte da elite, dos militares brasileiros, e

dinheiro para a montagem de campos de treinamento

também dos interesses americanos que queriam manter

no país. Eles recebiam apoio material, logístico e

sua dominação "imperialista" na América.

ideológico de Cuba, esse foi um dos motivos pelo qual 8

O principal partido com ideias Marxistas no

os militares alegaram a sua intervenção no Governo ,

Brasil foi o PCB (Partido Comunista do Brasil) criado em

existem diversas teorias sobre os motivos que levaram

1922.11 Já a partir da década de 1960, começaram a

ao golpe, um deles é a ideia do golpe como prevenção

surgir novos partidos marxistas pelo Brasil, a grande

a

maioria deles surgiram através de divergências dentro

um

regime

de

esquerda,

articulado

pelos

trabalhadores, que estavam ganhando força.

do PCB, ocasionado assim em novas organizações como a AP, POLOP, PC do B, ALN, MR-8, VPR, entre outras.

Grande parte das acusações dirigidas aos réus destes processos estudados é relacionada às militâncias em organizações partidárias proibidas, pois estavam em 9

6

MOTTA, Rodrigo Patoo Sá. Em guarda contra o "perigo vermelho": o anticomunismo no Brasil (1917-1964). São Paulo; Perspectiva, 2002. 7 Principal Força Militar do Brasil no período. 8 ROLLEMBERG, Denise. Esquerdas revolucionárias e luta armada. In: FERREIRA, Jorge; NEVES, Lucília de Almeida (Org.). O Brasil Republicano; O tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 2012.v.4.

Que se processava em órgãos governamentais, partidos políticos, associações de classe, entidades culturais, revistas especializadas, jornais etc. Esse debate acontecia entre conservadores, liberais, nacionalistas, socialistas, comunistas. 10 Grande dissidência de partidos de orientação de esquerda, ajuda Internacional Cubana e da União Soviética, integrantes desses partidos participando de reuniões nesses países. 11 Ao longo dos anos a sigla PCB sofreu algumas alterações. No seu inicio a sigla significava Partido Comunista do Brasil, depois Passou a ser Partido Comunista Brasileiro em 1961.


G N A R U S | 37 Esses grupos novos se diferenciam através das Chamadas Programáticas,

12

as Estratégicas

13

opressões das principais lideranças e a luta no seio do

e as

partido, foram surgindo várias ramificações, que

Táticas.14 Apesar de todas essas divergências dentro

romperam com o bloco Ortodoxo de Luis Carlos

dos ideais de esquerda, existiam pontos em comum,

Prestes, rejeitando a luta armada e adotando uma

como a busca de uma sociedade socialista e a conquista

tática de recuo político para garantir sua sobrevivência.

do poder por parte dos trabalhadores. PCB - Partido Comunista Brasileiro A partir de 1956, no 20º Congresso Soviético do PC Soviético, o PCB inclina suas ações para uma transição pacífica ao socialismo, fato que desagrada certos militantes da organização. Após essa tomada de rumo

do

PCB,

esses

militantes

que

ficaram

desacreditados com a política tomada pelo partido, começaram a se afastar e criam novos partidos de esquerda, o PC do B foi um deles. O PCB sempre desenvolveu um programa de transformações

que

tinha

como

preceito

o

desenvolvimento do capitalismo nacional, visto como um dos fatos para futuras lutas para a implantação do socialismo, mas para isso ocorrer, era necessário uma aliança entre operários, camponeses e a burguesia nacional, em oposição ao Imperialismo e seus aliados latifundiários15. A organização foi surpreendida em 1964 com o golpe militar, Jacob Gorender culpa o PCB pelo atraso da luta armada, fato que possibilitou segundo a

Carteira do PCB de Carlos Marighela, emitida em um período de legalidade do partido, de 1945 a 1947. Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (Aperj)

ideologia de esquerda, a tomada do poder por parte dos Militares e Civis. 16 Após o golpe o partido foi duramente reprimido e a maioria dos intelectuais dessas organizações são perseguidos. Através dessas 12

Como cada Organização vê a sociedade e as mudanças que irão impor em sua estrutura. 13 Qual o caminho a ser seguido para chegar o poder e conseguir aquelas transformações. 14 Métodos de ação e propostas políticas de conteúdo mais imediato. 15 “Brasil Nunca Mais", dossiê da tortura preparado pela equipe BNQ-Brasil Nunca Mais. 18ª edição, Petrópolis, Editora Vozes, 1987. 16 Idem.

ALN - Ação Libertadora Nacional A

maioria

dessas

novas

organizações

partidárias desenvolveram de imediato a luta armada guerrilheira, fato que já acontecia na América Latina. A ALN foi a organização que teve maior expressão e contingente entre todos os grupos em que proliferou a ideia da guerrilha urbana, o grande líder desse partido era Carlos Marighela.


G N A R U S | 38 Marighella estivera presente na conferência

"É necessário que todo guerrilheiro urbano

que deu origem à Organização Latino-Americana de

mantenha em mente que só poderá sobreviver se

Solidariedade (OLAS), entre 31 de julho e 10 de agosto

estiver disposto a matar os policiais e todos

de 1967, que tinha como proposta expandir a

aqueles dedicados à repressão. E se está

revolução pela América Latina. Este ato significou o

verdadeiramente dedicado a expropriar a

rompimento do antigo militante com o PCB, contrário à

riqueza dos grandes capitalistas, os latifundiários

luta armada. O líder da ALN discorda das teses

e os imperialistas” 19.

ortodoxas do PCB, que trabalha com a ideia da

Carlos Marighella.

burguesia sendo aliada dos operários e camponeses no processo revolucionário, ele propõe o imediato uso de

A grande projeção do partido aconteceu

operações armadas urbanas nas grandes cidades, em

quando líderes do partido junto com integrantes do

prol de angariar recursos para a implantação da luta

MR-8, 20 sequestraram o embaixador americano, em

armada no campo, dessa luta armada no campo deveria

troca desse sequestro foram libertados 15 prisioneiros

nascer um Exército capaz de derrotar o Regime Militar.

políticos, e ainda foi divulgado um manifesto na

O suporte de Cuba a ALN foi essencial para legitimar o

televisão. Após esse sequestro boa parte das lideranças

poder da organização.17 Esse apoio militar aconteceu

são perseguidas e mortas pelo regime, Marighela

logo após o afastamento de Marighela do PCB, quando

também foi morto. O MR-8, a outra organização por

foram

para

trás do sequestro do Embaixador Americano, tinha

treinamento em Cuba. O apoio jamais levaria à perda

ideias bem semelhantes as da ALN, e também teve o

da autonomia da organização, a entrega da direção da

mesmo fim, devido as mortes de seus lideres e a fuga

guerrilha e, muito menos, a adulação aos cubanos, isso

para o Chile de outra grande parte dos militantes da

evidencia que a relação entre Cuba e a ALN não era

organização.

enviados

os

primeiros

militantes

pacífica, e sim tinha seus conflitos ideológicos. Esta foi a sua posição até o fim, resistindo às tentativas de Cuba

PC do B - Partido Comunista do Brasil

de intervir na organização que estaria à frente da revolução num país estratégico para a vitória no continente. 18 Para Marighela, Cuba treinava seus militantes para a luta armada, nada mais. E esses militantes treinados deveriam praticar a luta armada nas grandes cidades, a fim de angariar recursos para uma grande ofensiva no campo, podemos ver essa ideia no trecho do Manual do Guerrilheiro:

O PC do B foi um partido oriundo das disputas ideológicas no seio do PCB, logo após lideranças do PCB assumirem a linha pacífica para se tomar o poder, grandes lideres21 discordaram dessa nova doutrina e criaram o PC do B. O status estratégico do PC do B era de que a luta revolucionária deveria ocorrer inicialmente no campo, para que pudesse se orquestrar o maior número possível de pessoas para a luta contra o sistema, essa

17

ROLLEMBERG, Denise. Esquerdas revolucionárias e luta armada. In: FERREIRA, Jorge; NEVES, Lucília de Almeida (Org.). O Brasil Republicano; O tempo da ditadura. Regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro; Civilização Brasileira, 2012.v.4. 18 ROLLEMBERG, Denise. O Apoio de Cuba à Luta Armada no Brasil: o treinamento guerrilheiro. Rio de Janeiro; Editora Mauad, 2001.

19

http://www.comunistas.spruz.com/guerrilha1.html. Marighela era critico ferrenho as ideias centristas do PCB, por isso concebeu a ALN uma organização descentralizada, na qual os militantes tinham bastante autonomia para tomar decisões. Por isso, mesmo o líder da ALN sendo contra o sequestro do Embaixador Americano, nada pode fazer, contra a ação de alguns de seus militantes. 21 João Amazonas, Maurício Grabois. 20


G N A R U S | 39 grandes

incompatibilidades com a fé de seus militantes, 24 o

influências do pensamento de Mao Tsé-Tung22 e por

vencedor desse debate, se consolidou como uma

todo o processo revolucionário vivido pelo povo

organização Maoísta, assumindo ideias bem próximas

Chinês. Já no âmbito dos programas, o PCB e o PC do B

ao PC do B, por essa mudança de filosofia, o PC do B e

eram bem parecidos, pois pregavam uma etapa

grande parte das lideranças da AP irão juntar forças25.

ideia

defendida

pelo

partido,

sofreu

democrático-burguesa, anti-imperialista e antifeudal.

Essa mudança de atitude por parte da AP

Enquanto na ordem tática o partido se diferenciava do

acabou gerando a proletarização dos seus militantes,

PCB, pois tinha doutrinas mais radicais, mais à

pois os mesmos tiveram que se deslocar para o interior

esquerda.

das fábricas e no meio rural. A grande maioria dos

Essa Guerrilha rural aplicada pelo PC do B

militantes era oriunda da classe média.

aconteceu em sua maior intensidade na região do rio

Mesmo após essa junção boa parte líderes da

Araguaia, no Sul do Pará, devido a grande perseguição

AP e do PC do B foram presos e mortos pelos

das forças repressoras nas grandes cidades, essa região

movimentos militares, dando por fim a estrutura da

foi escolhida como principal ponto para se formar um

organização.

Exército popular. Apesar da ideia de se alocar na região do Araguaia, o PC do B foi desmantelado pelas forças militares do regime, mais de 50 militantes do partido

Concluindo

foram mortos nos conflitos nessa área. Apesar dessa

Importante ter uma análise das discussões

grande derrota sofrida, o partido conseguiu se

sobre os acontecimentos da repressão durante o

reestruturar, em grande parte devido à incorporação

período Ditatorial no Brasil, a pesquisa desenvolvida

23

de militantes da AP em suas fileiras. Essa organização

pelo "Projeto Brasil Nunca Mais" é de extrema

durante um bom tempo controlou as diversas diretorias

importância para que se possa ter uma ideia mais

da UNE (União Nacional dos Estudantes), além de

próxima de quais movimentos sociais sofreram coerção.

conseguir influências nos meios operários e rurais,

Foram estudados 695 processos referentes à repressão

através do MEB (Movimento de Educação de Base) e da

política realizada pelos movimentos da situação, deste

CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil). Já

total de inquéritos encontrados são citados 7.367

em 1964, essa organização sofre com as prisões e os

nomes de pessoas envolvidas.

exílios de seus líderes, fato que aconteceu com quase todos partidos oposicionistas do período.

Entre

A referida documentação, em nosso estudo, ressalta as grandes diferenças enfrentadas pela

1965 e 1967, ocorre no partido um grande debate

esquerda no Brasil, que não conseguiam se unir, e

ideológico, pois a organização caminhava para a

enquanto a esquerda se fragmentava em diversos

adoção do marxismo e essa nova linha iria gerar

partidos, a direita pragmática se mantinha “unida”, fato que culminou com o golpe Civil-Militar. Essas dissidências partidárias acabaram dividindo as forças

22

O Maoísmo é um conjunto de ideais políticos e econômicos, defendidos por Mao Tse-tung, inspirado na teoria marxista-leninista, e que propôs reformulações adaptadas à China. A luta comunista na China se desenvolveu no campo, a Guerrilha ocorreu através de uma insurreição do Campesinato. 23 Ação Popular.

24

O marxismo pregava a adoração ao líder, a um país ateísta, fugindo dos padrões cristãos. 25 Alguns Líderes da AP juntaram forças com o PC do B em prol de acabar com as falácias do Regime, mas um setor comandado por Jair Ferreira de Sá e Paulo Stuart Wright mantiveram a estrutura da AP como independentes.


G N A R U S | 40 das esquerdas, possibilitando aos militares um controle maior sobre elas.

Bruno Capalupo: É graduado em História pelas Faculdades Integradas Simonsen, e pós-graduando em História do Brasil Contemporâneo pela Universidade Estácio de Sá.

Para saber mais leia:


G N A R U S | 41

ENTREVISTA: PETER BURKE

N

osso

entrevistado

edição

é

estudioso

um

(2004), “Testemunha Ocular” (2004), entre outros,

profundo

que o tornaram “figurinha fácil” nos programas de

da

pós graduação de todo o Brasil. Além de tudo o

História e divulgador das mais atualizadas

historiador inglês, não é de hoje, mantém um

tendências

estreito

e

metodologias

da

desta

escrita do

exercício

relacionamento

com

o

mundo

historiográfico, seus estudos analisam as principais

universitário brasileiro. Tudo isso faz de Peter

rupturas com a compartimentação de procedência

Burke e sua obra, na importância dos aspectos

positivista que muitas vezes ainda incide nas

culturais do comportamento humano como cerne

ciências humanas. Deste longo e profícuo trabalho

preponderante do saber histórico, um dos

resultam obras como “A Escola dos Annales”

expoentes

(1990), “A Escrita da História” (1991), “Hibridismo

contemporânea. Esperamos que gostem tanto do

Cultural” (2003),

“papo” como nós.

“O que é História Cultural?”

na

reflexão

da

historiografia


G N A R U S | 42 1-O que levou o senhor a se interessar por História? Quando eu era criança, costumava brincar com meus soldadinhos de brinquedo com meus amigos, muito antes de computadores ou jogos eletrônicos. Comecei então a simular batalhas históricas com a ajuda de diagramas de um livro que ganhei, “Creasy’s World Decisives Battles”. Com o passar do tempo, meu interesse direcionou-se para armas e armaduras, e depois a arquitetura do período medieval, isto ocorreu quando cheguei a Oxford, como estudante, e me dediquei ao estudo da idade média até a renascença.

2-No Brasil a História “está na moda”, um grande aumento do numero de publicações destinadas ao público em geral. Como o senhor vê esta popularização da História? Estou encantado com o público brasileiro, assim como o público de outros países (incluindo a GrãBretanha) que estão lendo mais sobre história do que antes, diria que tanto quanto assistem as séries sobre história da TV (pelo menos aqui). E ao que se deve isso? Em minha opinião, é devido ao rápido avanço tecnológico, tão rápido que as pessoas ficam desorientadas, e isso explica o tipo de história que são mais atrativas para as pessoas como as da vida privada e da cultura material, por exemplo, especialmente em um período não muito distante, tipo 100 anos ou menos.

3-O senhor se debruçou por muito tempo no estudo da História Cultural e da História Social. Em que sentido crê que elas nos ajudam a entender a função social do historiador?

No meu ponto de vista a maior tarefa para um historiador, é ser um intermediário, um tipo de tradutor entre o passado e o presente, com um olhar particular sobre o passado, como diria um famoso escritor inglês, um olhar de um estrangeiro, cujo a visão da história é diferente. A história cultural é necessária não só para sua própria existência, mas para ajudar as pessoas de hoje a entender todo um passado, incluindo o passado político, porque as políticas mudam (e com elas as regras do jogo) e então são criadas novas suposições e novas mentalidades.

4-Nos últimos tempos muitos jornalistas têm escrito livros sobre temas e personalidades históricas. Como o senhor vê este tipo de produção? Não acho que os historiadores tenham ou devam ter o monopólio da escrita da história. Jornalistas são bem vindos à escrita da história, desde que sejam capazes de realizá-las com competência. Alguns o fazem muito bem, especialmente quando se referem a um passado recente (Um bom exemplo é o do britânico Peter Marr) , já outros não o fazem tão bem ....

5-Em comparação com outros historiadores europeus, o senhor tem uma relação bem próxima ao Brasil, esta relação influenciou sua produção? Como foi esta relação? Eu tenho um relacionamento muito próximo com o Brasil desde 1986, quando da minha primeira visita à USP. Casei com uma brasileira professora desta universidade, em 1989 e , desde então, tenho visitado o Brasil todos os anos, algumas vezes por longos períodos e em uma certa ocasião por um ano inteiro. Comecei a ler sobre a história brasileira, o que me levou a escrever, junto com minha esposa, Maria Lúcia, sobre


G N A R U S | 43 um estudo de Gilberto Freyre, por quem me interessei, desde que conheci o seu trabalho na Inglaterra, em 1965, na universidade onde lecionava. (Universidade de Sussex)

6-O senhor acha que a produção clássica brasileira, como Sérgio Buarque de Hollanda e Gilberto Freyre tem algo a contribuir para a produção historiográfica europeia? Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda são brilhantes, eu sempre recomendo outros historiadores europeus a lê-los, mesmo que não sejam especialistas em América do Sul. Pode–se dizer que eles contribuíram para a historiografia mundial.

7-Livros de sua autoria como “A Revolução Historiográfica Francesa” , “A Escola dos Annales: (1929 - 1989)”, “A Escrita da História”, “O que é história cultural “, entre outros, além de vários artigos, tratam com constância tanto das formas de se escrever a História como da História da História. Qual a importância para o iniciante nos estudos da História destes temas? Os iniciantes nos estudos de história devem ser cônscios que a matéria a qual eles estudam, tem uma história, que as pessoas tem diferentes dúvidas sobre o passado ou escritas sobre o passado de diferentes maneiras e de diferentes períodos (e lugares). Existe o perigo de se pensar que a abordagem histórica atual é a melhor, ou talvez a pior ou até que seja a única possível!!

“Neste universo que se expande e se fragmenta, há uma necessidade crescente de orientação. O que é a chamada nova história?

8-Qual conselho o senhor daria para um estudante iniciante no curso de História? Seja crítico, questione por que o autor do livro que você está lendo aborda o seu assunto de determinada forma, questione qual é a evidência das demonstrações do livro, e, se, se uma determinada afirmação é importante para você, volte – se para as fontes usadas pelo autor. Não pense que existe uma maneira correta de escrever a história. Para um novato brasileiro, eu gostaria de dizer para se ter um interesse na história do mundo além do Brasil (muito poucos historiadores brasileiros estudam em outros países!)

Quando ela é nova? É um modismo temporário ou uma tendência de longo prazo? Ela irá – ou deverá – substituir a história tradicional, ou as rivais podem coexistir pacificamente?” (Peter Burke)


G N A R U S | 44

Coluna:

CINEMA, MATERIALIDADE TEXTUAL E HISTÓRIA CULTURAL: ALGUMAS PONDERAÇÕES CRÍTICAS SOBRE A RELAÇÃO HISTÓRIA, CINEMA, PESQUISA E ENSINO. Por: Alexander Martins Vianna

U

m filme está inscrito num processo institucional-social contingente que o torna um efeito, evento e agente necessariamente coletivo, cujos significados, em seu momento de produção e posteriormente podem transcender muitas vezes o intencionado pelo diretor, produtor ou roteirista. Mesmo considerando as novas técnicas de multimídia, que podem fazer a criação de um filme caber num computador pessoal ou tablet, um filme dificilmente poderia ser entendido como o resultado de um trabalho exclusivamente individual, já que a produção de seu complexo afetivo-cognitivo envolve edição, recontextualização ou (re)temporalização de recursos verbais, gestuais-performáticos, sonoros e imagéticos, cada um dos quais sendo polos de sistemas de significados com específicos agentes, recursos, repertórios e tradições estético-expressivas, com os quais se negocia no processo de produção . Por outro lado, os seus significados também são produzidos pelas perguntas que o historiador considera possíveis de um filme responder. Afirmar isso significa igualmente considerar que o filme, a partir da forma material em que se apresenta enquanto resultado para um plano narrativo, também resiste às perguntas do pesquisador, pois, como qualquer artefato sociocultural, possui regularidades

internas inexauríveis. Entendo por plano narrativo, ou narrativa, o(s) princípio(s) orientador(es) da sequência de imagens visuais, textos escritos, falas, performance e sons (verbais ou não) de um filme visando a provocar atenção afetivo-cognitiva sobre suas teses ou temas principais, cumprindo ou não as expectativas habituais de um gênero. Os significados intencionais (e não intencionais) do plano narrativo se expressam por meio da forma final em que o filme se materializa. Daí, considero oportuno dizer que os significados do plano narrativo de um filme dependem de sua materialidade textual. É a materialidade textual que limita as possibilidades de perguntas do historiador à fonte fílmica. Aqui, valho-me de Donald F. Mckenzie que, em meados da década de 1980, expandiu o conceito de “texto” ao retomar a sua base etimológica “tecer”, ou seja, configurar redes de sentido e significados com intenções comunicativas. Nesses termos, o conceito de “texto” estende-se para formas não escritas e nãolibrárias que se inscrevem em (ou propõem) sistemas de significados e, portanto, configuram efeitos comunicativos que transcendem a estrutura estritamente morfológica ou sintática da linguagem. Estão implicados no conceito de materialidade textual: (1) o reconhecimento de que os meios e a forma


material como o artefato é produzido ou se manifesta também compõem o seu significado; (2) as condições intelectuais e institucionais que tornam possível o artefato cultural existir segundo uma expectativa (ou contra-expectativa) de gosto e uso social, devendo-se considerar o quanto isso interfere em sua forma, sentido, ressonância e valor; (3) o cumprimento, a criação, a subversão ou a sobreposição eclética de regimes representativos e regimes estéticos de gênero; (4) a presença de tropos, temas e traços que evidenciem a negociação social da semelhança em função do jogo de expectativa em torno da produção, veiculação, crítica e uso do artefato. Um sistema de significado deve ser entendido como algo dinâmico e aberto, atuante sobre (mas também reconfigurável pelos) agentes sociais. Por esta perspectiva, um filme não é o produto de uma época, pois “época” não é um monólito causal acabado e fixo que produz o filme, mas um processo social aberto do qual o filme faz parte enquanto efeito e agente simultaneamente. Conforme os seus recursos materiais e imateriais, os seus interesses, os seus vínculos sociais e os seus valores, os agentes sociais podem criar artefatos culturais com capacidade de inscrever-se, tencionar, criticar, variar, ampliar, renovar, romper ou simplesmente reproduzir os repertórios ou patrimônios retórico-temáticos, morais-emblemáticos, performático-gestuais-comportamentais, de gosto e gênero artístico, técnico-expressivos e de suportes materiais de seu meio sociocultural. Daí, conforme o interesse de pesquisa, uso ou estudo, um filme pode ser entendido como artefato cultural, agente social ou evento que localiza e condensa sistemas de significados de/em/para um mundo de experiências que é um processo aberto e inacabado. Um filme materializa sistemas de significados porque é um agente, historicamente circunscrito, em negociação dialética com o repertório de sentidos, formas e recursos materiais e imateriais que configuram tensamente os campos sociais. Justamente por isso torna-se sem sentido supor que a produção intelectual de um filme seja precedida pela condição material/coletiva da sociedade – como propõe a estética marxista, esquecida das Teses contra Feuerbach –, pois ambas nascem juntas e se tencionam dialeticamente num mundo de experiências de significados. Daí, não existe o puramente intelectual e estético (como força demiúrgica autônoma do mundo material) e o puramente material (como força demiúrgica determinante do artefato intelectual e estético) , quando a matéria analisada são os artefatos culturais por meio dos quais as pessoas expressam

G N A R U S | 45 intenções comunicativas, que não ocorrem num vazio de relações de poder e de situações de assimetria social no domínio ou acesso a recursos materiais e imateriais que definem o jogo das formas e a emoção proposta para um plano narrativo, esteja este marcado por regimes representativos ou estéticos da negociação sociocultural da semelhança . Nesse sentido, o conceito de materialidade textual convida-nos a pensar, simultaneamente, no modo como o filme se estrutura e na própria significação sociocultural dessa estruturação; a buscar e identificar a significação ideológica de temporalidade, subjetividade e causalidade na e da linguagem cinematográfica materializada em filme, já que a sua materialização se estrutura enquanto intenção comunicativa e, como tal, visa a criar e/ou captar determinada emoção significativa, provocando – por meio de um complexo singular de recursos comunicativos (verbal-imagético-sonoro), de repertório temático-performático, de elenco e de tradições artísticas – uma atenção cognitivo-afetiva que tem força explicativa e categorizante sobre temas, pessoas, instituições, eventos e ideias. Portanto, a forma como um filme emociona, ou pretende emocionar, é estruturante dos centros de significados intencionais e não-intencionais a serem analisados.

Considerando isso, é importante enfatizar que, mesmo quando um professor escolhe trabalhar um


filme como recurso didático, ou seja, como instrumento de motivação/complementação para uma temática já conhecida, não pode ignorar o seu complexo cognitivoafetivo sobre uma temática, pois isso marcará por mais tempo a memória de seus alunos do que qualquer outra referência previamente debatida com textos verbais escritos. Portanto, mesmo que um professor pretenda usar um filme como recurso didático motivacional, ele próprio deve fazer um trabalho prévio de análise da materialidade textual do filme, de modo a ter certeza de que tal materialidade efetivamente corresponde aos seus propósitos temáticos e pedagógicos. Em outras palavras: não há uso eficaz do filme como recurso didático sem que previamente o professor o tenha trabalhado como pesquisador de fonte ao fazer seu planejamento de aula. Um filme, por exemplo, pode captar, expressar ou propor a religiosidade ou, em termos mais amplos, a necessidade de crer das pessoas, independentemente de tal necessidade estar ou não referida a um sistema institucional de crença religiosa. Por associar imagem, som (verbal ou não) e performance para provocar emoção, um filme pode potencializar a atenção cognitivo-afetiva sobre determinados valores e ideias associados a crenças, conceitos e preconceitos. Portanto, a emoção provocada faz parte do significado ideológico de um filme e pode ter efeitos muito mais permanentes na memória afetiva dos alunos do que o livro didático . Nesse sentido, é fundamental a análise da materialidade textual do filme para, a partir desta, ponderar um uso pragmático coerente do mesmo como instrumento pedagógico de motivação temática. Depois deste introito, gostaria de fazer algumas ponderações críticas sobre o que entendo estar sendo instituído, explícita ou tacitamente, como campo de História e Cinema em algumas universidades do Brasil. De minha parte, entendo que possa haver especialistas de História do Cinema, História da Comunicação, História da Imprensa, História da TV, História da Arte, História da Propaganda, História da Historiografia, História da Literatura, História da Crítica, etc. No entanto, fico incomodado com a forma como são criados novos entes ou especializações inconsistentes (tácitos ou institucionalizados) em nossas universidades, tais como professor/pesquisador de História e Cinema. O meu incômodo nasce do que considero ser um retrocesso historiográfico: definir a capacidade ou especialidade do trabalho do professorpesquisador a partir de um artefato, em vez de se valorizar a forma como o historiador, por meio de seu domínio temático e pergunta de pesquisa, transforma um artefato em fonte para pesquisa.

G N A R U S | 46 Como em todo trabalho de caracterização de fontes e de proposição de hipóteses contextuais e causais para as mesmas, o historiador aprenderá a explorar a sua singularidade conforme a sua materialidade. Além de inventariar as condições institucionais-sociais de produção e a intenção configuradora de uso contida numa fonte, o conceito de materialidade está implicado também com o trabalho de analisar as suas regularidades internas, de forma a observar como isso configura sentidos para conteúdos e expectativas de usos. Tal trabalho de caracterização da materialidade de uma fonte é pressuposto inescapável da pesquisa, mesmo quando não é explicitado em seu produto final (teses, artigos, ensaios, etc) ou quando o objetivo da pesquisa não é inventariar a dimensão intencional ou suas estratégias retóricas, estéticas e expressivas. Afinal, não existe conteúdo separado de uma forma na construção de seus significados e usos possíveis de um artefato cultural. Portanto, um passo importante para a autonomia crítica da pesquisa e para a ampliação das possibilidades do uso dos filmes como fontes e recursos didáticos é entender que não existe um ente historiográfico História e Cinema como campo regulador necessário das possibilidades de uso do filme. Afinal, supor que tal ente existe é o mesmo que entender que um tipo de fonte define um campo, em vez dos temas, objetos e questões de pesquisa. Em geral, o historiador está mais habituado a trabalhar com “fonte escrita”. Como é hábito, não vejo nenhum colega de profissão reivindicar um campo específico de História e Fontes Escritas, mas, estranhamente, alguns acreditam que haja um para “História e Cinema”. Implicada neste tipo de entendimento está, na maioria das vezes, uma hierarquia tácita entre “fonte ficcional” e “fonte não-ficcional”. O pressuposto dessa hierarquia seria que a “fonte ficcional” é “mais problemática” e, portanto, precisaria de uma discussão específica; por antonomásia, haveria a fonte “menos problemática” porque “não-ficcional”. Por isso, particularmente depois da oportuna crítica à escrita da História trazida pelo modelo de História Cultural que solapou o fazer historiográfico da História das Mentalidades na França, considero antiquada esta lógica de categorização que cria “entes” ou “campos” a partir de uma hierarquia tácita do que seria a natureza “mais” ou “menos” ficcional (i.e., “problemática”) de um artefato. Ora, no meu entendimento, com a virada crítica da História Cultural na França desde meados da década de


1980 – independentemente da abordagem, objeto ou tema do historiador –, todos nós ganhamos ao sermos provocados por um paradigma crítico que nos tornou (ou deveria tornar) mais auto-reflexivos sobre a forma de pensar nossa escrita, de construir evidência e de configurar hipóteses de referencialidade contextual em nossos estudos. Por isso, em certa medida, ganhou novo alento e novo contexto intelectual a agora clássica preocupação crítica de Marc Bloch de firmar que cada historiador deve constituir método crítico segundo a natureza dos artefatos, pois, dependendo do que se quer de um artefato e das possibilidades de respostas de sua materialidade, este se transforma em fonte para a pesquisa . Como é a pergunta do historiador que dará voz à fonte e sofrerá a resistência de sua materialidade, é desta relação dialética entre pergunta, método crítico e resistência da fonte que surgirão as hipóteses contextuais, em duas chaves possíveis, não necessariamente convergentes: hipóteses intra-fonte, ou indiciamento intertextual, inventariando sua rede de significados e usos originais, produção, tradição ou repertório de conteúdo e forma, suporte, circulação, apropriações, etc; hipóteses extra-fonte, ou indiciamento extratextual, quando se pondera a possibilidade de um artefato servir como índice ou lente de aproximação em relação ao mundo de experiências sociais que o concebeu, significou e apropriou, entendendo que tal mundo não é uma estrutura conclusa ou acabada, mas algo que se refaz permanentemente por meio das filigranas de agentes sociais (indivíduos, grupos, instituições, etc) com recursos materiais e imateriais díspares, valorados conforme práticas e códigos específicos de distinção ou assimetria social, em relação aos quais um filme pode ser um índice social (parcial) crítico ou conformista .

G N A R U S | 47 No fazer de minha pesquisa e de docente, tenho como meta ideal equilibrar essas duas ênfases de contextualização, explorando o filme como efeito, evento e/ou agente de um mundo de experiências em processo aberto de configuração. Sendo assim, mesmo que a pergunta do historiador foque-se em uma dessas ênfases no produto final da pesquisa, considero recomendável que seu processo de pesquisa esteja sensível à dimensão ficcional de seu artefato e ao potencial ficcional de sua pergunta que o transforma em fonte, pois é ficcional à medida que, tanto no mundo social de experiências de um passado/presente que produz dialeticamente um artefato quanto no mundo social de experiências de um presente que dialeticamente o transforma em fonte para pesquisa, há uma ação social (que não ocorre num vazio de relações sociais e de poder) visando a configurar ou fixar formas significativas para usos específicos, o que significa visibilizar determinados aspectos da experiência em função das expectativas de abordagens valorizadas num momento ou campo social específico, que justamente invisibilizam ou silenciam outros aspectos de experiências contidos num artefato, que permanecem na penumbra até que novas perguntas surjam para testar a viabilidade de resposta de sua materialidade . Nesse sentido, uma “fonte escrita” não é menos complexa do que uma “fonte imagética” e, em várias situações de pesquisa, há uma relação de referência, citação, sobreposição, justaposição, alegorização e circularidade entre essas formas de fontes, de modo que distingui-las a prioristicamente em “campos” pode inviabilizar um trabalho mais auto-reflexivo e complexo de reconstituição histórica ou de proposição de hipóteses contextuais . Assim, penso que, depois da virada crítica da História Cultural, pensar filme como fonte não é algo que precise de uma defesa especial, justificativa diferenciada ou campo de especialistas, como se ainda estivéssemos vivenciando a polêmica Braudel/Ferro de paradigma de História Social e cientificidade das décadas de 1960 e 1970 . Até o momento, infelizmente, quando vejo debates sobre “História e Cinema”, tal como testemunhei na ANPUH Nacional de 2011 (USP), considero os pressupostos de debate, de objeto e de escrita já muito envelhecidos. O contexto de escrita de Marc Ferro sobre este assunto não é mais o atual, pois não vivemos mais sob o mesmo regime de historicidade que tornava “História e Cinema” uma espécie de tema para combate e, reativamente, um tipo de “campo ad hoc” em face dos paradigmas de cientificidade da História Social à la Braudel. Assim, vejo que,


independentemente do interesse de pesquisa e do campo histórico ou foco de interesse do historiador atual, a História Cultural – que emergiu como crítica à História das Mentalidades e à velha História Social na França – trouxe para os historiadores em geral uma contribuição crítica que complexifica a análise qualitativa das fontes ao trazer para nossa operação historiográfica a noção de materialidade textual . Por tudo isso, vejo com pesar a situação de professores em algumas universidades públicas para os quais são encaminhados “alunos de História e Cinema” porque se entendem (ou são entendidos) como “professores de História e Cinema”, somente porque tais discentes têm interesse em usar como fontes alguns filmes para os quais trazem perguntas que poderiam ter relação mais coerente com temas e áreas de pesquisa em História do Brasil, História Contemporânea, História dos EUA, Teoria da História e História da Historiografia (aqui, por exemplo, há um potencial ainda pouco explorado para estudos de biografias, pois a operação biográfica em filmes merece nossa atenção tanta quanto aquela manifesta em livros!... ), História da América, etc. Várias são as formas e tradições de repertórios temáticos e expressivos referidos a agendas de escolhas próprias de uma época e lugar de produção fílmica. Por meio de suas regularidades internas de forma, tradição estético-expressiva, repertório temático, escolha de elenco, caracterização de personagens e viabilidade tecnológica, os filmes não apenas podem reproduzir ou tornar presente uma experiência e/ou expectativa extrafílmica (simplificadamente, vou chamar isso de tendência Marc Ferro de estudo), mas também serem encarados como o próprio evento a ser analisado (simplificadamente, vou chamar isso de tendência McKenzie de estudo). Como qualquer evento, um filme não ocorre num vazio de relações sociais e institucionais, pois é produzido em meio a, para e/ou por meio de relações assimétricas (antitéticas ou não) de raça, etnia, religião, classe social, recursos materiais e imateriais, etc. Como evento, um filme não é apenas efeito estruturado, mas agente estruturante que propõe/produz ações efetivas ou expectativas por meio de sua materialidade específica. Como agente estruturado/estruturante de experiências e expectativas, portador de uma materialidade específica e referido a um repertório sociocultural, um filme pode expor, propor ou questionar: valores, ideias, comportamentos e concepções (políticas, econômicas, sociais, intelectuais, científicas, estéticas, etc); paradigmas de causalidade,

G N A R U S | 48 temporalidade, fé e poder; operações historiográficas, biográficas e dramáticas; entendimentos dos laços humanos, das relações de trabalho, de eventos, de pessoas, de instituições, etc; narrativas de passado, presente e futuro; padrões de subjetividades, de intimidade, de relações de gênero, de pudor, de distinção social, etc; padrões e/ou críticas estéticas, morais, sociais, etc. Em suas primeiras discussões sobre “História e Cinema”, Marc Ferro ainda fazia uma distinção hierárquica entre “filme ficcional” e “cinejornais”, pois entendia que estes últimos seriam índices mais adequados para quem pretendesse inventariar os “conteúdos latentes” da “realidade externa” que se imprimia em seus fotogramas . Da década de 1970 até meados da década de 1980, a escrita de Ferro sobre cinema estava muito marcada por um viés crítico que pensava a sua (contra)análise de uma forma que se reduzia a um jogo de decifração ideológica que suscitasse consciência e desvelamento para o grande público e, deste modo, propunha uma operação historiográfica cujo viés crítico não se diferenciava, por exemplo, dos objetivos da operação filmográfica de Rossellini nas décadas de 1960 e 1970 . No entanto, depois da virada crítica da História Cultural, este tipo de distinção não teria mais sentido para nenhum tipo de fonte, pois nosso regime atual de historicidade está cada vez mais consciente da indissociabilidade entre forma e conteúdo, assim como, do efeito estruturante da pergunta do historiador na configuração de hipóteses contextuais. Além disso, as expectativas originais de Marc Ferro sobre o filme como fonte não respondem aos desafios de “indiciamento de realidade” do cinema digital pós-Matrix. Ademais, contextualizar significa, atualmente, fazer uma reconstituição conscientemente hipotética de realidade a partir de recortes provocados pela pergunta do historiador, pela tradição crítica que enforma a sua pergunta/olhar e pela resistência das fontes às suas perguntas e métodos, estando o historiador consciente de: (1) que sua fonte é estruturada por/para um lugar institucional-social de uso que pode mudar com o tempo, sofrendo deslocamentos de significados e usos; (2) que sua fonte pode se posicionar (crítica ou conformativamente) em relação a regras de gosto e decoro; (3) que sua fonte pode sofrer apropriações e deslocamentos que não necessariamente se conformam com a materialidade que definia para ela uma intenção original de uso e significado; (4) que o suporte físico e forma de composição de sua fonte também fazem parte de seu significado; (5) que a sua fonte pode ser também um


agente estruturante do campo social das experiências e não mero produto passivo deste. Considerando isso, um historiador pode ter uma pergunta estruturante de pesquisa que se foque em (ou oscile entre): o evento-filme, a figuração de um evento no filme (pessoas, ideias, valores, instituições, acontecimentos individuais, naturais e coletivos, etc) e os indícios do extrafílmico no filme. O importante é perceber que não existe um único modo de transformar um artefato fílmico em fonte. Um bom cuidado com caracterização da fonte é comum a todo trabalho do historiador, com ou sem artefatos fílmicos. A tarefa de caracterizar qualitativamente uma fonte dependerá do entendimento que se constrói do que seja a sua materialidade, de modo a se aferir a sua capacidade/resistência de responder as perguntas do historiador. Um filme cinematográfico é um complexo específico (pático-racional-linguístico-imagéticosonoro-performático) , mas é apenas um tipo de complexo entre vários outros artefatos produzidos na sociedade. Por isso, a sua caracterização enquanto fonte não é mais difícil, complexa ou problemática do que a fonte escrita, mas simplesmente distinta, pois toda fonte tem suas regularidades internas – felizmente para nós – inexauríveis. É assim que gostaria que fosse entendida a minha afirmação de que não entendo que haja especialista de “História e Cinema” ou especialista de “História e Imagem”, etc, da mesma forma que não existe especialista de “História e Fonte Escrita”, pois, no meu entendimento, não existe especialista em formas de fontes, mas em temas para os quais os artefatos são apenas condições de possibilidade para o desafio da pesquisa – e tais temas podem ou não criar, conforme o interesse e a pergunta do historiador, recorrência no trato de um tipo de fonte. Por fim, há de se considerar que não existe fonte, mas somente matéria inerte, até o momento em que um artefato sofre o recorte e resiste à pergunta estruturante do historiador. De acordo com o tema/interesse de um historiador, a sua pesquisa poderá abarcar diferentes tipos de fontes, cujas materialidades criarão padrões diferenciados de referencialidade e resistência à pergunta estruturante do seu tema de pesquisa. É desta relação dialética de resistência entre a pergunta conscientemente estruturante do historiador e as materialidades das fontes que nasce, em minha opinião, uma operação historiográfica mais auto-reflexivo e a possibilidade de aferir mérito intelectual de uma pesquisa que seja efetivamente desafiadora e seminal. Trata-se de um

G N A R U S | 49 ganho crítico do qual não deveríamos abrir mão, um ganho crítico que a História Cultural trouxe para todos os tipos e formas de historiadores.

Alexander Martins Vianna é Mestre e Doutor em História Social pelo PPGHIS-UFRJ e Professor Adjunto II de História Moderna do DHIST-UFRRJ.

Para saber mais:


G N A R U S | 50

Resenha

UM CONVITE À LEITURA DE “MARTINHO LUTERO, UM DESTINO” Por Patrícia Woolley Cardoso

P

estes,

epidemias,

guerras

entre

as

príncipes. Homens atordoados amontoavam-se uns

monarquias nascentes, fome, rebeliões,

sobre os outros, tentando escapar do cenário

clérigos que se mostravam tão rudes e mal

apocalíptico. Socorrem-se sob a cruz de Cristo, parece

instruídos quanto qualquer paroquiano. Angústias e

ser o que tentavam realizar. Foi, enfim, o que fez

incertezas assolavam a Europa no alvorecer do século

Lutero, em 1505, aos 22 anos de idade, quando

XVI. Se a conquista de novos mundos revelava a

ingressou no Convento dos Agostinianos de Erfurt.

capacidade humana, as disputas políticas entre

Martinho Lutero, que a posteridade denominou

príncipes, papas e burgueses, demonstravam o lado

de o pai da Reforma Protestante, foi um homem do seu

obscuro dos homens. A bela tela acima, do flamengo

tempo, assolado pela angústia e o medo do inferno.

Pieter Bruegel (1525-1569), O Triunfo da Morte, de

Não pretendia ser o líder de uma ruptura religiosa. Pelo

1562, capta em pormenores o espírito dessa época:

contrário. Cristão solitário buscava apenas encontrar o

burgueses assustados abandonavam sua mesa farta.

remédio para os seus males interiores. Mesmo no fim

Exércitos de caveiras destruíam os campos, derrubavam

da vida, em 1546, não se julgava o construtor de uma


G N A R U S | 51 nova Igreja. Lamentava o fato de os rudes, os

conscienciosamente sua função de peregrino, e

camponeses ignorantes, não terem compreendido a sua

peregrino destituído de qualquer senso crítico. (...)

mensagem de liberdade cristã. Esse é o quadro

Levou, de seu contanto com os escritórios da Santa Sé,

complexo que Lucien Febvre constrói com vigor em

(...) uma impressão muito favorável que ele manifesta

Martinho Lutero, um destino, clássico de 1928 e que

em diferentes ocasiões.” Não mais que outros de seu

acaba de ganhar a sua primeira edição brasileira em

tempo, Lutero criticava os abusos da Igreja. Não eram

2012. Longe de apresentar mera narrativa biográfica,

os abusos que o moviam. O que lhe interessava era a

Febvre empreende o estudo atento da trajetória e das

sua salvação pessoal. Os estudos dos Evangelhos e das

ideias

do

agostiniano,

Epístolas de São Paulo

crítica

não lhe ofereceram nova

combinando

historiográfica e minuciosa

doutrina,

análise das fontes. Serve-

descoberta

se dos textos clássicos,

para seus próprios males.

como as Conversas à Mesa,

Os martírios, jejuns, as

de 1545, mas, também,

boas

das

indulgências,

notas

dos

cursos

ministrados

em

e

sim,

a

individual

obras,

as não

modificavam a condição

Wittemberg, da volumosa

de

correspondência

humano. Portanto, para

destinada aos amigos e

que se preocupar com

adversários, e, claro, dos

todas

textos vorazes produzidos

Apenas Deus perdoava e

entre 1517 e 1521, anos

justificava o homem. Essa

violentos,

que

foi a grande descoberta

a

de Lutero, o remédio que

excomunhão de Lutero

lhe reconfortava, e que,

pelo

X,

sem dúvida, divulgou aos

de

seus alunos, aos seus

antecederam papa

formalizada

Leão em

3

janeiro de 1521.

pecador

essas

do

ser

coisas?

pares, aos paroquianos

Na primeira parte

de Wittemberg.

da obra, Febvre esforça-se

Na segunda parte do

por traçar a longa evolução espiritual do personagem,

livro, dedicada ao Lutero vigoroso dos anos de 1517 e

entre os anos de 1505 e 1515, quando a experiência no

1525, Febvre esclarece que as 95 Teses de 31 de

mosteiro foi decisiva para a sua descoberta interior, ou

outubro de 1517 não foram um arroubo súbito contra a

seja, a crença de que apenas a fé em Deus justificava o

pregação das indulgências, promovida nos arredores da

indivíduo. Sobre a viagem a Roma, em 1510, que os

Saxônia pelo dominicano Johann Tetzel, subcomissário-

teólogos luteranos apontam como decisiva para a sua

geral do arcebispo Albrecht de Brandeburgo. As

revolta, Lucien Febvre diz que não passou de um

indulgências eram populares no século XVI. Muitos

episódio

outros religiosos, e mesmo fora da Alemanha, já tinham

sem

importância.

“Cumpriu


G N A R U S | 52 clamado contra elas. Na própria Wittemberg, o

que curou sua alma. Foram esses os sentimentos

príncipe Frederico da Saxônia possuía milhares de

religiosos por detrás das 95 Teses, rapidamente

relíquias em seu Castelo (gotas do leite de Maria, lascas

impressas e difundidas em toda a Alemanha e fora dela.

da cruz de Cristo, ossos dos santos apóstolos),

Escritas

anualmente visitadas por peregrinos que, com esse ato

potencialmente

de fé, recebiam, ou melhor, pagavam, por indulgências.

comedido do texto. Não sem razão, o próprio Lutero

Antes de 1517, em 1516, num de seus sermões

surpreendeu-se com a ressonância desse seu “grito”.

em

alemão

vulgar,

revolucionárias,

tornavam-se

apesar

do

tom

dominicais, Lutero se manifestou sobre o tema,

As palavras de Lutero não foram de encontro apenas

condenando a falsa segurança das indulgências, que,

às angústias espirituais de uma Alemanha dividida, mas,

aos seus olhos, significavam um escambo pouco seguro,

também, revelaram-se interessantes às controvérsias

a partir do qual o perdão era adquirido em troca de

humanas. Cavaleiros, nobres, mercadores, muitos

esmolas. “Jamais os ouviremos [os pregadores] explicar

nutriam desconfianças por Roma, e, ao mesmo tempo,

a sua plateia o que é de fato a indulgência, a que se

mostravam-se ávidos por incorporarem suas riquezas. A

aplica e quais são seus efeitos. Pouco se lhe dá se os

defesa que Lutero fazia da liberdade cristã, da

cristãos iludidos acreditam que já estão salvos tão logo

dependência exclusiva de Deus, atraiu esses indivíduos.

adquirem seu pedaço de pergaminho”.

Muitos deles, aliás, se aproximaram de Lutero nos anos de perseguição, buscando convencê-lo a romper com o “Cativeiro da Babilônia”, visando transformá-lo não em um reformador da Igreja, mas em um reformador da Alemanha. Febvre observa que as cidades alemãs eram ricas, populosas e cosmopolitas, tais como Augsburgo, a cidade dos banqueiros Fuggers, e Nuremberg, importante pela fabricação de bússolas e astrolábios que impulsionavam a descoberta da América. Não era proveitoso para Igreja enfrentar inconvenientes nesse território tão interessante. Política, diz Febvre, a política, mais do que a religião, explica a ferocidade com que Roma perseguiu e condenou Matinho Lutero como herético, embora outros de seu tempo defendessem ideias semelhantes. Lutero nunca pretendeu ser o reformador da Igreja,

Martin Lutero, de Lucas Cranach Febvre afirma que Tetzel foi um pretexto a mais para que Lutero expusesse ao público suas convicções íntimas. Não lhe preocupavam o charlatanismo do pregador, ou o interesse da Igreja em arrecadar fundos para a Construção da Catedral de São Pedro, em Roma. Pretendia simplesmente anunciar com fervor o remédio

conclui Febvre na terceira e última parte do livro. Após os meses de reclusão forçada em Wartburgo (4 de maio a 1º de março de 1521), relutou em formalizar um ritual único aos seus seguidores. Se o fez, afirmava Febvre, foi muito a contragosto, encurralado pelas circunstâncias, pelos pregadores exaltados que falavam em seu nome e fomentavam a rebelião contra as autoridades. Face aos motins camponeses de 1524 e 1525, cedeu aos


G N A R U S | 53 príncipes o direito de coagir aqueles que se desviassem da doutrina. Mas não se tratou de ato oportunista, previamente planejado. A esse respeito, Febvre insiste em lembrar que a história de Martinho Lutero não foi simples. Seu pensamento e sua vida foram complexos, tanto quanto o século em que viveu. Deixou-se usar pelos príncipes e burgueses, mas não se vendeu a eles. No fim da vida, ainda que se mostrasse melancólico, se manteve fiel à sua convicção interior, a de que Deus lhe revelara a misericórdia. Foi essa convicção que manifestou em Worms, na tarde de 18 de abril de 1521, quando se negou a revogar seus escritos: “Não posso nem quero revogar o que seja, porque agir contra a própria consciência não é seguro nem honesto, que Deus me ajude, amém!”. Esse foi o destino de Lutero: não renegar a sua descoberta interior, a fé que construiu a partir de sua experiência pessoal no mosteiro e nos bancos de Wittemberg, ainda que a política o tenha arrastado para as Reformas. Eis, por fim, a importância desse livro do grande Lucien Febvre: analisar o século XVI a partir de uma personagem de carne e osso, e demonstrar o quanto a história é imprevisível e humana, e, por isso mesmo, fascinante.

Patrícia Woolley Cardoso: Doutora em História pela UFF

e professora da Universidade Veiga de Almeida e das Faculdades Integradas Simonsen - RJ.

Lucien Febvre


G N A R U S | 54

Coluna:

O CENTRO DE MEMÓRIA DE REALENGO E PADRE MIGUEL NO CONTEXTO DA CRISE DA MEMÓRIA SOCIAL. Por Jordany Mouzer de Souza

O

presente texto refere-se ao trabalho de busca por um princípio orientador da organização documental no Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel (CMRP). Organização esta que vem se desenvolvendo graças ao trabalho dos professores Fernando Gralha e Marta Nogueira, que contam com a colaboração de equipe de graduandos das Faculdades Simonsen, cuja dedicação e eficiência são indiscutíveis. O trabalho empreendido vincula-se também ao Projeto de Iniciação Científica das Faculdades Integradas Simonsen, do qual faço parte, em parceria com o graduando bolsista Allan Oliveira e sob a orientação do prof.º Fernando Gralha.

conservar informações encerradas em si mesmas, mas sobretudo desempenha o papel de recuperá-las e reutilizá-las. Chegamos, assim, à necessidade de empreender uma breve consulta conceitual também da comunicação – o que faremos mais adiante –, já que as informações com as quais a memória trabalha estão em constante movimento.

Comecemos com a consideração de que o termo “centro de memória” pressupõe uma busca conceitual do fenômeno da memória social. Sumariamente, memória, lato sensu, caracteriza-se por arquivar e conservar informações, e pela qual “o homem pode atualizar impressões ou informações passadas”. A partir desta conceituação, compreendemos que ao lidar com a memória lidamos inevitavelmente com informações, mas não de modo estático, retidas no interior de um espaço arquivístico; a preservação da informação ocorre para garantir um outro estágio do processo: a atualização. Assim, não cabe à memória apenas

A arquivística, ou arquivologia, é o campo especializado do conhecimento que dispõe de “princípios e técnicas a serem observados na produção, organização, guarda, preservação e utilização dos arquivos”. Basicamente, o trabalho de gestão arquivística segue duas orientações distintas: o princípio de pertinência – princípio segundo o qual os documentos devem ser classificados com base em sua espécie, isto é, em seu “conjunto das características físicas de apresentação, das técnicas de registro e da estrutura da informação e conteúdo” –; e a organização com base no princípio de respeito aos

Outro aspecto a se considerar relaciona-se estritamente ao trato com o documento. Quando tratamos de organização de acervo documental entramos necessariamente no campo da arquivística, revestindo-se, pois, o referido trabalho num estudo interdisciplinar.


G N A R U S | 55 fundos, ou princípio de proveniência – princípio segundo o qual deve-se, na gestão documental, manter todos os documentos gerados por uma mesma pessoa, entidade, empresa etc. reunidos em um mesmo fundo ou arquivo, isto é, em um mesmo conjunto de documentos cuja origem remonta o mesmo contexto de relações sociais. A organização do acervo contido no CMRP deve privilegiar o método baseado na distribuição e classificação por espécie documental? Ou o princípio de respeito aos fundos deve orientar tal trabalho? O posicionamento perante essas duas orientações foi a problemática central ao redor da qual seguimos com o a pesquisa. A segunda opção se mostrou mais favorável ao desenvolvimento de nosso trabalho por motivos de princípios historiográficos, que não exporemos aqui devido ao pouco espaço, e pela configuração da realidade social em vigor, esta sim objeto de um breve comentário.

o grande volume de informações, sobretudo imagéticas simulam o real com formas hiper-reais”. Segundo Josep Fontana, “virar as costas para a história nesse momento é uma atitude suicida. Queiramos ou não, a história está presente em nosso contexto e é uma das fontes mais eficazes de convicção, formação de opinião em matérias relativas à sociedade”. Dentro do “paradigma emergente”, compreendemos que o termo “atitude suicida”, utilizado por Fontana, atitude à qual a indiferença em relação à história corresponderia, significa que o referente “momento” abriga um ambiente em que a opinião pública, ou melhor, a opinião do público a respeito das coisas públicas, encontra-se em desgaste, a ponto de correr “risco de morte”. Corroborando a ideia de Fontana, diz Eric J. Hobsbawm (2010):

“A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um A atual conjuntura dos fenômenos mais apresenta características característicos e lúgubres às quais não devemos do final do século XX [e deixar de estar atentos e início do século XXI]. que se refere a Quase todos os jovens de problemas enfrentados hoje crescem numa entre passado e presente, espécie de presente isto é, entre o homem contínuo, sem qualquer contemporâneo e o relação orgânica com o tempo que o precedera. passado público da época Esse momento, ao qual em que vivem. Por isso os Ana Lúcia Aranha chama historiadores, cujo ofício é de “paradigma lembrar o que outros emergente”, esquecem, tornam-se mais importantes que nunca compreende, entre outros elementos, a “explosão no fim do segundo milênio [e início do terceiro]. Por demográfica e a crescente urbanização”, bem como um esse mesmo motivo, porém, eles têm de ser mais culto à tecnologia e a comunicação eletrônica que simples cronistas, decorrente, o que Anúncio no Jornal "A Voz de Realengo" (Acervo do CMRP) memorialistas e desembocou na atual compiladores.” cultura da informação. Em seu aspecto negativo, essa cultura poderia, segundo a autora, “homogeneizar e descaracterizar culturas tradicionais, bem como alienar e massificar, quando predomina o consumo passivo da informação sem crítica”, gerando uma “espetacularização” da vida social, “na medida em que

Em conformidade com essas ideias, Pierre Nora afirma que a memória social encontra-se em estado de exiguidade, traduzido na ruptura com o passado. Daí a identificação da sociedade, para com os “lugares de


G N A R U S | 56 memória”, que têm o potencial de exercer sobre os indivíduos uma sensação de continuidade em relação ao passado. A exiguidade referida, por sua vez, seria resultado do “fenômeno bem conhecido da mundialização, da democratização, da massificação, da mediatização”. Os lugares de memória seriam “restos” do passado, e portanto vestígios, “pistas” desse passado. Seriam o que sobreviveu e se pereniza de uma outra época para o presente, presente este que carece desses “lugares” porque não mais dispõem da memória “natural” – digamos – do homem (manifestada, por exemplo, em cantigas, poesias, orações etc.), ou porque a mesma não suporta mais o volume de informações que a sociedade contemporânea produz. Os lugares de memória, vestígios do passado, revertem a lembrança do passado em história, por fazer o papel mediador entre o presente e tal passado, tornando este inteligível para aquele. Conforme já se expôs, a definição do conceito de memória concebe o entendimento de uma dinâmica de informações, o que caracteriza um processo comunicacional. Ao pensarmos a comunicação, devemos concebê-la como fenômeno necessário à interação social. Segundo Dante D. Bessa, “para que a comunicação seja possível é preciso produzir, codificar, transmitir mensagens que possam circular entre as pessoas, para que sejam interpretadas, se tornem comuns e possam ser trocadas e compartilhadas, criticadas e questionadas”. A comunicação se faz, segundo Bessa, através de um canal mediador e pressupõe a garantia de acesso informacional. Em 18 de novembro de 2011, foi sancionada a lei 12.527, que assegura o “direito fundamental ao acesso à informação”. No entanto, o fato de que seja assegurado tal direito e que de certa forma haja uma disponibilidade de suportes informacionais não denota necessariamente que se têm apropriado das informações deles decorrentes e as tenham convertido em conhecimento significativo e útil para a sociedade em questão. Milton Santos, por exemplo, chamou atenção para o fato de haver uma concentração e recepção setorizada de informações, havendo um “favoritismo” de certos receptores em relação a outros. Promover a acessibilidade é operar para a facilitação do acesso à informação contida na documentação arquivística. Facilitação defendida pela própria Associação dos Arquivistas Brasileiros, nos seus “Princípios Éticos do Arquivista”: o profissional

arquivístico “tem o dever de facilitar o acesso aos arquivos ao maior número possível de usuários, atendendo a todos com imparcialidade”. Tais considerações se situam no contexto das reivindicações em direção à democratização da informação, contexto no qual tal democratização tem o papel de propiciar condições para que os indivíduos, na recepção informacional, convertam tais informações em conhecimento que lhes seja beneficente. Nesse sentido, as instituições sociais sob a competência das quais se coloca o trabalho de promover práticas comunicacionais, “que (…) sejam cada vez mais justas democráticas e acessíveis”, são as unidades de informação. Segundo Costa,

“São consideradas unidades de informação, portanto, organizações ou setores que têm por objetivo atender às necessidades de utilização, geração e transferência de informação de determinada área, oferecendo informações que possam agregar valor às atividades desenvolvidas no contexto em que se inserem. A principal finalidade de uma unidade informacional é articular a relação entre as diversas fontes de informação e as pessoas, considerando seus perfis e necessidades sob a influência de certos ambientes.” Assim, as unidades de informação desempenhariam um trabalho de asseguramento da comunicação, esta compreendida conforme a definição de Bessa. Seria o canal mediador a que nos referimos, articulando a relação entre o emissor e o receptor da mensagem. Por sua vez, um “centro de memória”, como instituição responsável por atualizar o passado, isto é, por intermediar a relação entre a informação referente ao passado e o receptor de tais informações situado no presente, comunga dos elementos característicos do processo comunicacional e portanto das unidades de informação. Centro de memória é lugar de memória e unidade de informação, e cumpre o papel de democratizador da mesma, promovendo a sua dinamização. Portanto, o “paradigma emergente”, que tem como um de seus aspectos mais marcantes, e de maior interesse de intervenção para o estudo em questão, a “destruição do passado”, promovida pelos elementos já citados que constituem esse paradigma, necessita de uma postura ativa e significativa dos historiadores e demais profissionais do conhecimento, postura essa


G N A R U S | 57 que se traduza numa prática mediadora entre tal conhecimento (no caso específico em questão, a memória da comunidade dos bairros de Padre Miguel e Realengo) e a sociedade, beneficiária desse conhecimento. O CMRP é, e não deve deixar de ser, um agente mediador da relação entre sujeito – o pesquisador que se utilizará da documentação deste centro de memória – e objeto – a documentação e, portanto, a informação histórica contida no mesmo espaço de memória. Isto significa que o trabalho de gestão arquivística em um centro de memória deve seguir em direção à facilitação do acesso ao seu conteúdo informacional e não simplesmente à guarda e preservação de “objetos antigos”. Facilitação viabilizada por uma vigorosa interferência, da parte dos intelectuais envolvidos, no processo de reconstrução do passado ao qual a

informação arquivística se remete e não por meio de uma postura passiva, de uma falsa e ingênua ideia de não interferência. Pois o “documento/monumento”, como objeto a ser decodificado, só fornece informações à medida em que é estabelecido um diálogo entre o mesmo e o seu sujeito. E se é traçado como objetivo a “formação de opinião”, conforme defendera Fontana, objetivo situado na direção oposta de homogeneizar, alienar e massificar, compreende-se que a repulsão entre opinião e passividade desemboca inevitavelmente na necessidade de interferência. Jordany Mouzer de Souza: É graduado em História pelas Faculdades Integradas Simonsen. Pesquisador do Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel e Bolsista do Programa de Iniciação Científica das Faculdades Integradas Simonsen.

Para saber mais:: BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Arquivística - objeto, princípios e rumos. São Paulo: Associação dos Arquivistas de São Paulo, 2002. DUCHEIN, Michel. O Respeito aos Fundos em Arquivística: princípios teóricos e problemas práticos. Arquivo & Administração. Rio de Janeiro, abr. 1982. HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990. MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. A crise da memória, história e documento: reflexões para um tempo de transformações. In: SILVA, Zélia Lopes da (org.). Arquivos, patrimônio e memória: trajetórias e perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP: FAPESP, 1999.

Original da peça "As Levianas" de Affonso Schimidt, 1924. (Acervo do CMRP)


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Coluna:

Fotografias da História

AUGUSTO CÉSAR MALTA DE CAMPOS: UM FOTÓGRAFO. Por Fernando Gralha

A

ugusto César Malta de Campos nasceu em Paulo Afonso, na província de Alagoas em 14 de maio de 1864. De família tradicional na política alagoana, chegou ao Rio de Janeiro por volta de 1889, e segundo suas netas,1 veio para escapar de uma carreira religiosa que o pai lhe impunha, pois já estava apaixonado pela prima Laura, com quem se casou e fugiu. Tiveram cinco filhos, quatro meninas: Luttgardes, Arethusa, Callestenis, Aristocléa e um menino, Aristógiton, que mais tarde seguiria a carreira do pai. Desde sua chegada ao Rio até 1902 exerceu várias atividades (guarda municipal, vendedor ambulante, guarda-livros, entre outros) antes de descobrir a fotografia. Sua clientela na venda ambulante de tecidos era a elite carioca, 2 quando tomou a decisão que 1

http://www.atelierimaginarte.com.br. Site mantido pelas irmãs Lucca e Anna Gabriela Malta, netas de Augusto Malta. 2 No decorrer de nosso trabalho, em vários momentos, utilizamos o termo “carioca” para denominar o habitante da cidade do Rio de Janeiro com base em definição dada pela academia brasileira de letras: “No séc. XIX e início do XX, o etnônimo a um tempo da

província ou estado e da cidade; mas os habitantes desta, por contraste, devem ter sido chamados, informalmente, cariocas, a partir de 1736, a princípio pejorativamente, pejoração que se esbateu lentamente, como se depreende da resistência de fluminense na linguagem formal. Com a curta existência do Estado

mudaria sua vida: resolveu trocar sua bicicleta (seu meio de transporte e que na época era uma inovação geralmente importada) por uma máquina fotográfica. A partir daí passou a registrar não só amigos e parentes, mas também aspectos daquela que seria seu principal alvo: a cidade do Rio de Janeiro. Tornou-se um dos grandes mestres da fotografia do início do século XX. Fotografava de tudo: amigos, paisagens, pessoas. Rompeu com tradições estéticas e ideológicas, pois além de mostrar personagens e paisagens das elites locais, apresentava aos apreciadores de suas obras o “populacho”, seus lazeres, ofícios e o dia-a-dia. Produziu imagens capturadas nas ruas, invadindo a da Guanabara, carioca retomou seu valor etnonímico cabal; extinto o estado, os habitantes da cidade continuam a dizer-se cariocas, e fluminenses, quando relacionados com a unidade da federação. Etimologia: Do tupi kari'oca, prov. do tupi kara'ïwa "homem branco" oka "casa": a palavra tem emprego inicial como topônimo , a Carioca, mais tarde, Largo da Carioca, local em que havia uma fonte para provisão de água pública e de embarcações na cidade do RJ; esta acepção perdura no Centro-Oeste do país; observa-se que na top. brasileira há lago da Carioca (Pará), rio e serra da Carioca (RJ), serra da Carioca (MG); quer contemporâneos, quer posteriores à Carioca da cidade do RJ (documentado em 1560). Esses top. permitem supor que o étimo, em vez de estar ligado ao significado proposto: casa de homem branco seja conexo com água, fonte, córrego, rio. Nascentes registra 'casa de branco', ressalvando que a identidade desse homem branco e o local exato da casa ainda são problemas”.


G N A R U S | 59 intimidade destas pessoas quase sempre com flagrantes que evidenciavam a dinâmica cotidiana dos habitantes da cidade. No início do século XX, Pereira Passos assume a prefeitura, requisita carta branca para governar o município,3 e desencadeia o processo de reurbanização da cidade. Tinha por objetivo transformar o Rio de Janeiro em uma cidade moderna e virtuosa, como se tratava de um grande projeto, precisava ser registrado. Mas se em outros tempos este dado oficial seria eternizado apenas através de escritos e no máximo em pinturas e desenhos, com a recente tecnologia da fotografia, esta condição mudou.

prefeito, desde o trabalho na prefeitura assim como sua vida privada em almoços, passeios pela floresta da Tijuca, reuniões de família e amigos e fotos de estúdio de Passos e seu filho Francisco de Oliveira Passos. Segundo Amaltéa Malta, a proximidade e convivência de Malta com Passos foi de fundamental importância para o acesso do pai à “nata da sociedade”, pois quando, mais tarde, abriu seu próprio estúdio, essa ligação lhe serviu de carta de apresentação, garantindo-lhe vários convites para fotografar casamentos, batizados e festas em geral, assim como o contrato com várias grandes empresas como a Light e a Cia. de seguros Sul América.

Malta foi indicado a Apesar de ter recebido Pereira Passos por Antônio parte de seu aprendizado Alves da Silva Júnior, um inicial de Marc Ferrez, 5 amigo fornecedor da Malta não apresentou em prefeitura, para fotografar toda a sua obra, o mesmo algumas das primeiras obras refinamento e o do prefeito. Passos apreciou virtuosismo técnico de o trabalho e o convidou para Ferrez - fotógrafo que, assumir o cargo de fotógrafo além de sólida formação documentarista, cargo que artística, era possuidor de até aquela data não existia na conhecimentos de química 4 administração da cidade. O fotográfica, o que fotógrafo foi contratado em contribuiu para o junho de 1903, e assumiu seu tratamento primoroso de cargo no dia 23 subordinado suas imagens -, mas Augusto Malta à Diretoria geral de Obras e apresentou um caráter Viação da Prefeitura. Sua evidentemente inovador função era a de registrar os eventos oficiais, como ao construir um trabalho que foi além da sua execução e inauguração de obras públicas, incumbência oficial de documentar casas e quarteirões estabelecimentos ligados ao município (hospitais, condenados pela prefeitura, festas oficiais, prédios escolas, asilos, etc.), posses, encontros políticos, assim públicos, museus, ministérios etc. Ainda segundo sua como ruas e edifícios que seriam arrasados com as filha Amaltéa, a fotografia além de ser a profissão que reformas urbanas e flagrantes em geral como lhe dava sustento, era uma atividade que exercia por gosto.6 Através de suas imagens, oficiais ou não, Malta enchentes, desabamentos, ressacas, etc. dissecou a cidade em todas as suas faces e Malta ganhou tanto a confiança e admiração de personagens, registrou operários, prostitutas, crianças, Passos que passou a registrar todas as atividades do pobres e ricos, famosos e anônimos, compondo um verdadeiro painel de personagens típicos da vida 3

Durante os primeiros seis meses de seu mandato, governa com o Legislativo municipal suspenso. Nesse período, legisla por decretos, muitos dos quais alteram diversos costumes da cidade, como o comércio ambulante, a mendicância, a criação de cães domésticos e outros. 4 Decreto 445, de Junho de 1903 (Arquivo, 1994, p 16). Ap. CIAVATTA, 2002, p. 90.

5 6

KOSSOY, 2002, p. 98.

“O interesse pela fotografia começou com uma pequena máquina que ele trocou por uma bicicleta (...) daí ele começou a tirar fotos e tomou gosto” – Amaltéa Malta Carlini, filha de Malta, em entrevista ao MIS, 1980.


G N A R U S | 60 carioca no período. Engendrou uma rede de fotografias sobre a capital federal, captando suas várias nuances, através de hábitos e costumes de sua gente possibilitando, através das imagens fixadas em suas chapas fotográficas, percebermos a evolução histórica, social, cultural, arquitetônica, artística e urbanística da cidade carioca. (Fotos 1,2 e 3)

Foto 1 - MIS/RJ

Da cobertura do desmonte do Morro do Castelo ao carnaval carioca, da própria cidade, no registro de personalidades, incluindo artistas, políticos, comerciantes, profissionais autônomos, artesãos e trabalhadores, entre outros temas, percebe-se a grandiosidade da obra de Augusto Malta.

Foto 2 - MIS/RJ

Foto 3 - MIS/RJ

O pequeno jornaleiro (1914), a corista (1904) e o “Homem-reclame” (1905), faziam parte da ala menos nobre da sociedade carioca, mas não escaparam do intenso exercício visual diário que Malta executava sobre a cidade. 7

A crônica visual desenvolvida por Malta o habilitou a ser considerado por vários autores8 como o primeiro fotojornalista brasileiro. Suas fotos eram constantemente publicadas em revistas ilustradas como a Kosmos, Fon-Fon e Careta entre outras, além dos cartões-postais - naquele momento no auge da moda, foi inclusive sócio fundador, n° 148, da “Sociedade Cartófila Emanuel Hermann”, em 1904, 9 com especial destaque para a sua produção na Exposição Nacional de 1908.

Esta grandiosidade poderia ser ainda maior se, infelizmente, grande parte de sua produção não tivesse se perdido ou sido danificada por falta de cuidado (chapas de vidro quebradas, ataques de fungos por má conservação, etc.). Hoje seu acervo está espalhado entre o Arquivo Nacional, o Museu da Imagem e do Som, da Light, do Instituto Moreira Salles e em coleções particulares, atestando sua relevância para a memória da cidade do Rio de Janeiro durante as três primeiras décadas do século XX.

Observou e registrou tudo que julgou interessante ou relevante, não só para o seu uso e deleite, mas também para futuras gerações. Era muito metódico na identificação do material produzido, sempre “assinava” na treva (parte escura) dos negativos, assim como colocava a data e alguma referência ao assunto registrado.

Ao assumir o cargo de fotógrafo oficial da Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro, Malta tinha como uma de suas incumbências registrar as moradias do centro da cidade que seriam demolidas durante as reformas urbanas, estas fotos eram agrupadas em álbuns e enviadas ao prefeito, que negociava com os proprietários os valores de indenização pela desapropriação dos imóveis. As imagens geradas pela câmera do fotógrafo da prefeitura serviam como prova irrefutável da situação precária das habitações e, justificavam os valores estabelecidos como compensação pela perda das antigas casas e sobrados.

7

As fotografias 1, 2 e 3, são componentes da pasta “Prostitutas, aspectos sociais, festas juninas, festas em praças públicas” do índice “Logradouros” do acervo do MIS. 8 CIAVATTA, 2002; MOREIRA, 1996; HOLLANDA, 1996; KOSSOY, 2002. 9 OLIVEIRA, Jr., 1998, p. 82


G N A R U S | 61 Quando um proprietário marcava audiência na prefeitura para reclamar um valor maior para a indenização, muitas vezes ele se via em “maus lençóis”, pois não supunham que a prefeitura estivesse “tão minuciosamente informada acerca das más condições da cidade”.10 Se a localização central garantiria aos prédios um alto valor comercial, as evidências fotográficas de sua má conservação e de sua má utilização encerravam as discussões. A objetividade positivista atribuída à fotografia era parte de uma instituição alicerçada no iconográfico, na aparência como expressão da verdade.11 Antes de qualquer coisa devemos deixar claro que a teoria do “olhar inocente” já caiu por terra há algum tempo, historiadores e teóricos da imagem como Boris Kossoy, Ana Maria Mauad, Ariel Arnal, Alfredo Bosi entre outros, comprovam que entre a ação de fotografar e a imagem resultante existe toda uma gama de subjetividades concernentes tanto ao fotógrafo quanto a sociedade do contexto deste mesmo fotógrafo, além das expectativas e desejos do fotografado. Além de que, não podemos desconsiderar que boa parte da obra aqui discutida é fruto de uma relação comercial entre o fotógrafo e o governo da cidade. Malta prestava um serviço a um cliente, e o sucesso desta relação estava diretamente ligado à satisfação deste cliente, cliente este que lhe garantiu inclusive moradia – Augusto Malta e família, no início de sua vida como fotógrafo profissional residiram no Palácio da Prefeitura (Rua General Câmara), onde contava com laboratório, arquivo, gabinete de análise, gabinete fotográfico (atelier) e acomodações para a família12 – ou seja, não podemos esquecer que era a fotografia “oficial” que garantia o sustento de Malta e família, de onde podemos concluir que o fotógrafo usava de todos os recursos para satisfazer as expectativas de seu(s) cliente(s).13

envolvendo questões como o realismo fotográfico, a ambiguidade relativa a informação e desinformação que existem na imagem fotográfica, a subjetividade e a objetividade que ela possui, a questão do olhar, da interpretação e da busca da natureza do documento fotográfico. 14 Como já dissemos acima, os álbuns de Pereira Passos eram, no período estudado, tidos como provas incontestáveis de uma realidade congelada, de um estado de coisas e pessoas, originadas pelo olhar “inocente” do fotógrafo, um olhar que apenas observa e registra, sem juízo de valor, sem ideologia, sem compromisso, a não ser com a verdade. Seria possível, o registro visual não documentar a atitude do fotógrafo frente à realidade? Seu estado de espírito e sua ideologia não transparecerem em suas imagens? Segundo Kossoy 15 não, principalmente nas chapas que realiza de forma independente, onde trabalha mais “solto”, aliás, Malta é um exemplo claro do produtor de imagens que transita bem entre o oficial, ou seja, seu trabalho para um cliente, e o não oficial, as chapas que “tirava por gosto”. 16 Malta deixou pistas de suas opiniões em fontes verbais, parte delas estão nas legendas que fez em grande parte de sua obra. Elas podem ser entendidas como a assinatura do fotógrafo que nelas registrava data e local, e muitas vezes o número do fotograma correspondente ao arquivamento do material acompanhados de comentários sobre o assunto fotografado.

“Ainda o vejo quando (...) lia as indicações e sugestões com que me atrevia marginar as fotografias que lhe enviava, escrevendo ao pé das fotos dos pardieiros: Está pedindo picareta.” (detalhe)

Assim, podemos dizer que a obra de Malta e sua relação com o registro do “fato” se encontram no centro do debate que é o conceito da fotografia como fonte histórica e sua respectiva discussão teórica, 10

Manuscrito de Augusto Malta datado 29 de agosto de 1936. Apud, CAMPOS, 1987. 11 KOSSOY, 2001, p. 102. 12 apud CAMPOS, 1987. 13 Dentre as empresas para as quais Malta prestou serviço estão a Light, Cia Telefônica Brasileira, Fabrica de Tecidos Corcovado, Serraria Trajano, Fabrica Aliança, Cia. Medeiros, Fábrica Carioca e Sul América.

14 15 16

CIAVATTA, 2002. p. 18 KOSSOY, 2001, p. 42.

“O interesse pela fotografia começou com uma pequena máquina que ele trocou por uma bicicleta (...) daí ele começou a tirar fotos e tomou gosto” – Amaltéa Malta Carlini, filha de Malta, em entrevista ao MIS, 1980.


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DetalheD Foto 5 - MIS/RJ 17 - Rua dos Andradas com Alfândega (1906)

“Ainda o vejo quando (...) lia as indicações e sugestões com que me atrevia marginar as fotografias que lhe enviava, escrevendo ao pé das fotos dos pardieiros: Está pedindo picareta.” (detalhe)18

As legendas-comentário, gravadas com uma pena na “treva” com nanquim branco importado, serviram também para uma espécie de diálogo entre Malta e Pereira Passos, a este que demos como exemplo acima, Passos respondeu: “Malta, você tem razão, amanhã teremos picareta”. 19 As legendas são exemplo claro de complementação verbal à mensagem imagética, onde o vinculo entre mensagem escrita e mensagem visual, faz com se relacionem, reafirmem e auto completem. 20 Existem também, algumas entrevistas, como a que deu à “Revista da Semana”, edição de Natal, 1945, ao “Diário de Notícias” em 29/08/1936 e ao Jornal “O Globo” de 1936, em que o fotógrafo dá mais algumas pistas de suas ideias a respeito de seu trabalho e conduta pessoal. Quanto ao fato de Malta e sua produção imagética serem frutos de um determinado contexto e época não há dúvidas, o caminho percorrido por toda teoria e prática da utilização da fotografia como fonte historiográfica apontam que seria impossível a ele manter total isenção. No início de sua carreira na

prefeitura era clara sua admiração pelo Prefeito e pelas reformas urbanas, 21 todos os indícios nos levaram a crer que Malta, como entusiasta das transformações da belle époque, apoiou as transformações promovidas pelos poderes públicos municipal e federal na capital da República, que viriam a transformar o cenário da cidade e, consequentemente, a relação de seus habitantes com ela. Consciente de suas atribuições como fotógrafo oficial da cidade-capital em processo de modernização, foi responsável pelo registro de imagens de uma paisagem que se modificou rapidamente, de um mundo que se despedia enquanto outro se anunciava. Suas fotografias construíram álbuns que preservaram uma determinada memória do antes, durante e depois, e que tinham por objetivo a construção de um registro fiel das mudanças empreendidas. Na maioria das vezes Malta optou, para suas fotos oficiais, por utilizar os planos médio e geral,22 estes expressam uma intenção de neutralidade, de distanciamento, bem diferente de quando fotografava por “gosto” ou em situações menos formais, como no carnaval, em que encurtava a distância, se aproximava

17

A foto 5 é integrante da pasta “Ruas do centro do Rio de Janeiro 3” do índice “Logradouros” do acervo do MIS –. Esta foto é apenas um exemplo do grande número de registros fotográficos que continham algum tipo de mensagem extra além da assinalação da numeração das construções, sinal que caracterizava o interesse da Prefeitura na sua demolição. 18 Apud CAMPOS, 1987. 19 Idem. 20 CIAVATTA, 2002, p. 44.

21

“(...) uma obra como aquella, um homem como aquelle, não mereciam a falta de respeito de uma ‘tapeação’ (...)”. Malta ao jornal “O Globo” de 1936. 22

A tradição teórica e a prática do cinema estabeleceram uma codificação dos planos: plano geral, plano de conjunto, plano médio, plano americano, primeiro plano, primeiríssimo plano ou plano detalhe. Apud CIAVATTA, 2002, p. 60.


G N A R U S | 63 das pessoas nas ruas e executava closes e imagens em primeiro plano. Embora almejasse à universalidade de uma produção calcada na razão, percebemos que suas imagens oficiais ou não, são sempre reguladas sobre códigos convencionalizados social e culturalmente, motivados pelos interesses dos grupos que os tecem, daí foi imprescindível o relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem se utiliza deles.23 Fez-se necessário, também, entender o fotógrafo como autor, em qualquer instância em que atuava, autônomo ou servidor, sua obra é marcada pela competência com que dominou a tecnologia e a estética fotográfica de seu tempo, que por sua vez estavam diretamente conectadas ao manuseio de códigos convencionados social e historicamente objetivando a fabricação de uma imagem crível e inteligível. Logo, as imagens produzidas por Malta são um documento não apenas pelo que mostram de um passado congelado nas efígies, mas porque permitem também o conhecimento de seu autor, o fotógrafo e cidadão, do procedimento e tecnologia empregados por ele e que proporcionaram a imagem e seu conteúdo.24 O produto final na obra de Augusto Malta, suas fotografias, se constituiu em decorrência da ação do homem, que dentre outras escolhas possíveis, optou por um ponto de vista em particular: o entusiasmo e otimismo advindos das idéias de modernidade. E que utilizou toda a tecnologia a ele oferecida por esta modernidade e, não menos relevante, por seus “patrocinadores”. Sua narrativa fotográfica nasceu a partir de um desejo individual permeado por desejos de um lugar e de uma época, que o motivaram a petrificar em imagens determinados aspectos do real. Desde o surgimento da fotografia, existe a possibilidade de interferir na sua confecção, da existência de um “discurso humano”, construído através da codificação da imagem - a pose por exemplo. Dirigindo a cena, organizando a composição, se aproveitando de um ângulo mais favorável, alterando para melhor ou para pior a aparência de seus retratados, introduzindo ou excluindo detalhes, o autor fotográfico sempre, de uma forma ou de outra, manipula seus registros técnica, ideológica ou esteticamente. Desta forma, a singularidade daquilo que se apresenta ganha similaridade com uma categoria universalizante: o rico, o pobre, o patrão, o 23 24

CHARTIER, 1990, P. 17. KOSSOY, 2001, p. 75.

empregado, ou a festa, o desastre, o protesto, a modernidade, o atraso... Assim sendo, a fotografia de Malta apresenta, por um lado, algumas pistas muito claras, e de outro carrega alguns vestígios, de acesso mais difícil, pois são fundamentados em modelos previamente elaborados da perspectiva, do enquadramento, da composição, da pose, etc. Estas condições são de grande relevância, porque mostram não apenas que tal evento realmente existiu, mas também, através da composição da imagem, uma certa representação que foi social e/ou culturalmente conferida ao sujeito. A fotografias de Malta foram usadas para atestar as condições precárias das construções desapropriadas, de um certo estilo de vida da elite carioca, dos maus hábitos dos frequentadores dos quiosques, da elegância dos corsos carnavalescos, do carnaval de rua, dos cafés de inspiração parisiense, e tantos outros eventos e personagens do cotidiano carioca da belle époque, representados por meio de objetos, poses e olhares, são fruto de um processo que vai além de sua gênese automática, que vai além de a ideia de analogon da realidade, são decorrentes de uma elaboração do vivido, de uma ação de investimento de sentido, ou seja, uma leitura do real concretizada pelo fotógrafo oficial da prefeitura e amante da fotografia mediante um conjunto de normas que envolvem, inclusive, o domínio de um determinado conhecimento e tecnologia.25 A obra de Augusto Malta no período analisado é um meio de informação pelo qual visualizamos microcenários da belle époque carioca; entretanto ela não agrupa em si a totalidade do conhecimento, mas evidencia sim uma implícita relação de “cumplicidade” entre o fotógrafo e a cidade. Não pode ser percebida e analisada como um registro simples e imaculado de uma imanência do objeto retratado. Como produto humano, ela indica também, com sua escrita luminosa, uma realidade que não existe fora dela, nem antes dela, mas precisamente nela. 26 Entendemos, portanto, a obra do fotógrafo Augusto Malta como uma determinada “prova visual” do contexto da belle époque carioca, que sempre encontrou-se entre dois modos de existência: como mensagem direta, objetiva, culturalmente consagrada pela sua origem de tecnologia aplicada e 25 26

MAUAD, 2005. MACHADO, 1984, p. 40.


G N A R U S | 64 aparentemente sem necessidade de decodificações, e como uma mensagem polissêmica, dúbia, refratora da realidade. Se nesta permite uma aproximação estética da virtualidade do ato fotográfico à sua materialização, do fazer fotográfico ao refletir sobre o produto codificado, transformador do real, naquela, a estética fotográfica é imposta ao real como mimeses, arquétipo visual ou o “espelho do mundo”, o código absoluto. Ou seja, prova conformada pelo testemunho e pelo olhar de um cidadão de seu tempo, que transitou entre a elite e o populacho com grande desembaraço, tão grande que é perfeitamente possível fazer uma analogia com o termo tão usado por João do Rio: o epíteto de “flaneur visual” talvez seja a melhor forma de definir a atitude de Malta diante da cidade do Rio de Janeiro. Quanto ao homem, sua filha Amaltéa, afirmava que o pai era muito discreto e fechado quanto suas opiniões, sobre política não se pronunciou, nem sobre a revolta da vacina, nem sobre a revolução de 30, não discutia assuntos delicados – como o nazismo, por exemplo –, e não tinha assistentes por preferir trabalhar sozinho,27 além disso, não revelava nem mesmo a seus familiares em quem votava nas eleições. Malta se aposentou em 25 de Agosto de 1936, ano em que foi comemorado o centenário de Pereira Passos, foi então substituído no cargo por seu filho Aristóginton, mas continuou fazendo da fotografia parte integrante de seu cotidiano, fotografou até poucos anos antes de sua morte em 30 de junho de 1957, aos 93 anos.

Fernando Gralha é Mestre em História pela Universidade Federal de Juiz de Fora e Professor das Faculdades Integradas Simonsen, Prof. Tutor UAB/UNIRIO. Editor fundador da Gnarus Revista de História. Coordenador de pesquisa do Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel.

Referências: CAMPOS, Fernando F. Um fotógrafo, uma cidade: Augusto Malta. RJ, 1987. CHARTIER, Roger. A história cultural entre práticas e representações. Lisboa, Difel. 1990. CIAVATTA, Maria. O mundo do trabalho em imagens: a

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Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro. Fotógrafos e Ofício da Fotografia no Brasil (1833-1910). Rio de Janeiro: IMS, 2002. ______________.

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análise da fotografia nas revistas ilustradas cariocas, na primeira metade do século XX. Anais do museu paulista: história e cultura material, v. 13, n.1, jan.-jun., 2005. MOREIRA, Regina da Luz. Os cariocas estão mudando 27

Com exceção de 1922, quando com muito trabalho devido à Exposição do Centenário da Independência, contratou seu irmão Teófilo para ajudá-lo. OLIVEIRA, Jr., 1998, p. 82.

de cidade sem mudar de território: Augusto Malta e a construção da memória do Rio de Janeiro. Dissertação


G N A R U S | 65 (Mestrado), Rio de Janeiro. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1996. OLIVEIRA JUNIOR, A. Do reflexo à mediação: um

estudo da expressão fotográfica e da obra de Augusto Malta. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1994. Gostou? Então para saber mais não deixe de ler:


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Equipe de Redação: Prof. Ms. Fernando Gralha Prof. Jessica Corais

Conselho Consultivo: Prof. Ms. Bruno Alvaro (UFS) Prof.ª. Ms. Daniele Crespo (FIS/UCAM) Profª. Drª. Érica Sarmiento da Silva (UERJ/UNIVERSO) Profº. Felipe Castanho (FIS) Prof. Dr. Julio Gralha (UFF) Prof.ª. Drª Luciana Arêas (FIS) Prof. Dr. Marcus Cruz (UFMT) Prof. Dr. Ricardo Santa Rita (FIS) Prof. Dr. Sérgio Chahon (UGF)

Apoio: Grupos de Pesquisa:  Centro de Memória de Realengo e Padre Miguel (CMRP)  Fotografias da História


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