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Coluna:
UMA RELAÇÃO DO CINEMA ARGENTINO COM AS REMINISCÊNCIAS DA MEMÓRIA Por: Renato Lopes
R
ecentemente revi três excelentes filmes argentinos “A história oficial” de Luiz Puenzo – 1986, “Kamchatka” de
Marcelo Pyñero – 2002 e “O segredo dos seus olhos” de Juan José Campanella – 2009. Em comum os três filmes remetem a período da ditadura argentina do general Vidella, de 1976 a 1983 e travam um diálogo entre a memória afetiva e a memória histórica e como elas se complementam, em vez de se excluírem. Outrora libada de todo o aparato instrumental da construção historiográfica, em seus esquemas de como abordar e até mesmo controlar estudos relacionados a determinados períodos da
G N A R U S | 95 História, a memória passou a ser objeto de estudo e discernível nos processos de construção e representação do passado, quando ela, associada ao testemunho individual de quem tem uma memória a relatar (ao contrário do documento oficial que é um relato de quem não tem uma memória para testemunhar), passando a exprimir a certeza da existência de um passado que já não o é mais. É só por causa desse pressuposto, segundo Ricouer, que é possível a ação da representação
historiográfica
que
almeja
representar esse passado adequadamente no presente. Isso nos indica, ainda segundo Ricouer, que o testemunho da memória perpassa todos os processos de reconstrução historiográfica, feita de três embates primordiais: documento contra testemunho,
construção
reminiscência
imediata,
explicativa
contra
representação
do
passado contra seu reconhecimento, em cada uma das etapas é discernível o papel da memória. Os três filmes que citei me chamaram a atenção, pois em todos eles há a ilustração desse
embate
das
três
etapas
do
processo
historiográfico, mas ao mesmo tempo cada um desses filmes guarda em si uma acentuação de cada uma dessas etapas isoladamente: em “A
história oficial” há o clássico embate entre o documento, a prova oficial, de quem não tem o que testemunhar ou recordar, contra o relato de quem tem o testemunho de algo vivido; em “Kamchatka” há todo um desbaratamento da construção explicativa, até mesmo linear em favor de uma evocação da reminiscência da memória sem instrumentalização do passado e da memória; em “O segredo dos seus olhos”, uma forma de se representar um passado não muito distante quando este é trazido potencialmente para o presente, a partir do ato de se buscar uma resposta a uma questão, daí ocorre sua legitimação e reconhecimento, pois para a personagem principal que conduz a narrativa da trama, buscar essa resposta é também uma forma de revisitar sua própria história e não deixar que sejam esquecidas suas próprias memórias
G N A R U S | 96 relacionadas ao período deste evento. É
deste passado e deste para esta sociedade, estão
(re)conhecer esse passado e sua representação.
contextualizadas ou não. Para a História atingir o
Creio que a força do cinema argentino reside
âmbito do coletivo deve partir dessa reflexão
justamente na forma visceral e orgânica com que
individual, fica assim clara a mensagem de que
este revira e explora os meandros da memória de
ninguém, seja grupo social ou o próprio Estado,
um passado recente e sombrio. Sem buscar
deve instrumentalizar e assim se sobrepor ao
soluções fáceis ou respostas pretensamente
esforço original da sociedade para buscar as
definitivas, sua função
respostas as suas indagações sobre sua história e
é
muito
menos
instrumental e mais reflexiva. O cinema
seu passado.
argentino acaba por conferir às suas obras uma plataforma
onde
o
reconhecimento
e
conscientização do passado deve partir de um esforço individual, onde cada um com sua reminiscência deve transmitir seu testemunho e fazer valer o (re)conhecimento do passado como
Renato Lopes graduando em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisa Cinema na América Latina e é agente mobilizador do Circuito Universitário de Cinema, realizado pela MPC&Associados, que discute através de documentários as ditaduras no cone sul.
um todo e avaliar se as representações feitas
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