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Coluna:

MORT CINDER: SUAS MUITAS VIDAS E MUITAS MORTES Por Aderaldo Januรกrio de Almeida

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ogo em sua capa Mort Cinder nos traz uma dúvida atroz: quem é realmente o “imortal” da trama. Héctor G. Oesterheld (1919-1977), quadrinista argentino assassinado em algum momento de 1977 durante os anos de chumbo da Junta Militar Argentina e cujo corpo nunca fora encontrado;1 Alberto Breccia (1919-1993) considerado um dos maiores artistas da arte sequencial e grande influenciador de diversas gerações de desenhistas; ou o misterioso Mort Cinder, o “homem das mil mortes”, nada fácil de ser enquadrado em perfis tais como herói, antiherói, vilão em redenção. Bem, ao longo da leitura percebe-se que essa pergunta não é necessariamente imperiosa, se as coloco aqui é para que o leitor tenha em mente o peso do material que tem ao alcance das mãos e dos olhos. Em um dia comum, em algum momento da década de 60, o antiquário londrino Ezra Winston, cercado de fragmentos materiais da história, percebe que um relógio que remonta a Luís XVI volta a funcionar misteriosamente. Quase no mesmo momento um estranho amuleto chega em suas mãos. A partir da combinação desses dois fatores, Ezra se vê às voltas com uma série de situações nos subúrbios londrinos que acabam por conduzilo uma pessoa: Mort Cinder, o homem das mil mortes. Originalmente publicado na revista argentina Misterix, entre agosto de 1962 e março de 1964, Mort Cinder, ao longo de suas edições acabaria se tornando um dos maiores 1 Para saber mais sobre a trágica história de Héctor G. Oesterheld acesso a edição 6/dezembro de 2015, da Gnarus – Revista de História, onde trato de outra grande obra do autor: O Eternauta.

sucessos da dupla Oesterheld e Breccia e ganharia amplo destaque no panorama dos quadrinhos mundiais. Mort Cinder pode ser considerado um interessante exercício sobre as experiências temporais, começando pela própria aparência do antiquário Ezra Winston, que tem as feições do próprio desenhista Alberto Breccia, que fez um exercício de envelhecimento impressionante para o período. Cada peça, detalhe da loja de Ezra tem um detalhe que remete a uma provável história vivenciada por Mort Cinder. Até mesmo uma peça, uma relíquia, cuja autenticidade pode e deve ser questionada, ganha contornos interessantes, além de abrir uma discussão, que interessa muito a nós historiadores, sobre buscar entender não só aquilo que é verdade, como também tentar entender os processos discursivos e históricos que norteiam até mesmo uma falsificação. Mistério e suspense são muito bem

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GNARUS - 168 dosados ao longo da trama, o conceito do “homem das mil mortes” é conduzido longa e efetivamente desde o prólogo até a aparição de Mort Cinder quase 40 páginas depois. A arte de Breccia é epidérmica, podemos perceber no desenho os efeitos do tempo sobre todos os personagens, em cada cicatriz que Cinder carrega e as muitas rugas que Ezra passa acumular, ou que passam a ficar evidentes, em seu contraste com Morte Cinder. A edição da Editora Figura recupera ao máximos as artes originas de Breccia muito arrojadas já para o período, de modo que não puderam ser reproduzidas com a qualidade que mereciam devido as limitadas capacidades gráficas do período. O texto de Oesterheld mostra-se muito refinado e casa perfeitamente com a arte de Breccia, sempre encontrando ótimos recursos narrativos para as transições que vão da ativação da memória de Mort Cinder, permitindo-o se deslocar por entre tempo e

espaço, a partir de algum objeto ou situação. Oesterheld não se preocupa necessariamente em ser didático, não sabemos de onde provém a condição de imortal de Mort Cinder, que motivos o levaram a trabalhar em um navio que realizava o tráfico negreiro no atlântico, ou que motivos o levaram ser soldado na Primeira Guerra Mundial, nem porque foi parar atrás das grades nos EUA da década de 30. Muitas especulações ficam no ar, há uma sutil referência ao fato de que Mort Cinder tenha chegado ao Novo Mundo junto com os colonizadores e até mesmo participado da conquista espanhola na américa. Mas são só possibilidades, tantas quanto o tempo pode oferecer e a mente humana é capaz de compreender. Oesterheld sempre trouxe um componente político em suas obras. Quando se conhece o contexto em que a obra foi escrita é impossível não traçar paralelos com a história recente de golpes militares na Argentina, repressão,

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GNARUS - 169 violência e projetos políticos que visam controlar “as mentes” e dos corpos, algo muito parecido com as ambições do professor Angus, inimigo de Mort Cinder. Os implacáveis perseguidores de Cinder, conhecidos como “olhos de chumbo”, representam bem essa dinâmica. Quem está acostumado com quadrinhos em preto e branco vai identificar na arte de Breccia a principal referência para diversos trabalhos. O próprio Frank Miller é um fã confesso de seus trabalhos. Cabe destacar o excelente trabalho editorial da Editora Figura, que em pouco tempo de existência lançou excelentes trabalhos tais como “Informe sobre cegos”, baseado no conto de Ernesto Sábado e com arte de Breccia, “Tanka”, do italiano Sergio Toppi (que aliás, precisa urgentemente ser “descoberto” por essas bandas) e “Crimes e castigos”, do também argentino Carlos Nine. Talvez enquanto você está lendo esse texto já tenha sido lançado a campanha de financiamento de “Ernie Pike”, uma história em quadrinhos de guerra, também criada por Héctor G. Oesterheld e com desenhos de outro grande nome dos quadrinhos mundiais, o italiano Hugo Pratt (Corto Maltese). Mort Cinder está entre os melhores lançamentos do mercado editorial brasileiro e brinda a nós brasileiros com um trabalho de altíssimo nível realizado bem aqui, do nosso lado. Gnarus recomenda.

Renato Lopes Pessanha é colunista da Gnarus Revista de História, Mestre e Doutorando em História Social pela UNIRIO.

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