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Ensaio sobre uma Tecnologia Disruptiva

18 • Criptoativos

Opinião de Tiago Rodrigues

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A moeda é, indiscutivelmente, uma das melhores invenções da humanidade. Tendo em conta a sua importância, tem sofrido grandes alterações ao longo dos séculos, de forma a melhor servir as nossas necessidades. Na última década, surgiram novas formas de moeda digitais descentralizadas, as criptomoedas, na sequência da crise de 2008 e da perda de alguma da credibilidade no sistema bancário. Serão estas moedas, suportadas por uma das mais inovadoras tecnologias, capazes de romper com o atual sistema de pagamentos e criar um novo paradigma?

Atualmente, o preconceito que a generalidade das pessoas sente ao ouvir que há possibilidade de sermos governados por um algoritmo ainda é grande: afinal de contas, este não é humano, nem capaz de sentir. Por mais discutível que seja o adjetivo “humano”, mas usando a aceção moral habitual da palavra, humano é contribuir, por exemplo, para diminuir

a pobreza material da humanidade. Se este objetivo, assim como múltiplos outros, forem alcançados através de um algoritmo, em vez de através de um falível decisor público, então talvez o primeiro possa ser considerado mais “humano” que o segundo.

Relativamente à questão das moedas, não precisamos que uma moeda tenha curso forçado para desempenhar o seu papel de intermediário geralmente aceite nas trocas. Basta que seja credível. O objetivo de um sistema de moedas digitais descentralizadas não seria termos apenas uma única moeda a circular, mas um conjunto de moedas, similar ao conceito de Free Banking, proposto por David Friedman. As moedas que iriam sobreviver seriam ditadas pelo mercado com base na qualidade do seu desenho. Algumas destas serviriam para transações mais correntes (exemplo dado pela moeda ADA, da blockchain CARDANO). Já outras teriam uma função mais store of value, hoje desempenhada por ativos como ouro. No entanto, se os estados preferissem que uma determinada moeda circulasse com curso forçado, também o poderiam fazer: escolheriam a que fosse mais credível.

Sabemos que, em grande parte, a inflação é um fenómeno self-fulfilling. Como tal, o papel das expectativas sobre a evolução dos preços é uma determinante muito importante da própria taxa de inflação. E se a criação de moeda estivesse na mão de uma tecnologia bem desenhada, ao ponto de uma vez implementada, ninguém conseguir alterar a velocidade à qual esta é injetada na economia? Desta forma, teríamos as expectativas de inflação ancoradas na diferença entre o ritmo de crescimento da moeda e a taxa de crescimento do produto, independentemente, da fase do ciclo económico. Alguns académicos defendem que não intervir com políticas monetárias para enfrentar choques macroeconómicos é, na maior parte das vezes, melhor que qualquer intervenção, isto porque o ajustamento das expectativas de inflação tende a ser mais rápido. No caso da adoção da tecnologia descrita anteriormente, a expectativa de inflação não se alteraria.

Ou seja, talvez uma regra simples, suportada por um algoritmo complexo e inquebrável, tenha resultados mais positivos que uma política discricionária, decidida numa reunião por umas dezenas de economistas. Apesar dos progressos da ciência económica, ainda reina a subjetividade nestas discussões.

Como funciona o processo de criação de moeda na generalidade das criptomoedas? São uma re-

Não precisamos que uma moeda tenha curso forçado (…) basta que seja credível

Créditos: WorldSpectrum | Pixabay

compensa dada pela rede aos Miners, cuja função é suportar a própria rede, garantir a sua segurança e validar transações. O lado bom é que qualquer pessoa ou empresa com um computador pode minerar moedas, ou seja, este setor seria o mais free-enterprise possível. Quanto mais entidades minerarem, menor será a recompensa recebida pelo trabalho, já que a taxa de crescimento da moeda é constante. Assim sendo, podemos afirmar que o mining market seria um mercado de concorrência praticamente perfeita, sendo que a remuneração tenderia para um valor muito próximo do custo de eletricidade consumida para obter moedas.

Neste sistema, como ocorreria a cedência de crédito? As empresas no mining market cederiam o montante monetário minerado a bancos (a troco de uma taxa de juro) que, por sua vez, forneceriam este dinheiro ao setor não monetário da economia a taxas de juro fixadas pelo mercado.

Nos dias que correm, existem diferentes modelos de criptomoedas. A Bitcoin assemelha-se ao ouro, já que foi desenhada para que a recompensa por validação tenda para zero. Prevê-se que, em 2140, o volume de Bitcoin existente no mercado não se altere mais. Com uma oferta de moeda constante, esta não poderá ser usada a longo prazo para transações correntes, pelo que será utilizada, tal como o ouro, para store of value. Outra característica da Bitcoin é não ser anónima para qualquer pessoa que tenha os recursos certos. Todos detêm uma parcela da rede no seu sistema e, como tal, informação sobre todas as transições ocorridas. Uma instituição com bastantes recursos (como Estado), pode encontrar a informação sobre as transações feitas pelos seus

cidadãos. Isto, a meu ver, é uma das características mais negativas da Bitcoin, daí já existirem propostas de moedas com um anonimato completo.

Existem algumas críticas, habitualmente, feitas às criptomoedas. Primeiro, o seu consumo bastante elevado de recursos. Porém, os bancos também consomem recursos de forma a manterem registos sobre todas as transações que ocorrem, assim como o Banco Central ao produzir notas e moedas. Além disso, já existem moedas desenhadas para gastar pouquíssima eletricidade, como é o caso da ADA. Uma outra crítica prende-se com o seu anonimato e o consequente uso por criminosos. Como demonstrado anteriormente, no caso de algumas moedas, como a Bitcoin, as transações não são anónimas para uma instituição com amplos recursos como o Estado; além disso, não há nada mais anónimo do que o sistema atual de notas e moedas, que sempre foi e continua a ser muito usado por criminosos. No entanto, o anonimato é algo positivo; ninguém, nem o Estado, nem nenhuma instituição privada, deve poder saber aquilo que fazemos com o nosso dinheiro. A perda de privacidade, no cenário tecnológico para o qual caminhamos, é uma tentativa de transformarmos a sociedade de hoje num Estado Orwelliano. Uma terceira crítica refere-se à possibilidade de existir bastante volatilidade dos preços fixados dos bens. É de notar que a fixação dos preços passaria a ser feita a título da criptomoeda e não de uma moeda emitida por um Banco Central. O preço só variaria minuto a minuto se quiséssemos comprar um bem utilizando outra moeda (tal como acontece hoje, se quisermos adquirir um produto em Portugal com dólares). Por outro lado, num sistema como o que foi descrito, a estabilidade dos preços seria muito maior que a atual.

Sem dúvida que a introdução dos Bancos Centrais ao longo do século XVII foi uma invenção de extrema importância, principalmente, tendo em conta, o contexto tecnológico da época. Porém, sempre lhes foram apontadas críticas. Hoje temos a internet e a Blockchain, duas tecnologias que possibilitam a criação de um novo sistema de pagamentos, talvez melhor do que o que temos hoje. Os sistemas descentralizados são resistentes à manipulação política e promovem a liberdade individual, por isso, deveriam ser sempre o nosso go-to. Por mais revolucionário que seja, talvez esteja na altura de mudar o sistema monetário. Talvez a moeda seja algo demasiado importante para estar nas mãos do Estado.

Sistemas descentralizados são resistentes à manipulação política e promovem a liberdade individual

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Créditos: geralt | Pixabay

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