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Entrevista a Carlos Costa

Entrevista a Carlos Costa O Papel Estabilizador do Banco de Portugal

Quando pensamos em Economia, nomeadamente para um estudante da área, é inquestionável a memória da Macroeconomia. Sendo este um dos temas chave desta edição, entrevistámos o Doutor Carlos Costa, licenciado pela FEP e ex-Governador do Banco de Portugal (2010-2020) para partilhar connosco aspetos relacionados com o seu percurso académico e profissional. Para além dessas questões, esta entrevista também aborda temas como o problema da dívida pública em Portugal, o Plano de Recuperação e Resiliência e uma análise sobre o futuro dos criptoativos. Mais recentemente, o Dr. Carlos Costa foi homenageado com o Prémio Carreira da FEP, onde é distinguido um alumni da faculdade que, baseado no seu percurso profissional e pessoal se tenha diferenciado. Agradecemos ao Dr. Carlos Costa a confiança, visto que esta é a primeira entrevista que concede após término do seu mandato no Banco de Portugal.

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Esta entrevista resultou da transcrição de uma vídeo chamada com o Doutor Carlos Costa.

Entrevista por Maria Gomes e Tiago Rodrigues Com o apoio de Clara Campos, Mafalda Velho, Rute Costa e Yuliya Shevchenko

O seu mandato no Banco de Portugal (BdP) foi algo atribulado, acho que podemos afirmar. Incluiu a crise financeira de 2011 e a intervenção da Troika. Qual foi o papel do BdP no processo? Quais foram as grandes dificuldades na gestão da crise?

Temos de ter consciência que não foi o mandato que foi atribulado, foram os problemas com que eu me confrontei que foram difíceis. Esses problemas são o resultado da acumulação de desequilíbrios ao longo das duas décadas que precederam o ano de 2011 e que expuseram de uma forma particularmente crítica a economia portuguesa ao impacto da grande crise financeira. Com a grande crise financeira, o financiamento externo à economia portuguesa tornou-se mais difícil, e como consequência, quer o refinanciamento da dívida acumulada, quer a obtenção de novos financiamentos tornaram-se progressivamente mais difíceis, como reflexo de uma crescente desconfiança dos mercados. Neste contexto, os mercados passaram a desconfiar da capacidade dos agentes económicos portugueses, tanto públicos como privados, para assegurar o serviço da dívida, quer do ponto de vista do pagamento de juros, quer do pagamento do reembolso dos empréstimos vincendos. De tal modo que, a partir de 2009/2010, os bancos portugueses confrontaram-se com uma dificuldade crescente no refinanciamento nos mercados de capitais e no mercado interbancário. Essa fase foi ultrapassada pelo financiamento do Banco Central Europeu (BCE). Numa fase seguinte, a partir de finais do terceiro trimestre de 2010, passou a ser a própria República a enfrentar dificuldades de refinanciamento e de obtenção de financiamento adicional, e são estes elementos que levaram a economia portuguesa a ter necessidade de um Programa de Assistência Financeira em abril de 2011. O que gostaria de salientar, e que é muito importante, é que o Programa de Ajustamento Económico e Financeiro da economia portuguesa foi determinado pela perda de acesso ao mercado e foi condicionado pelo montante total de financiamento internacional de natureza institucional, via União Europeia e FMI, que foi disponibilizado. A dimensão e o ritmo de ajustamento da economia portuguesa foram determinados pelo montante do financiamento internacional de que o nosso país pôde dispor. Dentro desse Programa de Ajustamento Económico e Financeiro foi necessário cuidar de 3 capítulos: um primeiro, relativo à sustentabilidade das contas públicas, capitulo que, obviamente, era responsabilidade do Governo; um segundo que tinha a ver com a liquidez e a solidez dos bancos, que deixaram de ter acesso ao mercado de capitais e estavam confrontados com perdas com impacto na respetiva solvência, capítulo que cabia nas competências do Banco de Portugal ; e um terceiro, relacionado com a necessidade de reformas estruturais, matéria da responsabilidade do Governo. Assim, o BdP teve que se ocupar com a parte que lhe competia, que era a parte relativa ao sistema bancário e à estabilidade do sistema financeiro. Para assegurar a estabilidade do sistema financeiro era necessário, antes de mais, assegurar que os bancos tinham capacidade para passar de um regime em que também serviam de mecanismo de captação de poupança externa para suprir a insuficiência da poupança interna para um regime em que eles concediam crédito em função dos depósitos que obtinham. Deste modo, a relação entre crédito e depósitos passou da ordem dos 170% para uma ordem abaixo dos 100%. Além disso, era também preciso garantir que o sistema financeiro e o sistema bancário podiam acomodar as perdas que resultavam do ajustamento da economia mantendo a respetiva solvência, tendo em conta o impacto dos setores económicos que estavam muito dependentes de uma procura interna que tinha sido suportada por crédito bancário assente na captação de poupança externa. O que significa que era natural que, durante o programa de ajustamento, se gerasse um grande volume de crédito em incumprimento, os chamados non performing loans. O que implicava que era importante que os bancos conseguissem, simultaneamente, duas coisas: primeiro, absorver essas perdas e, em segundo lugar, reconstituir o seu capital, porque a reconstituição do capital determinava tanto a

robustez do sistema bancário como a sua capacidade de continuar a servir as necessidades de financiamento da economia. Para que isto acontecesse, era importante que o BdP desencadeasse um processo de verificação da qualidade dos balanços dos bancos, o que fez através de quatro rondas de auditorias externas, de forma a identificar em todos os bancos qual era o valor do crédito em incumprimento e assegurar o adequado reforço dos capitais próprios. Como os bancos não tinham capacidade para garantir esse reforço dos capitais, porque ou os respetivos acionistas não estavam disponíveis ou não tinham capacidade para assegurar o requerido aumento de capital e porque também não tinham acesso ao mercado de capitais, o Programa de Assistência Económica e Financeira incluiu uma linha específica de apoio à recapitalização dos bancos, num total de 12 mil milhões de euros, que foi utilizada em programas de recapitalização, sob a forma de empréstimos subordinados ou injeções de capital, em resposta a pedidos fundamentados dos bancos. Tratou-se não só de repor os níveis de recapitalização, mas também

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A confiança no sistema bancário nunca foi posta em causa

Fonte: Faculdade de Economia da Universidade do Porto. O Doutor Carlos Costa recebeu o Prémio Carreira FEP 2021 no passado dia 26 de outubro de 2021 no Salão Nobre da faculdade.

de os reforçar, num contexto de revisão e reforço das exigências prudenciais europeias com os primeiros testes de stress da EBA (European Banking Authority). Gostaria de salientar que durante todo o período, que vai de 2010 a 2020, não houve um único depositante que tivesse perdido 1 euro que fosse dos seus depósitos, o que significa que a confiança no sistema bancário nunca foi posta em causa. Isto é muito importante porque os países onde os depositantes perderam parte dos respetivos depósitos registaram uma perda de confiança no sistema financeiro e, como consequência, uma massiva fuga de capitais que determinou, logo de seguida, a necessidade de imposição de limites à circulação de capitais, que em alguns casos foi muito prolongada. Contrariamente ao que aconteceu noutros países da zona euro, em Portugal, nunca assistimos a uma situação em que os depositantes, em pânico, tivessem feito fila para levantar os seus depósitos do sistema bancário. Pelo contrário, em Portugal os depósitos de clientes bancários registaram aumentos consecutivos tanto durante o período de ajustamento como depois. foi apenas em benefício dos depositantes, foi em benefício da economia, porque se o crédito é função dos depósitos, se houvesse menos depósitos, teria havido menos crédito, e se houvesse menos crédito à economia, teria havido, obviamente, maior contração dessa mesma economia e menos emprego. Se me perguntam se eu acho que o BdP respondeu ao desafio, eu respondo sim, porque nunca esteve em causa a confiança no sistema bancário e nunca houve nenhuma fuga de depósitos, condições basilares da estabilidade financeira. O Banco de Portugal preencheu a sua função.

Atualmente vivemos num contexto de taxas de juro muito baixas, próximas de zero. De que forma este ambiente pode trazer maiores riscos para a estabilidade financeira na banca portuguesa?

As taxas de juro baixas não são capricho do banco central. Resultam de uma situação económica e financeira, em que estivemos confrontados com sérios riscos de deflação e de desemprego. As taxas de juro foram fixadas nos níveis em que se encontram hoje porque era necessário evitar a deflação e garantir a convergência para a estabilidade nominal, estimulando a procura e o emprego. É óbvio que quando se fixam taxas de juro baixas, regista-se uma redução da taxa de desconto dos rendimentos futuros e, como consequência, uma valorização dos outros ativos financeiros. A redução das taxas de juro do banco central tem um efeito que não podemos ignorar: o enriquecimento dos detentores dos ativos financeiros tanto de rendimento fixo como variável. O que significa que os decisores da política monetária estiveram confrontados com um dilema. Ou suportavam a economia e o emprego para evitar o risco de deflação e garantir que a taxa de inflação voltava para um nível que se considera de estabilidade nominal – isto é próximo mas abaixo dos 2%, ou em torno dos 2%, na nova definição de estabilidade nominal - , e, então, tinham que adotar uma política monetária acomodatícia que passava não só pela fixação de taxas de juro baixas e mesmo negativas como pela adoção de outras medidas chamadas não convencionais, como, por exemplo, a compra de ativos, de obrigações de empresas e de obrigações soberanas, e, além disso, a cedência de liquidez em condições favoráveis aos bancos comerciais. E, nesse caso, corriam o risco

de gerar uma bolha em termos de aumento de preços nos ativos financeiros. Ou os decisores da política monetária não queriam correr este risco de valorização dos ativos financeiros e da consequente bolha e aceitavam agravar o risco de deflação, com intensificação da recessão económica e do desemprego. A única forma de conciliar a estabilidade nominal e a estabilidade macroeconómica com a estabilidade financeira seria a de fazer uso de um segundo instrumento porque, como sabem os economistas, não podemos prosseguir dois objetivos com um único instrumento. Por isso, em paralelo com os instrumentos de política monetária que visavam assegurar o regresso a uma taxa de inflação de 2% através do estímulo da procura e do combate à deflação, foi necessário acionar mecanismos que limitassem o risco de uma bolha especulativa do lado dos mercados financeiros, através da adoção de medidas que fazem parte da caixa de ferramentas da política de estabilidade financeira. Portanto, e em suma, não havia outra forma de agir que não fosse eleger o objetivo principal, a estabilidade nominal e, de forma derivada, a estabilidade macroeconómica; e depois mitigar os efeitos derivados das medidas de política que prosseguem esse objetivo principal - efeitos derivados que eram essencialmente o aumento do preço dos ativos financeiros que se designa por bolha financeira.

Portugal tem um grave problema estrutural: uma elevada dívida pública, neste momento 135% do PIB, uma das mais elevadas da União Europeia. A política monetária só ajuda até certo ponto. Na sua opinião, é essencial completar as ações de política monetária com a política orçamental? Este valor da dívida pública é sustentável?

Em primeiro lugar é preciso olhar para o rácio da dívida e colocar duas questões. A primeira é: como é que se chegou aqui? Como é que se acumulou esta dívida e porque é que o produto não acompanhou o crescimento da dívida? Obviamente que a situação a que chegamos tem a ver com o facto de esta dívida ter financiado consumo e investimento não produtivo ou investimento não diretamente produtivo. O que significa que o que se deteta por detrás deste rácio da dívida é um problema de afetação de recursos. A segunda questão é saber se esta situação é sustentável. A sustentabilidade não é função apenas do valor do rácio. Este é apenas um elemento a ter em conta na avaliação, por muito relevante que seja não determina a conclusão. Está em causa saber se o país pode ou não assegurar o serviço da dívida, quando as taxas de juro subirem e se normalizarem, mesmo que o novo normal seja inferior ao conhecido no passado. Um rácio desta ordem de grandeza e desta natureza, requer muita cautela na gestão das finanças públicas, se se pretende garantir a confiança dos mercados e o interesse dos investidores não só para refinanciar a dívida que se vence como financiar as neces15 • Entrevista

sidades adicionais, em particular para financiamento do investimento. Está em causa a capacidade do país para pagar os juros e inspirar a confiança dos investidores para continuar a refinanciar a dívida vincenda. Ora, o mercado só estará disponível para tal se verificar que o país tem um crescimento do produto que garante a capacidade de fazer esse reembolso. Portanto, quando se olha para o rácio da dívida numa perspetiva de futuro, temos que ter presente não só a evolução do numerador – a dívida – como do denominador – o produto interno bruto A dívida tem que estar sob controle o que significa controlar o défice primário (o défice orçamental expurgado dos juros). Mas não basta. Temos que ter

presente a dinâmica do denominador, o crescimento do produto; e, por fim, mas não menos importante, a relação que existe entre o numerador e o denominador, isto é, entre a despesa pública e o crescimento económico, dado que a intensidade e a sustentabilidade do crescimento do produto dependem da natureza e da qualidade da despesa pública. Se a despesa de consumo se contrai em termos relativos e se a despesa adicional é investimento com impacto directo ou indirecto no aumento da capacidade produtiva ou na produtividade, o denominador tende a aumentar mais rapidamente que o numerador o rácio tende a reduzir-se e a confiança do mercado tende a aumentar. Em suma, não basta controlar o défice primário. É preciso analisar em que medida é que a despesa pública promove, ou não, o crescimento do produto. Se não promove o crescimento do produto, não só haverá mais dificuldade em assegurar a confiança dos credores como é provável que aumente a rigidez da despesa e se acentue o risco de sustentabilidade das finanças públicas. O que significa que não basta uma política de consolidação orçamental, é preciso também uma política de melhoria qualitativa da despesa pública, no sentido de maximizar o impacto dessa despesa pública sobre o crescimento económico. E é por isso que, quando perguntamos se é sustentável ou não, temos que perguntar quais são as perspetivas em termos de défice primário, em termos de qualidade da despesa e qual será o impacto dessa despesa sobre o crescimento sustentável do produto, assim como qual é a perspetiva de crescimento do produto. A resposta depende apenas de nós próprios, isto é, dos portugueses enquanto coletivo organizado, e da nossa capacidade para lidar com as incertezas, criando margens de manobra, que aumente a segurança para

O que se deteta por detrás deste rácio da dívida é um problema de afetação de recursos

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fazer face a imprevistos que estão fora do controlo da política orçamental, nomeadamente as que estão associadas à evolução das taxas de juro, ao financiamento internacional disponível e à oscilação do apetite de risco dos mercados. Num mercado como o atual, em que há excesso de liquidez, o apetite de financiamento de mercado é maior do que naquele em que há escassez de liquidez, como aconteceu depois da grande crise financeira. Portanto, e em suma, um rácio desta natureza é como um semáforo laranja intenso que obriga as pessoas que vão a atravessar a passadeira, a acelerar o passo, para não serem atropeladas. E, portanto, há que acelerar o passo, crescendo no produto e controlando o défice primário e, simultaneamente, garantindo que a despesa pública privilegia as áreas com maior impacto em termos de crescimento futuro.

Desde março de 2020 que o Banco de Portugal (BdP) tem vindo a intervir de forma a suavizar os impactos negativos da pandemia na nossa economia. De tudo o que o BdP fez, qual foi, na sua opinião, a medida que teve um maior impacto positivo?

Bom, todas as medidas tiveram um impacto positivo. Houve medidas de política monetária como a compra de dívida pública pelo chamado Pandemic Emergency Purchase Programme (PEPP), que é o programa excecional de compra de ativos por força da pandemia: um programa por tempo determinado e de grande montante, que tem impacto tanto sobre as condições de financiamento do soberano, ou seja, do estado português, como dos demais agentes económicos, portanto alivia as condições de financiamento da economia. Teve impacto o programa excecional de cedência de liquidez do Sistema Europeu de Bancos Centrais, que nós resumimos ao BCE, que apoia os bancos no financiamento da economia, mas também tiveram muito impacto duas medidas regulatórias: o aliviar das exigências de capital por um período de tempo, de forma que os bancos pudessem conceder mais crédito à economia; e o tratamento prudencial favorável das moratórias. Se não houvesse um tratamento prudencial favorável, os bancos teriam que registar imparidades, o que iria afetar o capital e a sua capacidade para conceder crédito. Em suma, tudo foi feito foi no sentido de assegurar que não havia uma contração da atividade económica derivada da pandemia. Esse é um contributo decisivo porque, interrompeu-se a transmissão que naturalmente iria haver entre as condições reais do funcionamento da economia, por força da pandemia, e as condições financeiras dos agentes económicos. As famílias que tinham dificuldades não entraram em incumprimento porque beneficiaram de moratórias, as empresas também não, o que significa que se evitou um círculo vicioso, que resultaria do impacto da pandemia sobre as condições reais de funcionamento da economia, e destas sobre as condições financeiras dos agentes económicos. Para resumir numa imagem simples, o sistema financeiro e a economia real beneficiaram de uma grande garrafa de oxigénio que lhes foi fornecida pelos bancos centrais.

Afirmou no seu discurso de receção do prémio carreira 2021 da FEP que o Plano de Recuperação e Resiliência teria pouco efeito na economia portuguesa. Porquê é que o afirmou e em que segmentos da economia acha que o plano fica a desejar?

O que eu disse foi que o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) teria um efeito limitado sobre o crescimento do produto potencial. E porquê? É preciso olhar para as rubricas que vão beneficiar do apoio do PRR e distinguir entre quatro tipo de rubricas. Primeiro, as despesas que correspondem a necessidades que não têm impacto na capacidade produtiva. Segundo, as despesas que vão ter impacto indireto sobre a capacidade produtiva porque criam condições favoráveis, mas estão dependentes de que haja depois um efeito induzido sobre os agentes económicos que os leve a investir para tirar proveito dessas condições. Por exemplo, quando se fornece bens públicos na área da mobilidade ou na área das telecomunicações ou na área digital, a relação com o produto potencial não é mecânica, depende da capacidade dos agentes económicos para tirar partido disso. Terceiro, há despesas que se destinam apenas a assegurar a reposição de potencial produtivo que, entretanto, se reduziu ou desapareceu. Para dar um exemplo relacionado com as empresas: se não fazem a reposição de uma máquina, a máquina mais tarde ou mais cedo avaria e a despesa que fazem, depois, com a respetiva manutenção não vai aumentar o potencial de produção da empresa, vai restituir o potencial que ela tinha antes. E depois há uma quarta categoria de despesa, ou de afetação de recursos, que se destina efetivamente a aumentar o potencial de produção. O que eu disse, e digo, é que esta quarta categoria não é tão importante quanto a situação da economia portuguesa justificaria e, portanto, o impacto direto sobre o produto potencial vai ser limitado. Vai ter um impacto indireto, na medida em que a criação de condições envolventes pode induzir o investimento, mas saber se este investimento acontece ou não depende, primeiro, das demais políticas, em particular de um fator determinante que são as políticas estruturais e o seu alinhamento do ponto de vista do incentivo ao investimento, à inovação e à criação de emprego; e, dependerá depois da respetiva perceção pelos agentes económicos e da sua capacidade de aproveitamento.

Acha que daqui a 20-30 anos, com a emergência de novas formas de moeda descentralizadas, nomeadamente as criptomoedas, os bancos centrais continuarão a ter a importância na regulação e condução de política monetária que têm hoje?

Em primeiro lugar, para qualificarmos uma qualquer entidade como moeda, ela tem de ter, entre outras características, uma característica que é crítica e que é ter curso legal e poder liberatório não condicionado. Isto é, quando a pessoa entrega a moeda, ela tem que libertar da dívida quem a entrega e não pode ser recusada como meio liberatório por quem a recebe. Estas são características que só podem ser conferidas por quem é soberano, isto é, o Estado é que tem o poder de imposição da aceitação, e é esse poder que é o poder de império, que confere à moeda o papel central que ela tem na economia. E nós não podemos atribuir esse papel a qualquer agente porque isso seria um poder exorbitante. O que significa que só o Estado pode emitir moeda, dado que é a única entidade que lhe pode conferir os atributos constitutivos da moeda ou seja o curso legal e o poder liberatório no seu território. Há ativos que se designam como cripto porque estão baseados numa tecnologia, que é uma tecnologia de blockchain, que permite uma gestão descentralizada e que são transacionados porque há uma confiança entre os agentes económicos para os aceitar, mas a base de sustentação destes ativos não é qualquer poder ou obrigação legal, é a confiança recíproca. E, portanto, estes ativos têm o seu valor enquanto forem procurados e enquanto suscitarem confiança. Acontece ainda que, no caso dos criptoativos, estes ativos não têm por trás uma outra realidade que os suporte e que garanta que o seu valor é aquele que lhe está atribuído naquele momento, daí a volatilidade que se observa no preço destes ativos. O ativo existe, mas existe na base da mera confiança. O que significa que quem investe em criptoativos, investe na presunção de que a confiança naqueles ativos se mantém e que a procura também se mantém, de forma que o seu valor se mantenha também. A questão da moeda digital é diferente, é uma moeda que não tem expressão física. Nós já temos moeda digital: os bancos comerciais quando trabalham com o BdP não trabalham com moeda física, senão seria impossível transferir milhões de euros em segundos. Trabalham com base em registos informáticos. O que não existe hoje é a possibilidade de eu ter uma conta no Banco de Portugal que permita movimentar a conta do Banco de Portugal a favor de alguém por transferência bancária. Qual é a diferença entre a moeda digital do banco comercial e a do banco central? É que a primeira só existe porque existe confiança de que ela vai ser convertida em moeda (digital) do banco central. E quando essa confiança se perde, há uma corrida aos bancos. A corrida aos bancos não acontece porque, entretanto, o banco central cede moeda (digital) aos bancos comerciais para eles resolverem os seus problemas, aquilo a que se chama assistência de liquidez de emergência. Portanto, quando falamos na criação de moeda digital do banco central, não estamos a falar da criação em absoluto, mas estamos a falar do acesso aos depósitos do banco central por parte do cidadão comum. A questão que se coloca é qual é a utilidade? A utilidade é dar aos cidadãos maior garantia quanto aos depósitos, dado que não correm o risco de os seus depósitos estarem associados à solvência de um banco comercial. Nessa altura, é preciso repensar todo o sistema financeiro porque todos vão querer ter os depósitos no lugar mais seguro, e tanto mais quanto maior for a incerteza financeira ou macroeconómica, e os bancos comerciais passam a ter que pagar um prémio para que as pessoas aceitem que os depósitos estejam nos seus bancos, porque o cidadão ao fazer o depósito no seu banco aceita o risco de solvência do banco comercial. Ora, isto implica que quer em termos de formação de preços, quer em termos de estabilidade financeira, se entre num novo regime, e que esse novo mundo tem de ser pensado. Tem virtualidades, por exemplo, uma virtualidade é a de poder estabelecer uma espécie de taxa de conversão entre depósitos nos bancos comerciais e depósitos nos bancos centrais, que no fundo corresponde a um prémio de risco, mas altera completamente as condições do funcionamento do sistema financeiro e da economia como a conhecemos hoje. O consenso que se começa a gerar sobre o tema vai no sentido de estabelecer que a emissão de moeda digital de banco central para o retalho deverá ser acompanhada da manutenção do atual sistema duplo em que os bancos comerciais são responsáveis pela verificação do cumprimento de

requisitos como os de branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo. Os bancos centrais não estão capacitados para desempenhar estas funções. Portanto, é uma matéria que merece profunda reflexão, mas não vai a reboque da existência de criptomoedas per se, porque não há criptomoedas - há criptoativos que se apresentam como criptomoedas, mas que não são um meio de pagamento a não ser enquanto quem recebe esses criptoativos esteja disponível para os aceitar. E depois há uma outra questão que tem importância que é: vamos supor que as pessoas têm uma conta em criptoativos e um dia resolvem que querem transformar em euros - a que taxa vai ser feita a conversão? Porque aquilo não é moeda de banco central e não é seguro que haja alguém por trás que possa garantir a conversão. É uma realidade que existe numa base que é a mesma da moeda, a confiança, mas a confiança da moeda tem por trás o poder do Estado, com tudo o que isso implica.

O PRR terá um efeito limitado sobre o crescimento do produto potencial

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