O espelho da diferença e o hábito da perversão/ The Mirror of Difference and the Habit of Perversion [texto especial/special text] 21
Ricardo Tokugawa Utaki 44
Caia Marvento Ramalho
Talvez nosso amor morra num sonho/Maybe Our Love
Will Die in a Dream
Lucas Cordeiro
Resenhas/Reviews 5
Onde revela o retrato assenta a memória/Where the portrait reveals the memory settles 86
Val Souza
Entrevista/Interview 116
Duo Paisagens Móveis
[Bárbara Lissa e Maria Vaz] Óris 142
Valentina Tong
Viagem Geológica/ Geological Journey
Dariane Martiól
Epílogo/Epilogue
Title Man on horseback by butte in Rocky Mountain National Park, Colorado; Date Created/Published between 1909 and 1932; Medium 1 photographic print.
Título Homem a cavalo em uma colina no Rocky Mountain National Park, Colorado; Data de criação/publicação entre 1909 e 1932; Mídia 1 impressão fotográfica.
Carta do editor/ Letter from the Editor
The construction of identity is one of the themes that guide this edition. In the following pages, you will see images and thoughts that seek to understand how we construct ourselves and how our history, surroundings, and territory participate in this process. Each of the artists presented contributes, in radically different ways, to this central debate to contemporary image production. In their works, they reflect on themselves, the groups they identify with or their territory, in a complex interplay between biography and fiction.
We open this edition with Masina Pinheiro's reflections on portraiture and the visual construction of the other and ourselves when in front of the camera. A text that goes through several works and ways of thinking about the image. Adding to the importance of a deeper analysis of the photographic image, we have an extensive interview with Val Souza, conducted by Milena Costa. Val's work deals with archives, collecting and the role attributed – and claimed – to the black woman's body in the photographic image.
I am impressed, and especially motivated, to see the diversity of visual solutions that the artists in this edition employ in the creation of their works. Archive, performance, direct and constructed photography are some of the elements that we will see here. We sought to construct a selection in which there would be dialogue and the possibility of presenting the plurality of Brazilian photography currently produced. With the works of these seven artists, we close the first year of this second life of OLD. We are proud of what we have done so far and eager for what is to come.
A construção identitária é um dos temas que guia esta edição. Nas próximas páginas você verá imagens e reflexões que buscam entender como nos construímos como indíviduos, como nossa história, entorno e território participam desse processo. Cada um dos artistas apresentados contribui, de maneiras radicalmente diferentes, para esse debate tão central da produção imagética contemporânea. Em suas obras discursam sobre si, os grupos com os quais se identificam ou sobre seu território, em jogo complexo entre biografia e ficção.
Abrimos essa edição com as reflexões de Masina Pinheiro sobre o retrato e a construção visual do outro e de nós mesmos quando diante da câmera. Um texto que atravessa diversos trabalhos e maneiras de pensar a imagem. Somando à importância de uma análise mais profunda da imagem fotográfica, temos uma extensa entrevista com Val Souza, conduzida por Milena Costa. O trabalho de Val lida com arquivo, colecionismo e com o papel atribuído – e reinvindicado – ao corpo da mulher negra na imagem fotográfica.
Me impressiona, e especialmente me motiva, ver a diversidade de soluções visuais que os artistas desta edição empregam na construção de seus trabalhos. Arquivo, performance, fotografia direta e construída são alguns dos elementos que veremos aqui. Buscamos construir uma seleção em que houvesse diálogo e soma, além da possibilidade de apresentar a pluralidade da fotografia brasileira produzida atualmente. Com os trabalhos destes sete artistas fechamos o primeiro ano dessa segunda vida da OLD. Orgulhosos do que fizemos até aqui e ansiosos pelo que está por vir.
Felipe Abreu Editor Chefe / Editor-in-chief
Masina Pinheiro O espelho da diferença e o hábito da perversão
acompanhamento crítico/critical tutoring by ANA VITORIO
The
Mirror
of Difference and the Habit of Perversion
Juliana Huxtable, Interfertility Industrial Complex: Snatch the Calf Back, 2019
Portraiture is a territory that one can enter. When one enters, one leaves a mark. It has also been said that it is a relationship and, as with all relationships, it begins and ends. For David Campany and Anastasia Samoylova, photography was a dialogue. Ariella Azoulay describes photography as an event, that is, something that presupposes many participants. Thus, the moment the shutter is released, a rupture occurs in space that suddenly divides those behind and in front of the camera. This attributes specific values that depend on their position within the photographic event. The rupture also occurs in time, since the photograph communicates a past and carries this memory to as yet undetermined archives. Finally, there is a rupture in what she calls the political body, between those who own the camera, the artistic reward, and, in opposition, those who are in the extracted image. Philippe Dubois understands photography as an act, an image-act, which includes its reception and its observation. But there is one thing to be said about the queer portrait, the portrait of the mutant body, which is, without any reservations, often illegible. It is a contested territory made only for those accustomed to perversion. It is a relationship, an act, an event, a dialogue, a perverse moment. Whatever the photograph may be.
Robert Bresson writes about the indifference of the movie camera in “Notes on the Cinematograph,” from 1975, a book of seemingly simple aphorisms but written with an intelligence that is synonymous with practice and artistic rigor. He says that the camera captures without knowing what it is and retains it with scrupulous indifference, as if it did not interfere with criteria; as if it did not agree or disagree with the subject it photographs, even if held by human hands. Honestly, what scrupulousness? I don’t believe in that, in the machine. I am a relatively shy person. They say I don’t like to be seen, but the truth is that sometimes my face is not visible in photographs. There are cameras that miss my face, just as there are people who are wrong about my pronouns. Photography carries a historical brutality capable of
O retrato é um território onde se pode entrar. Ao entrar, deixa-se uma marca. Também já foi dito que ele é uma relação e como acontece com todas as relações, começa e termina. Para David Campany e Anastasia Samoylova, a fotografia foi um diálogo. Ariella Azoulay descreve a fotografia como um evento, ou seja, algo que pressupõe muitos participantes. É assim que, no momento em que o obturador é disparado, acontece uma ruptura no espaço que divide subitamente quem está atrás e na frente da câmera. Isso atribui valores específicos que dependem da sua posição dentro do evento fotográfico. A ruptura também se faz no tempo, já que a foto comunica um passado e conduz essa memória a arquivos ainda indeterminados. Por último, acontece uma ruptura no que ela chama de corpo político, entre quem possui a máquina, a recompensa artística, e, em oposição, quem está na imagem extraída. Philippe Dubois entende a fotografia como um ato, uma imagem-ato, que inclui sua recepção e sua observação. Porém, há uma coisa a ser dita sobre o retrato queer, o retrato do corpo mutante, que é, sem nenhuma ressalva, muitas vezes ilegível. Ele é um território contestado feito apenas para quem está habituado com a perversão. É uma relação, ato, evento, diálogo, instante perverso. O que quer que seja a fotografia.
Robert Bresson escreve sobre a indiferença da câmera de cinema em “Notas sobre o cinematógrafo”, de 1975, um livro de aforismos aparentemente simples mas escrito com uma inteligência que é sinônimo de prática e rigor artístico. Ele diz que a câmera capta sem saber o que é e retém com uma indiferença escrupulosa, como se ela não interferisse com critérios; como se ela não entrasse em acordo ou desacordo com o assunto que fotografa, mesmo que segurada por mãos humanas.
Sinceramente, que escrupulosidade? Não acredito nisso, na máquina. Sou uma pessoa relativamente tímida, dizem que não gosto de aparecer, mas a verdade é que na fotografia às vezes o meu rosto não está sendo visto. Tem câmera que erra o meu rosto assim como tem pessoas que erram o meu pronome. A fotografia carrega uma brutalidade histórica capaz
Página/page 6: Greer Lankton, Sissy, Prince Street Station, circa 1983
undoing someone’s presence, and the camera is the ideal instrument: it resembles the surface of things. Photography exists because reality exists. They say. “Every portrait is an act of psychiatric diagnosis, every portrait carries the trace of some criminology, every portrait is an indication of colonial classification: the technique cannot be considered naively.” Paul B. Preciado writes in the book “Transgalática” (The Eyes), from 2021. This paragraph, for me, is unforgettable. Suddenly I don’t think I’m so shy. I understand that I am not part of the universal subjectivity, of the ontology of human presence (Belá Balázs) contained in the close-up and considered in cinema an expression more effective than dialogue, more revealing than words. I am a kind of perversion cultivated since childhood, a trans and intersex body that sought meaning and form in images of purity, in fictitious ideas of what it means to be natural, of what it means to have natural desires and to value a programmed, obedient and fixed life. Trans childhood wants to emanate its desires but the weapon of sex has always been pointed at it. At children’s birthday parties, cameras can capture the body’s mannerisms during the dance. Every trans child is aware of the cameras, whether they look at them or not.
I also ask for attention to the word mannerism, which is not exactly a manner, it is an affectation, as if a manner were to atrophy and in a state of malformation perform a curve in gender. I have rarely read about our movements as manners. I have rarely read about our form as a body. A legacy also of the tradition of portraiture.
de desfazer a presença de alguém e a câmera é o instrumento ideal: se parece com a superfície das coisas. A fotografia existe porque a realidade existe. Dizem. “Todo retrato é um ato de diagnóstico psiquiátrico, todo retrato carrega o traço de alguma criminologia, todo retrato é uma indicação de classificação colonial: a técnica não pode ser considerada de forma ingênua.” Escreve Paul B Preciado no livro “Transgalática” (The Eyes), de 2021. Esse parágrafo, para mim, é inesquecível. De repente não me acho tão tímida. Compreendo que não faço parte da subjetividade universal, da ontologia da presença humana (Belá Balázs) contida no close-up e considerada no cinema uma expressão mais eficaz que o diálogo, mais reveladora que a palavra. Sou uma espécie de perversão cultivada desde a infância, um corpo trans e intersexo que buscou sentido e forma em imagens de pureza, em ideias fictícias do que é ser natural, do que é ter desejos naturais e prezar por uma vida programada, obediente e fixa. A infância trans quer emanar seus desejos mas a arma do sexo sempre esteve apontada para ela. Nas festas de aniversário infantis as câmeras podem capturar os trejeitos do corpo durante a dança. Toda criança trans está ciente das câmeras, olhando-as ou não.
Peço atenção também à palavra trejeito, que não é exatamente um jeito, é uma afetação, como se um jeito se atrofiasse e em estado de má-formação performasse uma curva no gênero. Raramente li sobre nossos movimentos como jeitos. Raramente li sobre nossa forma como corpo. Uma herança também da tradição do retrato.
We are talking about a universal subjectivity that was created with colonial techniques. “There is no escape from this history,” says Preciado. I listen with fear, what can it mean to be trapped in a technique?
How can I write about the many impressions of perversion? Metamorphosis is a sign of perversion. Having a body and an identity that yearns for discontinuity has been considered a sign of mental illness: when you go to sleep and wake up transfigured into a cockroach, as in Franz Kafka, or perhaps into a bovine-human hybrid with more teats, as in Juliana Huxtable, or even, more commonly, when a different gender identification is attributed to your face. There is a historical fact that always terrifies me. According to Preciado, the taxonomy of mental pathology was founded on images. At the end of the 18th century, psychoanalysis believed that photography was capable of revealing pathologies through the observation of physical specificities. In short, a photograph of a person was used as a hunting ground. The gesture of a physical trait... They sought to recognize human fraud through a eugenicist idea of proportion and the inexact threshold between masculine and feminine.
In contemporary image culture, the belief that pathology can be photographed on the dissident body is still alive. Inspired by Philippe Pinel, Hugh Welch Diamond, among other scientists, used photography as part of a healing strategy. A particularly violent tradition. I will explain how this process took place later. It is undeniable that, even today, in exotification and otherification, there is an obsession with hierarchizing sanity that starts from the binary fiction of man – woman, hetero – deviant, cis – trans. As with Kundera’s weight and lightness, all binarism carries a positive and negative viewpoint of the human experience.
Estamos falando sobre uma subjetividade universal que foi criada com técnicas coloniais. “Não há como escapar dessa história”, diz Preciado. Ouço com medo, o que pode significar estar presa à uma técnica? Como escrever sobre as muitas impressões da perversão? A metamorfose é um sinal da perversão. Ter um corpo e uma identidade que anseia a descontinuidade foi considerado um sinal de doença mental: quando você dorme e acorda transfigurado em uma barata, como em Franz Kafka, ou talvez em um híbrido bovino-humano com maior número de tetas, como em Juliana Huxtable, ou ainda, como é mais comum, quando uma identificação de gênero diferente é atribuída ao seu próprio rosto.
Há um fato histórico que sempre me aterroriza. Segundo Preciado, a taxonomia da patologia mental foi de fato fundada sobre imagens. No final do século XVIII, a psicanálise acreditou que a fotografia era capaz de revelar patologias através da observação de especificidades físicas. Em resumo, a fotografia de uma pessoa era usada como caça. O trejeito de um traço físico... Procurava-se reconhecer uma fraude humana por meio de uma ideia eugenista de proporção e no limiar inexato entre o masculino e o feminino.
Na cultura contemporânea da imagem, está ainda viva a crença de que a patologia pode ser fotografada no corpo dissidente. Inspirado em Philippe Pinel, Hugh Welch Diamond, entre outros cientistas, usou a fotografia como parte de uma estratégia de cura. Uma tradição particularmente violenta. Já explicarei como se dava tal processo. É inegável que, ainda hoje, na exotificação e na outrificação, exista uma obsessão em hierarquizar a sanidade que parte da ficção binária homem – mulher, hétero – desviante, cis – trans. Como entre o peso e a leveza de Kundera, todo o binarismo carrega um ponto de vista positivo e negativo da experiência humana.
But now, the process. In this treatment, homosexual people were placed in front of photographs of themselves and then asked to comment on what they saw to generate a disidentification. So that they would disassociate themselves from themselves through speech until they regained the image of the norm.
You were the mental illness of yourself. Placed before you, the image of what you are needs to convince you to stop being. All processes that ask for something like this are processes of death. They are not simple disidentifications. They are the difficult way to kill. Difficult because it is through an idea of healing, much crueler than dying is to become the abject image of yourself.
This is the origin of the photographic mirror (the history of the queer self-portrait) for the bodies of sexual difference. The mirror of difference.
Tessa Boffin, an English photographer who was also an image activist, created a very important series called “Billboard Project”. The work itself is simple, consisting of a full-length portrait and a question with 4 multiple choices, all printed on pamphlets. In the portrait, we see the masculine figure of a lesbian woman, with Tessa herself being a mirror of this woman. Written at the top of this portrait on a white background is the following provocation: “This is a woman. She dressed like a man because: [ ] She wanted to seduce other girls. [ ] Her girlfriend was too scared to tell her parents she was a lesbian. [ ] Small towns have small minds. [ ] She is a drag king who distorts gender.
Tessa’s work is inspired by an extremely violent event. In 1991, in England, a person was sentenced to 6 years in prison for allegedly committing, as it was called, “rape by deception.” She, the person in question, was accused of pretending to be the opposite gender to enter into a relationship. Of pretending to have a penis for months. The woman who accused her, clearly still in the closet, allied herself with the laws of the time to sacrifice a pervert (someone who plays more than one gender role). Tessa’s work asks a question and offers it to the streets in the form of pamphlets, as a kind of proof, and questions the legibility of a sexual dissident figure who was neither
Mas agora, o tal processo. Nesse tratamento, pessoas homossexuais eram colocadas diante de fotografias de si mesmas para que, então, fosse pedido que elas comentassem sobre o que viam na intenção de gerar uma desindentifição. Para que elas se desvinculassem de si mesmas através da fala, até readiquirirem a imagem da norma.
Você era a doença mental de você mesma. Colocada diante de você, a imagem daquilo que você é precisa te convencer a deixar de ser. Todos os processos que pedem algo assim, são processos de morte. Não são simples desidentificações. São a forma difícil de matar. Difícil porque é através de uma ideia de cura, muito mais cruel que morrer é se tornar a imagem abjeta de você mesma.
Essa é a origem do espelho fotográfico (a história do autorretrato queer) para os corpos da diferença sexual. O espelho da diferença.
Tessa Boffin, fotógrafa inglesa que foi também ativista da imagem, criou uma série importantíssima chamada “Billboard Project”. A obra em si é simples, composta por um retrato de corpo inteiro e uma pergunta com 4 múltiplas escolhas, tudo isso impresso em panfletos. No retrato, vemos a figura masculinizada de uma mulher lésbica, sendo a própria Tessa um espelho dessa mulher. Escrito no topo desse retrato em fundo branco, está a seguinte provocação: “Isto é uma mulher. Ela se vestiu como um homem porque: [ ] Ela queria seduzir outras garotas. [ ] Sua namorada estava com muito medo de dizer aos seus pais que é lésbica. [ ] Cidades pequenas têm mentes pequenas. [ ] Ela é um drag king que deturpa o gênero. O trabalho de Tessa é inspirado em um acontecimento extremamente violento. Em 1991, na Inglaterra, uma pessoa foi condenada a 6 anos de prisão por supostamente cometer, como foi chamado, “estupro por enganação” (rape by deception). Ela, a pessoa em questão, foi acusada de fingir ser do gênero oposto para entrar em um relacionamento. De fingir ter um pênis durante meses. A mulher que a acusou, nitidamente ainda dentro do armário, aliou-se às leis da época para sacrificar uma perversa (alguém que desempenha mais de um papel de gênero). O trabalho de Tessa faz uma pergunta e a oferece às ruas na forma de panfletos, como uma espécie
Fábio Leal, Seguindo Todos os Protocolos, Áspera Filmes, 2022
Rotimi Fani-Kayode, Bronze Head, 1987
Jimmy nor Jennifer on their own: for the justice system, she was Jennifer; for herself, it is not known to what extent her image was consolidated as a lesbian woman until it collapsed within relationships (those that divide the world between penis and dildo).
In Amarelo Manga, a film by Cláudio Assis, it is said: modesty is the most intelligent form of perversion. In the 1970s, in contrast, drag artist, actress and artist Divine, an absolutely striking presence in John Waters’ films, triggers narratives of victorious degradation. Sexual dissidence was expected to overcome the idea of palatable humanity. A conformist appearance is not desired. Photography underwent several transformations during this period, far beyond Nan Goldin and Robert Mapplethorpe, it also included Rotimi Fani-Kayode, Sunil Gupta, Iké Udé…
First, we learn that hatred of the world is our best art. Then, we metamorphose into what they hate. And we begin to exercise perversion in order to elevate it to a category of goodness (freedom).
Photographer Paul Mpagi Sepuya talks about intimacy in his Darkroom series. We see through the mirror dismembered and erotic bodies, piled up in a collage created in front of the camera. The compositions are created in his studio, generally, with friends and lovers who combine their bodies in exercises of what can only be called sex, despite the mutilation, with marks of body fat highlighted in the mirrors by their black skin. Fábio Leal’s cinema, whose explicit form allows us to find other censorships, inaugurates discussions that appear long after we have accepted the truth of sex (its naturalness). Among what is proposed are new forms of solitude in the gay experience, the modesty (or not) of pleasure, among other perversions that are difficult to name.
Perversion is in everything we touch. Perversion is a childhood memory. Furthermore, a deeper look into the history of the word perversion leads us to the assumption of a natural law, as if the revelation were as true as life and death, and, therefore, the announcement of another law. The disaster. Every self-portrait made by someone lgbtiapn+ produces destruction.
The word perversion appears in several works by photographers and filmmakers since the 1970s.
de prova, e questiona a legibilidade de uma figura dissidente sexual que não foi Jimmy nem Jennifer por conta própria: para a justiça, foi Jennifer, para si própria, não se sabe até que ponto a sua imagem se consolidava como uma mulher lésbica até ruir dentro das relações (as que dividem o mundo entre pênis e dildo).
Em Amarelo Manga, filme de Cláudio Assis, é dito: o pudor é a forma mais inteligente da perversão. Na década de 70, em contrapondo, a drag, atriz e artista Divine, presença absolutamente marcante nos filmes de John Waters, aciona narrativas de degradação vitoriosa. Era esperado da dissidência sexual uma superação da ideia de humanidade palatável. Não se quer uma aparência conformada. A fotografia sofreu diversas transformações nesse período, muito além de Nan Goldin e Robert Mapplethorpe, passou também por Rotimi Fani-Kayode, Sunil Gupta, Iké Udé…
Primeiro, aprendemos que o ódio do mundo é a nossa melhor arte. Depois, nós nos metamorfoseamos naquilo que odeiam. E passamos a exercer a perversão de forma a elevá-la a uma categoria de bondade (liberdade).
O fotógrafo Paul Mpagi Sepuya fala de intimidade em sua série Darkroom. Vemos através do espelho corpos desmembrados e eróticos, amontoados em uma colagem realizada diante da câmera. As composições são criadas em seu ateliê, em geral, com amigos e amantes que combinam seus corpos em exercícios do que só pode ser chamado de sexo, apesar da mutilação, com marcas de gordura corporal realçadas nos espelhos por sua pele negra. O cinema de Fábio Leal, cuja forma explícita nos permite encontrar outras censuras, inaugura discussões que aparecem muito depois de termos aceitado a verdade do sexo (a naturalidade). Entre o que se propõe estão as novas formas de solidão da experiência gay, os pudores (ou não) do prazer, entre outras perversões difíceis de nomear.
A perversão está em tudo que tocamos. A perversão é uma memória de infância. Além disso, um maior aprofundamento na história da palavra perversão nos leva à suposição de uma lei natural, como se o chá revelação fosse tão ver-
“It is not the homosexual who is perverse, but the situation in which he lives” (1971), a film by Rosa von Praunheim, argues that although we look about this stigma and exercising perversion with autonomy, we are in fact a community subjected to perverse actions by institutions (including the family) and other public violence. He tensions the words perverse and perversion, of which we are a fruit, and attributes different meanings to them: one may be evil, the other depravity. The word perversion follows:
A Nazi soldier puts that word on paper. Catherine Opie scars that word into the skin of her chest. Fierce Pussy says she is proud of that word. The term appears on the invitation to a closed sex party created by photographer Ajamu X, the Black Perverts Network. Perversion, the word, is a degenerate event, a pride in process, a party with inflexible rules, an invitation, a fetish granted, a motto, a fork that leads to the feeling of possible worlds. The Nazi soldier, for example, cannot enter. White cis men are not allowed at the party. It was made by/for black and Asian cis men. If you’re not, you don’t have an invitation, you don’t get in. It’s not exactly a possible world, but it’s a world imagined by those who saw themselves as intruders. The invitation says exactly that: “dress code: leather, rubber, underwear or less.” It may seem strange, but it is possible to be in a wicked (and beautiful) world. Perversion protects us. Perversion afflicts those who cannot stand it. Who doesn’t know. She won’t admit you. In Catherine Opie’s photograph, she, marked with the word “Pervert” scarred on her chest, holds a baby, her son Oliver, and breastfeeds him. This is a portrait of her lesbian motherhood, of intelligible and pure love, with a fabric in the background that informs the patterns of a Victorian painting. “Words that express evil are destined to have a useful meaning. It erases a false idea, replaces it with a fair idea” (Comte de Lautréamont). It’s just what the word perversion is for me today.
This was the Nazi note written in 1945 to justify the arrest and death sentence of artists Claude Cahun and Marcel Moore, thankfully never executed:
dadeiro quanto a vida e a morte, e, por conseguinte, a anunciação de uma outra lei. A do desastre. Todo autorretrato feito por alguém lgbtiapn+ produz destruição.
A palavra perversão surge em diversas obras de fotógrafes e cineastas desde a década de 70. “Não é o homossexual que é perverso, mas a situação em que ele vive” (1971), filme de Rosa von Praunheim, argumenta que apesar de nos debruçarmos sobre esse estigma e exercermos a perversão com autonomia, somos na verdade uma comunidade submetida a ações perversas por parte de instituições (incluindo a família) e a outras violências públicas. Ele tensiona as palavras perverso e perversão, das quais somos um fruto, e atribui sentidos diferentes a elas: uma talvez seja o mau, a outra a depravação. A palavra perversão segue:
Um soldado nazista coloca no papel essa palavra. Catherine Opie escarifica essa palavra na pele do peito. As Fierce Pussy dizem se orgulhar dessa palavra. O termo estampa o convite de uma festa fechada de sexo criada pelo fotógrafo Ajamu X, a Black Perverts Network. Perversão, a palavra, é um evento degenerado, um orgulho em processo, uma festa com regras inflexíveis, um convite, um fetiche concedido, um lema, uma bifurcação que leva ao sentimento dos mundos possíveis. O soldado nazista, por exemplo, não pode entrar. Na festa não é permitido homens cis brancos. Foi feita por / para homens cis negros e asiáticos. Se você não é, não tem convite, não entra. Não é bem um mundo possível mas é um mundo imaginado por quem se via como intruso. No convite está escrito exatamente isso: “código de vestimenta: couro, borracha, roupas íntimas ou menos.” Pode parecer estranho, mas é possível estar em um mundo perverso (e lindo). A perversão nos protege. A perversão aflige quem não suporta. Quem não conhece. Ela não admite você. Na fotografia de Catherine Opie, ela, marcada com a palavra “Pervert” cicatrizada no peito, segura um bebê, seu filho Oliver, e o amamenta. Esse é o retrato da sua maternidade lésbica, do amor inteligível e puro, com um tecido ao fundo que informa os padrões de uma pintura vitoriana. “As palavras que expressam o mal estão destinadas a vir a ter uma significação de utilidade. Apaga uma ideia falsa, substitui-a por uma ideia justa”
Rodrigo Masina Pinheiro e Gal Cipreste Marinelli. Cerca, da série GH, Gal e Hiroshima, 2021
The two Jewish women who have just been arrested belong to an unpleasant category. They have finally been found. (...) A search of the house, full of ugly cubist paintings, brought to light a quantity of pornographic material of a particularly revolting nature. One woman had her head shaved and was thus photographed naked from all angles. In addition, she wore men’s clothing. Further nude photographs showed the two women engaging in sexual perversion, exhibitionism, and flagellation.
He, the Nazi, writes sexual perversion and unpleasant category when he refers to the photograph of Claude and Marcel. There is one thing he imagines he has the right to do against them. It is not just arresting and condemning them. Sex is the world’s favorite weapon against gender-disobedient bodies. Even in childhood. Sex is correction and punishment. What does this mean about photography? Among many things, that the explicit is one of our most organized forms of art and that we must re-manage censorship in order to create free memories. Dissident biographies have to be, need to be, autobiographies. Current revolutions are necessarily autobiographical. ■
(Conde de Lautréamont). É justa a coisa que a palavra perversão é para mim, hoje.
Este foi o bilhete nazista escrito em 1945 para justificar a prisão e condenação de morte das artistas Claude Cahun e Marcel Moore, nunca executadas, ainda bem:
As duas mulheres judias que acabaram de ser presas pertencem a uma categoria desagradável. Elas foram finalmente encontradas. (...) Uma busca na casa, cheia de pinturas cubistas feias, trouxe à luz uma quantidade de material pornográfico de uma natureza particularmente revoltante. Uma mulher teve a cabeça raspada e foi, assim, fotografada nua de todos os ângulos. Além disso, ela usava roupas masculinas. Mais fotos nuas mostravam as duas mulheres praticando perversão sexual, exibicionismo, e flagelação.
Ele, o nazista, escreve perversão sexual e categoria desagradável quando se refere a fotografia de Claude e Marcel. Há uma coisa que ele imagina ter o direito de fazer contra elas. Não é somente prendê-las e condená-las. O sexo é a arma favorita do mundo contra os corpos desobedientes de gênero. Mesmo na infância. O sexo é a correção e a punição. O que isso quer dizer sobre a fotografia? Entre tantas coisas, que o explícito é uma das nossas formas de arte mais organizada e que devemos remanejar a censura com o objetivo de criar memórias livres. As biografias dissidentes têm que ser, precisam ser, autobiografias. As revoluções atuais são necessariamente autobiográficas. ■
Elle Pérez, “Dick,” 2018
Utaki nos apresenta um conjunto de imagens em que tradição e identidade são investigadas e questionadas, em um processo de produção visual em que o estranhamento é algo constante e natural. Ricardo Tokugawa nos propõe um gesto performático que reflete sobre a própria existência humana: o quanto de tudo o que fazemos é inventado? Criado para construir uma identidade social coerente? Ao criar estas imagens, o autor nos permite entrar em seu ambiente familiar, em seu processo de investigação sobre si mesmo, mas sempre com a dúvida: o quanto vejo aqui é biografia e o quanto é ficção?
Ricardo Tokugawa Utaki
Utaki presents us with images in which tradition and identity are investigated and questioned, in a process of visual production in which estrangement is constant and natural. Ricardo Tokugawa proposes a performative gesture reflecting on human existence: how much of everything we do is invented? Created to build a coherent social identity? By creating these images, the author allows us to enter his family environment, into his process of investigating himself, but always with the doubt: how much I see here is biography and how much is fiction?
Utaki brings together elements of the cultures of Brazil, Okinawa, and Japan. How do you seek to discuss your identity and role in the world through these elements? How do these cultures inform your visual production?
I am a third-generation Okinawan immigrant in Brazil and, since my childhood, the cultures of Okinawa and Japan have been very present in my daily life. At that time, for me, Okinawa and Japan were the same. Historically, Okinawa was an independent kingdom until the end of the 19th century, known as Ryukyu, with its own language and particular cultures. In 1879, this territory was annexed and colonized by the Japanese Empire. Less than 30 years after this annexation, in 1908, the first ship with Japanese and Okinawan immigrants arrived in Brazil, bringing with them their cultures, which began to be practiced here. However, despite these two peoples having come together on the same ship, there is a cultural distance that generates prejudices among the Japanese towards the Okinawans.
Utaki reúne elementos das culturas de Brasil, Okinawa e Japão. Como você busca discutir sua identidade e papel no mundo através destes elementos? Como essas culturas informam sua produção visual?
Sou da terceira geração de imigrantes okinawanos no Brasil e, desde a minha infância, as culturas de Okinawa e do Japão estiveram muito presentes no meu cotidiano. Naquele momento, para mim, Okinawa e Japão eram uma coisa só. Historicamente, Okinawa foi um reino independente até o final do século XIX, conhecido como Ryukyu, possuindo uma língua própria e culturas particulares. Em 1879, esse território foi anexado e colonizado pelo Império japonês. Menos de 30 anos depois dessa anexação, em 1908, chegou ao Brasil o primeiro navio com imigrantes japoneses e okinawanos, trazendo consigo suas culturas, que começaram a ser praticadas aqui. No entanto, apesar de esses dois povos terem vindo juntos no mesmo navio, existe um distanciamento cultural que gera preconceitos dos japoneses em relação aos okinawanos.
One element present in the lives of Asian descendants in Brazil is the myth of the “model minority,” which perpetuates the idea that all Asians are intelligent, docile, disciplined, and rich. This concept emerged in the 1960s in the United States, symbolizing Asian immigrants who were once part of the “yellow peril” during World War II but who later prospered, incorporating the “American dream” into their lives. This idea is problematic because it implicitly argues that other minorities, especially blacks, are to blame for their problems, ignoring the long history of violence and discrimination. It is a myth that generates a variety of anxieties and expectations when you are born into an Asian family, and anguish when you do not fit into this model. Discussing my identity and role in the world means becoming aware of these discourses that discriminate and exclude. It is always about questioning the situation of privilege. In the images I produce in Utaki, even though they are silent, I include elements that generate a sense of strangeness, that make me question and leave a comfortable situation.
Um elemento presente na vida dos descendentes asiáticos no Brasil é o mito da “minoria modelo”, que perpetua a ideia de que todo asiático é inteligente, dócil, disciplinado e rico. Esse conceito surgiu na década de 1960, nos EUA, simbolizando os imigrantes asiáticos que antes faziam parte do “perigo amarelo” no contexto da Segunda Guerra Mundial, mas que posteriormente prosperaram, incorporando em suas vidas o “sonho americano”. Essa ideia é problemática, pois possui o argumento implícito de que outras minorias, principalmente os negros, são culpadas pelos próprios problemas, ignorando a longa história de violência e discriminação. É um mito que gera diversos anseios e expectativas quando você nasce em uma família asiática, e angústias quando não nos encaixamos nesse modelo. Discutir minha identidade e papel no mundo é tomar consciência desses discursos que discriminam e excluem. É sempre questionar a situação de privilégio. Nas imagens que produzo em Utaki, por mais que sejam silenciosas, coloco elementos que geram um estranhamento, que me fazem questionar e sair de uma situação de conforto.
Familiar elements are a central point of the images in this work. How did you seek to investigate this aspect, considering the spaces and people you photographed?
For much of my life, my decisions were made taking into account external aspects, such as the silent expectations imposed on me, and less my inner desires. In short, I tried to fit into the Asian stereotype of the “model minority” myth. ¶ Between 2017 and 2019, I lived abroad and, far from family influences, I was able to experience some life possibilities that I had not had before and question the decisions I had made up until that moment. When I returned to Brazil, I felt a need to photograph my family, but initially without a concrete idea of carrying out a project with this material. In a family where communication through silence is very present, I intended to use photography as a reason for reunion, exchange, and discoveries, and not as a byproduct of family gatherings.
Os elementos familiares são um ponto central das imagens deste trabalho. Como você buscou investigar esse aspecto, considerando os espaços e as pessoas que você fotografou?
Durante grande parte da minha vida, minhas decisões foram tomadas levando mais em conta os aspectos externos, como as expectativas silenciosas que me eram impostas, e menos as minhas vontades interiores. Resumidamente, eu tentava me encaixar no estereótipo asiático do mito da “minoria modelo”. Entre 2017 e 2019, morei no exterior e, longe das influências familiares, pude experimentar algumas possibilidades de vida que não havia tido anteriormente e questionar as decisões que tomei até aquele momento. Ao voltar para o Brasil, senti uma necessidade de fotografar minha família, mas inicialmente sem uma ideia concreta de realizar um projeto com esse material. Em uma família onde a comunicação pelo silêncio é muito presente, minha intenção foi usar a fotografia como um motivo de reunião, troca e novas descobertas, e não como um subproduto dos encontros familiares.
How is the presence of those who have passed away constructed in your images? How are life and death related and presented in your photographs?
Along with the immigrants from Okinawa, a specific practice of ancestor worship also began to be practiced in Brazil: Sosen Suuhai. This is a practice that focuses on the family and involves funeral and post-mortem rituals, usually performed inside the home, on an altar called butsudan, with an abundance of food offerings. It is a cult based on a relationship of reciprocity between ancestors and living family members, because as these ancestors evolve through care, such as family masses and offerings, they become capable of helping their living descendants physically, materially, and emotionally. In this way, death presents itself more as a transformation than as a rupture, in a process in which ancestors influence the emotional and material well-being of their descendants. In this way, death appears more as a transformation than as a rupture, in a process in which ancestors influence the emotional and material well-being of their descendants.
Como a presença dos que já se foram se constrói nas suas imagens? Como vida e morte se relacionam e se apresentam nas suas fotografias?
Junto com os imigrantes vindos de Okinawa, uma prática específica de culto aos antepassados também passou a ser realizada no Brasil: o Sosen Suuhai. Trata-se de uma prática cuja centralidade está na família e que envolve rituais funerários e pós-morte, geralmente realizados dentro de casa, em um altar denominado butsudan, com abundância de oferendas alimentares. É um culto baseado em uma relação de reciprocidade entre os antepassados e os familiares vivos, pois, conforme esses antepassados evoluem a partir dos cuidados, como missas e oferendas da família, eles se tornam capazes de ajudar física, material e emocionalmente seus descendentes vivos. Dessa forma, a morte se apresenta mais como uma transformação do que como uma ruptura, em um processo no qual os antepassados influenciam o bem-estar emocional e material dos descendentes.
What are the roles of autobiography and fiction in Utaki? How do these universes mix in the images? As a child, when I asked why we performed certain Okinawan rituals and customs in a specific way, I was always told that it was tradition to do so, giving me the idea that these rituals had been performed in the same way since time immemorial. In masses for ancestors, it was common to see a bottle of cachaça being offered to the deceased loved one. Among the foods was coxinha. As far as I know, cachaça and coxinha are very present in contemporary Brazilian culture, but not in Okinawa. This leads me to ask: tradition for whom? In the book “The Invention of Traditions”, edited by Eric Hobsbawm and Terence Ranger, the notion of tradition is discussed and many, despite seeming old, are recent and were deliberately created to legitimize institutions, stabilize changes or promote a cohesive social identity. Thus, in Utaki, my purpose is not to confront or break with these traditions that were presented to me, but to question and seek my place of speech, propose other mixtures, and invent my rituals.
Quais os papéis da autobiografia e da ficção em Utaki? Como esses universos se misturam nas imagens? Quando criança, ao questionar por que realizávamos certos rituais e costumes okinawanos de uma maneira específica, sempre me diziam que era tradição fazer assim, dando-me a ideia de que esses rituais eram realizados da mesma forma desde tempos imemoriais. Nas missas para os antepassados, era comum ver uma garrafa de cachaça sendo oferecida ao ente que já se foi. Entre os alimentos, havia coxinha. Até onde sei, cachaça e coxinha são muito presentes na cultura brasileira contemporânea, mas não em Okinawa. Isso me leva a questionar: tradição para quem? No livro “A Invenção das Tradições”, organizado por Eric Hobsbawm e Terence Ranger, é discutida a noção de tradição e muitas, apesar de parecerem antigas, são na verdade recentes e foram deliberadamente criadas para legitimar instituições, estabilizar mudanças ou promover uma identidade social coesa. Assim, em Utaki, meu propósito não é confrontar ou romper com essas tradições que me foram apresentadas, mas questionar e buscar um lugar de fala próprio, propor outras misturas e inventar meus próprios rituais.
How does performance help in the construction of this series? How do the performances and gestures relate to traditional elements of the cultures that you present in your images? The performances and gestures executed in the photographs not only evoke but also recontextualize traditional elements of the cultures of Brazil, Okinawa, and Japan, creating a narrative that is at once personal and universal. The purpose of posed photography is to bring new layers of interpretation to family images and to discuss the notion of family, identity, and tradition. ■
Como a performance ajuda na construção desta série? Como as performances e gestos realizados se relacionam com elementos tradicionais das culturas que você apresenta nas suas imagens? As performances e gestos realizados nas fotografias não apenas evocam, mas também recontextualizam elementos tradicionais das culturas do Brasil, Okinawa e Japão, criando uma narrativa que é ao mesmo tempo pessoal e universal. O propósito da fotografia posada é trazer novas camadas de interpretação às imagens familiares e discutir a noção de família, identidade e tradição. ■
Talvez o nosso amor morra num sonho
Caia Marvento Ramalho
Maybe Our Love Will Die in a Dream
In Maybe Our Love Will Die in a Dream, Caia Marvento Ramalho explores the affections present in the vast family archive produced by her parents, along with her visual research. This exchange between collections from different times and authors is contextualized by the investigation of bodies and endearment, with the author’s gender identity as one of the guides within this mindful process. Caia has always been surrounded by images, whether by the ones produced in her father’s laboratory, in her fashion studies, or in her creations as a photographer. In this project, this universe is revealed and linked to the construction of the author’s identity in a caring fashion, embraced by the warm summer sun.
Em Talvez nosso amor morra num sonho Caia Marvento Ramalho explora os afetos presentes no vasto arquivo familiar produzido por seus pais junto à sua pesquisa visual. Essa troca entre acervos de tempos e autores distintos se contextualiza pela investigação de corpos e carinhos, com a identidade de gênero da autora como um dos guias dentro deste cuidadoso processo. Caia sempre esteve envolta por imagens, seja pelas imagens produzidas no laboratório de seu pai, em seus estudos de moda ou em sua produção como fotógrafa. Neste projeto, esse universo se desvela e se vincula à construção de identidade da autora.
Caia, can you tell us how your interest in photography began? How did your studies in Fashion affect this process?
I remember being interested in images when I was little. My father would bring home some photos that had gone wrong in his laboratory –due to some problem with the enlargement or color. They were photos taken by his clients who developed the pictures with him and at the time (I think before 2004) most of them were fashion photographers. I would take these photos and draw on them with a permanent marker. From then on, I started to get interested in who the models in the images were, the details of their makeup, and which magazines they would be used for... Over time, drawing became my favorite activity and I started to draw outside of the photographs as well. When I decided to study fashion at college, I wanted to become a fashion designer, but my first internship was in journalism where I started to use the camera from the newsroom where I worked to photograph and illustrate the articles I wrote – from interviews to fashion week’s coverage. I spent a few years working in related areas (in addition to journalism, I also worked in marketing and communication, but always in fashion) until I realized that photography was where I felt happiest.
Caia, você pode nos contar como começou seu interesse pela fotografia? Como a sua formação em Moda participou deste processo? De pequena lembro de me interessar por imagem. Meu pai trazia para casa algumas fotos que davam errado no seu laboratório – por algum problema na ampliação ou na cor. Eram fotos tiradas pelos seus clientes que revelavam as fotos com ele e na época (acho que antes de 2004) a maioria eram fotógrafos de moda. Eu pegava essas fotos e gostava de desenhar em cima delas com marcador permanente. A partir daí comecei a me interessar por quem eram as modelos das fotos, os detalhes das maquiagens, para quais revistas seriam usadas... Com o tempo, o desenho foi se tornando a minha prática preferida e comecei a desenhar fora das fotografias também. Quando decidi estudar moda na faculdade entrei com o desejo de me tornar estilista, mas o meu primeiro estágio foi na área de jornalismo e lá passei a usar a câmera da redação que eu trabalhava para fotografar e ilustrar as matérias que eu escrevia – desde entrevistas até coberturas de semanas de moda. Passei alguns anos trabalhando com áreas relacionadas (para além do jornalismo, marketing e comunicação também, mas sempre na moda) até entender que na fotografia era onde eu me sentia mais feliz.
In Maybe Our Love Will Die in a Dream you mix archive images with photographs you produced yourself. How important is it to intertwine two different times and practices?
I started to look more closely at my parents’ archive photos when I did my final project in my fashion degree. I chose to look at photographs from a specific trip they took as inspiration for my clothing collection. Even though I was developing clothes, I could see how photography always guided my creations. I always had a specific interest in these photos: I liked looking at their youth and, given the context in which they were taken, they were mostly images of them traveling, especially at the beach. As time went by and I began to understand and recognize myself as a trans woman, some of the images of my parents began to establish some contrasts to my experience of body and affection. Those images that I grew up seeing and, in some way, learning about love, beauty, and freedom, seemed far from what I thought was possible for my body and what I was experiencing
Em Talvez o nosso amor morra num sonho você mescla imagens de arquivo com fotografias produzidas por você. Qual a importância de entrelaçar dois tempos e práticas distintas? Eu comecei a olhar com mais afinco para as fotos de arquivo dos meus pais quando fiz o meu TCC da faculdade de moda. Escolhi olhar para as fotografias de uma viagem específica deles como inspiração para a minha coleção de roupas. Por mais que eu estivesse desenvolvendo roupas, eu via como a fotografia sempre pautava as minhas criações. Eu sempre tive um recorte específico de interesse nessas fotos: gostava de olhar para suas juventudes e, pelo contexto em que estavam, eram em sua maioria imagens em viagens, principalmente em praias. Com o passar do tempo e, conforme fui me entendendo e me reconhecendo enquanto uma mulher trans, algumas das imagens dos meus pais passaram a estabelecer alguns contrastes em relação a minha experiência de corpo e de afetividade. Aquelas imagens que eu cresci vendo e, de alguma maneira, aprendendo sobre o amor, sobre beleza e liberdade, pareciam distantes do que eu achava ser possível para o meu corpo e do que eu estava vivenciando na época. Passei a entender o peso que a fotografia
at the time. I began to understand the importance that photography had for me and in my identity processes, as a photographer and also as a person. The strong contact with these images from a very young age meant that they had a profound influence on shaping my dreams and desires and the idea of who I should become. In addition to guiding my perspective on photography, it also shaped my life projections. When this became latent to me, it was important to start looking at and understanding the photos I took. Looking at my surroundings. My loves, my friendships, my body. In this process, I understood that a lot of things were mixed up with my parents and, even in the contrasts, I became interested in the contradiction. At the same time that I questioned the idealization and romanticization that surrounded my parents’ archive, I couldn’t and didn’t want to let go of them, because they existed within me in a very unique place. It was interesting to understand that I carry a lot of my parents’ youth and that I started to relate to them again and see myself in their photos after experiencing, and recording, the possibility of my first love after transition. It was a summer love, which for a while I believed was not a possible place for me. The intertwining of times ended up becoming a way I found to talk about love and identity, which are subjects that interest me a lot.
tinha para mim e nos meus processos identitários, enquanto fotógrafa e também enquanto pessoa. O forte contato com essas imagens desde muito nova fez com que elas tivessem um peso profundo em moldar os meus sonhos e desejos e a ideia de quem eu deveria me tornar. Para além de nortear o meu olhar para fotografia, também moldava as minhas projeções de vida. Quando isso ficou latente para mim foi importante começar a olhar e entender também as fotos que eram feitas por mim. Olhar para o meu entorno. Os meus amores, as minhas amizades, o meu corpo. Nesse processo, compreendi que muita coisa era mesclada com os meus pais e, mesmo nos contrastes, eu me interessei pela contradição. Ao mesmo tempo que eu questionava a idealização e romantização que rondavam as fotos de arquivo eu não conseguia e não queria me desprender delas, pois existiam em mim em um lugar muito singular. Foi interessante entender que carrego muito da juventude dos meus pais e que voltei a me relacionar e me enxergar nas fotos deles depois de viver, e registrar, a possibilidade do meu primeiro amor pós transição. Foi um amor de verão, que acreditei por um período não ser um lugar possível para mim. O entrelaçamento dos tempos acabou se tornando uma maneira que encontrei para discorrer sobre amor e identidade, que são assuntos que me interessam muito.
How do your story and that of your parents come together to create this essay? How do they relate to your gender identity?
The first input I had to start looking at images other than my parents’ archive photographs came from a conversation I had with my grandmother. She had seen some changes in my body (I was at the beginning of my transition), and I think that’s why she decided to share a memory of my childhood. She told me that I also had a feminine name when I was little. The name was Alice. At first, I didn’t remember it, but the name came to me as something intimate. She told me that at a certain point I told my parents that I wanted to be called Alice. I must have been about 2 years old and, from what she told me, this lasted until I started going to school. I left my grandmother’s house with the desire to find in the records of my childhood a body that I would recognize myself with today. They were isolated records, but they existed. During one of my archive searches, I found a VHS tape in which my mother filmed me, my older sister, and my father playing in the living room. On this tape, my mother calls me Alice. All of these memories and stories are present in the book. From then on, I also began to look at my childhood and, with a desire to create a memory for the body I am today, based on images, I understood that it was necessary to establish connections between what I grew up seeing in my parents’ photos and what I am photographing today. I look at environments that are intimate to me, such as beaches and summer houses, which are where my most intense and familiar memories reside, and where the photographs (mine and my parents’) are most present.
Como a sua história e de seus pais se mistura para construir este ensaio? Como elas se vinculam à sua identidade de gênero?
O primeiro estímulo que eu tive para começar a olhar para outras imagens além das fotografias de arquivo dos meus pais veio de uma conversa que tive com a minha avó. Ela via algumas mudanças no meu corpo (eu estava no início da minha transição), e acho que por isso resolveu compartilhar uma memória sobre a minha infância. Ela me contou que eu tinha também um nome feminino quando pequena. O nome era Alice. De primeira, não me lembrei, mas o nome me veio como algo íntimo. Ela me contou que em um certo momento eu disse para os meus pais que queria ser chamada de Alice. Eu devia ter uns 2 anos de idade e, pelo que ela me contou, isso durou até eu começar a frequentar a escola. Saí da casa da minha avó com o desejo de encontrar nos registros da minha infância um corpo que eu me reconheceria no hoje. Foram registros pontuais, mas existiam. Em uma das minhas investigações em arquivo, encontrei uma fita VHS que minha mãe está me filmando com a minha irmã mais velha e meu pai brincando na sala de casa. Nessa fita, minha mãe está me chamando de Alice. Todas essas memórias e relatos estão presentes no livro. A partir daí comecei a olhar também para infância e com um desejo de criar uma memória para o corpo que sou hoje, a partir de imagens, entendi que era necessário estabelecer conexões entre o que eu cresci vendo nas fotos dos meus pais com o que eu estou fotografando no hoje. Olho para ambientes que são íntimos para mim, como praias e casas de verão, que é onde residem as minhas memórias mais intensas e familiares, e onde as fotografias (minhas e dos meus pais) mais se fazem presentes.
Caia Marvento Ramalho
How does text appear in this essay? What is its importance in the construction of this narrative? My research in archives has always had writing as a practice that accompanied my encounters with these images. They were notes that ranged from memories that I related to stories that my father and mother had told me at some point in my life. How they made me feel, mixing with my memories, which are mixed with dreams and fictions. I am interested in discussing identity through the intersection of images; I think this is the methodology that makes sense to me. I understood that photography and text go hand in hand in my process and my work and that they take on a single form when they are together.
You are developing what will become the book format of this project. What are the main challenges of this process? How is the narrative adapting to this format? There are some practical challenges since it is something somewhat new to me. It is a different platform than what I am used to in fashion and other media where my work has been inserted. But, at the same time, I understood early on that a book would be the format that would best encompass what I want to talk about with this work. In some way, I think that this narra-
Como o texto aparece neste ensaio? Qual a sua importância na construção desta narrativa? A minha pesquisa em arquivos sempre teve a escrita como prática que acompanhava os meus encontros com essas imagens. Eram anotações que iam desde algumas memórias que eu relacionava com relatos que meu pai e minha mãe haviam me contado em algum momento da vida, até sobre como elas faziam eu me sentir misturando com memórias minhas, que se mesclam com sonhos e ficções. Me interessa discorrer sobre identidade a partir do atravessamento com imagens, acho que essa é a metodologia que faz sentido para mim. Entendi que foto e texto caminham juntos no meu processo e nos meus trabalhos e que assumem um corpo só quando estão juntos.
Você está desenvolvendo o que virá a ser o formato livro deste projeto. Quais os principais desafios deste processo? Como a narrativa está se adaptando a este formato? Existem alguns desafios práticos, por se tratar de algo meio novo para mim. É uma plataforma diferente da que estou acostumada na moda e em outros meios que tive o meu trabalho inserido. Mas, ao mesmo tempo, entendi cedo que um livro seria o formato que melhor abarcaria o que desejo falar com esse trabalho. De alguma maneira acho que essa narrativa já nasceu para esse formato. A minha escrita já acontecia em forma de ensaios que partiam sempre de alguma imagem, e aí selecionei e reuni 10 capítulos
tive was born for this format. My writing was already in the form of essays that always started with an image, and then I selected and gathered 10 chapters of this journey, from these 7 years, which follows my contact with family archives, my transition, and its developments. Another contribution to my understanding of how the book would be structured was the discovery of my grandfather’s poetry books, whom I never met, and who I discovered as a poet during this period as well. I was interested in thinking about a type of materiality that remains present for a long time. For example, I found my grandfather’s books in an online second-hand bookstore, more than 40 years after his death. In addition, I look at the themes he brings up in his book “Marvento”, which, like mine, is set in the summer and talks about birth, love, and death. I am being accompanied by some people who have greater contact with this format, such as Vitor Casemiro and Andressa Ce, who has been very important in pinning down the steps to materialize the work in this way. It is all new to me, but it has been very transformative and exciting to think that it will be possible to reach other people in who I recognize myself and who recognize themselves in me. ■
essa trajetória, desses 7 anos, que acompanha o meu contato com arquivos de família, a minha transição e seus desdobramentos. Outra contribuição para que eu compreendesse como seria estruturado o livro foi a descoberta dos livros de poesia do meu avô, que nunca conheci, e que descobri poeta nesse mesmo período também. Me interessou pensar em um tipo de materialidade que fica presente por muito tempo. Os livros do meu avô, por exemplo, fui encontrar em um sebo online, mais de 40 anos depois de sua morte. Além disso, eu olho para os temas que ele traz em seu livro “Marvento”, que, assim como o meu é ambientado no verão e fala sobre nascimento, amor e morte. Estou sendo acompanhada por algumas pessoas que tem um contato maior com esse formato, como o Vitor Casemiro e a Andressa Ce, que tem sido muito importante na concretização das etapas para se materializar o trabalho dessa forma. É tudo novo para mim, mas tem sido muito transformador e apaixonante pensar que será possível chegar em outras pessoas que me reconheço e que se reconhecem em mim. ■
Há uma troca constante nas imagens de Lucas Cordeiro. As composições vistas em cada uma das fotografias se criam no diálogo entre retratado e fotógrafo, sua história, ancestralidade e os afetos entre quem se deixa ver e quem decide o que apresentar. Lucas prefere retratar pessoas próximas e essa confiança transparece nas imagens que são criadas. Os gestos e símbolos apresentados nessas fotografias convidam a decifrar o que se vê e aquilo que permanece invísivel, em um desejo constante de revelar mais camadas de cada uma de suas fotografias.
Onde revela o retrato assenta a memória
Lucas Cordeiro
Where the portrait reveals the memory settles
There is a constant exchange in Lucas Cordeiro’s images. The compositions seen in each of the photographs are created in the dialogue between the subject and the photographer, their history, ancestry, and the affections between those who let themselves be seen and the one who decides what to present. Lucas prefers to portray people who are close to him and this confidence shines through in the images that are created. The gestures and symbols presented in these photographs invite us to decipher what is visible and what remains invisible, in a constant desire to reveal more layers of each of his photographs.
Lucas, can you tell us about how your relationship with photography began and how you found portraiture as a main form of expression?
Photography emerged as a way of organizing my creative thinking. I am a child from a dirt backyard, and I spent hours of my time playing, creating shapes with whatever was within my reach: rocks, leaves, animals, pieces of wood. Later, an aunt showed up with a digital camera — Tekpix, and that gave me the possibility of freezing those small shapes from the backyard. Seeing those shapes on a screen broadened the experience. It was as if that screen transformed the ordinary into something bigger, taking everything out of the tangible world and taking it to a plane of almost magic.
My first digital screen, after a TV, was that of a camera, even before I had a computer. For me, that screen not only validated what I created but also reorganized what I saw. After some time taking pictures, I began to understand that having people in those photographs was much more interesting to me than photographing just things. I started photographing my family, especially my grandmother and sisters. I imagine that for a rural family from the countryside of Bahia in the early 2000s, it would have been difficult to understand a 13-year-old asking someone to stand on a mound of dirt, or sit on a chair holding a chicken in one hand and a bull’s horn in the other. Maybe for them it was crazy, but for me, it was a way of organizing and creating something beyond what was already there.
The act of imagining and constructing a portrait has always been more powerful for me than simply capturing what already existed. Being able to connect people, plants, and animals within an image was a way of bringing together realities that, at first glance, seemed so distant. This always made me deeply happy, as if the portrait were a way of embroidering the world around me.
Lucas, você pode nos contar sobre como começou sua relação com a fotografia e como você encontrou o retrato como forma central de expressão?
A fotografia surgiu como uma forma de organizar meu pensamento criativo. Eu fui uma criança de quintal de terra, e dedicava horas da minha brincadeira a criar formas com o que estava ao meu alcance: pedras, folhas, bichos, pedaços de pau. Mais tarde, uma tia apareceu com uma câmera digital — Tekpix, dai veio a possibilidade de congelar aquelas pequenas formas do quintal, ver essas formas numa tela ampliava a experiência. Era como se aquela tela transformasse o comum em algo mais vasto, tirando tudo do mundo tangível e levando para um plano de quase magia.
Minha primeira tela digital, depois da TV, foi a de uma câmera, antes mesmo de ter um computador. Para mim, aquela tela não só validava o que eu criava, como também reorganizava o que eu via. Depois de algum tempo fotografando, fui criando o entendimento de que ter pessoas naquelas fotografias era muito mais interessante para mim do que fotografar apenas coisas. Passei a fotografar minha família, sobretudo minha avó e minhas irmãs, imagino que, para uma família rural do interior da Bahia, no início dos anos 2000, fosse difícil entender um adolescente de 13 anos pedindo para alguém ficar em pé sobre um monte de terra, ou sentar numa cadeira segurando uma galinha numa mão e um chifre de boi na outra. Talvez para elas fosse uma loucura, mas para mim era uma forma de organizar e criar algo além do que já estava ali.
A ação de imaginar e construir o retrato sempre foi mais forte para mim do que apenas capturar o que já existia. Poder conectar pessoas, plantas e bichos dentro de uma imagem era um modo de aproximar realidades que, à primeira vista, pareciam tão distantes. Isso sempre me deixou profundamente feliz, como se o retrato fosse uma forma de bordar o mundo ao meu redor.
Lucas Cordeiro
You mention the importance of exchange in your production. How do you build collaboration with your subjects? How are these images conceived?
I prefer to photograph people with whom I have an emotional bond: family, friends, and brothers of saint. In these relationships, I perceive invisible layers of presence and identity, which manifest themselves in the photograph in a much more latent way than if I were photographing strangers or people far from me. The exchange, in this sense, happens naturally, whether in the imagery or in the emotions we share. It is like a subtle exchange, where the story of the person in front of the camera intertwines with mine. For me, it is important that the person being photographed understands and participates in this universe that we are creating there, even if, at first glance, it seems like an unusual or improbable composition. Often, this involves conversations, silences, mutual observations — even the simple act of being in the same space and breathing together.
I find it fascinating how there are human and non-human agents participating in this process, all telling their stories. And at the same time, I am also telling my story through them. This codification of worlds, which often reveals a truth within that narrative, also interests me. Whether to reaffirm this truth or question it, the act of photographing, for me, is always a way of exploring and deciphering these deep layers that connect the visible to the invisible. The images, therefore, are thought of openly. I create scenarios, elements, and symbols that dialogue with the person in front of the camera, and the exchanges and the photography happen simultaneously, before and after clicking.
Você menciona a importância da troca na sua produção. Como você constrói a colaboração com os seus retratados? Como essas imagens são pensadas?
Prefiro fotografar pessoas com as quais tenho um vínculo afetivo: família, amigos, irmãos de santo. Nessas relações, percebo camadas invisíveis de presença e identidade, que se manifestam na fotografia de forma muito mais latente do que se eu estivesse fotografando estranhos ou pessoas distantes de mim. A troca, nesse sentido, acontece de forma natural, seja no campo imagético ou nas emoções que compartilhamos. É como um escambo sutil, onde a história de quem está diante da câmera se entrelaça com a minha. Para mim, é importante que a pessoa fotografada entenda e participe desse universo que estamos criando ali, mesmo que, à primeira vista, pareça uma composição inusitada ou improvável. Muitas vezes, isso envolve conversas, silêncios, observações mútuas — até mesmo o simples ato de estarmos no mesmo espaço e respirarmos juntos.
Acho fascinante como há agentes humanos e não humanos participando desse processo, todos contando suas histórias. E, ao mesmo tempo, eu também estou contando a minha através deles. Essa codificação dos mundos, que muitas vezes revela uma verdade dentro daquela narrativa, também me interessa. Seja para reafirmar essa verdade ou colocá-la em questionamento, o ato de fotografar, para mim, é sempre uma forma de explorar e decifrar essas camadas profundas que ligam o visível ao invisível. As imagens, portanto, são pensadas de maneira aberta. Eu crio cenários, elementos e símbolos que dialogam com a pessoa diante da câmera, e as trocas e a fotografia acontecem simultaneamente, antes e depois dos cliques.
How does your personal history impact your production? Is there room for this mix or do you seek a separation between what is intimate and what is public?
I try to build narratives in photography that start from my point of view on issues that permeate my personal history — whether situations related to my family life, spiritual life, or the way I perceive my existence in this dimension. I like to bring perspectives related to my place of origin and connect them with everyday themes. These narratives are always tied to an environment that is at least somewhat familiar to the interlocutors of these stories.
I feel that my production and my personal history constantly feed off each other. In this movement, revisiting my memories involves a process of deconstruction, as if the narratives were unfolding in many directions, each one revealing new possibilities for interpretation. Photography, then, is not just a record of the past, but an opening for the continuous reformulation of the senses and meanings that permeate my trajectory.
Como sua história pessoal impacta na sua produção? Há espaço para essa mistura ou você busca uma separação entre elas?
Procuro construir narrativas na fotografia que partam do meu ponto de observação sobre questões que atravessam minha história pessoal — sejam situações ligadas ao meu cotidiano familiar, espiritual ou à forma como percebo minha existência nessa dimensão. Gosto de trazer perspectivas relacionadas ao meu local de origem e conectá-las com temáticas cotidianas. Essas narrativas estão sempre amarradas a um ambiente minimamente familiar para os interlocutores dessas histórias.
Sinto que minha produção e minha história pessoal se retroalimentam constantemente. Nesse movimento, revisitar minhas memórias envolve um processo de desconstrução, como se as narrativas fossem desdobradas em muitas direções, cada uma revelando novas possibilidades de interpretação. A fotografia, então, não é apenas um registro do passado, mas uma abertura para a contínua reformulação dos sentidos e significados que atravessam minha trajetória.
Do you see a performative element in your portraits? To what extent do you direct the composition and gestures of your subjects? Is having – or not having – this control important when creating your images?
I use performance as a tool to achieve broader narratives or reinforce ideas already present in the composition. In this process, I see myself performing alongside the people I photograph, in a co-creation where the gesture and presence of each body emerge from our relationship. It is often like a dance, an exchange of looks and movements, and this flow of interaction shapes what the image becomes. I propose situations that condition a specific look or gesture, which perhaps would not arise spontaneously, but are part of a shared energy at that moment.
Control, for me, is not about domination, but about orchestrating the elements to make room for spontaneity and the unexpected. If there is a direction, it is fluid, allowing the subject to contribute with their narrative force. There is a silent dialogue between what the body expresses and what I am trying to capture. When I guide a movement or expression, I am also performing – directing, but at the same time allowing the unexpected to happen.
How do you seek to build a relationship between tradition and contemporaneity in your images?
In my photographs, symbolic elements, such as objects or gestures, can refer to an ancestral heritage, while the scene itself or the way these figures and objects are arranged reflect the urgency and issues of the present. I like to think that the images connect these two times — the past and the present — creating something new, that belongs to both moments, but which also projects itself into the future.
Tradition, in this sense, is a starting point that expands into contemporary dialogues, whether in the spiritual narratives that permeate my practice or in the everyday and simple forms that emerge from my personal and collective memories. The present is, in turn, a terrain where these memories find new ways of being interpreted and resignified. ■
Você vê um elemento performativo nos seus retratos? Até que ponto há uma direção sua na composição e nos gestos dos retratados? Ter – ou deixar de ter – esse controle é algo importante na hora de criar suas imagens?
Eu uso a performance como ferramenta para alcançar narrativas mais amplas ou reforçar ideias já presentes na composição. Nesse processo, me vejo performando junto com as pessoas que fotografo, em uma cocriação onde o gesto e a presença de cada corpo emergem da nossa relação. Muitas vezes, é como uma dança, uma troca de olhares e movimentos, e esse fluxo de interação molda o que a imagem se torna. Proponho situações que condicionam um olhar ou gesto específicos, que talvez não surgissem espontaneamente, mas fazem parte de uma energia compartilhada naquele momento.
O controle, para mim, não é sobre domínio, mas sobre orquestrar os elementos para abrir espaço à espontaneidade e ao inesperado. Se há uma direção, ela é fluida, permitindo que o retratado contribua com sua própria força narrativa. Há um diálogo silencioso entre o que o corpo expressa e o que estou buscando captar. Quando oriento um movimento ou expressão, também estou performando – direcionando, mas ao mesmo tempo permitindo que o imprevisto aconteça.
Como você busca construir uma relação entre tradição e contemporaneidade nas suas imagens? Nas minhas fotografias, elementos simbólicos, como objetos ou gestos, podem remeter a uma herança ancestral, enquanto a própria cena ou o modo como essas figuras e objetos são organizados refletem a urgência e as questões do presente. Eu gosto de pensar que as imagens conectam esses dois tempos — o passado e o agora — criando algo novo, que pertence a ambos os momentos, mas que também se projeta para o futuro.
A tradição, nesse sentido, é um ponto de partida que se expande para diálogos contemporâneos, seja nas narrativas espirituais que permeiam minha prática, seja nas formas cotidianas e singelas que emergem das minhas memórias pessoais e coletivas. O presente é, por sua vez, um terreno onde essas lembranças encontram novas maneiras de serem interpretadas e ressignificadas ■
Lucas Cordeiro
Val Souza
Val Souza é artista, pesquisadora e desenvolve um trabalho em fotografia e performance que reflete sobre as representações históricas e culturais de mulheres negras. Com uma abordagem crítica, Val utiliza o corpo como principal meio de criação, explorando o poder das imagens para desconstruir estereótipos e reconfigurar narrativas.Em seus projetos mais recentes, discutidos em detalhe nesta entrevista, ela nos convida a olhar com mais atenção para as imagens, pois aquilo que está representado nem sempre corresponde às narrativas que criamos. De maneira reflexiva, a artista analisa a construção de imagens de mulheres negras, revelando as camadas de construção de subjetividade, agência e opressão que coexistem em poses e gestos. Também aparece como foco a reflexão sobre a conexão entre a representação da mulher negra e o imaginário do Brasil, ressaltando como o corpo feminino negro é explorado e romantizado de maneira semelhante ao próprio território.
por/by MILENA COSTA
Val Souza is an artist and researcher who works with photography and performance, reflecting on historical and cultural representations of black women. With a critical approach, Val uses the body as her main creative medium, exploring the power of images to deconstruct stereotypes and reconfigure narratives. In her most recent projects, discussed in detail in this interview, she invites us to look more closely at images, since what is represented does not always correspond to the narratives we create. Reflectively, the artist analyzes the construction of images of black women, revealing the layers of construction of subjectivity, agency, and oppression that coexist in poses and gestures. She also focuses on the connection between the representation of black women and the imaginary of Brazil, highlighting how the black female body is exploited and romanticized in a similar way to the territory itself.
Val Souza
Val Souza
Val Souza
I would like to begin our interview by recounting your photography trajectory. You often say that your relationship with photography goes back a long way because your mother used to create albums for you and your sister and frequently narrate your lives based on these images. How do you perceive the act of narrating your own story, as it was constructed in your family? I ask this, especially in a context in which many social groups do not have access to an image of themselves, as is the case with black women themselves.
There is something very important and very beautiful, not only in my mother but in all people who have family albums as a record, as a real and radical document of another possibility of life. Even though my work involves photography, I am not a photographer. If you ask me about the technical aspects of photography, I don't know how to answer, but I am very interested in images, and photography is a way of thinking about images. And, through family albums, thinking about the radical nature of images of black people. We live in a context of violence against these people, which presents them as objects and as violent. When we look at family albums, we can see other layers, and that interests me a lot.
I don't want to solve any image, I don't want to take an image from the 19th century that everyone says is violent and say: now I put an image of my own next to it, an image of women's empowerment, and we've solved the problem. Quite the opposite, I want
Gostaria de iniciar nossa entrevista retomando a sua trajetória na fotografia. Você costuma falar que a sua relação com a fotografia é antiga, pois a sua mãe costumava criar álbuns para você e a sua irmã e muitas vezes narrar a vida de vocês a partir dessas imagens. Como você percebe o gesto de narrar a própria história, assim como foi construído em sua família? Pergunto isso sobretudo em um contexto em que muitos grupos sociais não têm esse acesso a uma imagem de si, como no caso das próprias mulheres negras. Tem uma coisa muito importante, muito bonita mesmo, não só na minha mãe, mas em todas as pessoas que têm os álbuns de família como um registro, como um documento real e radical de outra possibilidade de vida. Por mais que eu tenha um trabalho que vai para a fotografia, não sou fotógrafa. Se você me perguntar coisas técnicas de fotografia, não sei te responder, mas me interesso muito por imagem, e a fotografia é uma possibilidade de pensar as imagens. E, através dos álbuns de família, pensar a radicalidade das imagens de pessoas negras. A gente tem um contexto de violência com essas pessoas, que coloca elas como objeto e como violentas. Quando olhamos para os álbuns de família, conseguimos ver outras camadas, e isso me interessa muito. Não quero resolver nenhuma imagem, não quero pegar uma imagem do século XIX que todo mundo diz que é violenta e falar: agora coloquei uma imagem de minha autoria ao lado, uma imagem de empoderamento da mulher, e resolvemos a questão. Muito pelo contrário,
I am very interested in images, and photography is a way of thinking about images. And, through family albums, thinking about the radical nature of images of black people. We live in a context of violence against these people, which presents them as objects and as violent.
When we look at family albums, we can see other layers, and that interests me a lot.
Me interesso muito por imagem, e a fotografia é uma possibilidade de pensar as imagens. E, através dos álbuns de família, pensar a radicalidade das imagens de pessoas negras. A gente tem um contexto de violência com essas pessoas, que coloca elas como objeto e como violentas.
Quando olhamos para os álbuns de família, conseguimos ver outras camadas, e isso me interessa muito.
to try to find more tensions and layers of stress between these two images than actually superimposing them. Images have to circulate, and for them to circulate freely, it is essential, at least on my part, that we give them more possibilities for interpretation. That's why, for me, looking at 19th-century images and saying: “these images are violent”, is a way of boxing them back into a cycle that prevents them from living and having that freedom. From this perspective, albums are a space of freedom and life, especially for black people. That's because there we find situations of happiness, love, what we can call empowerment, and situations of vulnerability.
This opportunity that my mother had and still has today, to talk about these images that she recorded and collected of me and my sister, is fundamental for me to think about the images in these albums, and to understand how I have thought about the images of black women. Perhaps my mother did something so profound and important that it was to give me another vision of these images and that is why I may be able to look at these images from the perspective of beauty, love, and sensitivity.
I believe that my mother did not create this family album with full racial awareness but in the sense of telling us: “Maybe they will say many things about you, but what I want you to remember is this here”. For me, a self-managed perspective of oneself is import-
quero tentar achar mais tensões e camadas de estresse entre essas duas imagens do que de fato sobrepô-las. As imagens têm que circular, e para que elas circulem com liberdade, é imprescindível, pelo menos da minha parte, que a gente dê mais possibilidade de interpretação para elas. Por isso que pra mim, olhar para as imagens do século XIX e falar: “essas imagens são violentas”, é uma forma de encaixotar elas de novo em um ciclo que as impede de viver e de ter essa liberdade. Nessa perspectiva, os álbuns são um espaço de liberdade e vida, em especial para as pessoas negras. Isso porque lá a gente encontra situações de felicidade, de amor, daquilo que a gente pode chamar de empoderamento, e situações de vulnerabilidade. Essa possibilidade que a minha mãe teve e tem até hoje, de falar sobre essas imagens que ela registrou e colecionou minha e da minha irmã, é fundamental para eu pensar as imagens desses álbuns, e para entender como tenho pensado as imagens de mulheres negras. Talvez minha mãe tenha feito algo tão profundo e importante que foi me dar outra visão dessas imagens e por isso talvez eu consiga olhar essas imagens a partir da beleza, do amor, da sensibilidade.
Acredito que minha mãe não criou esse álbum familiar com uma plena consciência racial, mas no sentido de nos falar: “talvez vão dizer muitas coisas de vocês, mas o que eu quero que vocês lembrem é disso aqui”. Para mim é importante uma perspectiva auto-agenciada de si mesmo a partir de um espelho que faz parte do
Val Souza
ant from a mirror that is part of everyday life, that is not external. I can only admire and find black people beautiful, interesting, and intelligent because I can see this in myself and in the people I relate to, my family, and my friends, who are black people.
How did this process of perceiving yourself in the world through photographic images, since you were a child, contribute to your work as an artist coming into greater contact with the language of photography?
This is something I'm still figuring out. My mother always took a lot of photos, we had a very extensive photography practice that involved not only taking photos but also developing them. I know many narratives say black people didn't have money for development and everything else, but it was an important thing for my mother – it's not that we were rich, I want to make that very clear. Seeing myself in photographs, and to a certain extent, photographing myself was always very common. I grew up without looking at these things and today, understanding myself as an artist, I look back and think that maybe this helped. I'm comfortable with my image, but I thought everyone was. I thought all women, all black women, were comfortable with having their photos taken. I photograph myself a lot.
Understanding that this is who I am makes me very comfortable, and very happy with my image. Some people will love me and some will hate me simply because of who I am. What I'm saying now, some people will be super supportive and think it's cool, and some will... And that's okay, I don't need everyone to like me, but you need to respect me. I don't need to be your friend, but we need to respect each other. I know who I am and knowing who I am, I set very clear limits so that you respect me. And if, from this relationship of mutual respect, it becomes something that we can call friendship, affection, and love, how cool! This has been built since I was little with the women who participated in my upbringing.
In Projeto Vênus, among so many other layers, you explore the construction of the image of black women through poses, gestures, and social constructions that are repeated. In this process, we come into
cotidiano, que não está fora. Só consigo admirar, achar pessoas negras bonitas, interessantes e inteligentes, porque consigo ver isso em mim e nas pessoas com as quais me relaciono, minha família, meus amigos, que são pessoas negras.
De que maneira esse processo de, desde criança se perceber no mundo a partir das imagens fotográficas contribuiu, mais tarde, para que seu trabalho enquanto artista entrasse em maior contato com a linguagem fotográfica?
Isso é uma coisa que ainda estou entendendo. Minha mãe sempre fotografou muito, a gente tinha uma prática de fotografia muito grande que não era só fotografar, mas também revelar. Sei que existem muitas narrativas de que as pessoas negras não tinham dinheiro para revelação e tudo mais, mas era uma coisa importante para a minha mãe – não é que a gente era rico, quero deixar isso bem evidente. Me ver nas fotografias, e até um certo ponto, me fotografar, sempre foi muito comum. Cresci sem olhar para essas coisas e hoje, me entendendo como artista, olho para trás e penso que talvez isso tenha colaborado. Tenho tranquilidade com a minha imagem, mas achava que todo mundo tinha. Achava que todas as mulheres, todas as mulheres negras, estavam tranquilas em se fotografar. Eu me fotografo muito.
Entender que é isso que eu sou, me deixa muito tranquila, muito feliz com a minha imagem. Existem pessoas que vão me amar e existem as que vão me odiar simplesmente pelo fato de eu ser quem eu sou. Inclusive, isso que estou dizendo agora, tem pessoas que vão super apoiar, achar massa e tem as que vão... E está tudo bem, não preciso que todo mundo goste de mim, mas você precisa me respeitar. Eu não preciso ser sua amiga, mas a gente precisa se respeitar. Sei quem eu sou e sabendo quem eu sou, coloco limites muito evidentes para que você me respeite. E se, dessa relação de respeito mútuo, isso se tornar algo que a gente possa chamar de amizade, de carinho, de afeto, que massa! Isso vem sendo construído desde pequena com as mulheres que participaram da minha criação.
Em Projeto Vênus, dentre tantas outras camadas, você explora a construção da imagem das mulheres negras através das poses, gestos e construções sociais que se repetem. Nesse processo entramos em contato
contact with an imaginary that evokes unequal power relations, but that at the same time reveals the agency of the women (self)portrayed and represented. Could you share a little more about how this duality appears and is problematized in your work?
I'm glad you're interested in this. First, I think we don't discuss images in Brazil. I'm talking about Brazil because I'm Brazilian and I'm here. I realize that we're still at a very shallow level of discussion. I say this as a researcher, and this is a criticism I make to people who research images. We have a place that is very violent, which is about trying to resolve images that are difficult for us and that we can't deal with. We need to be calmer. Do you know what some theorists call guilt? It seems like we always have to be okay, and I don't think so. My work happens precisely because of great discomfort that starts with the question: why are you calling this image violent?
I'll try to describe here what I'm saying when I say that in Brazil people are at a very shallow level of discussion about images. In some courses, lectures, and classes, I take a photograph from the 19th century and ask people to tell me what's in that image. People may say that the image is a colonial product, that the woman didn't want to be there, that she was sexualized, but that's not what I asked for. We need to reflect, first, on our inability to think about the image. Second, and not necessarily first and second, in chronological order. Second, our inability to think about images of black people. We always have to put these images in a bubble of imprisonment. The image of Iza is one of empowerment because she's hot, but an image from the 19th century, which even in the dimension of the pose and the gesture, is very similar, is an image of violence? It is very worrying that as researchers and artists who deal with images, we are unable to describe them. We need to think about the image and its imperceptible impressions. These images are not resolved simply by the narrative, by creating a narrative for them and they are resolved. How can description help to bring more layers that make us think about the power of self-agency for these women?
If we take, for example, the images of those socalled Bahian women, who are matriarchs in Candomblé, we see that in many there is a specific num-
com um imaginário que evoca relações de poder desiguais, mas que ao mesmo tempo revelam a agência das mulheres (auto) retratadas e representadas. Poderia compartilhar um pouco mais sobre como essa dualidade aparece e é problematizada no seu trabalho? Fico feliz que vocês tenham se interessado por isso. Primeiro, acho que a gente não discute imagem no Brasil, falo do Brasil porque sou brasileira e estou aqui. Percebo que ainda estamos em uma camada muito rasa de discussão. Digo isso sendo pesquisadora, essa é uma crítica que faço para as pessoas que pesquisam imagens. Temos um lugar que é muito violento, que é sobre querer resolver as imagens que são difíceis para nós e com as quais não conseguimos lidar. Temos que ter mais tranquilidade. Sabe aquilo que alguns teóricos chamam de culpa? Parece que a gente tem que sempre ficar bem, e eu não acho. Meu trabalho acontece justamente por um incômodo muito grande que parte da questão: por que vocês estão chamando essa imagem de violenta? Vou tentar descrever aqui o que estou dizendo quando digo que no Brasil as pessoas estão em uma camada muito rasa de discussão da imagem. Em alguns cursos, palestras e aulas, pego uma fotografia do século XIX peço que me contem o que tem naquela imagem. As pessoas podem falar que a imagem é um produto colonial, que a mulher não queria estar ali, que ela foi sexualizada, mas não foi isso o que pedi. Precisamos refletir, primeiro, na nossa impossibilidade de pensar a imagem. Segundo, e não necessariamente primeiro e segundo, como uma ordem cronológica. Segundo, a nossa impossibilidade de pensar as imagens de pessoas negras. Sempre temos que colocar essas imagens em uma redoma de aprisionamento. A imagem da Iza [cantora brasileira] é de empoderamento porque ela é gostosona, mas uma imagem do século XIX, que inclusive na dimensão da pose, do gesto, é muito parecida, é uma imagem de violência? É muito preocupante que enquanto pesquisadores e artistas que lidam com imagem, não conseguimos descrevê-las. A gente precisa pensar a imagem e suas impressões imperceptíveis. Essas imagens não se resolvem apenas pela narrativa, em criar uma narrativa para elas e elas estarem resolvidas. De que maneira a descrição pode ajudar a trazer mais camadas que fazem a gente pensar na potência de uma auto agência para essas mulheres?
Val Souza
It is important for us to look at these layers, it is not enough to say that the image is violent, or to place devices on it, making it exist in another place, such as coloring, putting flowers, a lot of things that people do. For me, these gestures, in the same way that we say that this image is violent, can be a way of perpetuating this violence.
ber of bracelets on the right side and another on the left side. There are, for example, specific numbers of turban turns that are made. All of this is a possibility of thinking and looking at the image. But, if I resolve this image by simply saying that it is violent, I lose the didactic chance of knowing more about this period and these people. We stay in a shallow layer, which could be, for example, wanting to know this woman's name. Knowing the name is important, but it tells you: I exist. Because she placed herself there, in an eternity of photography. How do I just ignore this? There is a possibility of agency that continues every time I look at this image, that someone draws on this image. It is important for us to look at these layers, it is not enough to say that the image is violent, or to place devices on it, making it exist in another place, such as coloring, putting flowers, a lot of things that people do. For me, these gestures, in the same way that we say that this image is violent, can be a way of perpetuating this violence. As an artist, you can decorate, but we cannot treat these ornaments as documents. Now that I colored this image will it be a document? No, it was a document, it already existed when it was in black and white, when the woman had her chest exposed. One thing that bothers me a lot is people putting jackets on black women who have their chests exposed. There are many images that I cannot handle, for example, those of massacres. These are images that I can't look at, because they are very difficult for me.
Se pegarmos, por exemplo, as imagens daquelas ditas baianas, mas que são matriarcas no candomblé, vemos que em muitas existe um número específico de braceletes do lado direito e outro do lado esquerdo. Existem, por exemplo, números específicos de voltas de turbante que são dadas. Tudo isso é uma possibilidade de pensar e olhar para a imagem. Mas, se resolvo essa imagem falando apenas que ela é violenta, perco a chance didática de saber mais sobre esse período e essas pessoas. A gente fica numa camada rasa, que pode ser, por exemplo, querer saber o nome dessa mulher. Saber o nome é importante, mas ela está te dizendo: eu existo. Porque ela se colocou ali, em uma eternidade da fotografia. Como é que simplesmente ignoro isso? Existe uma possibilidade de agência que continua todas as vezes que olho para essa imagem, que alguém recorre a essa imagem. É importante a gente olhar para essas camadas, não basta dizer que a imagem é violenta, ou colocar aparatos nela, fazendo com que passe a existir em outro lugar, como por exemplo, colorir, colocar flores, um tanto de coisas que as pessoas fazem. Para mim, esses gestos, do mesmo jeito que a gente fala que essa imagem é violenta, podem ser uma forma de perpetuarmos essa violência. Enquanto artista você pode ornamentar, mas não podemos tratar esses ornamentos como documentos. Agora que eu colori essa imagem ela será um documento? Não, ela era um documento, ela já existia quando era em preto e branco, quando a mulher estava com o peito de fora. Uma coisa que me incomoda muito é as pessoas colocarem um jalequinho nas mulheres negras que estão
But I think there is also a place of modesty, related to images like Olympia. When we see Olympia's painting, what seems most shocking is the white female nude, when in fact there is a black woman behind, enslaved.
That's why the nude and nudity relationships between a black body and a white body are totally different. At some point, they may cross paths, but they walk in different places. Black women have always been looked at naked, the first relationship that a man, or even a woman, can have with nudity and, with quotes and many quotes, pornography, is through history books where these women are naked. In what sense is nudity shocking? What nudity is this that shocks? These are some things that, in the first dimension of the image, we have not yet been able to reach.
We are still recovering names, which is important, but we also need to open new paths. I'm not interested in naming the images, because that seems to solve the problem. I'm interested in knowing about the pose, the crossed arm, and the look that's straight into the camera. The relationship between portrayed and portrayed is a photography dilemma and we don't discuss it. We are working with photography and images, we look at photographs from the 19th century and simply ignore the big question that is the relationship between photographer and photographed. I want to be here in language, think about language, and have
com o peito de fora. Existem muitas imagens que não consigo dar conta, por exemplo, as de massacres. São imagens que não consigo olhar, porque para mim são muito difíceis. Mas acho que tem um lugar também de pudor, relacionado com imagens como a Olympia [quadro do pintor Manet]. Quando a gente vê a pintura da Olympia, o que parece que mais choca é o nu feminino branco, quando na verdade tem uma mulher negra atrás, escravizada.
Por isso que as relações de nu e nudez entre um corpo negro e um corpo branco são totalmente diferentes. Em algum momento pode ser que elas se cruzem, mas caminham por lugares diferentes. As mulheres negras sempre foram olhadas nuas, a primeira relação que um homem, ou até uma mulher possam ter com a nudez e, com bem entre aspas e muitas aspas, a pornografia, é através dos livros de história onde essas mulheres estão nuas. A nudez choca em que sentido? Que nudez é essa que choca? Essas são algumas coisas que, em uma primeira dimensão da imagem, ainda não conseguimos chegar. Ainda estamos no resgate de nomes, o que é importante, mas a gente também precisa abrir vias. Não estou interessada em dar nome para as imagens, porque isso parece que resolve o problema. Me interessa saber sobre a pose, o braço cruzado, o olhar que é direto para câmera. Inclusive, a relação entre retratado e retratante é um dilema da fotografia e a gente não discute isso. Esta-
É importante a gente olhar para essas camadas, não basta dizer que a imagem é violenta, ou colocar aparatos nela, fazendo com que passe a existir em outro lugar, como por exemplo, colorir, colocar flores, um tanto de coisas que as pessoas fazem. Para mim, esses gestos, do mesmo jeito que a gente fala que essa imagem é violenta, podem ser uma forma de perpetuarmos essa violência.
Val Souza
my feet planted in language to be able to deal with this. Again, we are on a very shallow path of discussing images, but I also want to say that people have the creative possibility of doing whatever they want. But it is important to stress some things because otherwise, we repeat ways of doing things that we criticize. We said that the white man couldn't have photographed the black woman, but we could put some clothes on her. How are we treating this image? What things haven't we discovered yet? It seems like we are on repeat and saying: wow, how we are doing new things! But we are not doing anything new. I want to know about other things.
One issue present in Projeto Vênus is the relationship between erotic and pornographic. Could you share this reflection with us and how it has developed in your research?
My basis for thinking about erotic and pornographic comes from reading the writings of black women, especially Audre Lord's text, “The Use of the Erotic as Power”. For me, we should read this text at least once in our lives. She says that there is a very striking difference between erotic and pornographic. The body that is used is a pornographic body. However, when this body understands the intense possibility of
mos trabalhando com fotografia e com imagem, olhamos para as fotografias do século XIX e simplesmente ignoramos a grande questão que é a relação entre fotógrafo e fotografado. Quero estar aqui na linguagem, pensar a linguagem e estar com meus pés fincados na linguagem para poder tratar isso. De novo, estamos em um caminho muito raso de discussão das imagens, mas também quero dizer que as pessoas têm a possibilidade criativa de fazer o que quiserem. Mas é importante tensionar algumas coisas, porque senão repetimos maneiras de fazer que criticamos. Falamos que o homem branco não poderia ter fotografado a mulher negra, mas podemos colocar uma roupinha nela. De que maneira a gente está tratando essa imagem? Que coisas ainda não descobrimos? Parece que estamos em uma repetição e falando: nossa, como a gente está fazendo coisas novas!, mas não estamos fazendo nada novo. Quero saber sobre outras coisas.
Uma questão presente em Projeto Vênus é a relação entre erótico e pornográfico. Poderia compartilhar conosco essa reflexão e como ela tem se desenvolvido nas suas pesquisas?
A minha base pra pensar erótico e pornográfico vem das leituras de escritos de mulheres negras, em especial o texto da Audre Lord, que é “O uso do erótico como poder”. Pra mim a gente tinha que ler esse texto
If I could define colonial action and the colonial situation, I would say that the map that can define this is the body of the black woman. The description and narrative of our topographic territory and the body of the black woman are similar. We describe the black woman and the indigenous woman as this colorful and beautiful place. That's why I need to understand that when I'm talking about the territory to be explored, I'm also talking about this body to be explored.
Se eu pudesse definir a ação colonial e a situação colonial, diria que o mapa que pode definir isso é o corpo da mulher negra. A descrição e a narrativa do nosso território topográfico e do corpo da mulher negra se parecem. Descrevemos a mulher negra e a mulher indígena como esse lugar colorido e bonito. Por isso que para mim é importante entender que quando estou falando do território a ser explorado, estou falando também desse corpo a ser explorado.
itself, it is no longer pornographic, it is erotic. For me, this made a difference, it was an explosion, what Audre does is blow my mind. I have the habit of writing in books: Thank you very much, Audre Lord, thank you. Because I think that these people are really writing for me, to remind me of things that we sometimes forget. That's why using literature by black people can't be frivolous, it can't be used to justify your work, because otherwise you commit a lot of violence. I need to understand who these women are and what they're doing. When I read Audre Lord and she says that through eroticism we establish an intimate relationship with ourselves, I think: man, maybe everything I do is erotic. The way I place myself in the world is erotic, it's a way of enjoying myself, of enjoying life, it's a way of not subjecting myself to being used. It's important for us to think about it, because sometimes we put eroticism and pornography in the same context, linked to nudity. Nudity often represents pornography, but that's not what it is. When I look at nudity activating a deviant place for that body, a place of use of that body, that's when it becomes pornography. Eroticism has to do with a pleasurable relationship. I think that the women in my life made me build an erotic relationship not only with my body but with myself and with life.
pelo menos uma vez na vida. Ela fala que existe uma diferença muito marcante entre o erótico e o pornográfico. O corpo que é usado é um corpo pornográfico. No entanto, quando esse corpo entende a possibilidade intensa de si mesmo, ele já não é pornográfico, ele é erótico. Isso para mim fez uma diferença, foi uma explosão, o que a Audre faz, é explodir a minha cabeça. Tenho o hábito de escrever nos livros: Muito obrigada, Audre Lord, muito obrigada. Porque acho que de fato essas pessoas estão escrevendo pra mim, pra me lembrar coisas que às vezes a gente esquece. Por isso que o uso da literatura de pessoas negras não pode ser uma coisa leviana, não pode ser para justificar o seu trabalho, porque senão você comete um montão de violência. Preciso entender quem são essas mulheres e o que elas estão fazendo. Quando leio a Audre Lord e ela fala que através do erótico estabelecemos uma relação íntima com nós mesmas, penso: cara, tudo que eu faço talvez seja erótico. A maneira como me coloco no mundo é uma maneira erótica, é uma maneira de prazer comigo mesma, de prazer com a vida, é uma maneira de não me sujeitar a ser usada. É importante a gente pensar, porque às vezes colocamos erotismo e pornografia no mesmo âmbito, ligados à nudez. A nudez muitas vezes representa a pornografia e não é isso. Quando olho a nudez ativando um lugar desviante para aquele corpo,
Val Souza
So it's
about understanding that an artistic investment
isn't just for the artist, but for an entire community that looks at and recognizes this work, including in its financial sphere. In my case, for example, I need that. Maybe some people don't, but I'm sure that I and some other artists need sponsorship and collaboration from institutions.
Where's the patronage, guys? Why did it end?
The way I look at life and my work is erotic. It's about intense pleasure, about wanting to do more. My work and the things I've done turn me on a lot because it's exactly what I want to do, it's my life's drive. It's different from being used for that and having a relationship that isn't about self-management.
In "Projeto Vênus" you started with the idea of producing around 200 images and soon you found yourself with over 5,000 images. More recently, in "Brasiliana", we observed the overlapping of clippings, photos, and questions. Do you see yourself as a collector? If so, which images do you most want to collect?
I realized I was a collector during the Bolsa Zum project because one day we scheduled a meeting to present where we were and I presented notebooks, and maps, and opened a suitcase with a bunch of Polaroid photographs. I also took a box with images that interested me. To carry out the project, I had to go to the IMS and spend some time in a room because I had so many images. In my house I don't have space for all of them, so I did it in a small way, in a notebook. The Zum team said: wow, you need space, don't you? (laughs) I think so, maybe (laughs). The project grew when I managed to have a temporary studio to do this. Then I realized I was a bit of a collector. I saw that I had over 7,000 selfies on my phone and I asked myself: why do I take these images? I had a lot of screenshots and on Instagram, I
um lugar de uso daquele corpo é que isso se torna pornografia. O erótico tem a ver com uma relação totalmente prazerosa. Penso que as mulheres da minha vida, me fizeram construir uma relação erótica não apenas com meu corpo, mas comigo mesma e com a vida. A maneira como olho para a vida e para o meu trabalho é erótica. É de prazer intenso, de querer fazer mais. O meu trabalho e as coisas que tenho feito me dão muito tesão porque é justamente aquilo que eu quero fazer, é a minha pulsão de vida. É diferente de ser usada por aquilo e ter alguma relação que não é de um auto agenciamento.
Em "Projeto Vênus" você iniciou com a ideia de produzir cerca de 200 imagens e logo você se percebeu com mais de 5.000 imagens. Mais recentemente, em "Brasiliana", observamos a sobreposição de recortes, fotos e questões. Você se percebe como uma colecionadora? Se sim, quais as imagens que você mais deseja colecionar?
Me percebi colecionadora durante o projeto da Bolsa Zum porque um dia marcamos uma reunião para apresentar por onde estávamos e apresentei cadernos, mapas, abri uma mala com um monte de fotografias Polaroid. Também levei uma caixa com imagens que estavam me interessando. Para a realização do projeto tive que ir para o IMS e ficar um tempo em uma sala, porque eu tinha muitas imagens. Na minha casa não tenho espaço para todas elas, fazia isso de maneira pequena, em um
had folders of black women with fashion references and they all involved the notion of blackness. There were a lot of black people in this collection. I don't even know if I'm a collector, but I'm addicted to images. They interest me a lot, and not just two-dimensional static images. I come from a performance background, so the transition from my work to photography is in the sense of creating images. I create images with performance and maybe when I go to this place of photography, or of thinking about photographic images, it's because I already have an interest that is realized in performance.
The images that still interest me are images of black people around the world because I think there is a timeless diasporic relationship. Currently, because of a project I'm doing, I've been interested in images of black ornaments, bracelets, rings, the way black people dress, and how this connects past and present. This has also made me experiment with how I would like to position myself, and images of black women still interest me a lot in terms of their possibility and impossibility of self-agency.
I also want to know more about postcards of black people, which is one of the things I have been developing since the Bolsa Zum project. We have two major landmarks in postcards of black people. Here in Brazil, we have postcards of Bahian women, of black people, of black types, as conceived in the 19th cen-
caderno. A equipe da Zum falou: nossa, você precisa de espaço, né? (risos) Acho que sim, talvez (risos). O projeto cresceu quando consegui ter um ateliê temporário para fazer isso. Então me percebi um pouco colecionadora, vi que no meu celular tinha mais de 7000 selfies e me perguntei: por que faço essas imagens? Eu tinha muita coisa de captura de tela e no Instagram tinha pastas de mulheres negras com referências de moda e todas elas passavam pela noção de negrura, eram muitas pessoas negras nessa coleção. Não sei nem se sou colecionadora, mas sou viciada em imagens, elas me interessam muito, e não apenas imagens estáticas bidimensionais. Venho da performance, então a transição do meu trabalho para um trabalho fotográfico é no sentido de criação de imagens. Crio imagens com a performance e talvez quando vou pra esse lugar da fotografia, ou de pensar as imagens fotográficas, é porque já tenho um interesse que se realiza na performance.
As imagens que ainda me interessam são imagens de pessoas negras pelo mundo, porque acho que existe uma relação diaspórica atemporal. Atualmente, por conta de um trabalho que estou realizando, tenho me interessado por imagens de ornamentos negros, pulseiras, anéis, o jeito de vestir da negrura e como é que isso conecta passado e presente. Isso também tem me feito experimentar de que jeito eu gostaria de me colocar, e as imagens de mulheres negras ainda me in-
Então é entender que um investimento artístico não é só do artista, mas é de uma comunidade toda que olha e reconhece esse trabalho, inclusive na sua camada financeira. No meu caso, por exemplo, eu preciso disso. Talvez algumas pessoas não, mas tenho certeza que eu e alguns outros artistas precisam de apadrinhamento e da colaboração de instituições.
Cadê o mecenato, gente? Por que ele acabou?
tury, and in the United States, a series of postcards of lynchings. These images show people being lynched and I am very interested in understanding what was written on these cards. In some of the lynching cards that I have seen, there were descriptions like: “I am this person who is on the right side, below the body”. I also wanted to know what is in these cards where Bahian women appear, there is a relationship of layers that I am interested in thinking about, related not only to black people but also to what others say about these people. Currently, within the Bolsa Pampulha, I have been developing research on the idea of self-description as what I know about myself or what people say about me, also including how others see or “unsee” me.
In Brasilianas, how does the relationship between the representation of black women and the construction of an imaginary of Brazil?
If I could define colonial action and the colonial situation, I would say that the map that can define this is the body of the black woman. The description and narrative of our topographic territory and the body of the black woman are similar. We describe the black woman and the indigenous woman as this colorful and beautiful place. That's why I need to understand that when I'm talking about the territory to be explored, I'm also talking about this body to be explored.
Brasilianas is a desire to bring these two things together. Because the Macaw is also this bare-breasted woman. This headdress is also the hips of these women. And if we stop to think about some strategies of the Ministry of Tourism itself some time ago, between the 80s and 90s, on postcards of Brazil, the image of Sugarloaf Mountain was a black woman sunbathing from behind. The butt was Sugarloaf Mountain.
At the same time that we complain that people who come to visit Brazil are looking for sexual exploitation, the body, we also sell that, and that interests me. Staying in that place of “Oh, I’m not that”. Guys, this can open a lot of doors, right? I think it has a bit to do with the relationship between eroticism and pornography. It’s not a pornographic relationship that happens when you understand the game you’re playing, it’s an erotic relationship, also because you can handle some things.
teressam muito na sua possibilidade e impossibilidade de auto-agenciamento.
Também estou querendo saber mais sobre cartões postais de pessoas negras, isso é uma das coisas que venho desenvolvendo desde o projeto da Bolsa Zum. Temos dois grandes marcos de cartões postais de pessoas negras. Aqui no Brasil temos os cartões postais de baianas, de pessoas negras, de tipos negros, como pensados no século XIX, e nos Estados Unidos uma série de cartões postais de linchamento. Nessas imagens aparecem pessoas sendo linchadas e estou muito interessada em entender o que vinha escrito nesses cartões. Em alguns cartões sobre linchamento que eu já vi, tinha descrições como: “sou essa pessoa que está do lado direito, embaixo do corpo”. Também queria saber o que vem nesses cartões onde aparecem as baianas, tem uma relação de camadas que me interessa pensar relacionada não apenas às pessoas negras, mas o que os outros dizem sobre essas pessoas.
Atualmente, dentro da Bolsa Pampulha, tenho desenvolvido uma pesquisa sobre a ideia de auto descrição como aquilo que eu sei sobre mim ou que dizem sobre mim, também inclui como outro me vê ou me “desvê”.
Em Brasilianas, de que maneira a relação da representação imagética da mulher negra se conecta com a construção de um imaginário de Brasil?
Se eu pudesse definir a ação colonial e a situação colonial, diria que o mapa que pode definir isso é o corpo da mulher negra. A descrição e a narrativa do nosso território topográfico e do corpo da mulher negra se parecem. Descrevemos a mulher negra e a mulher indígena como esse lugar colorido e bonito. Por isso que para mim é importante entender que quando estou falando do território a ser explorado, estou falando também desse corpo a ser explorado.
Brasilianas é uma vontade de aproximar essas duas coisas. Porque a Arara também é essa mulher de peito nu. Esse cocar é também as ancas dessas mulheres. E se a gente parar para pensar, em algumas estratégias do próprio Ministério do Turismo há algum tempo atrás, entre os anos 80 e 90, nos cartões postais do Brasil, a imagem do Pão de Açúcar era uma mulher negra tomando sol de costas. A bundinha era o Pão de Açúcar. Ao mesmo tempo que reclamamos que as pessoas que vêm visitar o Brasil procuram a exploração sexual,
In Brasilianas, specifically, I wanted to touch on some things that interested me in relation to these geographical images, which is why I also picked up photography and history books about Brazil. We have a lot of images and I want to touch on the geographical relationship of this space, what they say and what they show about this space, and build parallels. It’s a work that I like, but that doesn’t get much circulation. Guys, whoever reads this interview, please let’s get Brasilianas circulated! I’m happy because of the work I do, if they weren’t mine, I would like them to exist. But Brasilianas is still in a very early stage. I wanted, for example, to do an expedition in Europe and find books that talk about Brazil.
As a multimedia artist, you move between languages and cross borders. What is the place of photography in your performance work and what is the place of performance in your work focused on photography?
This was something I started thinking about after I did a piece called Can You See It? But many people know it as Periguete, because initially what I had in that work were photographic records of what I did. I thought, so much more happens there, it's not possible that you can only take a picture of me shaking my hips. What happened was that I started repeating to the photographers who did these records and saying: “I don't want you to photograph me, if you don't have any pictures of me, that's fine, but I want you to capture people's reactions.” In this sense, I began to understand that photography itself was the performance, not the record, but the performance itself. Photography should be treated as a performance, detached from the record and with its own life within the work, this own life has to do with the relationship that the performance has for me.
How does performance work for photography? For me, it has a bit to do with imagery and how the image is realized for me. I am in the process of creating a new performance and I already have the image in my head, it already exists photographically. My performances are very much based on images, the two things converse, but they move forward autonomously. For me, photography, or the way I have thought about the things I have done in photography, has autonomy and is different from the performance itself, but the performance has a reference in the images and in
o corpo, a gente também vende isso, e isso me interessa. Ficar nesse lugar de “Ah, eu não sou isso”. Gente, isso pode abrir muitas portas inclusive, né? Acho que tem um pouco a ver com relação do erótico e do pornográfico. Não é uma relação pornográfica que se dá quando você entende o jogo que se coloca, é uma relação erótica, inclusive porque você pode manejar algumas coisas. Em Brasilianas, especificamente, queria friccionar algumas coisas que me interessavam em relação a essas imagens geográficas, por isso que também pego livros de fotografia e de história do Brasil. A gente tem muitas imagens e eu quero friccionar a relação geográfica desse espaço, o que dizem e o que mostram sobre esse espaço, e construir paralelos. É um trabalho que gosto muito, mas que roda pouco. Gente, quem ler essa entrevista, por favor, bora fazer Brasilianas rodar! Tenho uma felicidade que é o fato de que os trabalhos que realizo, se não fossem meus, eu gostaria que existissem. Mas Brasilianas ainda está em uma fase muito inicial. Eu queria, por exemplo, fazer uma expedição na Europa e achar livros que falem sobre o Brasil. Enquanto artista multimídia você transita entre linguagens e atravessa fronteiras. Qual o lugar da fotografia nos seus trabalhos de performance e qual o lugar da performance em seus trabalhos voltados para a fotografia? Isso foi uma coisa que comecei a pensar depois que fiz um trabalho que se chama Can You see it? Mas que muita gente conhece como Periguete, porque inicialmente o que tinha nesse trabalho eram registros fotográficos do que eu fazia. Eu pensava, acontece tanto mais coisa ali, não é possível que vocês só consigam tirar uma foto minha rebolando. O que aconteceu foi que comecei a repetir os fotógrafos que faziam esses registros e falar: “não quero que você me fotografe, se não tiver fotos minhas, está tudo certo, mas quero que você pegue a reação das pessoas”. Nesse sentido, comecei a entender que a própria fotografia era a performance, não o registro, mas a própria performance. A fotografia deve ser tratada como uma performance, desvinculada do registro e com vida própria dentro do trabalho, essa vida própria tem a ver com a relação que a performance tem para mim. Como é que a performance se realiza para fotografia? Para mim, tem a ver um pouco com o pensamento imagético e como a imagem se realiza para mim. Estou no processo de elaboração de uma performance nova e já tenho a imagem na minha cabeça, ela já existe fotograficamente As minhas performances partem muito de
Val Souza
Val Souza
the photographs.
It's really cool because this question came to me when I saw the work you mentioned. It's a work I really like, it's extremely image-based. Initially, there was no record, it was the event. Whoever saw it, saw it, whoever didn't... Over time I thought it would be interesting to have some images not only to sell the work but so I could talk about it later. In the beginning, it was very much a “record”, then, when I understood that I didn't need to be in the image, it became the performance itself. There are many interesting images. In one of them, a series of men look at me, I'm in front, they're not looking at my face, but rather at my lower part, it's quite emblematic. In another photo, I'm walking down the street, a little further ahead there's a boy, he crosses paths with me and one of the shots is him looking back after I pass. I think it's important to mention that the people I've worked with and invited to work with are people I believe in and with whom I've had very important and deep conversations about authorship. I understand that no matter how much someone clicks the camera, it is still a self-portrait that I am directing. In photography, we do not discuss the issue of authorship of collaborative works, but it is important to understand that the artist who proposes it is also an author-artist.
Finally, Val. Could you share some of your ongoing projects? What have you been researching in the last few months and what are the issues that have guided your latest productions?
Right now, I'm at Bolsa Pampulha. I'm very happy to be a resident because I think things have been happening and that says a lot about my work. I'm very happy that my work happens on its own and not through collusion (laughs). And that's okay because we know it exists, everything is fine. But what I've seen is that my work reaches the places it does precisely because of the depth it has. I'm currently working on a series of photo performances that when I close my eyes I think it's going to be incredible!
I don't know how OLD will go, but the Bolsa Pampulha exhibition will open in December. Initially in Minas Gerais, so everyone is already invited. I've
imagem, as duas coisas conversam, mas caminham de forma autônoma. A fotografia para mim, ou a maneira como eu tenho pensado as coisas que tenho feito em fotografia, tem autonomia e é diferente da própria performance, mas a performance tem uma referência nas imagens e nas fotografias.
Muito bacana porque inclusive essa questão me veio vendo justamente o trabalho que você mencionou. É um trabalho que gosto muito, é extremamente imagético. Inicialmente não tinha registro, era o acontecimento. Quem viu, viu, quem não viu… Ao longo do tempo pensei que seria interessante ter algumas imagens não só para vender o trabalho, mas para que eu pudesse falar dele depois. Nos primeiros era muito “registrão”, depois, quando entendi que não precisava estar na imagem, ela se tornou a própria performance. Inclusive, tem muitas imagens interessantes. Em uma delas, uma série de homens me olha, estou na frente, eles não estão olhando para o meu rosto, mas sim para a parte de baixo, é bem emblemático. Em outra foto, estou passando na rua, um pouco mais à frente tem um menino, ele cruza comigo e um dos cliques é ele olhando para trás, depois que eu passo. Acho que é importante mencionar que as pessoas com as quais tenho trabalhado e convidado para trabalhar, são pessoas que acredito muito e com as quais tenho tido conversas muito importantes e profundas sobre autoria. Entendo que por mais que alguém clique a câmera, ainda é um autorretrato que estou dirigindo. Na fotografia a gente não discute a questão da autoria de trabalhos colaborativos, mas é importante entendermos que o artista que propõe também é um artista autor.
Para finalizar, Val. Você poderia compartilhar sobre seus projetos em andamento? O que você tem pesquisado nos últimos meses e quais são as questões que têm regido suas últimas produções?
Nesse exato momento, estou no Bolsa Pampulha. Estou muito feliz por ser uma uma residente porque acho que as coisas tem acontecido e isso diz muito sobre o meu trabalho. Estou muito feliz de que o meu trabalho acontece por si só e não por conchavos (risos). E está tudo bem, porque a gente sabe que existe, está tudo certo. Mas, o que tenho visto é que meu trabalho chega aos lugares que ele chega justamente por conta da profundeza que ele tem. Atualmente, estou traba -
been working on these issues now to continue studying Brasilianas, but I'm thinking about a series of photo performances for that. I want to continue studying Brasilianas books. I also have a postcard project. So, if you have postcards, or if you know anyone who does, get in touch! (laughs)
I've also been trying to write a little more about the things I've been thinking about. This is something I've been able to do a little, but I want to try harder. I've been revisiting my research notebooks, and the work that emerged from the research I did for Zum resulted in the project Vênus como mirada, presented at the Museu Paranaense. I have a lot of stuff, I can't stop thinking, I have 50,000 projects in my head. The only thing I'm missing is a studio, money to do them, and time. Often, because I'm in some institutions, or because my work reaches some places, people have the completely fictional impression that I'm a self-managed artist. I'm only doing some things because I'm now on Bolsa Pampulha, which is a funded residency, or because some of my projects are being held at an institution like IMS, which has the possibility of funding a period of my work. I still don't have a studio, and I feel like sometimes it's missing out because my work could grow and go to other places. Right here at Bolsa Pampulha, I'm developing a research project on textiles, and it's only happening because I now have a space. So it's about understanding that an artistic investment isn't just for the artist, but for an entire community that looks at and recognizes this work, including in its financial sphere. In my case, for example, I need that. Maybe some people don't, but I'm sure that I and some other artists need sponsorship and collaboration from institutions. Where's the patronage, guys? Why did it end? If you want to be my patron, just get in touch with me. I have no problem with that, guys. Everything's fine. ■
lhando em uma série de fotoperformance que quando eu fecho os olhos penso que será muito incrível! Inclusive em dezembro, não sei como vai sair a OLD, mas vai ter abertura da exposição do Bolsa Pampulha. Inicialmente em Minas Gerais, então já estão todos e todas convidados. Tenho trabalhado nessas questões agora para continuar inclusive os estudos de Brasilianas, mas pensando em uma série de fotoperformance para isso. Quero muito continuar os estudos de livros da Brasilianas. Além disso, tenho o projeto dos cartões postais. Então, se você tiver cartões postais, se você conhecer quem tenha, entre em contato comigo! (risos) Também tenho tentado escrever um pouco mais sobre as coisas que tenho pensado. Isso é uma coisa que tenho conseguido pouco, mas quero tentar com mais afinco. Tenho revisitado meus cadernos de pesquisa, inclusive,, o trabalho que surgiu a partir da pesquisa que fiz para a Zum se desdobrou no projeto Vênus como mirada, apresentado no Museu Paranaense. Eu tenho bastante coisa, não paro de pensar, tenho 50000 projetos na cabeça. A única coisa que me falta é um ateliê, dinheiro para realizá-los, e tempo. Muitas vezes, por estar em algumas instituições, ou por meu trabalho chegar em alguns lugares, as pessoas têm uma impressão totalmente ficcional de que sou uma artista auto agenciada. Só estou fazendo algumas coisas porque agora estou no Bolsa Pampulha, que é uma residência financiada, ou porque algum dos meus projetos passam em uma instituição como o IMS, que tem a possibilidade de financiar um período do meu trabalho. Não tenho até hoje ateliê, sinto que às vezes faz muita falta porque o trabalho poderia crescer e ir para outros lugares. Aqui mesmo no Bolsa Pampulha, estou desenvolvendo uma pesquisa de têxteis e ela só acontece porque agora tenho um espaço. Então é entender que um investimento artístico não é só do artista, mas é de uma comunidade toda que olha e reconhece esse trabalho, inclusive na sua camada financeira. No meu caso, por exemplo, eu preciso disso. Talvez algumas pessoas não, mas tenho certeza que eu e alguns outros artistas precisam de apadrinhamento e da colaboração de instituições. Cadê o mecenato, gente? Por que ele acabou? Se você quer ser o meu mecenas, é só entrar em contato comigo. Não tenho nenhum problema com isso, gente. Está tudo certo. ■
In Óris, the traditional dichotomy between culture and nature dissolves into an egalitarian interaction between humans, rocks, clouds, and water, all living elements that coexist without hierarchies. The photographs abandon the conventional categories of portrait, landscape, and still life, proposing a new perspective, in which the human is integrated into the landscape, communicating with light and sound as an integral part of it. Created in a fantastic context, in which stories of descendants of extraterrestrial beings circulate, Óris critically articulates fable and science, leading the reader to a parallel world, in which the unknown is approached with curiosity and sensitivity. The series presents itself as a living experience, between dream and mystery, in which the body – human, mineral, and vegetal – shapes the landscape and pulsates with it.
Em Óris a dicotomia tradicional entre cultura e natureza se dissolve em uma interação igualitária entre humanos, pedras, nuvens e águas, todos elementos vivos que coexistem sem hierarquias. As fotografias abandonam as categorias convencionais de retrato, paisagem e natureza-morta, propondo um novo olhar, onde o humano se integra à paisagem, comunicando-se com luz e som como parte integral dela. Criado em um contexto fantástico, em que relatos de descendentes de seres extraterrestres circulam, Óris articula fabulação e ciência de forma crítica, conduzindo o leitor a um mundo paralelo, em que o desconhecido é abordado com curiosidade e sensibilidade. A série se apresenta como uma experiência viva, entre o sonho e o mistério, em que o corpo – humano, mineral e vegetal – conforma a paisagem e pulsa com ela.
Duo Paisagens Móveis
[BÁRBARA LISSA e MARIA VAZ]
What relationship does Óris seek to build between the crisis we are experiencing in the Anthropocene and the picturing of the landscape? How do these elements mix throughout the series?
As we live under the humanist paradigm of separation between nature and culture, which has constructed a dichotomous relationship between humans and non-humans, photography also expresses this in its more traditional view, derived from the pictorial tradition, under the categories of portrait, landscape, and still life. Constructed vertically, the “portrait” is the captured image of a human person, while the landscape, horizontally, would be in the order of nature. Still life, in turn, comprises the photography of “static and inanimate objects”, among them, fruits and flowers. To challenge this vision, in Óris, humans are part of the landscape and communicate beyond a verbal language: they emit sounds and light, just like the landscape itself. Without creating hierarchies between subjects, humans, stones, clouds, and waters are not static, they are alive, they relate to each other and merge on the horizon of Óris with equal importance.
Qual a relação que Óris busca construir entre a crise que vivemos no Antropoceno e o registro da paisagem? Como estes elementos se misturam ao longo da série?
Como vivemos sob o paradigma humanista de separação entre natureza e cultura, que construiu uma relação dicotômica entre humanos e não-humanos, a fotografia também expressa isso em seu olhar mais tradicional, derivado da tradição pictórica, sob as categorias de retrato, paisagem e natureza-morta. Construído na vertical, o “retrato” é a imagem capturada de uma pessoa humana, ao passo que a paisagem, na horizontal, estaria na ordem da natureza. A natureza morta, por sua vez, compreende a fotografia de “objetos estáticos e inanimados”, dentre eles, frutas e flores. No intuito de tensionar essa visão, em Óris, os humanos são parte da paisagem e se comunicam para além de uma linguagem verbal: emitem sons e luz, tal como a própria paisagem. Sem criar hierarquias entre os sujeitos, humanos, pedras, nuvens e águas não são estáticos, estão vivos, se relacionam e se fundem no horizonte de Óris com igual importância.
Duo Paisagens Móveis [Bárbara Lissa e Maria Vaz]
Duo Paisagens Móveis [Bárbara Lissa e Maria Vaz]
There is an atmosphere of investigation and mystery in the images in the series. How did you try to create this environment in the images and how does it translate into the photobook?
Our initial proposal was to create this series without the need for a single interpretation (from the invented name “Óris”, which can refer to a planet, a language, an identity, a dream, etc., etc.). We started with images of places photographed by us without the intention of explaining where they are, because we are more interested in what was constructed from the photographs and the unknown nature present in the series, providing a more open reading of the work. When we started the conversation about the photobook project with the publisher Selo Turvo, we told them that the idea for the project came from conversations in small towns in the interior of Minas Gerais, in which cases were reported of residents who were supposedly children of humans and extraterrestrials. From there, we thought of this archive with images and texts that testify to this reality and we included a notebook with notes about these mountain beings, who had established contact with non-human beings, sent from the stars. In this sense, Óris could be in the past, in the future, or even in a parallel universe. The book also does not intend to construct an investigation into this Other that is Óris from a perspective that would be similar to ethnographic research typical of the 19th century, but rather to seek to bear sensitive witness to this unknown reality without creating a totalizing narrative about it.
Há um clima de investigação e mistério nas imagens da série. Como vocês buscaram construir este ambiente nas imagens e como ele se traduz em formato de fotolivro?
Nossa proposta inicial partiu de construir essa série sem a necessidade de fechar uma interpretação (desde o nome inventado “Óris”, que pode dizer sobre um planeta, uma língua, uma identidade, um sonho, etc, etc). Partimos de imagens de locais fotografados por nós sem a intenção de explicar onde são, porque nos interessa mais o que foi construído a partir das fotografias e o caráter desconhecido presente na série, proporcionando uma leitura mais aberta da obra. Quando iniciamos a conversa sobre o projeto do fotolivro com a editora Selo Turvo, apresentamos para eles que a ideia do projeto surgiu de conversas em pequenas cidades no interior de Minas Gerais, em que são relatados casos de moradores que seriam filhos de humanos com extraterrestres. A partir daí pensamos esse arquivo com imagens e textos que testemunham essa realidade e incluímos um caderno com a anotação sobre esses seres da montanha, que teriam estabelecido contato com viventes não-humanos, enviados das estrelas. Nesse sentido, Óris poderia estar tanto no passado, quanto no futuro, ou mesmo em um universo paralelo. O livro também não pretende construir uma investigação sobre esse Outro que é Óris desde uma visão que se aproximaria de uma pesquisa etnográfica própria do século XIX, mas, sim, buscar testemunhar de modo sensível essa realidade desconhecida sem criar uma narrativa totalizante sobre ela.
Duo Paisagens Móveis [Bárbara Lissa e Maria Vaz]
Duo Paisagens Móveis [Bárbara Lissa e Maria Vaz]
How important is it to imagine new worlds? How does this desire manifest itself in the images of this project?
We believe in the power of imagining, as an exercise not only of simple fable-making, but also as a critical and political tool. Imagining new worlds through images allows us to broaden our discussion and understanding of our own world, enabling new ways of seeing and thinking about reality. This perspective guided the entire process of the work, and is part of our methodology, as we started with familiar images, of familiar places and people, and, through editing and assembling the work, created a dreamlike atmosphere, in which one has a vivid and intense experience, but upon waking, the experience escapes the realm of words, remaining in the body. A dream that takes place in movement and with sounds, but upon waking, only “flashes” of the dream experience remain.
Qual a importância de imaginar novos mundos? Como este desejo se faz presente nas imagens deste projeto?
Acreditamos na potência de imaginar, como exercício não apenas de fabulação, mas de fabulação crítica e política. Imaginar novos mundos através de imagens nos permite ampliar nossa discussão e compreensão sobre nosso próprio mundo, possibilitando novos modos de ver e pensar a realidade. Essa perspectiva guiou todo o processo do trabalho, sendo parte de nossa metodologia, pois partimos de imagens conhecidas, de locais e pessoas familiares, para, a partir da edição e da montagem do trabalho, construir uma atmosfera de sonho, em que se tem uma experiência viva e intensa, mas que ao acordar, a experiência foge do campo das palavras, se mantendo no corpo. Um sonho que se passa em movimento e com sons, mas que ao acordar restam apenas “flashes” da experiência onírica.
What is the role of the body in this series? How does it relate to the landscapes presented?
In Óris we do not understand the body only as the human body. All bodies (mineral, vegetal, water and human) shape the landscape and relate to each other in balance.
Although the book is in the field of visuality, we tried to bring this pulsating living matter, which is luminous and sonorous. Since it is not possible to present these sounds in the book, only to suggest them, once again, it is up to the imagination to create images with movement and sound for this body-landscape.
Qual o papel do corpo nesta série? Como ele se relaciona com as paisagens apresentadas? Em Óris não entendemos o corpo apenas como o corpo humano. Todos os corpos (mineral, vegetal, hídrico e humano) conformam a paisagem e relacionam-se em equilíbrio.
Embora o livro esteja no campo da visualidade, tentamos trazer essa matéria viva pulsante, que é luminosa e sonora. Como não é possível apresentar esses sons no livro, apenas sugerir, mais uma vez, cabe à imaginação criar imagens com movimento e som para essa paisagem-corpo.
How do imagination and a scientific approach relate to this project? How does this mix help in the construction of Óris?
The format of the book suggests a scientific approach, but not as a content that is intended to be neutral and distant. We believe that in order to do science, to ask questions, it is also important to know how to imagine. Science also needs imagination and, in Óris, this investigation takes place through a curious look – with a real interest in the other – and through sensitive experience. Hence the use of a poetic language that uses resources from a scientific approach, understanding scientific practice as the desire to know the other, recognizing opacities and considering that no knowledge is complete and decisive. There are some divergences in relation to this scientific character, commonly associated with an experience in the future. As we have previously mentioned, Óris does not have a defined time; it is not a narrative that necessarily takes place in the future, but that can be in the past or in the present. ■
Como a imaginação e a abordagem científica se relacionam neste projeto? Como essa mistura auxilia na construção de Óris?
A forma do livro sugere uma abordagem científica, mas não enquanto um conteúdo que se pretende neutro e distante. Acreditamos que para fazer ciência, para fazer perguntas, também é importante saber imaginar. A ciência também precisa de imaginação e, em Óris, essa investigação se dá por meio de um olhar curioso – com um interesse real pelo outro – e pela experiência sensível. Por isso, o uso de uma linguagem poética que utiliza recursos de uma abordagem científica, compreendendo o fazer científico como o desejo de conhecer o outro reconhecendo as opacidades e tendo em vista que nenhum conhecimento é completo e determinante. Há algumas divergências em relação a esse caráter científico, comumente mais associado a uma experiência no futuro. Como já comentamos anteriormente, Óris não tem um tempo definido, não é uma narrativa que se passa necessariamente no futuro, mas que pode estar tanto no passado, quanto no presente. ■
Duo Paisagens Móveis [Bárbara Lissa e Maria Vaz]
Em Viagem Geológica, Valentina Tong nos leva a um mergulho visual na paisagem mineral do Brasil, revelando camadas de tempo e história que formam a base do território. Inspirada pelas antigas expedições científicas, Tong parte em jornadas fotográficas por locais como o Seridó Potiguar, registrando detalhes texturais de rochas e vestígios de ocupações ancestrais que ecoam memórias profundas da formação da Terra. Suas imagens capturam a geologia não apenas como cenário, mas como um campo em disputa, onde a extração e a transformação acelerada da matéria se confrontam com a permanência silenciosa dos registros rupestres. Compondo dípticos e polípticos, a artista interrompe e reorganiza a paisagem, sugerindo uma narrativa visual que ultrapassa o registro documental e se lança como uma reflexão crítica sobre o território e suas possibilidades de reinvenção.
Viagem Geológica
Valentina Tong Geological Journey
In Geological Journey, Valentina Tong takes us on a visual dive into Brazil’s mineral landscape, revealing layers of time and history that form the territory’s foundation. Inspired by ancient scientific expeditions, Tong sets out on photographic journeys through places like the Seridó Potiguar, recording textural details of rocks and traces of ancestral occupations that echo deep memories of the Earth’s formation. Her images capture geology not only as a setting but as a field in dispute, where the extraction and accelerated transformation of matter clash with the silent permanence of rock art. Composing diptychs and polyptychs, the artist interrupts and reorganizes the landscape, suggesting a visual narrative that goes beyond documentary records and launches itself as a critical reflection on the territory and its possibilities for reinvention.
Valentina, you introduce yourself as a photographer and an architect. How do these two fields influence your vision and recording of the landscape?
Since my undergraduate degree in architecture, I have been interested in studying how photography is capable of creating new spatialities beyond the construction itself. Most of the time, it is through two-dimensionality, drawing, and photography, that architectural projects are studied. That is why field trips are so essential. The landscape leaves the plane and becomes tactile, new perceptions are formed from new displacements, scales, incidences of light, etc. I have always been equally interested in the “natural” landscape, but it was with the research Geological Journey that I understood that it is also a construction, in the sense of its formation processes, structure, matter. Just as architecture becomes a natural landscape, the natural landscape is also a construction. During my studies, we studied iconic buildings, visited Brasília, Rio de Janeiro, modern buildings, colonial buildings in the Paraíba Valley, and the history of urbanization of cities, but we talked little about the construction, materials, and extraction processes. It was through this gap that my field of research in geology emerged and how it is, in fact, the entire basis of civil construction.
Valentina, você se apresenta como fotógrafa e arquiteta. Como esses dois campos influenciam a sua visão e registro da paisagem?
Desde a graduação no curso de arquitetura tive um interesse em estudar como a fotografia é capaz de criar novas espacialidades para além da construção em si. Na maioria das vezes, é através da bidimensionalidade, do desenho e da fotografia, que se estudam os projetos de arquitetura. Por isso as saídas em campo são tão essenciais. A paisagem sai do plano e se torna tátil, novas percepções se formam a partir dos novos deslocamentos, escalas, incidências de luz, etc..Mas sempre tive igual interesse na paisagem “natural”, mas foi com a pesquisa Viagem Geológica que compreendi que ela é também construção, no sentido de seus processos de formação, estrutura, matéria. Assim como a arquitetura se torna paisagem natural a paisagem natural é também construção. Durante o curso estudamos prédios icônicos, visitamos Brasília, Rio De Janeiro, as construções modernas, as construções coloniais no Vale do Paraíba, a história da urbanização das cidades, mas pouco falamos sobre obra, sobre materiais e seus processos de extração. E foi por essa lacuna que surgiu meu campo de pesquisa na geologia e como ela é, na verdade, toda a base da construção civil.
How do science, history, and photography come together in the construction of Geological Journey?
I am very interested in the history of scientific expeditions in Brazil, especially the Geological Commissions of the Empire that launched exploration and documentation trips of the territory. I find it interesting to think about how photography was used as an instrument of identification and recording, but at the same time of colonization. The idea of the landscape was already associated with its potential to be explored, and which resources could be extracted. This long-term project of mine is also carried out through photographic expeditions, but it seeks to understand the meanings of the mineral landscape and how it has changed over time. I see it as a disputed territory, the dispute over the memory of this geological material. If on the one hand, it holds marks of the formation of the Earth itself and records of the occupation of original peoples, through archaeological sites with impressive engravings and cave paintings, on the other hand, it is the original material of all construction, which undergoes accelerated extraction processes. Everything comes from rock, from minerals to the raw materials used in civil construction. They are granites, quartzites, marbles, basalts, and limestones, used in tons to build cities and infrastructure. My research process is a work that combines the research of professionals in archaeology and geology, which opens up new fields for me and makes expeditions possible. It is very interesting to make this intersection of scientific research with the field of art and architecture, through photography.
Como ciência, história e fotografia se unem na construção de Viagem Geológica?
Me interessa muito a história das expedições científicas no Brasil, especialmente as Comissões Geológicas do Império que lançaram viagens de exploração e documentação do território. Acho interessante pensar em como a fotografia era usada como instrumento de identificação e registro mas ao mesmo tempo de colonização. A ideia da paisagem já estava associada ao seu potencial de ser explorada, e quais os recursos que poderiam ser extraídos. Esse meu projeto de longo prazo é também feita através de expedições fotográficas mas busca entender os significados da paisagem mineral e como ela foi alterada ao longo do tempo. Eu a vejo como um território em disputa, a disputa sobre a memória dessa matéria geológica. Se por um lado ela guarda marcas da própria formação da Terra e registros da ocupação de povos orginários, através de sítios arqueológicos com impressionantes gravuras e pinturas rupestres, por outro é a matéria originária de toda a construção, que sofre processos acelerados de extração. Tudo vem da rocha, desde os minérios até a matéria bruta usada na construção civil. São granitos, quartzitos, mármores, basaltos, calcários, usados em toneladas para a construção das cidades e da infra-estrutura. Meu processo de pesquisa é um trabalho que une a pesquisa de profissionais da arqueologia e da geologia, que me abrem novos campos e possibilitam as expedições. Está sendo muito interessante fazer esse cruzamento da pesquisa científica com o campo da arte e da arquitetura, através da fotografia.
This series was exhibited at the Paranaense Museum in 2024. What were the challenges of thinking about an exhibition for this project? How to transfer the scale of the photographed objects to the images on the wall?
It was the first time that I showed a broader set of Geological Journey, which included this series from Seridó Potiguar. I intended to create an installation that would show the creation of this archive, an inventory of the geological landscape in Brazil. While the photos are apparently static – they are landscapes without people, details of rocks, works of architecture, and cave paintings – I intend to show the complexity of a territory in movement. Not only the geological movement, which has a time scale that is often unattainable for our perception but also the movement of this disputed territory. In this photographic installation, movement comes through typology, comparison, rhythm, repetition, and therefore, differentiation. In this process of association, the scale of the objects is altered. I do not seek to record its scale under a documentary metric, but on the contrary, I am interested in the construction of new landscapes, intending to propose the paths it can follow, as I see them in continuous movement.
Esta série foi exposta no Museu Paranaense em 2024. Quais os desafios de pensar uma exposição para este projeto? Como transpor a escala dos objetos fotografados para as imagens em parede?
Foi a primeira vez que mostrei um conjunto mais amplo de Viagem Geológica, que incluiu essa série do Seridó Potiguar. A minha intenção era criar uma instalação que mostrasse a criação desse arquivo, de um inventário sobre a paisagem geológica no Brasil. E ao mesmo tempo em que as fotos são aparentemente estáticas – são paisagens sem pessoas, detalhes de rochas, obras de arquitetura, registros rupestres – minha intenção é mostrar a complexidade de um território em movimento. Não só o movimento geológico, que tem uma escala de tempo muitas vezes inalcançável para a nossa percepção, mas também o movimento desse território em disputa. Nessa instalação fotográfica, o movimento vem através da tipologia, da comparação, do ritmo, da repetição e portanto, da diferenciação. E nesse processo de associação, a escala dos objetos é alterada. Não procuro registrar sua escala sob uma métrica documental mas pelo contrário, me interessa a construção de novas paisagens, com o intuito de fazer uma proposição dos caminhos que ela pode seguir, pois as enxergo em contínuo movimento.
The diptychs in the Seridó Potiguar series sometimes interrupt the landscape and at other times create new spaces within it. How did you think about these associations? How important are the diptychs and polyptychs for the construction of the narrative of Geological Journey?
These are two very different moments in the creation process. There are the expeditions themselves, when I go out to photograph and I am immersed and very attentive to that landscape, observing and searching for the photograph. I use a Hasselblad and medium format film, which is very expensive in Brazil, so I take few images of each place. I chose to use a fixed 80mm lens, that is, it doesn’t have a zoom, which means that all my approaches are made by my movement. These are slow, physical processes, a bodily experience in the creation of the images. Then comes the second moment, in which I have already dissociated myself from that physical place and entered the plane of the image, which truly comes into existence when I see it in the digitalization process. Then new readings emerge, and I begin to see other relationships. The montages are my tool for constructing other possibilities for that place and I think that the interrupted landscape, as you pointed out, creates possible spaces for filling. The narrative I seek to construct is one of indications, of missing pieces, of intuitions about what that place could be like.
Os dípticos presentes na série do Seridó Potiguar por vezes interrompem a paisagem e por outras criam novos encaixes nela. Como você pensou essas associações? Qual a importância dos dípticos e polípticos para a construção da narrativa de Viagem Geológica?
São dois momentos bem diferentes da criação. Há as expedições em si, quando saio para fotografar e fico imersa e muito atenta àquela paisagem, observando e buscando a fotografia. Eu uso uma Hasselblad e filmes de médio formato, que são muito caros no Brasil, portanto faço poucas imagens de cada lugar. Escolhi usar uma lente fixa de 80mm, ou seja, não tem zoom, o que significa que todas as minhas aproximações são feitas pelo meu deslocamento. São processos demorados, físicos, uma experiência corporal na criação das imagens. Aí entra o segundo momento, em que já me dissociei daquele lugar físico e entro para o plano da imagem, que passa a existir de fato quando a vejo no processo de digitalização. Então surgem novas leituras, começo a enxergar outras relações. As montagens são a minha ferramenta de construir outras possibilidades para aquele lugar e acho que a paisagem interrompida, como você apontou, cria espaços possíveis de preenchimento. A narrativa que busco construir é a das indicações, de pedaços faltantes, de intuições sobre como aquele lugar pode ser.
How does working on exhibitions by other artists – such as Claudia Andujar’s Yanomami Struggle - impact and influence your production and exhibition thinking?
My work as a curator has been, from the beginning, very much based on the thought of exhibition design, from the photographic printing itself, with the research of new materials and supports, to its spatialization. I have had the privilege of working with artists who have very open research concerning the spatial field of the image. Not only Claudia Andujar, who since the 1980s proposed radical audiovisual installations based on her photographic archive but also young artists who are very open in the construction of their language, such as Bárbara Wagner, Jonathas de Andrade, Sofia Borges, Rosângela Rennó, Letícia Ramos, among others. For me, there is a rich path in the process of transforming the matrices themselves, whether negative, positive, or digital, up to their form of exhibition. The thought of how this image can be presented, its scale, where and how it is printed, its context, creates new meanings. Often, images only “appear” when we see them in physical form. In my work process at the Moreira Salles Institute, we deal with thousands of images, which we first come into contact with in the form of an archive. I think it is a very rich process of collective understanding of what it means to build an archive and the transformations that occur when it leaves the private plane and comes to life through the exhibition. It is at this moment of exhibition that the archive begins to relate to what is outside of it and, therefore, to the other. My work with Geological Journey is the construction of a kind of inventory, which I am still understanding, but I see the tactile and sculptural path of materializing images as something I want to continue pursuing. ■
Como a trabalho na realização de exposições de outros artistas – como a luta Yanomami, de Claudia Andujar – impacta e influencia a sua produção e pensamento expográfico?
O meu trabalho de curadoria foi, desde o início, muito embasado no pensamento da expografia, desde a própria impressão fotográfica, com a pesquisa de novos materiais e suportes, até a sua espacialização. Tive o privilégio de trabalhar com artistas que tem uma pesquisa muito aberta em relação ao campo espacial da imagem. Não só a Claudia Andujar, que desde os anos 1980 propunha radicais instalações audiovisuais a partir de seu arquivo fotográfico, mas também jovens artistas muito abertos na construção de sua linguagem, como a Bárbara Wagner, Jonathas de Andrade, Sofia Borges, Rosângela Rennó, Letícia Ramos, entre outros. Para mim, há um rico caminho no processo de transformação das matrizes em si, sejam elas negativos, positivos ou digitais, até a sua forma de exibição. O pensamento de como essa imagem pode ser apresentada, sua escala, onde e como está impressa, seu contexto, cria novos significados. Muitas vezes, as imagens “aparecem” apenas quando as vemos na forma física. No meu processo de trabalho no Instituto Moreira Salles, lidamos com milhares de imagens, que entramos em contato pela primeira vez na forma de arquivo. E penso que é um processo muito rico de compreensão coletiva do que significa a construção de um arquivo e as transformações que ocorrem quando ele sai do plano privado e ganha vida através da exposição. É nesse momento da exibição que o arquivo passa a se relacionar com que está fora dele e, portanto, com o outro. O meu trabalho com a Viagem Geológica é a construção de uma espécie de inventário, que ainda estou entendendo, mas vejo o caminho tátil e escultórico da materialização das imagens como algo que quero continuar buscando. ■
Valentina Tong
Dariane Martiól Epílogo/Epilogue
Há um certo estranhamento, um desconforto, nas imagens criadas por Dariane em Autorretrato infamiliar. A artista posa sempre ao lado de sua mãe mas, ao invés de uma idealizada ternura materna ou talvez uma reflexão sobre algum contraste geracional, há sempre um fundo de violência na ação performada diante da câmera. Olhares desencontrados, gestos rígidos ou frios se misturam ao cenário íntimo da casa materna. Há uma potência no desejo da artista de tornar a mãe cúmplice em algo que não costuma atravessar este tipo de relação e um inevitável carinho materno ao aceitar construir essas pequenas violências junto da filha. Apesar do desconforto que causa, essa fotografia tem algo de hipnótico em suas camadas de sentido, não há como decifrá-la rapidamente, ela parece pedir mais tempo, puxando o expectador para um mergulho em cada um de seus detalhes.
There is a certain strangeness, a discomfort, in the images created by Dariane in Autorretrato infamiliar. The artist always poses next to her mother, but instead of an idealized maternal tenderness or perhaps a reflection on some generational contrast, there is always a background of violence in the action performed in front of the camera. Mismatched glances, rigid or cold gestures blend into the intimate setting of the mother’s home. There is a power in the artist’s desire to make the mother an accomplice in something that this type of relationship does not usually entail and an inevitable maternal affection in accepting to construct these small acts of violence with her daughter. Despite the discomfort it causes, this photograph has something hypnotic in its layers of meaning; there is no way to decipher it quickly; it seems to ask for more time, drawing the viewer into a dive into each of its details.
veja o trabalho na íntegra/see the work in full https://www.darianemartiol.com/
Resenhas/Reviews
por/by VITOR CASEMIRO
Bruno Claro [Há Boatos]
https://brunocla.ro/matuto
Matuto é um diário visual que reúne sete anos de fotografias produzidas pelo artista Bruno Claro. Utilizando a câmera de um celular, Bruno registrou seu cotidiano durante o período em que viveu em Portugal. Com projeto gráfico assinado pelo próprio autor, o livro possui um design simples e direto, sem ornamentações, destacando a efemeridade das imagens apresentadas.
A narrativa se inicia com fotografias de uma estrada escura, vistas do interior de um carro em movimento, sugerindo a jornada pessoal do autor e convidando o leitor a seguir junto. Amigos, festas, paisagens, momentos íntimos e objetos inusitados se mesclam em uma sequência inventiva, com pares de imagens complexos e repetições ritmadas distribuídas ao longo do livro, compondo uma espécie de dança do cotidiano.
Uma imagem, em particular, chama a atenção: o que parece ser a fachada de uma loja com uma placa escrita “A Arte da Performance”. Fico me perguntando o quanto das imagens deste livro são encenações e o quanto são espontâneas. Em outra imagem, uma placa com uma luz vermelha sobre uma porta diz “No Ar”, mais uma vez sugerindo que uma performance está em andamento, como se estivéssemos em um estúdio de rádio ou cinema.
No fim, Matuto revela-se um engenhoso jogo de edição, cuidadosamente orquestrado por Bruno Claro — um misto entre diário íntimo e registro de
performance, ou talvez apenas uma forma criativa de organizar as memórias fragmentadas de um rolo de câmera de celular. /
Matuto is a visual diary that brings together seven years of photographs produced by Bruno Claro. Using a cell phone camera, Bruno recorded his daily life during the period he lived in Portugal. With a graphic design done by the author himself, the book has a simple and direct approach, without ornamentation, highlighting the ephemerality of the images presented.
The narrative begins with photographs of a dark road, seen from the inside of a moving car, suggesting the author's personal journey and inviting the reader to follow along. Friends, parties, landscapes, intimate moments, and unusual objects blend together in an inventive sequence, with complex pairs of images and rhythmic repetitions distributed throughout the book, composing a kind of dance of everyday life.
One image, in particular, draws attention: what appears to be the facade of a store with a sign that says “The Art of Performance”. I wonder how much of the images in this book are staged and how much are spontaneous. In another image, a sign with a red light above a door says “On Air,” once again suggesting that a performance is underway as if we were in a radio or movie studio.
In the end, Matuto reveals itself to be an ingenious game of editing, carefully orchestrated by Bruno Claro — a mix between an intimate diary and a performance record, or perhaps just a creative way of organizing the fragmented memories of a cell phone camera roll.
Matuto
Matuto
Há Boatos
Fotografias, edição e design / Photographs, editing, and design
Bruno Claro
140 páginas, 15 × 23 cm, wire-o; Impressão digital; tiragem de 40 cópias / 104 pages, 15x23cm, wire-o; digital printing, edition of 40 copies
VIDACOBRA
QuadradoCírculo
Fotografias / Photographs
Ivi Maiga Bugrimenko
Edição e design /
Editing and design
Lucas-K
Texto / Text
Leo Felipe
390 páginas, 16 x 21cm, brochura; impressão digital, tiragem sob demanda / 390 pages, 16 x 21cm, paperback; digital printing, print run on demand
VIDACOBRA
Ivi Maiga Bugrimenko [QuadradoCírculo]
https://www.instagram.com/quadrado.circulo
Nos últimos nove anos, a fotógrafa Ivi Maiga Bugrimenko documentou obsessivamente a vida noturna das cenas independentes de música eletrônica, punk e experimental de São Paulo. Fortemente influenciada pela fotografia japonesa do pós-guerra, Ivi utilizou diversas câmeras automáticas com flash embutido, que possibilitaram registros íntimos e espontâneos. Com edição e projeto gráfico assinados pelo artista Lucas-k, a obra apresenta centenas de fotografias monocromáticas, acompanhadas por uma carta do escritor e curador Leo Felipe.
O livro se inicia com uma epígrafe que explora a ideia de que a festa possui um papel fundamental e profundo na sociedade, indo além de mera celebração ou entretenimento.
A festa é descrita como o “grau zero da representação”, sugerindo que ela se encontra em um estado bruto, sem as camadas ou filtros de significação presentes em outros eventos culturais, funcionando como uma expressão direta e pura da coletividade. A festa é ainda vista como um “filtro do mundo”, refletindo e transformando o contexto em que está inserida, influenciando tanto as esferas políticas quanto as estéticas.
As primeiras imagens nos mostram os preparativos para uma festa, com cenas ainda em casa, de quem se prepara para sair. O ponto de vista de Ivi não é apenas de quem participa, mas também de quem produz. Muitas fotografias retratam o backstage, com estruturas de palco, camarins, mesas de som, cabos e todos os tipos de equipamentos envolvidos na produção (produzir festas requer disciplina). A métrica da edição segue a batida estroboscópica do techno, e por vezes é prolixa e repetitiva. Em alguns momentos, o projeto gráfico tenta quebrar o ritmo das imagens sangradas em página dupla propondo um jogo diferente, com bordas arredondadas ou sobreposições de imagens.
Ao final da leitura, a experiência se assemelha muito a uma rave: cansativa, mas extasiante. O livro se fecha, mas sua música continua reverberando na mente do leitor. /
For the past nine years, photographer Ivi Maiga Bugrimenko has obsessively documented the nightlife of São Paulo's independent electronic, punk, and experimental music scenes. Strongly influenced by post-war Japanese photography, Ivi used several automatic cameras with built-in flash, which allowed for intimate and spontaneous recordings. Edited and designed by artist Lucas-k, this book features hundreds of monochromatic photographs, accompanied by a letter from writer and curator Leo Felipe.
The publication begins with an epigraph that explores the idea that parties play a fundamental and profound role in society, going beyond mere celebration or entertainment.
The party is described as having “zero degrees of representation”, suggesting that it is in a raw state, without the layers or filters of meaning present in other cultural events, functioning as a direct and pure expression of the collective. The party is also seen as a “filter of the world”, reflecting and transforming the context in which it is inserted, influencing both the political and aesthetic spheres.
The first images open with preparations for a party, showing scenes at home, of those getting ready to go out. Ivi's point of view is not only of those who participate but also of those who produce. Many photographs portray the backstage, with stage structures, dressing rooms, soundboards, cables, and all types of equipment involved in the production (producing parties require discipline). The editing metric follows the strobe beat of techno and is sometimes verbose and repetitive. At times, the graphic design tries to break the rhythm of the bled-out images spread across double pages by proposing a different game, with rounded edges or overlapping images.
By the end of the reading, the experience is very similar to a rave: tiring, but ecstatic. The book ends, but its music continues to reverberate in the reader's mind.