Conversas sobre o fim do mundo

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Ninguém escapará à queda do céu


Conversas sobre o fim do mundo Fábio Tremonte e Germano Dushá

Chama a minha atenção por alguns aspectos, mas destaco a afirmação de que alguma mudança virá quando a sociedade capitalista for obrigada a tolerar formas nãocapitalistas dentro dela.

Por outro lado, se não desistimos de vez, também não tardamos em nos inclinar, cada um, neste universo absurdo... De um jeito ou de outro precisamos estar prontos para o aborrecido cotidiano e, com sorte, nos manter motivados.

“O dia em que o capitalismo for obrigado a tolerar sociedades não-capitalistas em seu interior e a reconhecer limites em sua busca por dominação, o dia em que for obrigado a reconhecer que a oferta de matéria-prima não é inesgotável, é o dia em que a mudança virá. Se há alguma esperança para o mundo, ela não vive em salas de conferências sobre mudanças climáticas ou em cidades com arranha-céus. Ela vive lá embaixo, no chão, abraçando pessoas que vão à luta todos os dias para proteger suas florestas, montanhas e rios, porque sabem que as florestas, montanhas e rios as protegem. O primeiro passo para reimaginar um mundo que deu terrivelmente errado seria cessar a aniquilação daqueles que possuem uma imaginação diferente – uma imaginação que está além, tanto do capitalismo quanto do comunismo. Uma imaginação que tem um entendimento completamente diferente sobre o que constitui a felicidade e a realização. Para ganhar esse espaço filosófico, é necessário conceder algum espaço físico para a sobrevivência daqueles que podem parecer guardiões do nosso passado, mas que podem efetivamente ser os guias para o nosso futuro.” [This changes everything, página 291, da Naomi Klein, tradução livre de Camila Pavanelli de Lorenzi, postada na sua página do Facebook]

No tom do excerto, que me parece apontar para o futuro com certa esperança – que só pode existir se ligada à sabedoria desses guardiões guias, bem embaixo, no chão –, me questiono como seria possível essa transformação vir? Nos esgueirando ou nos insurgindo? Individualmente ou em um movimento de massa?

Mas, tenho pouco esperança em relação a isso. Penso que a destruição total poderia ser um novo começo.

Outro dia, discutindo com um amigo matemático – e um dos meus interlocutores mais caros – sobre a miséria que são os passos que damos em escala coletiva, e nossa incapacidade de atingir a mínima razoabilidade nesse sentido, ele citou o modelo de segregação de Schelling, que basicamente aponta que decisões individuais, quando agregadas, podem produzir comportamentos que não são previsíveis a partir dos comportamentos individuais. Uma leitura possível seria a de que mesmo todos não estando de acordo com determinada situação, os vetores que nos agregam acabam gerando esse resultado. Ainda que a nível micro as pessoas sejam tolerantes, a nível macro, nós temos segregação.

Um mundo pós-apocalíptico, pós-capitalista, descolonizado, sem Estado e sem polícia e sem trabalho, no qual nos dedicássemos a atividades de reconstrução de maneira coletiva e horizontal. Seria um bom começo de uma nova era.

Não é ao mesmo tempo gozado e terrível isso tudo isso de pensar o fim do mundo, remoê-lo e remontá-lo de tantas formas, ao longo de toda a história da humanidade? Entre tantas tribos e nações, fica claro: esse troço, ranço metafísico incontornável, faz parte do núcleo de nosso próprio imaginário social como espécie. Impossível não pensar nesta provocação do Cioran: “O final da história? O fim do homem? É sério pensar isso? São acontecimentos longínquos que a Ansiedade - ávida de desastres iminentes – deseja a todo custo precipitar”

Mas, não podemos lidar com o que poderia ser, se estamos diariamente envoltos em um processo de individualização cada vez mais marcante. Como podemos lidar, por exemplo, com os milhares de imigrantes africanos chegando constantemente à costa européia, sendo que outros milhares perecem no meio do mar?

Que tipo de humanos somos? Que tipo de humano tem direito ao mundo? Que tipo de humano pode definir para quem é o mundo para quem não é? Por que nos arrogamos o cargo de animal-universal?

Primeiro penso no quão óbvio e desejável seria darmos novas guinadas em nossa vida coletiva. E logo me pergunto: será uma sina essa cegueira que nos conduz, em escala global, rumo a assombros, massacres, e esgotamentos de toda sorte?

De qualquer maneira, levantamos todos os dias...

Não posso deixar de citar a passagem do Deleuze que a Déborah Danowski e o Viveiros de Castro se valem para finalizar o livro “Há mundo por vir?”: “Crer no mundo é o que mais nos falta; nós perdemos completamente o mundo, fomos desapossados dele. Crer no mundo é também suscitar acontecimentos, mesmo pequenos, que escapam ao controle, ou fazer emergir novos espaçostempos, mesmo se de superfície ou volume reduzidos. [...] É em cada tentativa que se julga a capacidade de resistência, ao contrário, de submissão a um controle. É preciso criação e povo ao mesmo tempo.”

Sobre a destruição total, não poderia estar mais de acordo. Na verdade, me parece mais um direito – e pior, um dever – do que uma opção. Se não cairmos nas falácias de um discurso que alega que o mundo tem melhorado e que ser mulher, negra, trans, pobre, deficiente já foi muito mais sofrível, então saberemos que não há saída senão por fim, e nos por fim. E aí, não há cultura ou linguagem que dê conta, apenas a violência. Me vem à cabeça imediatamente o texto do Agamben, “Sobre os limites da violência”, que em seu excerto final diz: “Se no início da história da salvação e da conciliação com a morte sempre estará escrito “no princípio era o verbo”, no início de toda nova história temporal sempre se lerá “no início era a violência (...) Esse é o limite e também a insuprimível verdade da violência revolucionária. Na medida em que supera o limiar da cultura e se detém, no seu gesto, em uma zona inacessível à linguagem, a violência revolucionária afunda, por assim dizer, no Absoluto e justifica o fato de que Hegel tenha podido exprimir o caráter mais profundo da verdade através da imagem violenta de um “delírio báquico em que não há nenhum membro que não esteja ébrio”.”

A cada notícia apocalíptica, a cada esforço reacionário, a cada manifestação dessas forças externas assombrosas e infinitamente hediondas, a cada velhacaria, a cada demonstração de ódio, intolerância e truculência, a cada roubalheira – seja de recursos financeiros ou de direitos humanos (…) Cresce então uma vontade de vida, de estar presente neste mundo febril e cambaleante. Um sentimento ambíguo, entre consternação e ânimo. E aí, é claro, volto a um dos primeiros pontos que nos atinou: talvez o mais acertado seja pensar em o liquidar de uma vez por todas e pagar para ver.

Domingo | Fábio Tremonte | 18 de novembro de 2015 a 09 de janeiro de 2016 | Periscópio Arte Contemporânea |Av. Álvares Cabral, 534, Lourdes | Belo Horizonte, MG | *Frase do poster de autoria de Davi Kopenawa, Palavras indígenas, 2006 - 2010

“Quando Marcos acabou de falar, acendeu seu cachimbo, se levantou, caminhou em direção ao fundo do palco e desapareceu na escuridão. Os aplausos de milhares de mãos que se seguiram foram de despedida, de homenagem e tantas outras coisas. Depois o Subcomandante Moisés anunciou que outro companheiro teria a palavra, e aí se pôde ouvir nos alto-falantes a voz que até alguns momentos atrás havia pertencido ao Subcomandante Marcos: - Bom dia, companheiros e companheiras. Meu nome é Galeano, Subcomandante Insurgente Galeano. Alguém mais se chama Galeano aqui? E milhares de vozes: - Eu sou Galeano! Somos todos Galeano! - Ah, por isso me disseram que quando voltasse a nascer, o faria de forma coletiva. Fiquem bem. Boa viagem. Cuidem-se, cuidemos-nos. Das montanhas do sudeste mexicano, Subcomandante Insurgente Galeano. O mestre Galeano havia ressuscitado. Sua ressurreição em um ser coletivo é simplesmente a necessidade da vida de ressurgir, cada vez mais digna, dos escombros da destruição e da morte. É a justiça maior que enxerga além da morte individual para combater a destruição sistemática por meio da luta coletiva pela vida. É a esperança frente a desolação de um sistema perdido na loucura de sua própria ganância”. [https://www.oximity.com/article/Marcos-o-subcomandante-que-deixou-de-s-3]

Essa imagem é bonita demais. De um corpo individual oprimido e aniquilado regressando como corpo coletivo em vivacidade e fulgor. Poucas organizações dão conta de lidar com a dureza de suas lutas com tanta poesia e força imagética como o EZLN.

Desculpe, fui acometido por um profundo pessimismo e tédio nos últimos dias. Tolice ou não, me parece que até nos melhores dias é impossível não constatar: o curso da história é um amontoado de catástrofes, ávido em direção ao desfecho – catastrófíco – final.

Em momentos assim, tento me recuperar lembrando de duas breves frases, uma de Fernando Birri: “A utopia é como o horizonte. Caminho dois passos e ela se a afasta dois passos. Para isso existe a utopia, para que eu siga caminhando.”; a outra de Pedro Arantes: “O novo deve nascer da lenta e constante prática cotidiana daqueles que não conformam com a ordem os acontecimentos.”

Mas há mundo depois do fim do mundo?


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