Arte da capa, projeto gráfico e editoração eletrônica: Fabio Said
Imagem da capa: Cacimba do Concelho, no centro de Alcobaça, com o sobrado de Izidro Nascimento à direita e os fundos da Igreja Matriz de São Bernardo – foto provavelmente da década de 1930, reproduzida a partir de original mantido pela família de Antonio Palmeira de Medeiros, em Salvador. Imagem de fundo: ata de fundação da vila Alcobaça, em 12 de novembro de 1772, aqui reproduzida a partir de original mantido pelo Arquivo Histórico Ultramarino, de Lisboa.
Este livro não contou com financiamento de fonte pública ou institucional de natureza alguma, tendo sido totalmente financiado com recursos particulares do autor.
Não longe da foz, na margem norte, ergue-se a Vila de Alcobaça, numa branca planície arenosa, atapetada de capim rasteiro (...) Alcobaça tem cerca de duzentas casas e novecentos habitantes; a maior parte dos edifícios são cobertos de telha, e a igreja é de pedra. Faz-se aí, como em toda a costa, algum comércio de farinha de mandioca, de que se exportam anualmente, segundo se diz, perto de quarenta mil alqueires, para as principais vilas do litoral e para todos os lugares em que a referida planta não dá tão bem.
(Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied, naturalista alemão em viagem científica pelo Brasil, em 1816)
1: Primórdios (1747-1772)
João da Silva Santos e Anna Maria
A vida cotidiana dos alcobacenses antigos
Talher (Tarlé)
(Viana)
fenômeno da endogamia
Joias da arquitetura alcobacense
1 – Casarão da família Santanna
2 – Sobrado dos Trancoso
3 – Casa do coronel Garcia Jr.
4 – Prefeitura Municipal
5 – Igreja Matriz de São Bernardo
6 – Sobrado dos Vianna
7 – Casa de Heitor Muniz
8 – Casa do coronel Ismael Medeiros
9 – Sobrado do major Izidro Nascimento
10 – Cacimba do Concelho
(do Gentio)
Jerusalém Celeste (Lagoa Encantada)
Capítulo 4: O tempo dos coronéis (1888-1958)
O comércio de Alcobaça.
Alcobaça: de vila a cidade, mas ainda rural
Os coronéis e a política
Três irmãos alcobacenses na política nacional
Raul da Rocha Medeiros e a política de São Paulo
Medeiros Netto, o senador alcobacense
181
191
191
Joaquim da Rocha Medeiros e a política rural 196 Os franciscanos holandeses
Imigrantes libaneses
Mestras da educação
Geógrafo Milton Santos em Alcobaça
Jurema Penna, a atriz alcobacense
Desmembramentos territoriais
O fim de uma era...
… e o início de outra era
Documentação histórica
1772 – Fundação de Alcobaça
1847 – Situação geral da vila de Alcobaça
1955 – Discurso do dr. José Nunes da Silva 244
Apêndice
Chefes do Executivo de Alcobaça
Presidentes da Câmara de Vereadores/Conselho
Intendentes
Prefeitos
Vereadores de Alcobaça
Vigários e padres de Alcobaça
Datas importantes da história de Alcobaça
Evolução populacional de Alcobaça
Agradecimentos
Referências bibliográficas
Fontes primárias
Fontes primárias impressas
Outras fontes primárias
Fontes secundárias
Prefácio à 1ª edição
Quem é de Alcobaça tem, geralmente, uma relação de amor e ódio com a cidade durante toda a vida. Na infância, Alcobaça fica vinculada a sabores de frutas, ao vento batendo no rosto na praia, a uma sensação indescritível de liberdade, de conhecer aquelas ruas antigas como a palma da própria mão e, claro, a muitas personagens curiosas. Mas basta chegarem os primeiros sinais da adolescência para se ter a sensação de que a cidade é uma prisão que não vai nem para a frente, nem para trás, paralisada no tempo e já desistindo de gritar para que alguém a salve da irrelevância. Alguns anos mais tarde, essa mesma paralisia da cidade deixa de ser algo ruim e se transforma em algo bom, porque, afinal, nesta vida agitada e apressada, ser uma bucólica ilha de sossego é até uma virtude para uma cidade. Mas, logo em seguida, volta aquela velha sensação: “Por que Alcobaça não se desenvolve? Por que esta cidade não aproveita mais os recursos que tem? Por que a cidade não vai para a frente? Assim não dá para viver aqui”. É amor e ódio.
Para quem é de fora de Alcobaça – os “veranistas”, por exemplo –, a relação com a cidade é muito menos complicada. Pense no sujeito que saiu da imensidão das Minas Gerais, que cresceu sem sentir na pele o que é o mar. Esse sujeito chega a Alcobaça, depara-se com aquele mar escancarado, que permeia toda a extensão urbana da cidade, e não consegue escapar. É fisgado e conquistado para sempre e só lhe resta chegar a uma conclusão: “É aqui que vou construir minha casa de praia!” E quando o sujeito consegue construir a casa de praia, a família vem junto: os irmãos, os pais, os primos, os primos dos primos. E daqui a pouco Alcobaça já virou uma grande festa de mineiros, goianos, brasilienses etc. – todos apaixonados pela cidade, tão apaixonados que a paixão é transmitida de geração a geração como se fosse uma característica genética.
Alcobaça, em suma, é isso: equilibrada entre o amor-ódio dos alcobacenses e o encantamento absoluto dos veranistas. Mas a verdade é que nem uns nem outros conhecem as raízes de sua relação com a cidade – o porquê daquela sensação de paralisia no tempo, o porquê daquela verdadeira diáspora de mineiros no verão de Alcobaça. É que eles não conhecem as profundezas da história de Alcobaça.
A história de Alcobaça ficou relegada a um passado tão distante e tão obscuro que ninguém mais pensa nela – no máximo, se tem uma vaga sensação de que aquelas ruas estreitas, aqueles sobrados antigos, aqueles “causos” contados pelos nativos vieram de alguma época em que Alcobaça era “mais” do que é hoje, mas ninguém sabe exatamente como era essa época. Faltam informações objetivas que compensem a abundância de sensações subjetivas. Falta explicar mais claramente o percurso de 238 anos de existência de Alcobaça.
Este livro nasceu justamente para tentar suprir essa necessidade de informações objetivas sobre a história de Alcobaça. Sua maior ambição é contar, de forma pioneira e sistemática, a parte principal dos 238 anos de história dessa pequena cidade litorânea do extremo sul da Bahia. Não uma história anedótica, episódica ou romanceada, mas sim os detalhes do cotidiano buscados nos documentos históricos, as histórias de vida dos alcobacenses que viveram e morreram há duzentos anos, os históricos dos casarões antigos, as informações sobre a economia, a política e a sociedade de Alcobaça do século XVIII ao século XX. É uma visão bem mais nítida que as sensações subjetivas vivenciadas tanto por alcobacenses como por veranistas. E, sobretudo, é um registro geral da história da cidade que pode servir de base e ponto de partida para outros estudos mais pormenorizados que possam explicar muitos dos aspectos de Alcobaça que ainda permanecem obscuros.
O livro é dividido em quatro capítulos, dedicados a fases específicas da história de Alcobaça. A divisão – artificial e criada com o propósito de entender melhor as idas e vindas da história – teve por base acontecimentos marcantes para a própria Alcobaça. Não parece certo interpretar a história de Alcobaça com base em divisões pré-fabricadas do tipo “Alcobaça no Brasil
Colônia”, “Alcobaça no Império”, “Alcobaça na Primeira República” etc., tomando como base a história dos outros. Assim como a vida de uma pessoa se explica melhor com base no que essa pessoa fez, a história de Alcobaça é explicada com base no que ocorreu na cidade em seus 238 anos.
O primeiro capítulo cobre os anos de 1747 a 1772 e discorre sobre os primórdios de Alcobaça, quando o local ainda não tinha identidade reconhecida oficialmente. São apresentados os moradores pioneiros, alguns aspectos históricos da região, as teorias históricas sobre a origem do nome Alcobaça, os eventos que levaram à fundação de Alcobaça como vila e o perfil do santo escolhido como padroeiro da vila.
O segundo capítulo focaliza os anos de 1773 a 1815, que são as primeiras quatro décadas após a fundação da vila de Alcobaça. Nesse capítulo sobre os anos de formação do povo alcobacense, o leitor entrará num mundo povoado por capitães e alferes e conhecerá os patriarcas que deram origem à maior parte da população de Alcobaça.
O terceiro capítulo trata do apogeu da sociedade patriarcal em Alcobaça, quando os “antigos clãs” floresceram e passaram a dominar a vida política e econômica da cidade, mais ou menos entre 1816 e 1887. Nesse capítulo pode-se ler um relato sobre a visita do príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied, conhecer as origens de várias famílias fundadas em Alcobaça há cerca de 150 anos, analisar o fenômeno da endogamia (casamentos entre primos) na Alcobaça do século XIX, viajar pelas fazendas antigas e casarões da elite alcobacense de outrora, informar-se sobre a história da Câmara Municipal de Alcobaça e da comarca de Alcobaça e conhecer detalhes da escravidão em Alcobaça.
O quarto e último capítulo, dedicado ao “tempo dos coronéis”, percorre a história de Alcobaça desde a abolição da escravatura, em 1888, até o fim simbólico da hegemonia dos antigos clãs, em 1958. Nesse capítulo há estudos sobre os imigrantes libaneses em Alcobaça, sobre a influência dos padres franciscanos holandeses no extremo sul baiano, sobre os desmembramentos do território de Alcobaça ao longo dos anos e sobre o fenômeno do coronelismo na política. O capítulo também oferece breves
biografias de coronéis alcobacenses e de grandes figuras políticas nacionais que nasceram em Alcobaça.
Por fim, para complementar os relatos históricos, o leitor terá a oportunidade de ler transcrições de manuscritos antigos revelando aspectos da história bicentenária de Alcobaça, na seção Documentação histórica. A obra é também enriquecida com um Apêndice para fins de orientação e Referências bibliográficas para aprofundamento dos temas tratados.
Faço aqui uma ressalva: embora a história em si seja imutável, o panorama histórico apresentado neste livro deve ser visto como uma interpretação do autor com base na leitura de manuscritos antigos. Afinal, a “história” é nada mais que a escrita da história, e para realizar essa escrita o ponto de partida é sempre um recorte da realidade feito por alguém. Com isso sempre em mente, tenha uma boa leitura!
Fabio Said, em novembro de 2010
Prefácio à 2ª edição
Tenho muito orgulho de ter escrito este livro. Mesmo depois de transcorridos 14 anos desde a primeira edição, ele ainda continua sendo o único livro que conta a história antiga de Alcobaça de maneira científica e com base documental em vez de assumir uma perspectiva literária ou focada apenas na história oral. Além disso, velhos mitos e erros na interpretação de fatos do passado continuam sendo repetidos tanto nos meios virtuais como na vida real. Por esses motivos, achei que valeria a pena publicar uma segunda edição – desta vez em formato de livro digital, acessível por meio de qualquer aparelho celular ou tablet e, portanto, com maior potencial de disseminação entre as novas gerações.
O conteúdo em si não mudou muito. Fiz apenas algumas correções e adaptações em determinados trechos, além de uma nova editoração eletrônica. Devido ao novo formato digital, o Sumário no começo do livro e o Índice remissivo no final foram eliminados, visto que o e-book tem uma funcionalidade semelhante ao sumário e oferece a possibilidade de fazer pesquisa de palavras sem necessidade de utilizar um índice. Além disso, muitas imagens agora são coloridas, embora determinados aparelhos leitores de e-books somente possam exibi-las em preto e branco. Espero que você goste desta nova edição e continuo com a esperança de que surjam novos livros sobre a história de Alcobaça que possam não somente aprofundar os temas aqui abordados como também abranger os acontecimentos e personagens das décadas mais recentes.
Boa leitura!
Fabio Said, em outubro de 2024
Introdução
Em 1936, o historiador e folclorista João da Silva Campos, ao escrever sobre as tradições do sul da Bahia, disse que a história de Alcobaça “(...) é de uma pobreza franciscana. Melhor dizer-se que não a tem.” Isso talvez seja verdade para quem vê a história de Alcobaça no curto prazo, como algo que se desenrola em poucas décadas. Mas de maneira alguma se aplica quando se observa o percurso histórico mais amplo da cidade, desde o século XVIII. São 238 anos que viram a cidade se transformar de uma região inóspita de matas densas e índios bravos numa área próspera que em certo momento foi a terceira maior vila da região extremo sul da Bahia. Quem estiver disposto a enxergar mais longe e revisitar os acontecimentos dos séculos XVIII e XIX descobrirá que Alcobaça tem uma história vibrante e recheada de personagens curiosos: desde os intrépidos capitães-mores e enérgicos desbravadores do século XVIII, passando pelos naturalistas alemães, imigrantes açorianos e vereadores do século XIX, até os coronéis, políticos importantes e frades franciscanos da primeira metade do século XX. E não só eles, pois, afinal, os personagens da história não são apenas seres humanos, mas também casarões, fazendas, instituições políticas e, por que não, rios como o nosso Itanhém, sem o qual Alcobaça nunca teria existido. Este livro é a movimentada história de Alcobaça feita por esses e muitos outros personagens.
Localização de Alcobaça nos mapas da Bahia e do Brasil
Para reconstituir essa história mais ampla, não se pode recorrer apenas à tradição oral, obviamente. As fontes privilegiadas foram quilômetros de páginas de documentos escritos nos três últimos séculos. Os acontecimentos do século XVIII, por exemplo, foram resgatados sobretudo nas cartas que os ouvidores da capitania de Porto Seguro mandavam à sede do reino, em Lisboa. No século XIX, a principal fonte são as cartas e relatórios da Câmara Municipal e dos juízes municipais à sede do Governo da Província da Bahia, em Salvador. E sobre o século XX ainda restam algumas atas de sessões da Câmara Municipal. Ao contrário do que se poderia imaginar, esses documentos oficiais revelam muito mais que atos burocráticos. Eles expõem o dia-a-dia e as necessidades do povo de Alcobaça. Lendo-os em conjunto com os testamentos, inventários, livros do registro paroquial e do registro civil, tem-se uma ideia muito mais realista e multifacetada de quem eram e o que faziam os alcobacenses de antigamente. E, com isso, quem sabe, pode-se ter respostas para muitas indaga-
ções sobre a situação de Alcobaça em épocas mais recentes. Afinal, só se conhece verdadeiramente um povo quando se entende suas motivações históricas no decorrer de várias gerações.
Ao escrever um livro de história, é grande a tentação de fazer suposições e florear dados crus, criando um híbrido de história e ficção. Mas o que se verá neste livro é um relato da maior imparcialidade possível, que tenta unir dados aparentemente soltos, mas sem interferir no desenrolar dos acontecimentos. Isso se percebe claramente nas partes ou temas onde não há dados suficientes e onde o autor não pode fazer nada além de parar por ali mesmo, em vez de inventar uma historinha bonitinha para satisfazer os leitores. Infelizmente, a história é assim mesmo: são fragmentos imperfeitos recolhidos aqui e acolá e que se tenta, desesperadamente, transformar numa narrativa organizada que faça sentido.
Eis aqui, portanto, a história – movimentada, documentada e imperfeita, mas de modo algum pobre – de Alcobaça!
Capítulo 1: Primórdios
(1747-1772)
A capitania de Porto Seguro
As terras da atual microrregião extremo sul da Bahia foram as primeiras a serem avistadas pela expedição liderada no final do século XV pelo capitão Pedro Álvares Cabral, conhecida como a expedição do “descobrimento” do Brasil. Apesar da importante descoberta, não estava nos planos de Portugal colonizar sistematicamente as terras recém-conquistadas. Tal desinteresse estimulou a cobiça de outras nações, como a França, que durante décadas promoveu o tráfico de pau-brasil da costa brasileira para a Europa, onde era imensamente valorizado. O tráfico de pau-brasil e o constante intercâmbio de franceses e espanhóis com os nativos brasileiros fez com que Portugal pensasse em finalmente criar mecanismos de proteção das novas terras contra os invasores. Assim surgiu, na década de 1530, o sistema das capitanias hereditárias, através do qual eram doadas a fidalgos e altos funcionários da burocracia portuguesa imensas extensões de terras no Brasil. A posse efetiva das terras era da Coroa, mas o usufruto seria dos donatários, que eram chamados de “capitães do Brasil” (daí o nome “capitanias”). Em troca da doação, os capitães administravam as terras, promovendo a exploração econômica das riquezas que encontrassem. Podiam, inclusive, conceder “sesmarias” (pedaços menores de terras sem cultivo e cedidos para fins de povoação) a pessoas de sua confiança. Tudo isso se fazia em troca de benefícios econômicos, taxas, impostos etc.
Capítulo 2: Anos de formação (1773-1815)
Desbravadores do século XVIII
A região extremo sul da Bahia, inclusive o território de Alcobaça, teve vários desbravadores entre o final do século XVIII e início do século XIX. Em geral, eles eram funcionários da administração pública ou intrépidos aventureiros em busca de riquezas que depois receberam as graças do governo.
Ouvidor Thomé Couceiro de Abreu
Entre os funcionários do da administração pública, destacam-se os diversos ouvidores que a capitania de Porto Seguro teve nesse período. O primeiro deles tomou posse em 8 de dezembro de 1763. Seu nome era Thomé Couceiro de Abreu.
A difícil tarefa que o governo central do reino deu ao novo ouvidor de Porto Seguro era povoar a região, valendo-se, como povoadores, de índios nativos já civilizados e de ”degredados” vindos da Bahia ou Rio de Janeiro, já que era insuficiente a quantidade de portugueses no local. Além disso, tinham de defender as poucas povoações contra os índios bravos que sempre as atacavam, evitar a fuga dos degredados e ainda prover a população local com mantimentos e segurança. De qualquer forma, o avanço do povoamento da comarca de Porto Seguro dependia dos
Capítulo 3: A sociedade patriarcal (1816-1887)
Um príncipe alemão em Alcobaça
Entre janeiro e agosto de 1816, Alcobaça foi visitada por um nobre europeu que estava em viagem científica pela costa brasileira. Era Alexander Philip Maximilian (1782-1867), Príncipe de Wied-Neuwied, mais conhecido simplesmente como Maximiliano.
A viagem do príncipe tinha a proteção de Antonio de Araújo de Azevedo, o Conde da Barca (1754-1817), que era o então Ministro de Estado dos Negócios da Marinha de Portugal e um dos homens mais poderosos do reino. O Conde da Barca, diplomata de muitos feitos, é também lembrado como patrono das artes e ciências em Portugal e no Brasil. Ele possuía em Alcobaça uma fazenda chamada Ponte do Gentio1, que mais tarde passou a pertencer ao clã dos Medeiros.
1 Gentio é o mesmo que “selvagem”. Portanto, o nome da fazenda indicava que ali era um local de índios selvagens.
A Câmara Municipal de Alcobaça
A história da Câmara Municipal de Alcobaça perdeu-se, em boa parte, devido ao extravio de arquivos e à falta de interesse na preservação. O pouco que foi possível descobrir está em algumas atas de sessões da Câmara do século XIX, em Alcobaça, e em correspondências enviadas na época do Império pela Câmara ao Governo Provincial, em Salvador. É com base nesses documentos que se pode traçar um perfil histórico da Câmara Municipal de Alcobaça, ainda que com lacunas.
As câmaras municipais surgiram no Brasil em 1532, quando foi fundada a vila de São Vicente, situada no território que hoje seria o Estado de São Paulo. Somente as povoações da categoria de vila podiam ter câmara municipal. Mas em termos de funções elas eram bem diferentes das atuais câmaras municipais. Durante todo o período do chamado Brasil Império, as câmaras tinham poderes que incluíam coleta de impostos; regulação do comércio, profissões e ofícios; preservação de patrimônio público; gerenciamento de prisões etc. Como se vê, essas funções entram no campo de atuação do atual Executivo municipal, pois na época ainda não existiam prefeitos. Assim, os vereadores eram responsáveis pela administração direta das vilas. Era esse o contexto da época em que foi criada a vila de Alcobaça, em 1772.
Não se sabe se a vila de Alcobaça já possuía uma câmara municipal quando foi fundada. O documento que deu origem à vila não faz menção a vereadores. Mas a administração da cidade, pelo menos nos primeiros anos, ficava a cargo dos ouvidores da capitania de Porto Seguro e aos capitães-mores, como se viu nos capítulos 1 e 2.
Aos poucos, a figura do capitão-mor se restringia cada vez mais às suas funções básicas de defesa militar e policial, até desaparecer por completo, no início do século XIX. Com o tempo, foi introduzida em Alcobaça a figura do juiz ordinário, que nas vilas do Brasil da época era geralmente o presidente da Câmara Municipal, correspondente ao mandatário máximo da vila. Os registros mais antigos sobre juízes ordinários de Alcobaça citam o
português Pedro Antunes Guerra, patriarca do clã dos Guerra, como ocupante desse cargo em 1803.
Era assim que foi administrada Alcobaça naquelas primeiras décadas de sua existência – entre ouvidores, capitães-mores, juízes ordinários e seus respectivos subalternos – até pouco depois da proclamação da Independência do Brasil, em 1822.24 Até aqui não se pode dizer com certeza se existia uma câmara municipal alcobacense, embora tenha havido em Alcobaça a figura do juiz ordinário. Isso só se poderia descobrir se fossem encontrados documentos administrativos da época anterior à Independência.
Logo após a proclamação da Independência, em 7 de setembro de 1822, com a centralização administrativa promovida por d. Pedro I e a criação do Poder Legislativo, o poder das Câmaras Municipais diminuiu sensivelmente. Elas deixaram, por exemplo, de ter funções judiciais e carcerárias. Os vereadores, às vezes chamados de “camaristas”, passaram a ser eleitos para um período de quatro anos. As povoações com categoria de cidade tinham direito a eleger nove vereadores; as vilas, apenas sete. Era este o caso de Alcobaça, que ainda era vila.
O registro mais antigo encontrado com referência à Câmara Municipal de Alcobaça é um ofício da própria Câmara em 14 de fevereiro de 1824, no qual o então presidente da Câmara, Antonio José Alexandrino, dava os parabéns ao recém-nomeado presidente da província da Bahia. É bem provável que aquela legislatura tenha iniciado suas atividades naquele mesmo ano.
24 A Constituição do Império, promulgada em 25 de março de 1824, diz em seu Capítulo II, Art. 167: "Em todas as cidades e vilas ora existentes, e nas mais, que para o futuro se criarem haverá Câmaras, às quais compete o Governo econômico e municipal das mesmas cidades e vilas."
Affonso Gordilho Costa, juiz da comarca de Alcobaça.
A comarca de Alcobaça foi extinta em 4 de outubro de 1907 pelo Decreto 264, voltando a ser anexada à comarca de Caravelas. Mais tarde, em 1949, o distrito judicial de Alcobaça foi anexado à comarca de Prado, e assim ficou por quarenta anos.
Origens de famílias alcobacenses
Além dos “antigos clãs” bicentenários que foram assunto de uma seção do capítulo anterior, várias outras famílias menos numerosas estão em Alcobaça há mais de 100 anos. Em sua maioria, elas são bifurcações de um ou mais antigos clãs. Abaixo são relatados brevemente os históricos de algumas dessas famílias antigas de destaque, cujos sobrenomes são facilmente identificáveis e tradicionais na cidade.
Vale notar que muitos sobrenomes de família surgem aparentemente do nada, pois até mais ou menos a metade do século XX as pessoas eram registradas somente com o primeiro nome (nome de batismo) e só depois de adultas é que assumiam sobrenomes, não só com base no sobrenome dos pais como também usando nomes de batismo do pai (sobrenomes como Diogo, Tarquínio, Jeronymo e Cândido nasceram como nomes de batismo), homenagem a tios, padrinhos e outras pessoas ou simplesmente para se destacar socialmente. Além disso, as mulheres, mesmo quando adultas, costumavam ter somente sobrenomes de devoção de cunho religioso (Maria da Conceição, Úrsula Marianna das Virgens, Cordula Maria do Espírito Santo), o que dificulta ainda mais a reconstituição de históricos familiares. Para driblar dessa dificuldade, os históricos a seguir são baseados exclusivamente em dados documentais.
Alcântara
O indivíduo mais antigo dessa família nos registros de Alcobaça e Caravelas foi Domingos Soriano de Alcântara (1844-1904), que era casado com Maria Alexandrina Soares, com quem teve pelo menos dois filhos: Ana Soares de Alcântara e Antonio Soares de Alcântara.
Ana foi esposa de Zeca de Almeida (José Caetano de Almeida, 1870-1966), figura tradicional de Caravelas), com quem teve muitos filhos em Caravelas, inclusive Maria de Lourdes, que foi casada com o prefeito Almir Soares.
Antonio Soares de Alcântara (1883-1960 – foto abaixo) mudou-se de Caravelas para Alcobaça, mas teve de ir embora de Alcobaça por causa de perseguição política. Levou a família para o Rio de Janeiro, onde viveu o resto da vida.
foi abandonado, e a sede da prefeitura se mudou para outro bairro. Em dezembro de 2007, depois de passar por uma reforma, o prédio foi reinaugurado e voltou a ser a sede do Poder Executivo de Alcobaça.
5 – Igreja Matriz de São Bernardo
Na mesma praça onde está localizada a prefeitura está a Igreja Matriz de São Bernardo, uma das maiores igrejas do Estado da Bahia.
Conforme mostrado acima, Alcobaça já tinha uma igreja desde antes de ser oficialmente fundada como vila. Mas durante várias décadas a igreja não passava de uma capela. Durante a primeira metade do século XIX já havia planos de construir uma igreja maior, que passou a maior parte do século em construção, como demonstram os diversos ofícios da Câmara Municipal pedindo verbas ao Governo Provincial para concluir as obras. Foi no final da década de 1860, com a chegada do padre José Porphirio da Silva, que foi vigário de Alcobaça de 29/10/1868 a 21/1/1873, que a construção da Igreja Matriz de São Bernardo começou a tomar forma para valer, desta vez em outra localização e não mais na frente do rio, como a antiga capela. Graças aos esforços do padre conseguiu-se recursos suficientes para erguer a imponente construção de grandes proporções que hoje se vê na praça principal do centro histórico de Alcobaça. Infelizmente, o padre não pôde ver a igreja construída, pois faleceu em 21 de janeiro de 1873, com a idade de 32 anos, e a construção da igreja somente foi concluída 15 anos depois, no final da década de 1880.
A igreja apresenta planta retangular com um núcleo central, formado pela nave e pela capela-mor. Esse núcleo é flanqueado por corredores laterais e sacristias, que são superpostos por tribunais em forma de arcos geminados e consistórios. Originalmente, a cobertura era de madeira, mas foi substituída por amianto na reforma de 1958. No interior da igreja há três altares em estilo neoclássico e forros em gamela. As imagens de santos usados na igreja representam o padroeiro, São Bernardo, Senhor do
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Detalhe da Cacimba do Concelho. Foto: Fabio Said.
Quanto à construção octogonal que envolve o poço e é encoberta por uma cúpula apontada, ela deve ser do final do século XIX ou início do século XX, devido a suas características arquitetônicas. O estilo da fonte é neogótico, em difusão no interior da Bahia daquela época. Em Salvador, há uma fonte do mesmo tipo, no Dique do Tororó, embora sem os azulejos da fonte alcobacense.
As paredes externas da construção são integralmente revestidas de azulejos, decorados com motivos geométricos, azuis e brancos. Na cúpula, a parede é revestida em azulejos nas cores azul, carmim e branco e separada do resto da construção por um friso de argamassa.
Padrão geométrico usado nos azulejos da parte de baixo da cacimba, nas cores azul e branco. Foto: Fabio Said.
Padrão geométrico usado nos azulejos da cúpula da cacimba, nas cores vermelho, azul e branco.
O acesso ao poço é feito por quatro arcos ogivais. Na cobertura da cacimba há uma estatueta infantil representando o inverno,
Escravidão em Alcobaça
São pouquíssimos os manuscritos remanescentes do século XIX que se referem à escravidão em Alcobaça. Os quilométricos maços de cartas da Câmara Municipal ao Governo Provincial da Bahia, por exemplo, calam-se em grande parte nesse tópico e referem-se apenas marginalmente aos escravos como um dos itens da economia agrícola da época.
Uma exceção a essa regra foi o ofício de 8 de abril de 1874, no qual o vereador Manoel José da Boa Morte informa que alguns escravos residentes no município comunicaram que possuíam quantia correspondente a parte do valor com que foram avaliados e desejam saber como proceder para comprar sua liberdade. Como os escravos não têm acesso aos órgãos do governo, a Câmara intercede em seu favor, pedindo as informações desejadas. Naquele momento, o sistema de exploração baseado na escravidão estava em plena decadência – 25 anos antes entrara em vigor a Lei Eusébio de Queirós, que proibiu o tráfico interatlântico de escravos; três anos antes fora aprovada a Lei do Ventre Livre, que dava liberdade a todos os filhos de escravos nascidos a partir daquele momento; e faltavam apenas 14 anos para a Lei Áurea, que aboliu o sistema escravocrata.
É preciso ter esse contexto em mente para se entender que o fato descrito no documento – escravos comprando sua própria liberdade – não era uma exceção, mas sim cada vez mais normal no ocaso da escravidão. Abaixo, uma reprodução da primeira página desse documento assinado pelo vereador Manoel José da Boa Morte, bem como uma transcrição:
Capítulo 4: O tempo dos coronéis (1888-1958)
O comércio de Alcobaça
O comércio dominante na região extremo sul da Bahia durante boa parte do século XIX era em Caravelas, que já tinha tradição centenária nesse quesito e era favorecida pelo extenso porto, ideal para receber navios de grande porte. Com a prosperidade agrícola da primeira metade do século XIX, Alcobaça também desenvolveu um movimentado comércio. Mas foi somente após o fim da escravidão, quando os engenhos perderam a mão-deobra barata e tiveram de se adaptar à nova ordem econômica, que o comércio alcobacense ganhou independência em relação a Caravelas. Alcobaça no final do século XIX era conhecida não só pelas madeiras do vale do Itanhém e produção de mandioca em grande escala, como também pelo intenso comércio marítimo. O porto do Itanhém não tinha condições de receber os grandes vapores que iam a Caravelas, mas estes podiam atracar a certa distância da praia, para onde a produção era levada por lanchas de menor porte. Dessa forma, Alcobaça tinha comunicação marítima direta com as províncias do norte e do sul.
Medeiros Netto, o senador alcobacense
Antonio Garcia de Medeiros Netto. Foto: Antonio Garcia Rodenburg de Medeiros Netto.
Antonio Garcia de Medeiros Netto nasceu em Alcobaça no dia 14 de agosto de 1887. Estudou humanidades do Colégio Florêncio, em Salvador. Em seguida, cursou a Faculdade de Direito da Bahia, formando-se em 1908 e foi orador de sua turma.
Ainda acadêmico, colaborou como redator do Diário da Bahia. Após a formatura, advogou no escritório de Castro Cincurá, a quem substituiu quando este faleceu. Medeiros Netto foi o primeiro advogado inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil,
Os franciscanos holandeses
Frei Olavo Timmers.
A paróquia de São Bernardo, em Alcobaça, tem uma longa tradição de ser comandada por padres franciscanos, muitos deles –como o frei Olavo Timmers (foto acima) – eram originários da Holanda.
Os padres holandeses da Ordem dos Franciscanos Menores (O.F.M.) chegaram ao Brasil pela primeira vez em 1899, em Manaus. A partir de 1905, estiveram em Teófilo Otoni (MG). Podem ser encontrados no extremo sul baiano desde pelo menos 1916. Foi nessa época que frei Samuel Teteroo penetrou no Vale do Rio Jequitinhonha e ajudou, com suas pesquisas, a definir os contor-
Documentação histórica
1772 – Fundação de Alcobaça
Autos de ereção e demarcação da nova vila de Alcobaça, na capitania de Porto Seguro. Arraial de Itanhém (Alcobaça), 12 de novembro de 1772. Arquivo Histórico Ultramarino, Catálogo Castro e Almeida, doc. 8.578. Transcrição paleográfica: Fabio Said.
[capa:] Autos de erecção e demarcação da nova villa de Alcobaça na capitania de Porto Seguro
[folha 1:] Traslado dos Autos de Erecção e Criação da nova villa de Alcobaça desta comarca da Capitania de Porto Seguro
Anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil sette centos e settenta e dous aos doze dias do mes de Novembro do dito ano neste Arraial chamado de Itanhaem nas casas ou para melhor dizer cabana aonde se achava apozentado o Desembargador Joseph Xavier Machado Monteiro Cavalleiro professo na ordem de Christo do Desembargo de Sua Magestade seu Desembargador numerario da Casa da Suplicação com o exercicio actual de Ouvidor e Provedor desta Capitania, e Ouvidoria de Porto Seguro que se achava estabelecendo e criando de novo ahi mandou a mim Escrivão da Correição escrever este auto dizendo nelle que porquanto nas Instrucções que o dito Senhor fora servido mandar dar-lhe pela Secretaria de Estado dos Negocios Ultramarinos para continuar por fallecimento de seu antecessor o Desembargador [folha 1 verso:] Thome Couceiro de Abreu a criação, e augmeno desta Ouvidoria e Capitania no paragrapho dezasete [à margem esquerda do texto: § 17] dellas que adiante ira copiado, se lhe ordenava que assim nas Aldeas e
Referências bibliográficas
Legenda dos arquivos de manuscritos/microfilmes:
APB: Fundação Pedro Calmon / Arquivo Público da Bahia (Salvador, Brasil)
FHL: Family History Library, Genealogical Society of Utah (Salt Lake City, EUA)
Fontes primárias
Manuscritos: testamentos e inventários
ARROLAMENTO de bens: João da Silva Gomes Jr., Alcobaça, 1878-1886. APB, núcleo Tribunal de Relação, seção Judiciário, maço 3/975/1444/17.
ARROLAMENTO de bens: José Pereira das Neves, Alcobaça, 1878. APB, núcleo Tribunal de Relação, seção Judiciário, maço 05/2061/2532/24.
ARROLAMENTO de bens: Porphirio João de Medeiros Chaves, Alcobaça, 1884. APB, núcleo Tribunal de Relação, seção Judiciário, maço 5/2061/2532/15.
ARROLAMENTO de bens: Úrsula Marianna das Virgens, Caravelas, 1871. APB, núcleo Tribunal de Relação, seção Judiciário, maço 2/881/1350/10.
INVENTÁRIO (com testamento): Anna Maria da Conceição Tavares, Alcobaça, 1876-1886. APB, núcleo Tribunal de Relação, seção Judiciário, maço 3/975/1444/14.