Aracruz e as multiplicidades de suas transformações. História, arquitetura, urbanismo e cultura

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De aldeia, à vila e cidade Aracruz e as multiplicidades de suas transformações. História, arquitetura, urbanismo e cultura Relatório final da pesquisa intitulada “Narrativas da Arquitetura Capixaba: Arquiteturas singulares, história e cidade. Linhares (ES)” | Ano 2019-2020 |

FABIANO VIEIRA DIAS Mestre pelo PPGAU-UFES. Professor das Faculdades Integradas de Aracruz. Curso de Arquitetura e Urbanismo. Aluna de Iniciação Científica: Ana Elisa Testa Frigini (Bolsista – 2019-2020) | Apoio Institucional: Faculdades Integradas de Aracruz

Grandes Narrativas da Arquitetura e do Urbanismo


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Agradecimentos Esta pesquisa teve a participação de pessoas e instituições que foram fundamentais em seu desenvolvimento. Agradecemos imensamente as seguintes contribuições feitas: - Aos nossos alunos (quase formados) Marcos Maioli e Ramon Farage, do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Faacz pelas belas fotos tiradas e disponibilizadas para essa pesquisa, da antiga Fazenda Monte Delle Palme, em Aracruz; - A FAPES (Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo), pela bolsa de pesquisa para nossa aluna orientanda de iniciação científica Ana Elisa Frigini, - E por fim, às Faculdades Integradas de Aracruz (FAACZ), em nome de sua direção e corpo docente que nos apoiam em nossas pesquisas das Grandes Narrativas da Arquitetura e Urbanismo desde 2015.


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Resumo A pesquisa busca entender, de forma geral, a formação conceitual do que se denominou de grandes narrativas da arquitetura e urbanismo, e tem como meta correlacioná-las em torno de arquiteturas singulares que tenham a capacidade de sintetizar as características dessas narrativas em sua própria história dentro do tecido urbano. A pesquisa, além de buscar as narrativas históricas que construíram a própria história urbana de Aracruz, começando pelas suas origens coloniais do séc. XVI, na Vila de Santa Cruz, até sua industrialização a partir dos anos de 1970, também foi a campo para estudar essas transformações em prédios singulares que tem a capacidade de unir essas narrativas em torno de si.


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Sumário Introdução .......................................................................................................................................................... 5 Cap. I Narrativas em perspectiva: história, historiografia, linguagem e arquitetura ............. 9 Cap. II Arquiteturas singulares. Conceito ............................................................................................. 19 2.1.

O caso exemplar do Palácio Anchieta em Vitória-ES ...........................................................22

Cap. III A Santa Cruz antes de Aracruz e suas origens jesuíticas.................................................. 32 Cap. IV O olhar do estrangeiro sobre a Vila de Santa Cruz do Séc. XIX....................................... 44 Cap. V Uma nova origem para Santa Cruz: a imigração italiana no Espírito Santo. .............. 59 Cap. VI De vila para cidade e a transformação de Santa Cruz em Aracruz ............................... 71 Cap. VII As arquiteturas históricas da antiga vila: A igreja, a Casa de Câmara e Cadeia e a Fazenda. 82


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Introdução


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racruz, cidade da região do Litoral Norte capixaba, é hoje conhecida por seu potencial econômico ligado ao seu Porto, suas indústrias e a grande fábrica de celulose que, nos anos de 1970, impulsionou o seu crescimento econômico e urbano. Mas, sua história é muito mais antiga, seja pela presença dos povos indígenas que aqui chegaram, seja pela colonização portuguesa do séc. XVI e mais tarde, pela italiana, nas últimas décadas do séc. XIX. Seu território fragmentado é, ao mesmo tempo, tanto uma circunstância do relevo que a conforma como, em última instância, de uma construção histórica e cultural multifacetada, ou seja, de uma multiplicidade de origens humanas que a caracterizam até os dias de hoje. Além disso, é a representação de um território de extremos: de um lado, como exemplo, as aldeias indígenas dos primeiros homens que ocuparam essas terras milénios atrás e de etnias indígenas mais novas; de outro, sua importante área portuária, porta de entrada e saída para o mundo, onde brasileiros e estrangeiros convivem lado a lado todos os dias. As mais antigas tradições (as ainda existentes) dividem esse território com as rápidas transformações da indústria e do capital. E entre eles, toda uma história de ocupações urbanas iniciadas ainda em medos do séc. XVI. As pesquisas historiográficas engendradas a partir da metade do último século estudaram a formação das estruturas urbanas das cidades europeias através de levantamentos históricos de elementos-chave de sua constituição. Essa pesquisa em específico, bem como as desenvolvidas nos últimos cinco anos pelo professor Fabiano Dias e seus orientandos, perseguem a hipótese de que cada cidade é em sua superfície uma arqueologia vivenciada por seus monumentos e espaços. Cada texto que compõe a cidade narra uma parte de sua história, que congrega no urbano experiências e vivências que mesclam relações sociais, econômicas, políticas e históricas, no bojo do amplo espectro do que se denomina de cultura, inscrita (ou sobrescrita) em camadas históricas do urbano como um texto escrito em pedra. As grandes narrativas da arquitetura e do urbanismo estudadas nesta pesquisa são analisadas e trabalhadas além de sua particularidade, e unidas em torno do que defende Rossi para a inter-relação dos fatos urbanos como base do entendimento da cidade (ROSSI, 1992, p. 114). Como narrativas, não interessam somente seus valores quantitativos, mas, tão importante quanto serão seus valores qualitativos, ou seja, a origem de seus significados e como estes se relacionam e se moldam na realidade histórica de cada arquitetura e seu contexto.


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Entende-se por grandes narrativas a capacidade que campos interdisciplinares de pesquisa ligados direta ou indiretamente às disciplinas da arquitetura e urbanismo, possuem, de forma integrada, de comunicar e traduzir a história da cidade, no tempo e no espaço. As narrativas seriam, nos termos de Roland Barthes, formadas por “estágios” históricos, completados então, em sua existência, por “encadeamentos”, em que a linha principal da narrativa seria alimentada por eixos verticais de acontecimentos ou fatos. Estes darão, ao longo da existência da narrativa, sua significação, ou como explica o autor, “a significação não está ‘ao cabo’ na narrativa, ela a atravessa” (BARTHES in BARTHES, 1976, p. 26). Como fio condutor, buscam-se na historiografia da arquitetura exemplares arquitetônicos – denominados de arquiteturas singulares - que tenham a capacidade, no tempo histórico, de agrupar em seu corpo físico as características dessas grandes narrativas, como interlocutores históricos das transformações urbanas expressas por elas. Especificamente essas arquiteturas serão escolhidas nas escalas e abrangências de cidades capixabas, estudadas dentro dos limites da pesquisa em andamento. A metodologia se baseia em estudos das narrativas históricas de autores específicos, unificados, por conseguinte, em torno das arquiteturas selecionadas ao longo da pesquisa, através de levantamentos qualitativos e quantitativos para seu enquadramento em narrativas específicas, dadas por sua própria história ao longo do tempo. Além disso, a pesquisa se baseia em duas premissas básicas: a) O tema das narrativas envolve uma variada gama de disciplinas ligadas pela história, tendo o foco (e o fim) na cidade e sua arquitetura e, b) O próprio conceito de arquitetura (singular) é trabalhado aqui de forma multidisciplinar: não só interessa o edifício construído, suas peculiaridades tipológicas, construtivas, formais e estéticas, mas, o conjunto de espaços urbanos, formados ou não por arquiteturas e por fim, a paisagem que este conjunto constrói ao longo da história.


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Essa nova pesquisa vem para fechar um ciclo de cinco anos de estudos de cidades da região norte e noroeste do Estado do Espírito Santo. Iniciada em 2015, a pesquisa teve como foco a cidade de Linhares e sua importância como uma das últimas vilas coloniais brasileiras; passou pela cidade de Ibiraçu e estudou duas arquiteturas religiosas singulares da cidade e sua relação com a paisagem natural circundante, e pela cidade de Colatina ao estudar o pequeno e histórico núcleo urbano de Itapina, a partir de sua história com o rio Doce e relevo; retornou à Linhares para concluir os estudos de 2015 e agora, encerra em Aracruz, cidade que tem suas origens históricas ainda nos primórdios do período colonial, na pequena Vila de Santa Cruz, foco de estudo histórico dessa última fase, chegando-se e limitando-se até o início dos anos de 1970 e a implantação da Aracruz Celulose, enquanto recorte temporal.


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Cap. I Narrativas em perspectiva: história, historiografia, linguagem e arquitetura1

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O conteúdo desse capítulo foi apresentado, em parte, no artigo publicado pelo autor: DIAS, Fabiano Vieira. Narrativas da Arquitetura Capixaba: Arquiteturas singulares, história e cidade. In: 4o Seminário Ibero-americano Arquitetura e Documentação, 2015, Belo Horizonte.


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aul Ricouer define as narrativas na história (historiografia), na literatura (história versus estória) e filosofia (filosofia da história), como uma construção temporal que cria, em última instância, a própria experiência humana de sua existência. Para o filósofo, as narrativas só têm sentido ao expressar o tempo; e são, por outro lado, duas metades que “se reforçam

mutuamente” (RICOUER, 1994, t. 1, p. 16) para descrever o tempo humano: O tempo torna-se tempo humano na medida em que está articulado de modo narrativo: em compensação, a narrativa é significativa na medida em que esboça os traços da experiência humana (RICOUER, 1994, t. 1, p. 15). As narrativas são acontecimentos descritos pela história, base de fontes literárias interpretativas e substância da filosofia que tem na história os conteúdos morais para o debate; coisas passadas que ligadas ao futuro estabelecem um lugar na história: um “onde” do qual se questiona Santo Agostinho pela interpretação de Ricouer, pois a questão que se põe o primeiro é saber “onde as coisas são”, ou, em que tempo-lugar as coisas acontecem (RICOUER, 1994, t. 1, p. 26). Esse “sítio” (RICOUER, 1994, t. 1, p. 26) é uma construção presente formada pelo passado e o futuro, “adjetivos”, segundo Ricouer (1994, t. 1, p. 26) de uma qualidade temporal que descrevem as narrativas por meio de acontecimentos que ainda podem acontecer ou já existiram. Na verdade, a narrativa ao predizer “acontecimentos que ocorrem tal como os havíamos antecipado” (RICOUER, 1994, t. 1, p. 26) estão na origem desses acontecimentos. Elas não são os acontecimentos em si, mas, sua história: os acontecimentos são fatos ocorridos, ou seja, estão na escala do real, na concretude da experiencia vivida ao longo de um tempo; as narrativas, por outro lado, são os entrelaçamentos possíveis que deram ou dão origem a esses fatos.


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Por estas relações, as narrativas também estão na base das construções das memórias das histórias e seus lugares. O passado e o futuro, ou, as memórias de coisas passadas e a espera do porvir – “A história é antes de tudo a memória” (ARGAN, 1998, p. 158) -, estão na mesma medida no presente, já que este último, enquanto intermédio, é o lugar do cruzamento de ambos. Essa é por fim, a base da construção narrativa: historiografias que recorrem do passado e constroem o futuro pela interpretação histórica no presente. A história pela definição de Ricouer, “descreve uma sequência de ações e de experiências feitas por certo número de personagens, quer reais, quer imaginários” (RICOUER, 1994, t. 1, p. 214). Portanto, ao descrever, narra, e ao narrar, através ou pela reinterpretação de fatos e acontecimentos pode recriar a história a partir de uma nova prova, e, a “resposta a essa prova conduz a história à conclusão” (RICOUER, 1994, t. 1, p. 214). E quanto a essa “história narrativa”, o autor completa: (…) tem como objeto as ações passadas que puderam ser registradas ou que se pode inferir por meio de autos ou de memórias; a história que escrevemos é a de ações cujos projetos ou resultados podem ser reconhecidos como aparentados aos de nossa própria ação; nesse sentido, toda história é um fragmento ou segmento de um só mundo da comunicação (…) (RICOUER, 1994, t. 1, p. 216). A historiografia, como história narrada, é uma coligação de eventos (RICOUER, 1994, t. 1, p. 223), ou como explica Barthes, “encadeamentos” de outras histórias. Essa construção da narrativa é também uma reconstrução da história, pois organiza dados que “se relacionam a uma temporalidade” (RICOUER, 1994, t. 1, p. 243). Para Barthes, a própria temporalidade só se caracteriza como representante do tempo através da narrativa, já que é parte desta como uma “classe estrutural” (BARTHES in


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BARTHES, 1976, p. 37). O tempo da narrativa é um tempo histórico, descrito por acontecimentos, ou seja, construído (ou reconstruído) por outras histórias que alimentam o eixo central da narrativa. Waisman fala das diferenças entre as temporalidades da historiografia geral e da historiografia que dá conta das artes e arquitetura. Enquanto para a primeira, o objeto “deixou de existir no tempo” (WAISMAN, 2013, p. 11), corroborado pela semiologia de Barthes - já que “do ponto de vista da narrativa, o que chamamos de tempo não existe, ou pelo menos só existe funcionalmente, como elemento de um sistema semiótico” (BARTHES in BARTHES, 1976, p. 37) -, para a historiografia das artes e da arquitetura, o objeto “existe por si mesmo, e o trabalho do historiador tem que partir dessa realidade presente” (WAISMAN, 2013, p. 11). A autora ainda argumenta que, enquanto para a historiografia geral o “protagonista” pode ser um “acontecimento, um personagem ou uma cultura que teve lugar no tempo e desapareceu” (WAISMAN, 2013, p. 11) deixando ao longo da história “testemunhos”, na historiografia da arte e arquitetura o protagonista é a própria obra, que passa, portanto, a ser o “testemunho histórico principal e imprescindível” (WAISMAN, 2013, p. 11-12). Ou seja, pegando-se o exemplo de uma obra arquitetônica que estende sua existência ao longo do tempo, tem-se por complemento, que essa arquitetura ultrapassa sua qualidade enquanto tal, ao atribuir-se de uma qualidade maior a qual Waisman chama de “extra-histórica”, quando a arquitetura assume um caráter ou valor artístico enquanto monumento (WAISMAN, 2013, p. 12-13). Mas Ricouer retoma a questão dos acontecimentos para explicar o próprio conceito de história. Para o autor, história é como já dito, um ato de operar coligações, ou seja, ao citar Whewell e Walsh, é “explicar um acontecimento retraçando suas relações intrínsecas com outros acontecimentos e em situá-lo no seu contexto histórico” (WHEWELL e WALSH apud RICOEUR, 1994, t.


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1, p. 223). As análises desses acontecimentos se sucedem através de hipóteses, as quais, segundo Ricoeur, não podem ser falsificadas, como ocorrem nas ciências, pois em história, as hipóteses atuam como “guias” e não como referenciais científicos (RICOUER, 1994, t. 1, p. 223). Dessas são extraídas conclusões a partir de uma “narrativa interpretativa” (RICOUER, 1994, t. 1, p. 223), a qual, por fim, é um juízo e não um método em si, já que a prova não está no fato, mas, ao longo da narrativa “que sustente as conclusões” (RICOUER, 1994, t. 1, p. 223). Mais à frente, Ricoeur trabalha exatamente o que diferencia Waisman sobre a historiografia geral e a das artes e arquitetura. Para o filósofo, em especial, esta distinção acontece sobre duas linhas da historiografia, referenciando-se à Mandelbaum: a da “história geral” e as das “histórias especiais”. Ricoeur distingue ambas da seguinte forma: A história geral tem como tema sociedades particulares, tais como povos e nações, cuja existência é contínua. As histórias especiais têm como tema aspectos abstratos da cultura, tais como a tecnologia, a arte, a ciência, a religião, que, na falta de uma existência contínua própria, só são ligadas entre si pela iniciativa do historiador responsável pela definição do que conta como arte, como ciência, como religião, etc. (RICOUER, 1994, t. 1, p. 278). Essas são distintas aparentemente, mas estão interligadas por suas questões básicas: na historiografia geral (ou global, como completa Ricouer), a história de sociedades particulares, descrita através dos fenômenos sociais, políticos, econômicos, etc., se notabiliza em mostrar através dessas narrativas, de forma independente ou em conjunto, as “facetas” do seu desenvolvimento histórico (RICOUER, 1994, t. 1, p. 279). Pelas historiografias especiais (ou especializadas, ainda segundo Ricouer), os diversos matizes culturais se constituem em “classes de atividades” ligadas às áreas da cultura – “técnicas, ciência, arte, literatura,


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filosofia, religião, ideologia” (RICOUER, 1994, t. 1, p. 279) – como fonte de construção da história narrativa, seja de forma igualmente independente ou em conjunto. Em ambas, suas facetas e classes são, nos termos de Ricouer, “artefatos” metodológicos, pois não se caracterizam como uma “totalidade concreta” (RICOUER, 1994, t. 1, p. 279). Ricouer ainda conclui que análises de obras de arte, por exemplo, enquanto um artefato cultural de uma historiografia especializada, podem remeter à historiografia global, pois de certa forma, recebem influências dessa última: As obras [de arte] inscrevem-se nas tradições e nas tramas de influências, que marcam seu enraizamento na continuidade histórica das sociedades particulares e recebem desta uma continuidade de empréstimo (RICOUER, 1994, t. 1, p. 279). É na aparente autonomia de cada historiografia que se encontra a possibilidade de relacioná-las, pois mesmo admitindo-se que a historiografia geral seja mais objetiva que a especial, como argumenta Ricouer, é também possível “ajustar entre eles pontos de vista diferentes sobre o mesmo acontecimento ou ajustar entre elas as facetas (política, econômica, social, cultural) dos mesmos acontecimentos” (RICOUER,1994, t. 1, p. 280, nota 25). De forma correlata às narrativas, tem-se que a cidade pode como defende Argan, ser entendida como um conjunto de textos que “realiza um contexto” (ARGAN, 1998, p. 159). Ou seja, ao longo da história urbana das cidades – fixando a atenção nas cidades ocidentais – sua construção foi pautada por uma série de textos – gerais e específicos – que construíram, a partir de suas narrativas, historiografias marcadas por fatos descritos ou acontecimentos, e que invariavelmente, marcaram e ainda marcam a cultura dessas cidades.


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Além disso, a cidade, sobre esse viés de Argan é “idealmente uma obra de arte” (ARGAN, 1998, p. 159), a qual, além de ser o resultado de um conjunto de textos, é também um artefato ou produto das “técnicas urbanas” (ARGAN, 1998, p. 159), que é por fim, um dos textos da historiografia especializada de Ricouer. As cidades são, em última instância, a sede das narrativas. São tanto o pano de fundo como o próprio constructo de histórias que as marcam no tempo histórico, o qual é por concepção ontológica, o tempo humano. Sua arquitetura se torna produto dessa história, parte de uma narrativa em constante construção. A arquitetura enquanto objeto ou um artefato isolado faz parte da crise por que passa o estágio atual da produção arquitetônica, e em última instância, do projeto. Projetar em arquitetura é construir uma (re) valorização da arquitetura pelas relações entre o objeto projetado e o sujeito que usufruirá da arquitetura (ARGAN, 1998, p. 159). Essa revalorização da arquitetura cria novas ligações, novas histórias e construções narrativas. A arquitetura, então, deixa de ser um mero artefato isolado e alcança o status de um artefato maior, um “superartefato”, nos termos de Najjar (2011, p. 82). Enquanto tal – apropriando-se de um termo arqueológico2 – o objeto arquitetônico é entendido como um todo em sua relação com o território construído por relações espaço-sociais ou espacialidades, como explica Najjar (2011, p. 82-83), demonstrando as influências recíprocas entre o objeto arquitetônico e seu entorno, não somente físico, mas também social, “refletindo, portanto, o jogo de poder, a fricção social existente entre os grupos envolvidos, e gerando mudanças no seio da sociedade” (NAJJAR, 2011, p. 82).

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O termo apresentado por Najjar foi retirado do livro de Leone e Potter. Ver em especial: LEONE, Mark P; POTTER JR, Parker B. The recovery of meaning: Historical Archeology in eastern United States. Washington: Smithsonian Institute Press, 1988.


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Mas Argan aponta um momento de crise, estabelecido no contemporâneo, e que tem raiz nos valores culturais que definem a sociedade, e por corolário, em sua história. Inclui-se nesse momento de crise a produção artística e de sua arquitetura enquanto “projeto”, ou de uma “vontade de projeto que se manifesta, não somente nas artes [e nem somente na arquitetura], mas em todas as atividades humanas, em toda cultura” (ARGAN, 1998, p. 156). O ato de projetar tem origem no próprio projeto moderno de cultura, desde Brunelleschi, segundo Argan (1998, p. 156), quando, historicamente, se inicia uma “civilização do projeto” (ARGAN, 1998, p. 156), ao se substituir os modelos como referência cultural. Diferente do modelo, que é dado e posto como verdade histórica, o projeto se situa como processo crítico e contínuo, dividido em camadas: Temos então uma primeira camada: o conhecimento histórico. Uma segunda camada, a análise; uma terceira, as críticas; uma quarta, a imaginação” (ARGAN, 1998, p. 158). Essas camadas se estabelecem como etapas da narrativa própria da arquitetura e do urbanismo enquanto processo de projeto, aquilo que ao mesmo tempo une essas duas disciplinas historicamente, através de uma “dimensão nova e uma escala inteiramente nova” (ARGAN, 1998, p. 159), e as distingue tanto entre si como entre projetos de arquitetura e urbanismo distintos: cada projeto subentende-se uma releitura dessas camadas; cada camada é por definição uma hipótese nova a ser trabalhada e que por fim, gera um projeto diferente. Aldo Rossi ao traçar sua definição de fatos urbanos, fala da cidade como arquitetura total, algo que está além de sua imagem “visível e o conjunto de sua arquitetura” (ROSSI, 1992, p. 60). A cidade para ele, enfim, seria uma construção temporal pela arquitetura. Arquitetura entendida aqui como um ente coletivo da sociedade, parte vital das relações humanas e suas


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vicissitudes: “com toda a carga dos sentimentos de gerações, dos acontecimentos públicos, das tragédias privadas, dos fatos novos e antigos” (ROSSI, 1992, p. 62, tradução nossa). Mas essas narrativas urbanas levarão em conta a realidade da historiografia da arquitetura e urbanismo brasileiros, inseridos na própria realidade latino-americana de ex-colônias que sofreram fortes influências de suas pátrias mães, ao mesmo tempo em que adaptaram as formas europeias ao contexto local e cultural. Waisman explica que o desenvolvimento arquitetônico e urbano latino-americano é um amálgama transcultural, pois as adaptações feitas aqui por interpretações particulares ou circunstâncias “histórico-cultural-tecnológicas locais” (WAISMAN, 2013, p. 59), extrapolaram suas origens pelas influências do “contexto social em todos os seus aspectos” (WAISMAN, 2013, p. 62). Aqui, uma nova narrativa se construiu, mais recente que a europeia e em contínuo desenvolvimento e que por fim, deu origem a outros fatos ou acontecimentos em formato de arquitetura, espaços urbanos, novas paisagens, novos significados. Arquiteturas e cidades que se espelharam na metrópole, mas, que ao fim e ao cabo, são diferentes. Dentre as grandes narrativas de interesse em pesquisas atuais e futuras, têm-se: a) as construções históricas a partir dos estudos da morfologia urbana, b) da tipologia e c) da paisagem; d) as relações entre as similaridades e diferenças nos conceitos de lugar e espaço; e) as relações entre forma e função; f) as relações entre os espaços públicos e privados; g) as formas de composição arquitetônica a partir das escalas e proporções fornecidas pela geometria; e por fim, h) a sustentabilidade como novo discurso e narrativa histórica da arquitetura e do urbano.


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Temas relevantes, trabalhados em suas particularidades enquanto narrativas de uma historiografia espacializada, serão interligadas através do estudo do que se denomina nessa pesquisa de arquiteturas singulares, escolhidas pela especificidade de sua importância histórica e urbana de cidades capixabas, como será visto mais adiante.


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Cap. II Arquiteturas singulares. Conceito

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3O conteúdo desse capítulo foi apresentado, em parte, no artigo publicado pelo autor: DIAS, Fabiano Vieira. Narrativas da Arquitetura

história e cidade. In: 4o Seminário Ibero-americano Arquitetura e Documentação, 2015, Belo Horizonte.

Capixaba: Arquiteturas singulares,


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nquanto superartefato, a história de uma arquitetura singular se estrutura por meio de suas relações culturais e sociais, dando-lhe tanto a origem como o desenvolvimento dos significados que esta assumirá ao longo de sua existência. Uma arquitetura singular se define como arquitetura – no aspecto amplo do termo – quando marca acontecimentos, ou faz

parte desses, na história. É por si própria, um acontecimento: um fato descrito ou que descreve momentos singulares na história e que tem, pela situação de sua existência, a possibilidade de permanência em uma história continuada, ou narrada. Para Ricouer, os acontecimentos históricos enquanto narrativas, são postos como singulares, tributários de paradigmas que sustentam sua existência (RICOUER, 1994, t. 1, p. 295). Além de singulares, na explicação do autor, ainda são contingentes (RICOUER, 1994, t. 1, p. 295), pois estão na esfera de influência de uma realidade ocorrida ou que pode ocorrer e, também separados (RICOUER, 1994, t. 1, p. 295) por serem singulares; separados no sentido de especiais ou específicos, dentro de um contexto histórico. Uma arquitetura singular se veste dessas características: é singular tanto por sua situação enquanto arquitetura inserida em um meio urbano e é contingente, pois é transformada ao longo da história (ou não) e é ainda, em sua existência e relações, separada, distinta ou mesmo - e de novo - singular do seu contexto; pois mesmo fazendo parte ou compartilhando sua construção, ainda possui sua autonomia, mesmo que não completa. Sua história enquanto arquitetura é construída por narrativas, sejam elas específicas da arquitetura e do urbanismo – as grandes narrativas – ou, gerais da própria história do meio que a originou. Enquanto acontecimento ou fato histórico, a arquitetura é também um fato urbano, inscrito na história da cidade, aproximando-se do que postula Ricouer com a definição de Rossi de fatos urbanos, os quais, como explica o arquiteto, são a


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“construção última de uma elaboração complexa” (ROSSI, 1992, p. 63). A arquitetura enquanto fato ou acontecimento é a concretude das narrativas a que lhe foram inscritas, expressão de sucessivas camadas históricas, de vieses e matizes diferenciados pelo tempo, escala e significância. As grandes narrativas da arquitetura e do urbanismo estão na origem dos fatos urbanos, pois são os modos significativos e simbólicos de construção da arquitetura: valores culturais, sociais, econômicos e políticos que influenciaram a arquitetura, sua inserção urbana e a construção última da cidade. A história construindo a história de cada arquitetura; o tempo datando as transformações de cada momento vivido por essas arquiteturas. O objetivo central da pesquisa é encontrar exemplares capixabas de arquitetura que tenham a possibilidade de participar de modo preponderante na construção das formas urbanas de suas cidades de origem, ao longo da história. Arquiteturas desse tipo têm a capacidade de alterar, promover e induzir transformações urbanas pela influência de seus usos, ao longo da história. As transformações urbanas induzem mudanças espaciais nos tecidos da cidade, com a criação de novos espaços e novos usos. Além disso, podem vir a reboque transformações estilísticas e compositivas, além de novas funções, que demandam um novo caráter para estes espaços. Sendo tais arquiteturas originárias de tipologias, como uma das grandes narrativas estudas, podem, portanto, se adaptar às transformações, com novos usos, sem perder sua essência. Em paralelo às transformações, surgem novas paisagens que definem uma época ou momento histórico. Em resumo, como explica Rossi, “[...] com o tempo, a cidade cresce sobre si mesma; adquire consciência e memória de si mesma. Em sua construção permanecem os motivos originais, mas com o tempo concreta e modifica os motivos de seu próprio desenvolvimento” (ROSSI, 1992, p. 61, tradução nossa).


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Cada uma das narrativas tem por pressuposto dessa pesquisa, a característica de contar uma história da cidade; e, unidas, especialmente em uma arquitetura singular, tornam-se parte de sua materialidade, de sua existência e significado. Essas características, por fim, dão sentido e valor a arquitetura, em resposta às críticas de Argan ao estado atual do projetar arquitetura: prédios de arquiteturas singulares – nos tecidos urbanos e em suas paisagens – como hipótese, serão o pano de fundo para se buscar novas conexões entre as narrativas da arquitetura e do urbanismo. A “arquitetura” se insere aqui como termo amplo, como já dito, pois alberga para si um contexto amplo na mesma medida. Portanto, entende-se que as disciplinas da arquitetura, do urbanismo e do paisagismo (em sua relação próxima com o conceito de paisagem) são partes fundamentais do projetar a arquitetura: projetar uma arquitetura é interferir quantitativamente e qualitativamente no espaço urbano, alterando de modo significativo a forma urbana ao longo do tempo, ao mesmo tempo em que essas alterações formais, estéticas e funcionais também interferem na imagem da cidade, ou em sua paisagem, nesse mesmo tempo.

2.1.

O caso exemplar do Palácio Anchieta em Vitória-ES

Ao longo de mais de 400 anos, o antigo complexo jesuítico de São Tiago, na antiga Vila da Vitória, formado por sua igreja e as alas do colégio e residência dos padres, passou por grandes transformações até se cristalizar no atual Palácio Anchieta (Erro! Fonte de referência não encontrada. e Erro! Fonte de referência não encontrada.); suas funções religiosas foram trocadas pela estrutura governamental (sede do Governo do Estado do Espírito Santo) e espaços culturais, demonstrando o quão se caracterizou a tipologia edilícia jesuítica em sua flexibilidade de usos em terras brasileiras (DIAS, 2014, p. 133).


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Figura 1: O Palácio Anchieta antes das reformas de 1910.

Figura 2: Inserção do prédio (centro da imagem) no entorno urbano contemporâneo da cidade de Vitória. Atual aspecto do prédio, após as reformas de 1910 que modificaram a tipologia jesuítica, mantendo-se, de forma parcial, o seu pátio central

Fonte: TATAGIBA, 2008

Fonte: GOOGLE/PANORAMIO, 2014

O prédio de grandes proporções arquitetônicas e urbanas para o tecido urbano da cidade de Vitória é um dos exemplos de onde a história se fez por um fluxo contínuo de narrativas variadas: marcou a chegada e implantação dos jesuítas, em meados do séc. XVI participando ativamente do florescimento e crescimento urbano da antiga Vila, além de ser exemplar da passagem da vida colonial para o Brasil republicano (DIAS, 2014, p. 133). A tipologia jesuítica do complexo edilício formado pela igreja e as alas que conformam a tipologia pátio-quadra da arquitetura religiosa jesuítica (DIAS, 2014. P. 184), tem em sua importância histórica a possibilidade de ampliar seu conteúdo originário. O prédio não foi somente sede da Igreja ou não é somente, hoje, sede política do Governo Estadual: foi e é um monumento da história urbana capixaba, em última instância, da cidade de Vitória, desde suas origens coloniais às transformações em que a


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sociedade passou nos últimos séculos, mantendo-se ainda altivo, símbolo e representante da história que percorreu (DIAS, 2014, p. 133). A tipologia jesuítica de São Tiago é tão importante como indutora do crescimento urbano da antiga Vila, como para a história do complexo paisagístico da capital. Sua escala urbana participa da construção da morfologia de Vitória, marcando a paisagem que se inicia a partir da metade do séc. XVI, até os dias de hoje, em suas diversas escala (Ver Figura 3, Figura 4, Figura 5, Figura 6 e Figura 7).


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Figura 3 – Em vermelho, área da implantação da Vila da Vitória a partir de 1551, núcleo original e histórico da atual cidade de Vitória

Fonte: SOUZA in SOUZA e RIBEIRO, 2009


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Figura 4 – Vila da Vitória em 1767, mapa atribuído a José Antônio Caldas. Em destaque, o prédio jesuítico de São Tiago

Fonte: SOUZA in SOUZA e RIBEIRO, 2009


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Figura 5 - Desenho de José Antônio Caldas, de 1767, da vista da Vila da Vitória. Em destaque, o prédio de São Tiago.

Fonte: REIS FILHO, 2000


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Figura 6 – Cartão postal de Vitória do começo do séc. XX (1900), acervo de Carlos Benevides Lima Junior. No centro da imagem, o prédio de São Tiago, já como palácio governamental, mas antes da reforma de 1910

Fonte: GOVERNO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, 2013


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Figura 7 – O atual entorno adensado e verticalizado do Palácio Anchieta (em destaque). Foto do acervo de Flavio Lobos Martins/Fóton. Ver também Erro! Fonte de referência não encontrada.

Fonte: MIRANDA, 2014. Modificado para o presente trabalho


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Figura 8 – A consolidação de sucessivos aterros na região central da cidade de Vitória, ao longo do séc. XX amplia sua área urbana, adensa suas construções e ao mesmo tempo, promove a possibilidade da valorização das áreas urbanas pela sucessiva verticalização por que passa a região, nesse momento. Em vermelho, o antigo prédio de São Tiago, atual Palácio Anchieta

Fonte: Planta com Restituição Aerofotogramétrica da Cidade de Vitória (ano de 2000). Modificada para o presente trabalho


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A história do atual Palácio se enquadra como exemplar de três das grandes narrativas pertencentes a esta pesquisa: a tipologia, a morfologia urbana e a paisagem. Enquanto tipologia se baseia nos exemplares mais singelos desenvolvidos pelos jesuítas no início de sua estada em terras brasileiras. Um modo simples, fácil e prático de ocupar o lugar que se torna, ao longo do tempo, parte fundamental de uma morfologia urbana colonial: o prédio em quadra, que se adéqua, pelas suas partes ou alas, aos condicionantes topográficos e às necessidades de mais espaço dos padres. Sua arquitetura, desde sua implantação primitiva, mais afastada da Vila, mas, próxima o suficiente da vida religiosa dos fiéis, foi também fundamental para o desenvolvimento urbano de Vitória, como um dos indutores do crescimento urbano bem como para a construção de seu imaginário colonial. A paisagem que o Complexo Jesuítico de São Tiago ajuda a construir é tradicional dentro da historiografia colonial, parte da iconografia de uma cidade antiga que cresce e se molda ao relevo local. Paisagem urbana que teve em seus prédios religiosos emblemas da fé e proteção espiritual, marcando as alturas de seu sítio e se aproximando do mar, fonte importante para sua vida comercial, econômica e cultural.


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Cap. III A Santa Cruz antes de Aracruz e suas origens jesuĂ­ticas.


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A

história de Aracruz inicia no que é atualmente o território de Santa Cruz, datada de 1556, apenas 56 anos após a

descoberta do Brasil. Originalmente, surgiu com a fundação de um pequeno aldeamento, denominado Aldeia Nova, na foz do Rio Piraquê-açu como um núcleo de catequese jesuítico, cinco anos após os padres jesuítas aportarem na

sede da Capitania, a Vila da Vitória. O rio Piraquê - nome de origem Tupi-Guarani, uma variação para alguns de Perequê (PELLIZZARO, 2011, p. 25) e que significa “entrada de peixe”– desagua no mar a partir de seu trecho final, alimentado por dois braços do mesmo rio, o Piraquê-mirirm e o Piraquê-açu, respectivamente o menor (ou mirim) com 22 Km e o maior (ou o açu) com 50 Km de extensão (Figura 9). Ambos ao se encontrarem formam esse corpo d’água à jasunte e mais largo – o rio Piraquê -, com 500 metros de largura (A TRIBUNA, 2007, p. 6). Exatamente nessa faixa do Piraquê, após encontro dos dois rios tributários e marcando a entrada por sua grande foz em forma de estuário, encontra-se implantada a atual Vila de Santa Cruz, origem da ocupação urbana da região de Aracruz.


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Figura 9 – Imagem de satélite da atual Vila de Santa Cruz (canto direito e abaixo da imagem) e dos dois braços do rio Piraquê, o mirim (abaixo) e o açu (acima) que correm em direção ao mar.

Fonte: GOOGLE EARTH, 2020


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Do antigo aldeamento nada mais resta do que os registros feitos pelos catequizadores jesuítas, mas, a sua localização geográfica é marca tanto da colonização portuguesa dos primeiros séculos do território brasileiro, quanto da presença jesuítica em nosso solo. A Igreja e a Coroa têm no primeiro século de colonização o importante papel de ocupação do litoral brasileiro, reforçando pelos núcleos urbanos e suas edificações, a presença do poder de ambas. As primeiras aldeias e vilas de ocupação europeia no Brasil são, portanto, expressões ou afirmações do domínio do território físico-geográfico pertencente à Coroa Portuguesa, como também o campo sagrado de expansão da fé católica pela catequização das almas pelo mundo. A geografia desses primeiros núcleos urbanos é a chave para entender a marca desse poder de mão dupla sobre o território brasileiro. Sua implantação, seguia como premissa básica a escolha, por parte dos colonizadores portugueses e jesuítas, de lugares estratégicos no litoral brasileiro: “[...] buscavam sempre sítios de posição privilegiada e dominante quanto ao entorno, próximos a cursos d’água para facilitar as incursões e a defesa” (DIAS, 2014, p. 95). Melhor ainda se fossem em pontos elevados do relevo para aumentar a segurança. A Aldeia Nova, mesmo próxima às margens planas do rio Piraquê, possuía posição estratégica: pela foz do rio se tinha fácil visibilidade de qualquer navio vindo pelo mar, facilidade ainda de água potável e pesca, relevo plano ao redor que não dificultava o controle visual do entorno, e, muito provavelmente à época, uma densa mata que servia tanto de refúgio contra qualquer ataque, como lugar de subsistência de alimentos e material de construção primitivos, e que nos dias atuais, ainda se faz presente em boa parte das margens do rio (Figura 10 e Figura 11).


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Figura 10 – Imagem atual da foz em estuário do rio Piraquê, em Santa Cruz, com a ocupação da vila à direita e abaixo.

Fonte: SILVEIRA, 2016


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Figura 11 – Vista oposta à foz do rio Piraquê e as matas que ainda existem ao longo de suas margens, em Aracruz.

Fonte: SILVEIRA, 2016

Foi assim com a Vila da Vitória, sede a Capitania do Espírito Santo. Em platô elevado, em forma de acrópole, a vila se desenvolve lentamente em sua localização privilegiada dentro da Baia de Vitória, local protegido e de fácil controle dos navios que a adentravam. Aqui primeiro aportam os jesuítas vindos a mando da Coroa, dentro dessa lógica de mão-dupla do poder sobre o


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novo território. Chegam em 1551, se instalam na Ilha de Vitória e iniciam o processo da construção de sua sede, bem como da criação de aldeamentos pela Capitania, em busca de catequizar índios e os novos colonos. Aldeia Nova foi criada e administrada pelo padre jesuíta Brás Lourenço, auxiliado pelos noviços Diogo Jácome e Fabiano Lucena, no processo de colonização portuguesa do séc. XVI, tendo na catequese dos índios pelos jesuítas uma de suas frentes de ocupação pelo litoral brasileiro, em um primeiro momento. Brás Lourenço chega ao Espírito Santo em 1553 para substituir padre Afonso Brás, após esse fundar na Vila da Vitória, em 1551, as bases do que viria a ser a Ordem Jesuítica na Capitania do Espírito Santo. O irmão Fabiano Lucena chega com o padre Manoel da Nóbrega em 1556, este trazendo consigo “[...] as Constituições, bem como as instruções sobre o que se deveria fazer em relação às aldeias que se formavam [...]” (CARVALHO, 2019, p. 81). Já sobre o noviço Diogo Jácome, não foi encontrado registro de sua chegada no Espírito Santo, somente, anos mais tarde, em 1564, voltando ao Espírito Santo já como padre, para assumir a aldeia de Nossa Senhora da Conceição (CARVALHO, 2019, p. 91), que séculos a frente, viria a se tornar sede do Município da Serra. O ano de 1556 marca a volta do padre Manoel da Nóbrega à Bahia, após desentendimento com o bispo Dom Pedro Fernandes, em 1552, sobre a atuação da catequese dos índios pelos jesuítas. Segundo Carvalho, em nota, “[...] o bispo se aborreceu com o modo como os jesuítas faziam a catequese e achou que esta deveria ser feita do mesmo modo como se fazia na Índia Oriental e no Japão. Em virtude disso, fez algumas advertências aos jesuítas e proibiu determinadas coisas que aborrecerem Nóbrega” (CARVALHO, 2019, p. 41, nota 42). Nesse meio tempo, Manoel da Nóbrega vai para o “sul” da colônia, próximo ao rio Piratininga fundar colégio e Igreja que dará origem, mais tarde, a cidade de São Paulo. Voltando ao “norte”, em 1556, Nóbrega retoma o processo de criação de


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aldeamentos (CARVALHO, 2019, p. 41). É nessa leva de novas aldeias, próximas às vilas principais das capitanias, mas distantes o suficiente para se reunir os índios convertidos e protegidos tanto dos não-convertidos como dos portugueses escravistas, que surge a Aldeia Nova, às margens do rio Piraquê. Junto aos jesuítas, a tribo de índios temiminós chefiados pelo cacique Maracaiaguaçu, procedentes de Niterói, se estabeleceu no recém criado aldeamento, fator que ajudou a atrair tribos que residiam na vizinhança, em decorrência do bom tratamento que estes recebiam. (BITTENCOURT MELO Jr., 2014, p. 30-31) Coutinho descreve os aspectos estruturantes do núcleo: Quanto ao transporte, não havia estradas. Os viajantes tinham que enfrentar não apenas os obstáculos naturais das matas e seus animais como também lutavam para afastar os invasores. Usavam-se os caminhos dentro das matas ou ia-se pela praia, aproveitando-se a maré baixa. As mercadorias eram transportadas em carros de boi, no lombo dos animais (cavalos ou tropas de burros) ou em barcos pelo mar (COUTINHO, 2006, p. 174).

Carvalho traça a história das primeiras aldeias jesuíticas na Capitania, desde o primeiro contato com os índios, em 1551 (CARVALHO, 2019, p. 123). Segundo o autor, o número e a localização de cada aldeia em solo capixaba, sempre foi um problema pela imprecisão dos dados fornecidos pelos padres, principalmente por suas cartas enviadas à Europa: “As informações eram, às vezes, fornecidas logo, sem detalhes, pela presa em enviá-las, talvez pela saída imediata do navio, o que ocasionava uma falha nas notícias” (CARVALHO, 2029, p. 126). Até o final do séc. XVI, as cartas enviadas davam conta de uma variada quantidade de aldeias ao longo da costa da Capitania, na direção sul e norte, a partir da sede na ilha da Vila de Vitória. Aldeia Nova faz parte das primeiras aldeias de catequização jesuítica na Capitania. Brás Lourenço, juntamente com Fabiano Lucena e o índio Maracaiaguaçu (ou Maracajaguaçu para alguns autores), apoiados nas Constituições jesuítas criam as primeiras


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aldeias ao norte, começando pela aldeia de Nossa Senhora da Conceição, no atual município da Serra, em 1556, seguida da Aldeia Nova em Santa Cruz, no mesmo ano, sendo a de Nova Almeida erigida em 1557, sendo essa última, segundo Balestrero, “[...] notabilizando-se por ter sido procurada pelos noviços da Ordem, vindos da Europa, que ali fundaram uma escola de aprendizado tupi” (BALESTRERO, 1979, p. 39). A de Nova Almeida, construída um ano depois de Aldeia Nova e não muito longe desta, vem para substituí-la, em decorrência da grande existência de formigas em Aldeia Nova, que levou a perda das plantações e dificuldades quanto a criação de animais. Esse novo aldeamento localizava-se onde hoje é Nova Almeida, no município da Serra, e foi batizado de Aldeia Nova dos Reis Magos. Enquanto isso, a aldeia original passou a se chamar Aldeia Velha. O pintor francês, Auguste Biard (1858), em visita a região, fez uma pintura sobre a invasão das formigas e ainda descreveu um momento que viveu:

Certa vez eu estava pintando um tronco de árvore coberto por trepadeiras que o envolviam como os arcos de um tonel. Enquanto trabalhava, não deixava de prestar atenção a insetos lezardos que passavam perto de mim, sempre na mesma direção; ouvia, mais distante, gritos de aves, alguns deles a se tornarem mais próximos. Pensei a princípio se tratasse de uma tempestade prestes a se desencadear e como tinha de percorrer bem uma légua antes de chegar a casa tratei de meu regresso, quando de súbito me vi coberto da cabeça aos pés por um exército de formigas. Mal tive tempo de me levantar, derramando tudo quanto tinha dentro de minha caixa de tintas, e fugi a toda velocidade, procurando me ver livre das formigas. E nem pensei em ir buscar os objetos deixados à toa. Numa extensão de dez metros mais ou menos de largura, unidas de tal modo que não se via um palmo do terreno, miríades de formigas caminhavam sem se importar com os obstáculos, a transporem parasitas, plantas, árvores das mais elevadas. (BIARD, 2004, p. 85).


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Figura 12:Tela feita por Auguste Biard sobre a invasão das formigas.

Fonte: Livro Deux années au Brésil, pág. 193, 1862.

Os aldeamentos jesuítas se espalham para sul, chegando nas atuais regiões de Guarapari e Anchieta e alcançam importância maior no projeto catequizador dos jesuítas, por conseguirem atrair um grande número de “neófitos”, segundo Balestrero (1979, p. 40) que viviam ao redor dos padres e sua fé para serem catequizados e alfabetizados (BALESTRERO, 1979, p. 40). Juntam-se às aldeias, o Colégio e Igreja de São Tiago, em Vitória, as igrejas construídas nas aldeias e as fazendas, como as primeiras estruturas urbanas e arquitetônicas de relevante importância para a história urbana capixaba, sendo, como visto, originarias de cidades séculos a frente.


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O crescente progresso da então recém criada Aldeia Nova levou ao declínio da Aldeia Velha, que por anos ficou abandonada. No entanto, apesar do estado de decadência, esta foi repovoada por volta de 1774, por 30 casais trazidos pelo Capitão Mongeardino, capitão-mor da capitania. Pouco se sabe sobre o seu desenvolvimento, no entanto, a teoria mais provável de sua ascensão se dá em razão da existência do porto fluvial e sua grande atividade, visto que este estava em um local de fácil acesso das embarcações, o que atraiu o interesse do então presidente da Província do Espírito Santo. Em 1837, a Aldeia Velha é elevada à categoria de Freguesia, que fora consagrada a Nossa Senhora da Penha, subordinado ao Município de Reis Magos, Nova Almeida. Em 1848, todo o desenvolvimento cominou na criação de uma Vila, sendo esta denominada Vila de Santa Cruz. No mesmo ano foi criado o Município de Santa Cruz, atualmente Aracruz, no entanto, é instalado solenemente apenas em 1849. O município tinha sede onde era a Vila de Santa Cruz, e este abrangia o território dos atuais municípios de Aracruz, Ibiraçu e João Neiva. Este fora ainda desmembrado do Município de Reis Magos. Por fim, por meio de Decreto Estadual, a Vila de Santa Cruz é elevada à categoria de cidade em 1891. As mudanças continuaram, e em 1943, a cidade, o distrito e o município de Santa Cruz passaram a denominar-se Aracruz, que na língua dos tupi-guarani significa “Santa Cruz”. A alteração da denominação ao que parece ocorreu apenas para constar o nome grafado em tupi-guarani. (BITTENCOURT MELO Jr., 2014, p. 35) O ano de 1860 é apontado como ano provável da chegada dos primeiros moradores além dos índios, posseiros que instauraram as primeiras fazendas, ao Povoado de Sauaçu - nome de origem tupi-guarani que faz referência a uma espécie de macaco (callicebus melanochir - hoje sede do município de Aracruz. Quanto ao início preciso da localidade, existem algumas lacunas na história. Houve uma menção em 1855, acerca de uma sesmaria de terras, cuja descrição se assemelha a região, mas após esta,


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não houve durante alguns anos nenhum outro registro. Acredita-se que na região até então pouco explorada ostentava uma mata bastante fechada e que era habitada por muitos macacos de porte grande, que chamavam atenção dos trabalhadores, principalmente dos italianos, pois não se viam estes animais na Itália. A localidade de Sauaçu, cujo nome significa Macaco Grande, fora dado pelos índios anos antes da chegada dos homens brancos. (BITTENCOURT MELO Jr., 2014, p. 102) Em 1948, a sede do Município de Aracruz foi transferida para a cidade de Sauaçu, que anteriormente havia sido elevada da categoria de povoado para cidade. No entanto, somente dois anos depois a mudança da sede consegue ser oficializada. As mudanças continuaram, e em 1953, o até então Povoado de Sauaçu teve sua denominação alterada, em definitivo, para Aracruz. No mesmo ano foi criado o Distrito de Santa Cruz do Município de Aracruz, localizado onde se encontrava a Aldeia Velha, conhecida como Vila de Santa Cruz e posteriormente Município de Aracruz. Assim, a divisão territorial do município ficou constituído de 5 distritos: Aracruz (Sede), Guaraná, Jacupemba, Riacho e Santa Cruz, permanecendo com esta divisão até hoje. No livro “Faça-se Aracruz!”, o autor justifica a mudança em decorrência da necessidade de centralização dos poderes públicos e integração entre as povoações, visto que a sede era de difícil acesso, enquanto o povoado de Sauaçu possuía uma posição central no município. A construção da Estrada de Ferro Vitória X Minas e BR-101 foram fatores que também contribuíram para acabar com o movimento do porto fluvial de Santa Cruz e consequentemente ajudaram na decisão da realocação da sede.


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Cap. IV O olhar do estrangeiro sobre a Vila de Santa Cruz do SĂŠc. XIX


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Aldeia Velha recebeu ao longo do séc. XIX alguns viajantes estrangeiros que foram de extrema importância pois, por meio das anotações destes, hoje sabemos um pouco mais sobre o início da história de Santa Cruz. E nos quase um século de relatos agrupados aqui, como se verá, percebe-se de antemão, que a pequena vila de Santa Cruz, antiga

Aldeia Velha, pouco mudou em seu aspecto simples de edificações simplórias. Dentre eles, temos o Príncipe Wied-Neuwied, de origem alemã, que visitou a aldeia por volta de 1815, e descreveu o local da seguinte maneira: “composta de meia dúzia de choupanas de pescadores”. Este ainda complementa “[...] são pescadores pobres; contudo, o peixe é abundante no rio, que possui boa barra, de modo que as lanchas podem singrar até longe, rio adentro”. (1958, p.151) Mais tarde, no mesmo ano, Auguste de Saint- Hilaire, botânico francês, estudava a natureza in loco, registrando em seu diário de viagem tudo que via em formato de texto e gravuras. Em seu livro, “Segunda Viagem ao Interior do Brasil”, este fornece algumas informações sobre a aldeia como, por exemplo, a base econômica da região, a segurança militar presente nesta, o número de moradores da localidade e de núcleos vizinhos. Vindo de Vitória, após passar em Vila Nova (Reis Magos, na Serra) e a caminho de Aldeia Velha, Saint-Hilaire segue pela costa em direção da antiga aldeia. Todo percurso é marcado por matas às margens da costa e cabanas habitadas por índios (SAINT-HILAIRE, 1974, p. 75), que prenunciam alguma civilização próxima. Chegando em Aldeia Velha, ali para, pois seu destino, antes de voltar à Vitória, é o rio Doce no Povoado de Linhares. Em sua estadia, as primeiras impressões sobre a simples aldeia às margens do rio Piraquê, ou “Rio da Aldeia Velha” como escreve o explorador francês: Esse lugarejo se compõe de choupanas construídas, na maioria, na Foz do Rio da Aldeia Velha e em sua margem meridional. Faz parte da paróquia de Vila Nova, ou Almeida, e é povoado por indígenas civilizados, que vivem da pesca e do produto de algumas terras cultivadas. O Rio da Aldeia Velha é formado pela junção de dois regatos, um menos considerável que vem de sudoeste e tem nome


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de Piriquimirirm, o outro que vem de noroeste e se chama Piriquiaçu (SAINT-HILAIRE, 1974, p. 7576).

Em sua rápida estadia, Saint-Hilaire registra a vida comercial dessa pequena aldeia: mesmo de forma incipiente, o comércio de Aldeia Velha se estendia à época, à Bahia e ao Rio de Janeiro na venda de farinha de mandioca e de milho fabricadas pelos índios (SAINT-HILAIRE, 1974, p. 76), que ainda exploravam o pau-amarelo de suas matas, utilizado como base para tintas, o cal, proveniente da região de Caieiras, mais ao norte da aldeia, extraído das conchas e, segundo o mesmo, “os demais artigos são comprados dos índios por 3 ou 4 negociantes portugueses estabelecidos na região e por outros que vêm de fora com barcas” (SAINT-HILAIRE, 1979, p. 76). Saint-Hilaire ainda registra a presença militar na aldeia através de um posto militar com um contingente de índios, que se alternam em turnos (SAINT-HILAIRE, 1979, p. 76), e de um capitão de milícia: “este capitão, que se intitula Capitão da Barra, não recebe ordem de ninguém que não o governador” (SAINT-HILAIRE, 1974, p. 77). O Capitão Manoel Francisco da Silva Guimarães, português de origem, era o que mais se aproximava de uma autoridade da Coroa na região, sendo “[...] encarregado de velar e manter a ordem e de despachar os papéis exigidos dele ao patrões dos barcos” (SAINT-HILAIRE, 1979, p. 76). Toda a região ao norte do Espírito Santo, seria a partir de 1800, militarizada com uma série de fortificações que subiam pelo planalto capixaba indo até a região do rio Doce, foco de embates com os ferozes índios botocudos. Linhares, por sinal, parada final de Saint-Hilaire, surge nos primeiros anos do séc. XIX como uma povoação construída no lugar de um dos quartéis do vale do rio Doce capixaba, o de Coutins, destruído por ataque dos índios em defesa de suas terras ancestrais. A implantação dos quartéis e a criação de Linhares, faziam parte da política da Coroa Portuguesa de ocupar o interior do território capixaba e ser, ao mesmo tempo, meio de segurança e proteção de penetração do território ainda inexplorado.


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Auguste François Biard, pintor francês, visitou Santa Cruz entre os anos de 1858 e 1859. Através dos seus registros escritos e pinturas, podemos ter uma clara ideia de como era a arquitetura e sua organização da época. Segundo palavras do pintor: “[...] a igreja de Santa Cruz possuía de notável apenas a fachada. Ali só vi, depois, que merecesse uma referência especial, um chafariz há pouco construído. O resto quase nada valia: casinholas sem simetria, capim por toda parte, um portozinho protegido por alguns recifes” (BIARD, 2004, p. 64). Em seu discurso este ainda descreve as moradias como sendo feitas de barro, pintadas de branco e cobertas com folhas de palmeira. No entanto, o registro de maior importância foi a pintura do frontispício, construído em 1857, e do perfil da Igreja de Nossa Senhora da Penha. A referida igreja cuja estrutura não possuía um corpo ou uma nave, apenas uma cabana por detrás da fachada, feita com esteios de madeira, paredes de taipa e cobertura de folhas de palmeira, que cumpria a função de igreja. Em 1860, D. Pedro II, Imperador do Brasil, juntamente com sua comitiva, visitou e pernoitou em Santa Cruz como parte do seu itinerário de visita pelo interior do país. Este inaugurou na localidade um chafariz público, e deixou como lembrança de sua passagem medidas fabricadas em bronze. Em seu caderno de viagem descreve a localidade da seguinte forma: “uma vila alegre, à margem direita do rio, com casas térreas, pequenas e a maior parte cobertura de sapê”. O Imperador D. Pedro II ainda escreveu em seu caderno de anotações: “O frontispício da Igreja é maior do que esta, iludindo de longe a quem o vir de frente” (ROCHA, 2008, pág. 169) Quanto à vila, ainda no tempo da visita do Imperador, não aspirava grandes edificações: a Igreja por terminar, e como diz Biard, citado por Rocha, “’O resto’ - descreveu o pintor – ‘quase nada valia: casinholas sem simetria, capim por toda parte, um portozinho protegido por alguns recifes’” (ROCHA, 2008, p. 170). Além da igreja, Dom Pedro ainda anota em seu diário a fonte


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inaugurada de “duas bicas de água muito boa” (ROCHA, 2008, p. 170), construída desde o começo do séc. XIX e reformada em 1859, e ainda, o rio Piraquê e seu porto de Santa Cruz, nessa citação do seu diário que Rocha transcreve: Há às vezes no porto 8 embarcações de barra fora. O Piraquê-açu que vem do sul admite navegação no tempo da águas para canoas grandes até 6 a 8 léguas, à fazenda do Rafael Pereira de Carvalho, e o Piraquê-mirim até 2 a 3 léguas vindo do norte a reunir-se ao outro pouco cima da vila; [formam] o rio Santa Cruz (ROCHA, 2008, p. 171).

Em sua breve estadia, o Imperador ainda participou de atividade oficial na Casa de Câmara que ainda não tinha a função dupla dessa tipologia como cadeia também, já que a cadeia nessa época se resumia, segundo Rocha, a “um rancho de taipa coberto de palha e não oferecia a menor segurança nem merecia tal título” (ROCHA, 2008, p. 169). A Casa que segundo o Imperador tinha “telha”, mas, com “sala sofrível”, somente será terminada, como se verá mais a frente, em 1876 já como Casa de Câmara e Cadeia de Santa Cruz. Em sua partida em direção à Vila de Linhares, Dom Pedro II e comitiva atravessam o rio “Santa Cruz” e o Imperador relata a presença do barco encalhado de França Leite, empreendedor que em 1857 levou uma primeira leva de imigrantes europeus para às margens do rio Doce, opostas onde décadas mais tarde, surgia a vila de Colatina. Fransilvânia, seu empreendimento colonizador não durou por um ataque dos índios botocudos (ROCHA, 2008, p. 178). Dalí, o Imperador segue em direção à vila do Riacho e depois, à vila de Linhares, voltando depois à Vitoria. Em sua viagem pela costa brasileira, o geólogo canadense-americano Charles Frederick Hartt chega à Província do Espírito Santo em 1865, e após estadia em Vitória segue, litoral acima, em direção ao rio Doce, em Linhares, passando primeiro por Santa


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Cruz. Em seus relatos geológicos de todo o território navegado, deixa sua análise do rio “Santa Cruz” (o Piraquê) e da geologia local: [...] As camadas terciárias continuam para o norte até o porto de Aldêa Velha, ou Santa Cruz, ao norte do qual desaparecem da costa, e sã substituídas por pântanos e brejos que ocupam a costa daí até o Rio Doce. Entre Nova Almeida e Santa Cruz, assim como para o norte, as camadas de arenito formam, em alguns pontos, praias rochosas, ao largo das quais existem ilhotas isoladas que obstruem as baias. O Rio Santa Cruz é, como o Reis Magos, um pequeno curso que permite navegação apenas por canoas. Seus principais afluentes são o Piriqui-assu e Piriqui-mirirm [aqui Hartt citando SaintHilare]. Abre-se em uma pequena baia como a de Nova Almeida, que constitui um porto para pequenos navios. As baias de Nova Almeida e Santa Cruz são notáveis porque dão francamente para o mar, e, diferentemente das desembocaduras dos outros rios, não são obstruídas por barras de sedimentos, - circunstâncias que são talvez devidas ao fato de os rios, que desembocam nelas, transportem pouco sedimento (HARTT, 1941, p. 113).

Treze anos mais tarde, em sua viagem de pesquisas da fauna e flora do planalto capixaba, a Princesa Teresa da Baviera, volta à Vitória pelo litoral, passando por Santa Cruz, após explorar a região do vale do rio Doce. Desce a costa embarcada em um navio rebocador à vapor, saído do porto de Regência, em Linhares (BAVIERA, 2013, p. 128). No dia seguinte ao embarque, chega ao anoitecer no porto de Santa Cruz, parada antes de chegar à Vitória. Ali, vislumbra a pequena vila e sua geografia: Ao anoitecer, nos aproximamos de Santa Cruz, vila formada por uma aldeia missionária, cujos habitantes possivelmente ainda hoje são na maioria indígenas. Essa pequena mancha situada perto da costa consiste de apenas poucas casas caiadas rodeadas de muros. Logo atrás das casas, há uma pequena elevação coberta de mata, por onde o rio Santa Cruz serpenteia saindo de um desfiladeiro. Bem ao fundo, sobressaem montanhas das margens do rio (BAVIERA, 2013, p. 129).


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Em seu relato, a princesa fala do rio, de seus braços e de sua pequena extensão, de um rio de “pouca importância” (BAVIERA, 2013, p. 129-130). De certo, a Princesa estava correta quanto a importância do rio, se comprarmos a sua recente experiência com a visita ao rio Doce, extenso corpo d’água que percorre dois estados, adentrando o interior de Minas Gerais e com sua foz no Espírito Santo. O Piraquê, ao contrário, é de pouca extensão, pouco navegável, pois somente permite a entrada de barcos de pequena profundidade, como bem reparou a Princesa ao atracar no porto de Santa Cruz: “Aqui existe um atracadouro bem protegido, com 9 a 10 metros de profundidade, no entanto ainda se percebe bem claramente o fluxo das marés” (BAVIERA, 2013, p. 129). Mas, mesmo pequeno comparado aos históricos rios de penetração do Espírito Santo, como o rio Doce, ao norte, o Itapemirim, ao sul e o Santa Maria de Vitória, importantes para a história da colonização ao longo do séc. XIX do interior da Província, o rio Piraquê foi importantíssimo para o início da colonização italiana pelo interior do Espírito Santo. Ele foi um dos caminhos seguidos pelos imigrantes que abandonaram a fazenda de Pedro Tabachi, anos antes da chegada da Princesa Teresa, e que se dispersaram pelas terras do interior, fundando com outros imigrantes, novas colônias que dariam origem, décadas a frente, as cidades de Fundão, Ibiraçu, parte de João Neiva, Colatina, Itaguaçu, Santa Leopoldina, entre outros (A TRIBUNA, 2007, p. 2). A estadia da Princesa Teresa da Baviera, em Santa Cruz, foi prolongada pelo feriado de 7 setembro, quando ninguém trabalhou e o seu pequeno vapor ainda seria embarcado com sacas de café (BAVIERA, 2013, p. 130). Aproveitou a estada forçada para explorar a região. Logo recolheu uma série de moluscos, conchas, mexilhões e plantas das margens do rio, presentes, segundo relato da mesma, em várias partes do mundo, que aumentaram sua coleção zoológica e botânica recolhida em sua exploração capixaba (BAVIERA, 2013, p. 131).


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Aproveita também para visitar a vila no mesmo dia e percorrer a região a cavalo. Primeiro, vai a uma missa na Igreja de Nossa Senhora da Penha, a mesma visitada por Dom Pedro II, quase vinte anos antes, quando se limitava ainda ao seu frontispício. Mas a impressão da Princesa sobre o prédio religioso era de uma realidade bruta: “Encontramos literalmente uma igreja de emergência, pois a casa de Deus consistia unicamente de uma sala miserável com um altar pobre e feio” (BAVIERA, 2013, p. 132). A Igreja de Nossa Senhora da Penha, obra iniciada, como visto, nos finais da década de 1850, conformava a sua frente um largo que se abre até hoje ao rio, e sua imponente fachada, dava uma falsa impressão de monumentalidade do conjunto, como já atestado por D. Pedro II: “Navegantes que passavam pela baía de Santa Cruz também tinham a impressão de estar vendo uma grande igreja e uma vila cheia de riquezas e fazendeiros poderosos, o que não era verdade” (MORRO DO MORENO, 2020, p. ?). Sua cavalgada a leva à costa ao sul e ao interior de Santa Cruz, chegando, ao que parece, na região do rio Laranjeiras ou do rio Gramuté (tributário do Laranjeiras), distantes mais de 3 Km de Santa Cruz, que desaguam próximos à divisa com o Município de Fundão na Praia Formosa. A Princesa se maravilha com a mata local, com os espécimes da flora encontradas ali e pelos encantos da natureza, ainda naquele momento, inexplorada: [...] cavalgamos por um trecho coberto de matagal, muito atraente, que em sua origem era totalmente livre de presença humana. Eram plantas semelhantes a loureiros e salgueiros que cobriam o solo pouco fértil. Finalmente, bem perto da costa, passamos ao lado de um trecho de mata [...] Inesperadamente encontramos ali uma floresta tropical dos sonhos, com particularidades deveras inesperadas, Um rio que passa ali de alargava em vários trechos, formando pequenas poças de água que se acomodavam em leitos de um verde profundo de cor esmeralda, em meio à abundância da vegetação circundante (BAVIERA, 2013. p. 134).


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Após a cavalgada, volta à vila e participa das festividades do feriado de 7 de setembro à noite, sob músicas e fogueira acessa e os contrastes da vida simples desse pequeno lugarejo: Num lugar onde existem áreas de cobertas de capim e faixas de grama, e cujas casas e choupanas são cobertas de capim de palmeiras, com janelas de madeira em vez de vidraças, essa festividade era estranha pelo seu costume (BAVIERA, 2013, p. 135).

No dia seguinte, zarpa em seu navio para Vitoria sem antes receber o carinho dos moradores locais e uma série de espécimes de conchas de presente, que gerou uma lista catalográfica da Princesa com os nomes científicos de cada concha e a identificação de suas características (BAVIERA, 2013, p.136-137).


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A imagem de uma vida simples com casarios de poucos requintes em Santa Cruz, perdura até as primeiras décadas do séc. XX (Figura 13, Figura 14, Figura 15, Figura 16, Figura 17, Figura 18), quando a antiga Vila, já município de Santa Cruz desde 1891, recebe melhorias urbanas de infraestrutura que condizem mais com seu atual status.

Figura 13:Uma rua da Santa Cruz de 1908. Foto de Eustyquio D’ Oliver.

Fonte: ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, 2015 .


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Figura 14: A já cidade de Santa Cruz, em 1908. Foto de Eustyquio D’ Oliver.

Fonte: ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, 2015


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Figura 15:O movimento das ruas da antiga vila, em 1908. Foto de Eustyquio D’ Oliver.

Fonte: Acervo do IPHAN-ES


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Figura 16: O importante meio de locomoção pelos cavalos de Santa Cruz do começo do séc. XX. Foto de Eustyquio D’ Oliver.

Fonte: Acervo do IPHAN-ES


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Figura 17: Mais cenas da vida pacata de Santa Cruz, tiradas por Eustyquio D’ Oliver, em 1908.

Fonte: Acervo do IPHAN-ES


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Figura 18: Santa Cruz e seu porto fluvial no rio Piraquê. A simplicidade do casario ainda marca a vila nessa foto de 1922.

Fonte: FOTOS E VÍDEOS ANTIGOS DE ARACRUZ, 2019.


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Cap. V Uma nova origem para Santa Cruz: a imigração italiana no Espírito Santo.


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E

ntre 1871 e 1873, apoiados pelo governo da província do Espírito Santo e aproveitando-se de auxílios do governo imperial4 (GROSSELLI, 2009, p. 180-181), empreendedores que incluíam proprietários de terras do Espírito Santo foram incentivados a trazer levas de imigrantes estrangeiros do norte da Europa e da região de Trento, na Itália, para

trabalharem principalmente nas fazendas de café e, ao mesmo tempo, servirem de contingente civilizado para ocuparem a grande extensão de terras ainda desocupadas do interior do Estado. O italiano da região de Trento, Pietro Casagrande, se encarregara de trazer ao Brasil a primeira leva de imigrantes italianos também provenientes de Trento, em 1874, em contrato firmado com o também italiano, mas já radicado no Brasil anos antes, Pietro Tabacchi. Conterrâneo de Pietro Casagrande, Pietro Tabacchi foi responsável pela primeira expedição de imigrantes italianos para o Brasil. Para Grosselli (2009, pág. 202), Tabacchi, teria fugido ou talvez se afastado da Itália (GROSSELI, 1991, p. ?) por conta de questões econômicas, provavelmente, devido a uma falência como apontam documentos históricos da vida desse Trentino no Espírito Santo (GROSSELI, 1991, p. ?).

4

. No Relatório de 4 de maio de 1875, o então Presidente da Província do Espírito Santo, o Coronel Manoel Ribeiro Coitinho Mascarenhas aponta a necessidade dos colonos para as terras capixabas, aproveitando-se do regulamento Imperial de 1867: “Tornando-se cada vez mais necessária a nomeação do agentes locaes que sejão incumbidos da recepção e tratamento dos emigrantes, que vem para a província mediante os favôres e benefícios outhorgados pelo Regulamento de 19 do Janeiro de 1867, como reconheceu o Exm.° Sr, Conselheiro Ministre dos Negocios d’ Agricultura, Comnercio e Obras Publicas de conformidade com a authorisação constante do Aviso de 15 de Novembro ultimo, forão nomeados para essa commissão, por acto de 30 do mesmo mez nas diversas localidades, os cidadãos abaixo declarados. Confio, pois, de tão acertada escolha, que, em verdade, recahio em pessoas bem consideradas de diferentes localidades, que seráo os referidos colonos bem recebidos e acolhidos, recebendo desta sorte bom agazalho, tratamento e hospedagem, tornando-se assim cada vez proverbial o humanitário espirito de acolhimento dos habitantes da província do Espirito-Santo”. E em sua lista de “agentes locaes” para receber os novos colonos, o Presidente da Província apresenta para Linhares o nome de Joaquim Francisco da Silva Calmon (MASCARENHAS, 1875, p. 11-12).


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Figura 19: Pietro Tabacchi e Anna Fountoura Tabacchi.

Fonte: Livro Colônias Imperiais na Terra do Café, pág.36, 2009.

No entanto, Daemon aponta que o motivo da sua vinda para o Brasil foi outro: “Homem inteligente e ilustrado, tendo mesmo o curso de Medicina, que não concluiu em seu país por ter-se envolvido em uma revolução, para aqui viera e se estabelecera montando uma fazenda, mas sempre dedicado ao estudo” (DAEMON, 2010, pág. 473). Tabacchi estabelece-se no Espírito Santo desde meados de 1850, em sua fazenda Monte Delle Palme, na região de Santa Cruz, situada entre os rio Piraquê-Mirin e Açu (ver Figura 21). Na vila, abre um pequeno negócio que, segundo Biard, não passava de


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uma “pequena casa cheia de mercadorias” (GROSSELI, 1991, p. ?). Sua fama de negociador de madeiras – o “abatedor de Jacarandás”, segundo Biard (GROSSELI, 1991, p. ?), que chegou aos ouvidos do Imperador, em sua visita à Santa Cruz, dava conta de seu tino comercial, como explica Grosseli. Tabachi viu, segundo o autor, uma ótima chance de negócios na imigração italiana, usando da possibilidade do direito à extração de mais jacarandás como moeda de troca (APEES, 2020, p. ?). Sua origem da região de Trento na Itália (mas, ainda pertencente ao território da Áustria, nessa época) e a situação econômica precária dessa e de outras regiões do antigo território italiano, deram-lhe a oportunidade e a primazia histórica nesse empreendimento – o “negócio do século” segundo Grosseli (2009, p. 82) - que mudou a feição da ocupação populacional e do desenvolvimento econômico e urbano no Espírito Santo, a partir de meados do séc. XIX. Em carta ao Imperador, transcrita por Grosseli, Tabacchi apresenta seus interesses nesse novo empreendimento: Pietro Tabacchi, estabelecido no sertão de Santa Cruz, respeitosamente oferece-se ao Governo de Vossa Majestade Imperial para preparar, nas florestas desta província, nas localidades descritas nas informações anexas, uma área adequada para dar início a uma colônia agrícola, com os seguintes deveres e direitos: 1º O suplicante obriga-se a desmatar cem braças quadradas de floresta provincial, na localidade supracitada, e em toda esta extensão plantar milho, feijão, mandioca, batatas e outros cereais que possam ser usufruídos pelos colonos à sua chegada; 2º O suplicante obriga-se a construir neste local casas de taipa286 cobertas de palha, com espaço para 50 famílias; 3º O suplicante obriga-se a abrir 4 ou 5 léguas de estradas, necessárias para coligar o local do núcleo colonial ao rio Piraquê-Assu, que forma a barra da aldeia de Santa Cruz; 4º O suplicante obriga-se a realizar desmatamentos, plantações, construção de casas, no período máximo de dois anos. O Governo de Vossa Majestade concederia ao suplicante, como compensação por estes serviços, o direito de abater, nas terras provinciais, 3.500 árvores de jacarandá, (...). O controle dos abates e do cumprimento das referidas obrigações será realizado da maneira que o Governo de Vossa Majestade julgar mais justo. Como, porém, o suplicante pretende empregar braços livres, que praticamente introduzirá nesta província, este solicita um apoio moral


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e de simpatia para ativar e praticar o mais fielmente possível o conteúdo da presente proposta (GROSSELI, 2009, p. 171).

Por anos, Tabacchi seguiu em sua tentativa de trazer mão de obra estrangeira para o território capixaba, e foi em 1871, através de solicitação do Presidente da Província aos fazendeiros locais e a partir de iniciativa do Governo Imperial, que esse fazendeiro radicado em terras de Santa Cruz, vislumbrou uma possibilidade factível de realizar seu empreendimento. No mesmo ano, fecha contrato com o Governo e se compromete a “ ’importar e estabelecer nas terras de sua fazenda, situada no Município de Santa Cruz, na Província do Espírito Santo, 30 famílias de imigrantes alemães ou do norte da Europa, ou 150 pessoas treinadas nos trabalhos de agricultura, com saúde perfeita e nunca maiores de 45 anos’ “(GROSELLI, 1991, p. ?). O fechamento do contrato se estendeu até o ano seguinte, e somente em 1873, depois de dificuldades inesperadas, segundo Grosselli (1991, p. ?), Tabacchi conseguiu organizar essa primeira imigração italiana ao Espírito Santo e, historicamente, a primeira do Brasil. Batizada de Tabacchi, em homenagem ao seu idealizador, a expedição foi autorizada por meio de Decreto Imperial no ano de 1873. Um ano após a autorização, 388 camponeses trentinos e vênetos partiram do porto de Gênova no navio à vela francês La Sofia, e desembarcaram na capital Vitória, em fevereiro de 1874. A “expedição” era composta por “388 camponeses, o capelão Dom Domenico Martinelli, de Centa, o médico Pio Limana, de Borgo Valsungana, Pietro Casagrande e sua esposa” (GROSSELLI, 2009, p. 210). Casagrande foi incumbido, na Itália, de organizar e trazer famílias italianas aproveitando-se da crise econômica por que passava a região na época (GROSSELLI, 2009, p. 210). A primeira colônia de imigrantes italianos, conhecida como “Colônia Nova Trento” (GROSSELLI, 2009, p. 184), iniciada por Pietro Tabacchi em sua fazenda (Figura 21), a Monte Delle Palme em Santa Cruz, não durou mais do que alguns meses, após a chegada das famílias ao Espírito Santo. Descontentamentos com os alojamentos


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provisórios e as condições do contrato assinado, frente à realidade que se apresentava à essas famílias ao chegarem à terra prometida, criaram uma série de confusões ao longo do ano de 1874 entre as partes envolvidas: Não era o trabalho o que assustava, mas não estavam preparados para aquelas condições de vida. Deparavam-se com a floresta, e os campos que nela se inseriam, assim como o barracão em que foram instalados. Não havia aldeias próximas, comércio, nada. E, de fato, alguns tentaram retornar à Europa. É provável que no início muitos quisessem fazê-lo. Especialmente quando, pouco dias após a sua chegada, uma epidemia trouxe a morte para junto deles (GROSSELLI, 2009, p. 221


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Figura 20: Fragmento do mapa das colônias do Espírito Santo, de 1878, que mostra a Colônia de Santa Cruz às margens do Piraquê-Açu e Mirim, com destaque para a fazendo de Pedro Tabachi.

Fonte: ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO, 2020.


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Os imigrantes acusaram Tabacchi de não cumprimento das cláusulas do contrato: Primeiramente, quanto a terra, que não fora preparada para chegada dos italianos, bem como os alojamentos, que segundo relatos, apresentavam um estado precário e não condiziam com o prometido. Outro ponto crítico foi a distância das terras em relação ao alojamento. O contrato ainda previa alimentação e moradia durante seis meses após a primeira colheita. Os colonos sentindo-se enganados com falsas promessas, revoltaram-se, e muitos acabaram por seguir para colônias oficiais que possuíam infraestrutura e melhores condições de trabalho (COUTINHO, 2006, p. 235-236). Alguns seguiram para Santa Leopoldina, outros para onde hoje é Rio Novo do Sul, e uma parcela destes fundaram Santa Teresa, reconhecida no ano de 2018 pelo governo federal, por meio da Lei nº 13.617, como município pioneiro da imigração italiana no Brasil. Segundo Coutinho (2006, pág. 233), o empreendimento “Nova Trento” fracassou antes mesmo de nascer. Após quatro meses da chegada dos imigrantes, Pietro Tabacchi morre, tendo sua saúde agravada em decorrência do fracasso do seu projeto. Daemon (2010, p. 473): [...] falece na vila de Santa Cruz o súdito italiano Pietro Tabachi, já em idade de mais de cinquenta anos, tendo residido por muitos anos nesta província, para onde veio ainda muito moço. Homem inteligente e ilustrado, tendo mesmo o curso de Medicina, que não concluiu em seu país por ter- se envolvido em uma revolução, para aqui viera e se estabelecera montando uma fazenda, mas sempre dedicado ao estudo. Um ano antes de sua morte sacrificara parte dos bens que possuía e partiu para a Europa, a fim de realizar a vinda de colonos tiroleses para montar um núcleo colonial, o que com muitos sacrifícios obteve, mas os colonos, apesar do muito que ele fizera, não conservaram-se satisfeitos, pois, aconselhados e induzidos por outrem, revoltaram-se causando isso grande desgosto a Tabachi, agravando a afecção de coração que sofria e arrastando-o à sepultura em poucos dias. Tabachi era homem muitíssimo instruído, de vistas largas e empreendedor, e julgamos imparcialmente que a província perdeu nele um homem de mérito real.


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Após a morte de Tabacchi, a Fazenda das Palmas foi vendida, chegando mais tarde às mãos de Aristides Armínio Guaraná, mais conhecido como General Guaraná, um veterano da Guerra do Paraguai. Este veio para o Espírito Santo em 1877, após ter sido nomeado como Diretor do Núcleo Colonial Santa Cruz, região que deu origem a cidade de Ibiraçu (COUTINHO, 2006, p. 618). Na região, trabalhou para a implantação de novas povoações, ajudando imigrantes italianos a se estabelecerem, sendo a maior parte oriundos de expedições posteriores à de Pietro Tabacchi. Ao desembarcarem, os imigrantes realizam o mesmo itinerário do grupo trazido por Tabacchi, terminando viagem na Fazenda das Palmas. Alguns anos depois, General Guaraná renuncia ao seu cargo de diretor, e passa a se dedicar à construção do Engenho Central Guaraná, uma indústria açucareira que tinha como objetivo fabricação de açúcar suficiente para negociar com o mercado externo. Tal empreendimento industrial empregou mão de obra italiana, contratados pelo General que ofereceu melhores condições de vida e trabalho. Infelizmente a indústria foi a falência, mas no que diz respeito a história, foi um dos mais importantes acontecimentos da época, juntamente com a primeira expedição de Pietro Tabacchi (CRUZ, 1997, p. 200-201). Ainda entre o final do século XIX e o início do século XX, o Estado do Espírito Santo recebeu muitos imigrantes e migrantes, estes últimos oriundos de estados vizinhos como o Rio de Janeiro e Minas Gerais. Todo o processo migratório contribuiu imensamente para com a formação do povo Aracruzense, a partir do começo do novo século. A atual sede do Município de Aracruz, conhecida inicialmente como Sauaçu, hoje, somente Aracruz, se desenvolveu a pouca distância onde se encontra a antiga fazenda de Pietro Tabacchi. A fazenda, sede do primeiro núcleo de imigração italiana no Espírito Santo, localiza-se às margens do rio Taquaraçu, que desagua no Piraquê-açu, e faz parte da comunidade de Palmas, dento do Distrito e Aracruz (Figura 21).


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Figura 21 – Fragmento do mapa de divisão dos distritos de Aracruz, com destaque para Aracruz (sede) e Santa Cruz, com a indicação em vermelho da localização aproximada da Fazenda Monte Delle Palme, de Pietro Tabacchi, próximo às margens do rio Taquaraçu.

Fonte: PREFEITURA MUNICPAL DE ARACRUZ, 2008. Alterado pelo autor.

Estando, aproximadamente, a três quilômetros de distância do centro da sede de Aracruz, a Fazenda Monte Delle Palme de Tabacchi estaria, hoje, muito mais próxima da atual sede de Aracruz do que quando foi Santa Cruz o núcleo urbano mais


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importante da região. As distâncias percorridas da fazenda até Santa Cruz, por terra e pelos rios, sempre foram grandes e demoradas ( Figura 22). Em linha reta da fazenda à Santa Cruz, essa distância mede quase vinte quilômetros, que a época de Tabacchi, a cavalo

ou de barco (o meio de deslocamento mais provável) do Taquaraçu ao Pirquê-açu, em Santa Cruz, despendia uma boa parte do dia de deslocamento. Não se pode afirmar, porém, mas a presença da fazenda nessa região, mesmo passando para as mãos do General Guaraná após a morte de Tabacchi, serviu de meio indutor para a ocupação da região de Sauaçu, região à Noroeste de Santa Cruz. A colonização italiana iniciada por Tabacchi e continuada por Guaraná, tinha agora, uma vasta área a ser desbravada no interior da então Santa Cruz e que, no século seguinte, daria lugar ao atual município de Aracruz, como se verá no capítulo seguinte.


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Figura 22 – Implantação da Fazenda Monte Delle Palme de Tabacchi (em destaque) e sua relação com a sede de Aracruz.

Aracruz (sede)

Rio Taquaraçu Fonte: GOOGLE EARTH, 2020. Editado pelo autor.


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Cap. VI De vila para cidade e a transformação de Santa Cruz em Aracruz


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A

expansão da ocupação do interior do Estado do Espírito Santo, de norte a sul entre meados do séc. XIX e começo do séc. XX, tem dois motores principais: a imigração europeia e as estradas de ferro, ligando o Estado à Capital Rio de Janeiro e às antigas Minas Gerais, essa última, principalmente pelo café e logo depois, pelo minério de ferro. Os

imigrantes se espalharam pelo planalto capixaba, tendo uma de suas origens, como visto, Santa Cruz, em Aracruz, pelo pioneirismo (desorganizado, em grande medida) de Pietro Tabacchi. Além disso, Santa Cruz em um certo momento da história da expansão norte da rede ferroviária do Espírito Santo, pela atual Estrada de Ferro Vitória Minas (E.F.V.M.), quase toma a proeminência da Capital Vitória na exportação do minério de Ferro de Minas Gerais. A medida que antiga ferrovia entre Vitória, no Espírito Santo, e Itabira, em Minas Gerais, riscava esse território seguindo à norte o curso contrário do Rio Doce entre os dois estados, novos estudos estavam sendo feitos para maximizar o escoamento da produção de minério de ferro e evitar, o quanto possível, relevos acidentados dessa região. O engenheiro inglês Gustave Guillman, contratado pela Itabira Iron por volta de 1913, propôs um novo traçado da rede ferroviária ( Figura 23) que incluía um ramal interligando a estrada com Santa Cruz, onde seria, nos planos iniciais, construído um porto de escoamento do minério de ferro (D’ALESSIO; GONÇALVES, 2010, p. 51).


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Figura 23: Estrada de ferro Vitória – Minas. Em destaque, o ramal da estrada projetada que chegaria em Santa Cruz, mas não executado.

Fonte: ARQUIVO PUBLICO DE MINEIRO, 2018

Uma decisão, em certa medida, lógica: a saída natural para um porto desse seria pelo rio Doce, continuando o traçado pelo rio até sua foz em Regência, em Linhares, se não fosse a própria situação do encontro do rio com o mar, um dificultador histórico, pois, a foz do rio Doce sempre foi de águas agitadas e perigosas, já fazendo parte da história de Linhares e as dificuldades do


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desenvolvimento da região5. Então, o lugar urbano mais próximo e que mantinha ainda um relevo adequado e de poucas intervenções para a passagem dos trilhos seria em Santa Cruz, pela foz do rio Piraquê, de águas calmas e propícias a instalação de um cais, como imaginava o engenheiro inglês. Mas, fatores adversos à proposta de Guillman não lograram êxito ao empreendimento, segundo D’Alessio e Gonçalves: primeiro, a desconfiança dos empreendedores estrangeiros quanto ao investimento nesse projeto, “[...] uma vez que o o governo brasileiro retirou as garantias de juros que dava aos projetos, afugentando os investidores do negócio de alto risco” (D’ALESSIO; GONÇALVES, 2010, p. 51); segundo, a Itabira Iron passava nesse momento por problemas financeiros que iriam se acirrar nos anos seguintes (D’ALESSIO; GONÇALVES, 2010, p. 51); terceiro, ainda nessa época, os conflitos armados que deram origem a Primeira Grande Guerra na Europa travaram todos os investimentos a serem firmados e, por último, havia ainda uma questão política: não seria nem um pouco conveniente retirar da Capital Vitória um porto desse mote e importância, considerando os investimentos que seriam feitos e o desenvolvimento consequente. Logicamente o projeto foi abortado, mesmo que, ainda em 1919, logo após o fim do conflito na Europa, um novo estudo agora projetado pelo Engenheiro americano Thomas Russel, mantivesse o traçado para Santa Cruz (D’ALESSIO; GONÇALVES, 2010, p. 58). Mas no final, prevaleceu-se a continuidade da linha até Vitória, e Santa Cruz ainda se manteve intacta. No início da década de 1940, o Município de Aracruz gozava de uma configuração política, econômica e cultural marcada por duas linhas principais de vilarejos, povoados e vilas. A primeira, constituída por uma população de origem luso-brasileira, estabelecida predominantemente no litoral, enquanto a segunda, cuja população era formada por ítalo-brasileiros, foram ao

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. Ver em especial: DIAS, Fabiano. Vitória e Linhares, no Espírito Santo: Cidades de duas urbanísticas de mesma origem portuguesa. Relatório final da pesquisa intitulada “Narrativas da Arquitetura Capixaba: Arquiteturas singulares, história e cidade. Linhares (ES)”, ainda em desenvolvimento pelo autor.


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longo dos anos fundando povoados localizados mais no interior da região ou se mesclando à população luso-brasileira em locais já estabelecidos anteriormente (COUTINHO, 2006, p.329). Um exemplar da criação ítalo-brasileira, foi o povoado de Sauaçu. A história do surgimento do povoado de Sauaçu possui alguns hiatos, o que dificulta confirmar algumas datas específicas, sendo assim, os estudos nos quais este trabalho utilizou para embasamento, trazem muitos depoimentos de antigos moradores, o que ajudou a criar uma cronologia histórica. Bittencourt Melo Jr. (2014, p. 102) apontou 1860 como possível início do povoamento, já Cruz e Coutinho apresentam duas outras versões dos fatos, sendo para Cruz, o ano de 1910 como ano provável do surgimento, baseando seus estudos em depoimentos do General Aristides Guaraná, que ao viajar de uma propriedade a outra, passava pela localidade e que teria sido ele a batizar o local de Sauaçu, que em tupi significa “Macaco Grande” (CRUZ, 1997, p. 200). E os primeiros moradores, ainda de acordo com Cruz (1997, p. 200), teriam vindo de Córrego Fundo e Pau Gigante, atual Ibiraçu. Contestando a cronologia de Cruz, o professor Coutinho escreve que desde a chegada dos imigrantes, entre 1874 e 1875, eles já exploravam a região: “os italianos embrenharam-se nas matas [...] derrubando e serrando madeira para suas casas e móveis e vendendo toras para Vitória, além de queimar as matas e preparar o solo para plantar café, milho, arroz e feijão e pastagens para criar gado” (COUTINHO, 2006, p. 384). Seguindo seus estudos, Coutinho alega que o surgimento do povoado está totalmente ligado à expansão das fronteiras agrícolas e pecuárias da região, e que devido à abundância de terras férteis, atraiu pioneiros desbravadores que se tornaram grileiros, ou seja, homens que se apoderavam de terras até então pertencentes ao Estado, e depois requeriam estas como terras devolutas, pagando uma taxa e assim obtinham declaração de posse (COUTINHO, 2006, p. 386-387).


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Segundo depoimentos, Sauaçu no ano de 1942 possuía aproximadamente 10 casas, mas com a prosperidade da região, no final da década de 1940 e início da década de 1950 (Figura 24), houve uma grande migração dos moradores das regiões vizinhas para o povoado, estes se estabelecendo em terrenos doados pelos grandes proprietários de terras, os desbravadores, ou comprado destes (COUTINHO, 2006, p.412-415). Figura 24: Vista panorâmica da cidade de Aracruz, década de 1950.

Fonte: IBGE, 2020.

No ano de 1948, mediante Resolução nº 1 da Câmara Municipal, Santa Cruz deixou de ser sede do município, tendo Sauaçu assumido a função de sede. Segundo Cruz, a transferência ocorreu “[...] visando à centralização dos poderes públicos municipais e a integração de povoações mais distantes, como Guaraná e Jacupemba, que se ligavam mais com a Sede de Linhares do que com a de Aracruz” (CRUZ, 1997, p. 83). O autor complementa afirmando que o Rio Piraque era um obstáculo em meio a trajetória das regiões mais ao norte da Sede, visto que a sua foz possuía aproximadamente um quilômetro de


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largura (CRUZ, 1997, p. 83). Para vencer a distância existente entre as regiões limítrofes e a Vila de Santa Cruz, balsas eram usadas para navegar no Rio Piraquê (Figura 25), e este meio de transporte pendurou até 1988, quando a ponte José Ferreira Lamego foi inaugurada6 (Figura 26). Figura 25: Balsa de Santa Cruz, 1981

Fonte: FACEBOOK – GRUPO MEMÓRIAS CAPIXABAS,

Figura 26: Construção da ponte, 1984.

Fonte: FOLHA DO LITORAL, 2020.

2020.

Fonte: FACEBOOK – GRUPO MEMÓRIAS CAPIXABAS, 2020.

6

Fonte: FOLHA DO LITORAL, 2020.

. Comumente conhecida como ponte do rio Piraquê está foi batizada de ponte José Ferreira Lamego em homenagem ao ex-vereador e ex-prefeito de Aracruz, morador do balneário. Anos mais tarde, o serviço de balsas foi privatizado (FOLHA DO LITORAL, 2020, p.?). Além de resolver os problemas de congestionamento decorrente da lenta travessia da balsa, a ponte com 256 metros de extensão, possui ainda uma ciclovia e uma passagem para pedestres (CRUZ, 1997, p. 99-100), sendo um marco importante no desenvolvimento da região ao diminuir as distâncias entre Aracruz e as cidades vizinhas e próximas, como a capital Vitória.


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Luiz Theodoro Musso, prefeito da época, consegue oficializar a transferência da sede de Santa Cruz para Sauaçu somente em 1950. Há relatos de que o prefeito enfrentou dificuldades acerca desta mudança, principalmente por parte dos moradores de Santa Cruz, que resistiam em aceitar, pois “[...] o lugar perdeu seu último e único incentivo de progresso e novamente estacionou [...]” (CRUZ, 1997, p. 84). O autor ainda fala sobre boatos da época, que afirmavam que a mudança se sucedeu de forma violenta, e que fora necessário a polícia intervir, mas como são apenas suposições nada pode ser tido de forma concreta. Sendo assim, a polícia até onde se sabe, foi apenas uma medida preventiva, pois temia-se uma reação por parte dos moradores de Santa Cruz, mas oficialmente, nada aconteceu e a polícia teve apenas uma função ostensiva (CRUZ, 1997, p. 84). Coutinho (2006, p. 624) descreve a transferência como um “[...] golpe de estado[...]”, pois, segundo o autor, “Houve corrupção de vereadores e outras pessoas, trocas de favores, negociações, manipulações, enganações, má-fé e roubo de documentação” (COUTINHO, 2006, p. 441). Coutinho ainda explica que o fato de a mudança ter demorado dois anos para acontecer ocorreu porque a Assembleia Legislativa não admitiu que a decisão não tenha acontecido de forma democrática através de um plebiscito, mas sim, se deu de forma quase secreta por parte dos representantes do povo. Coutinho transcreve um telegrama presente na ata de reunião da Câmara Municipal, onde os moradores de Santa Cruz contestam ao projeto de transferência da Sede, dizendo que: Chegando nosso conhecimento medida ingrata dessa colenda Câmara sobre mudança para outro local sem interesse administração municipal Sede município Aracruz tradicional veneranda Cidade, merecedora zelo consideração seus edilhos filhos demais habitantes nela acolhidas lançamos nosso respeitoso protesto ansiando embora de longe certos seu novo prestígio virtude predileção dotou natureza mão divina esperando também amparo interesse prestígio seu povo principalmente seus


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administradores eleitos procurando nos igualar interessar-nos por ela dentro possibilidade querendo a próxima e nobre cidade. Cordiais Saudações (COUTINHO, 2006, p. 441).

Coutinho (2006, p. 441) ainda descreve o processo como tendo se desenrolado de forma rápida, em virtude do crescente progresso apresentado por Sauaçu na década de 1940. Santa Cruz ficava longe das vilas e povoados, situados mais ao norte, tendo como exemplo o povoado de Sauaçu, que estava a uma distância de quase um dia de duração de Santa Cruz, e os moradores viajavam a cavalo por estradas perigosas e que, na realidade, muitas vezes não passavam de trechos por entre a floresta. A decisão da transferência favoreceu as regiões distantes, que antes precisavam percorrer grandes distâncias até Santa Cruz (COUTINHO, 2006, p. 432-433). Quanto a violência descrita por Cruz anteriormente, Coutinho traz em seu livro um pequeno depoimento de Landerico Ferreira Lamêgo, um dos moradores de Santa Cruz que era contrário à decisão afirmando que “o povo estava disposto a impedir o roubo dos documentos e só não houve violência porque tal aconteceu quando todos dormiam em Santa Cruz” (COUTINHO, 2006, p. 452). O episódio da transferência, segundo Coutinho (2006, p. 455), foi liquidado somente alguns anos mais tarde, precisamente em 29 de dezembro de 1953, com a Lei Estadual 779, que estabeleceu uma nova divisão político-administrativa que elevou Sauaçu à categoria de distrito, e confirmou esta ainda como cidade de Aracruz, tendo sua denominação alterada, em definitivo, permanecendo até os dias atuais. O autor ainda relata que uma Comissão Parlamentar da Assembleia Legislativa esteve na região com propósito de decidir se a Sede ficaria melhor em Sauaçu ou Guaraná, e estes decidiram por Sauaçu, por estar localizado em uma região mais plana e central do município (COUTINHO, 2006, p. 455).


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O crescente progresso apresentado por Sauaçu não se correlaciona totalmente com a presença de terras férteis, mas paralelamente se deve a Companhia Ferro e Aço de Vitória (COFAVI), que em 1944 impulsionou o desenvolvimento da região ao movimentar a economia local, e consequentemente favoreceu o crescimento do número de moradores, o que novamente impeliu a expansão das fronteiras agrícolas, pecuárias e madeireira (COUTINHO, 2006, p. 417-418). A COFAVI desmatou grande parte da Mata Atlântica antes existente na localidade para fazer carvão. Coutinho descreve tal situação da seguinte forma: “a morte de uma permitiu o nascimento e crescimento da outra” (COUTINHO, 2006, p. 417-418). Pouco tempo depois da implantação da COFAVI, o até então povoado de Sauaçu tornou-se o povoado mais dinâmico dentre todos do município, superando Santa Cruz. A estruturação da ferrovia Vitória – Minas, hoje Estrada de Ferro Vitória X Minas (EFVM), a partir da primeira década do séc. XX e da Rodovia Rio-Bahia, atual BR-101, na década de 1940, também serviram de estímulos para o progresso do povoado, visto que estes meios de transporte eram formas mais eficazes de escoamento da produção, enfraquecendo as atividades do porto fluvial de Santa Cruz, e por fim, foram pontos fortes explorados na decisão de mudança da Sede (COUTINHO, 2006, p. 433). Nos anos que sucederam a transferência, Aracruz assistiu a uma explosão de crescimento da sua economia, e nas palavras de Coutinho, esta “[...] evoluiu rapidamente, de uma economia dependente e menor, para um enclave que supera sua pequena economia” (COUTINHO, 2006, p. 526). E ainda acrescenta que “[...] podemos dizer que 1950 foi um marco na história do município de Aracruz. Ao final da década, a população viu a consolidação das forças econômicas emergentes que moldaram a história municipal por duas décadas” (COUTINHO, 2006, p. 585). O autor refere-se ao salto do desenvolvimento econômico fomentado com a implantação da empresa Aracruz Florestal S/A em 1967, onde iniciou-se a compra de terras e plantação dos


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eucaliptos no município. Segundo o autor: “com seu apetite voraz por terras, levava a empresa a comprar qualquer propriedade preferencialmente plana para plantar eucaliptos” (COUTINHO, 2006, p. 530). Posteriormente, com a instalação do porto e da fábrica da Aracruz Celulose S/A (Figura 27 e Figura 28), que iniciou sua produção industrial em 1978, a empresa tornou-se o grande impulsionador da economia local. Os grandes investimentos industriais impreterivelmente culminaram em mudanças significativas no que diz respeito aos índices ambientais, sociais e econômicos de Aracruz, alterando significantemente o cenário de décadas anteriores. E, portanto, toda evolução do município, a partir da instalação dessas empresas de grande porte, principalmente, a Aracruz Celulose S/A, requer um estudo aprofundado para fins de conclusões, em pesquisas futuras.

Figura 25: Terraplanagem para construção da Aracruz Celulose.

Fonte: Facebook – Grupo Fotos e Vídeos Antigos de Aracruz, 2020.

Figura 26: Inauguração da Aracruz Celulose, 1978.

Fonte: CELULOSEONLINE, 2020


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Cap. VII As arquiteturas históricas da antiga vila: A igreja, a Casa de Câmara e Cadeia e a Fazenda.


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A

s arquiteturas são representações e extensões da história de uma sociedade, e ao longo da sua formação, esta sociedade deixa vestígios, em grande parte gravadas em suas arquiteturas. E é por meio delas, que podemos identificar os diferentes movimentos artísticos e culturas, bem como a evolução das cidades.

A Igreja Católica de Santa Cruz, consagrada a Nossa Senhora da Penha, é um marco histórico da arquitetura do período da colonização. Foi a primeira construção de cunho religioso do município. As obras para construção desta tiveram início no ano 1836, no entanto, como já foi citado no capítulo anterior, a igreja não passava de uma palhoça, feita de estuque, com paredes de taipa, esteios de madeira e coberta com palhas de palmeiras. Em 1857, o frontispício de alvenaria começa a ser construído, sendo este aos olhos dos viajantes que navegavam pela baía, uma fachada imponente (Figura 29 e Figura 30). François Biard (1858), registrou em seu caderno de viagem o momento em que viu a igreja:

Não fora prevenido de ir conhecer uma vila de certa importância; imaginara Santa Cruz como uma outra aldeia de índios. Causou-me assim espanto deparar-me com uma igreja aparentemente vistosa. O derradeiro trecho do caminho foi vencido por entre grandes árvores, e ao desembocarmos na planície avistei logo palhoças cobertas de palhas de coqueiros seguidas por algumas casinhas alegremente caiadas. Moviam-se pela povoação pescadores, mulheres queimadas de sol, com vestidos de cores berrantes e descalças. Raros senhores de roupas pretas, gravatas brancas e mãos sujas. Não vi mais a torre. Desaparecera. Tinha certeza de tê-la visto. Era do tipo comum dos campanários espanhóis, portugueses e brasileiros. Percebera bem de longe, com o auxílio dessa luz solar intensa que nos faz distinguir uma mosca a cem passos de distância, aquela torre branca, com ornatos, vasos esculpidos e sinos. E tanto mais certeza tinha dos sinos que não somente os avistara como os ouvira. Que sonho esquisito fora esse então que tivera!... Intrigado com o desaparecimento da torre e ansioso de desvendar-lhe o mistério, perguntei a meu companheiro onde ficava a igreja da terra. Ele me mostrou uma parede com três pés de grossura que eu já notara pela sua altura, mas de que não falara ainda


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por ignorar o seu significado ou préstimo. Duvidei da resposta e ia emitir umas ponderações quando, ao nos aproximarmos mais da tal parede, todo um poema se desenrolou a nossos olhos e contemplei a obra-prima mais completa no seu orgulhoso aspecto e na sua mais ingênua expressão. Essa parede era, de fato, a igreja, mas apenas a fachada; se de perfil não passava de um alto muro de 3 pés de espessura, de frente era mesmo uma fachada. Através das janelas superiores viam-se dois sinos. Grandes vasos e uma cruz ornavam, no alto, essa fachada grandiosa, prefácio das riquezas de arte que deveriam existir no seu interior. Supor-se-ia assim, vendo-a de frente; mas, a coisa seria bem outra. Esse muro tão enfeitado não passava de simples muro: andaimes, pela parte de detrás, protegiam-no das ventanias. Os que subiam os degraus exteriores para entrar na igreja tinham, do lado oposto, de descer outra escadaria, para entrar então no verdadeiro templo, uma pobre palhoça que só se distinguia das demais, na povoação , por ser um tanto maior. Quem tivesse divisado, pela frente, os sinos a aparecer nos seus nichos, vê-los-ia agora, por trás do muro, tangidos pelo sineiro trepado numa escada de madeira. Tudo havia sido construído de tal maneira, para o êxito das aparências, que a própria parede monumental só recebera reboco e pintura na parte externa; na outra ainda estava nua. O orgulho dos habitantes, contudo, fora satisfeito (BIARD, 2004, pág. 61-62).


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Figuras 29 e 30: Frontispício e perfil da Igreja Católica de Santa Cruz, por François Biard (1858).

Fonte: Livro Deux années au Brésil, pág. 135/137, 1862.


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A Igreja Católica de Santa Cruz foi tombada pelo Conselho Estadual de Cultura e pela Prefeitura Municipal de Aracruz em 29 de dezembro de 1986, processo 23/85 (Figura 31 e Figura 32). Ao longo dos anos a igreja foi sendo modificada, tendo sido na década de 70 as reformas mais expressivas. A primeira, autorizada por Monsenhor Guilherme, e a segunda devido a protestos e manifestações por parte dos moradores, que não satisfeitos pelas alterações, conseguiram pôr fim restaurá-la novamente. A fachada fora toda modificada, onde os antigos elementos em alto relevo foram removidos, dando lugar a uma fachada lisa e sem janelas. Mais tarde, a lateral direita foi reconstruída, o telhado, as portas e janelas foram substituídos, além do piso de cimento que deu lugar a um ladrilho decorado, mas este não foi o fim, houve outras modificações, no entanto, os elementos originais foram perdidos. Outra restauração ocorreu no ano de 2000, decido por meio de audiência pública, que resultou na restauração do frontispício e da reforma da nave. O patrimônio, avaliado por especialistas, encontrava-se com problemas ocasionados por trepidação, apresentando assim rachaduras nas paredes.


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Figura 31: Vista aérea da Igreja Católica de Santa Cruz (à esquerda

Figura 32: A igreja em sua configuração atual.

na foto), década de 40.

Fonte: Facebook – Grupo Fotos e Vídeos Antigos de Aracruz.

Outro patrimônio histórico de Santa Cruz é a Casa de Câmara e Cadeia (Figura 33 e Figura 34). Durante anos, se pensou que a arquitetura foi erguida para abrigar Dom Pedro II em sua passagem pela província do Espírito Santo. Porém, a construção da edificação foi finalizada após visita do imperador, mais precisamente no ano de 1876. Acredita-se que Dom Pedro II esteve em um outro prédio na região, que até então funcionava como câmara e cadeia, fator que levou ao equívoco quanto a origem do prédio. Sendo este construído para substituir a antiga que existia na região. Este possui tipologia típica do período colonial, e durante anos, o espaço foi utilizado para os mais diversos usos: câmara e prefeitura municipal, cadeia, fórum, correio, posto telefônico e escola pré-primária.


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Figura 33: à direita acima, Casa de Câmera e Cadeia, década de 40.

Figura 34: Casa de Câmera e Cadeia, 1957.

Fonte: Facebook – Grupo Fotos e Vídeos Antigos de Aracruz, 2020.

Fonte: Facebook – Grupo Fotos e Vídeos Antigos de Aracruz, 2020.

O prédio foi erguido numa base quadrada, térreo, com paredes de alvenaria de pedras e de tijolos, com aproximadamente 60 centímetros de espessura. Cunhais e cornijas adornam as fachadas, bem como a platibanda que oculta o telhado de quatro águas. A edificação passou por algumas alterações ao longo dos anos, portas foram abertas, o interior teve seu espaço dividido, no entanto, a arquitetura é um dos poucos exemplares de construções que ainda mantém características da época (Figura 35 e Figura 36).


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Figura 35: Casa de Câmera e Cadeia, antes da reforma de 2014/2015.

Figura 36: Casa de Câmera e Cadeia em sua configuração atual.

Fonte: ipatrimônio, 2020.

A restauração mais recente foi feita entre os anos de 2014 e 2015, que tornou a edificação totalmente acessível, e modificou o interior objetivando um novo uso para o espaço. Hoje, a arquitetura apresenta internamente um hall de entrada, um salão de exposição, sala para administração, um espaço para oficina/reserva técnica e banheiros. Externamente, temos um pátio com um pequeno jardim, onde foi instalada uma rampa para o acesso de pessoas com mobilidade reduzida.


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Atualmente, o espaço abriga o Museu Histórico de Santa Cruz, criado pela Lei Municipal nº 3.872 de 2014, objetivando a preservação do Patrimônio Histórico, Artístico, Iconográfico e Etnológico do município de Aracruz. Foi tombado em 1985 pelo Conselho Estadual de Cultura (Figura 37, Figura 38 e Figura 39). Figura 37, Figura 38 e Figura 39: Objetos em exposição no Museu Histórico de Santa Cruz

A Fazenda Monte Delle Palme, conhecida como Fazenda das Palmas, foi o berço da imigração italiana da Província do Espírito Santo, e posteriormente, matriz da industrialização. Sendo cenário de grandes acontecimentos históricos, idealizados por dois grandes empreendedores pioneiros, Pietro Tabacchi e Aristides Armínio Guaraná. Na fazenda, período escravocrata e colonial se fundem. Monte Delle Palme foi cenário de trabalho escravo, sendo a principal referência dentro do município de Aracruz quanto a escravidão negra.


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Segundo Coutinho (2006) difícil determinar a chegada e a origem dos negros no território do atual Município de Aracruz. Para ele, podem ter vindo de São Mateus e da Serra e, nesse caso, seriam Negros-Angolas ou Negros-Congos. Aponta ainda que o motivo da presença dos negros em Aracruz está ligado a algum engenho de açúcar ou à agricultura. O autor relata uma passagem do livro de bordo de Auguste de Saint-Hilaire, que ao passar por Aldeia Velha, em 1818, informa apenas a existência de negros trabalhando na fabricação de farinha, não descreve mais e nem enumera. No final do século XIX, mais precisamente 1888, a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, abolindo a escravidão no Brasil. Não há muitos registros sobre a fazenda no período escravocrata. As notícias de uma possível abolição se espalhavam, e alguns donos de terras aderiram ao movimento antes mesmo de receberem quaisquer medidas legislativas. A historiadora Vilma Almada narra um acontecimento na Fazenda das Palmas onde os escravos reivindicavam melhores condições de trabalho, pouco tem antes da Lei Áurea ser assinada:

Após sair em viagem a caminho da Corte, o Sr. Aristides Guaraná deixou a direção de sua Fazenda Palmas sob os cuidados de novo administrador; após sua saída retiraram-se todos os seus escravos pacificamente e sem armas. Era um protesto em busca da liberdade e melhor tratamento. Decorridos três dias, voltaram e declararam ao administrador José de Barros que estavam dispostos ao trabalho mesmo penoso; jamais suportariam, porém, a bárbara disciplina do tronco e do vergalho. Receberam ordem de fazer um roçado morro acima, íngreme e pedregoso. Finalizando o trabalho receberam ordem de prosseguir morro abaixo, um escravo reclamou que era impossível, o administrador mandou que outro escravo o castigasse com o vergalho. Todos se recusaram a fazê-lo. O administrador acompanhado de capangas, vendo-se desautorizado, ameaçou-os de morte quando formados dirigiam-se para o trabalho. Debandaram espavoridos. Foram porém perseguidos a tiros, ‘cacetadas’, ‘facadas’, conforme o relato do escravo Manoel que ferido a tiros


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fora ouvido na Delegacia de Polícia. Os sobreviventes foram metidos no tronco. (ALMADA, 1984, p. 202)

A formação do nosso país, bem como da sociedade brasileira, é a própria história da Monte Delle Palme. Primeiramente, da colonização do homem branco, seguido de trabalho escravocrata, da transição do trabalho escravo para o livre e da substituição da mão de obra negra pela europeia. No entanto, as histórias de ambos os povos, negros e europeus, se tratando da fazenda, podem ser confundidas, já que apresentam características semelhantes. A fazenda é uma referência histórica de Aracruz. Esta contribuiu de forma significativa para a formação e evolução do município, que atualmente possui em seu território uma população miscigenada, enriquecida com diferentes costumes e culturas. Como dito anteriormente, a localização da Fazenda Monte Delle Palme, às margens do rio Taquaraçu (acima do rio Piraquê-açu), já dentro do território pouco explorado do Espírito Santo até meados do séc. XIX, serviu como um indutor da ocupação da região. Pietro Tabacchi ao se instalar nessa região ainda tão inóspita, foi duplamente visionário: primeiro, vindo da Europa para se instalar em terras desconhecidas, com clima estranho ao seu e com toda a sorte de incertezas e perigos. Distante do núcleo urbano mais próximo, Santa Cruz, Tabacchi praticamente inaugura a ocupação da região do planalto capixaba, com foco na exploração comercial pela agricultura e mão de obra estrangeira, sendo essa, sua segunda ação visionária, ao também inaugurar o processo de imigração de colonos estrangeiros para trabalharem e adquirirem terras em solo capixaba. Mesmo frustrada essa última, o processo iniciado por Tabacchi e sua fazenda, dão margem a um processo de expansão da ocupação urbana do interior do Espírito Santo, alcançado as regiões ao norte e ao sul da então Província do Espírito


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Santo, ao longo das últimas décadas do séc. XIX e começo do XX. Mesmo mudando de donos, sua antiga fazenda ainda é o registro físico dessa época. Hoje, ela se encontra distante somente três quilômetros do centro da sede de Aracruz, fora do perímetro urbano e acessada por uma estrada vicinal. Seus donos atuais, da família Devens, originários de Aracruz, a preservaram ao máximo, com algumas modificações e acréscimos externos. A sede da fazenda (

Figura 40)

ainda se destaca pela sua arquitetura singela, de implantação em L, com a casa grande de um fazendeiro agricultor

que também se utilizava de mão de obra escrava negra, como deixa clara a presença da pequena edificação da senzala, mais afastada da casa principal (Figura ). Esta última, por sua vez, se constitui de um volume central mais alto, com dois pavimentos, pareado por dois corpos mais baixos, além do bloco lateral que forma o L (Figura ), e que recebeu uma água a mais em seu telhado, nas reformas por que passou pelas mãos de seus últimos proprietários. A edificação se destaca em seu meio, ainda de marcante paisagem natural (Figura ).


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Figura 40 – Foto panorâmica da casa e seu entono. Foto tirada pelo aluno Marcos Maioli para a disciplina de Patrimônio Local, em 2020.


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Figura 41 – A edificação da senzala, localizada a poucos metros da casa principal. Foto tirada pelo aluno Marcos Maioli para a disciplina de Patrimônio Local, em 2020.


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Figura 42 – A casa principal com seus dois blocos mais baixos (vista posterior) e o bloco lateral que forma o L da implantação da edificação. Foto tirada pelo aluno Ramon Farage para a disciplina de Patrimônio Local, em 2020.


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Figura 43 – Vista geral das edificações da casa principal da Fazenda Monte Delle Palme e sua relação seu entorno natural. Foto tirada pelo aluno Ramon Farage para a disciplina de Patrimônio Local, em 2020.


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Outro exemplar arquitetônico cujas características remetem ao período colonial, na região de Santa Cruz, foi a residência do Capitão Bittencourt, como era comumente conhecido Antônio Machado Bittencourt Melo (Figura 44 e Figura 45). Originário da província de Pernambuco, o capitão mudou-se para o Espírito Santo, no entanto, não se tem conhecimento do ano exato de sua mudança e nem do motivo que o trouxe a região. Sabemos que este já se encontrava em Santa Cruz em 1854, uma vez que no livro de registros de matrimônios dá Paróquia Nossa Senhora da Penha, em Santa Cruz, no mesmo ano este casou-se na localidade com Isabel Delfina da Conceição da Costa, oriunda da freguesia de Nova Almeida, e que mais tarde fora morar na freguesia de Aldeia Velha com a família, em 1843, numa provável busca por um futuro promissor. O capitão adquiriu dois terrenos numa área de marinha, sob regime de aforamento, ambos localizados na até então chamada “Rua da Praia”. Em um destes terrenos, em 1861 precisamente, foi construída o casarão, que serviu de comércio e residência para a família Bittencourt. Não foram encontrados registros detalhados sobre a edificação.


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Figuras 44 e 45: Residência e comércio da família Bittencourt, 2012.

Fonte: Livro Estudos Históricos Sobre a Vila de Santa Cruz, pág.281-282.

A edificação, no entanto, não sobreviveu ao passar do tempo, os últimos registros conforme retirados do livro “Estudos Históricos Sobre a Vila de Santa Cruz”, publicado pelo Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, datam de 2012. Em visita a região no dia 06 de janeiro do ano de 2020, ao localizarmos o terreno do antigo casarão, deparamo-nos apenas com ruínas, como pode ser visto nas Figuras 46 e 47, tendo Santa Cruz perdido de forma irrecuperável um marco arquitetônico da sua história.


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Figuras 46 e 47: Situação do terreno onde se localizava a residência do Capitão Bittencourt, em janeiro de 2020.


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CONCLUSÃO


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A

história de Aracruz se confunde com a própria história da ocupação da região norte capixaba, principalmente através

da colonização de seu planalto ao longo das últimas décadas do séc. XIX, subindo até o rio Doce e terminando nas primeiras décadas do século seguinte. A antiga Vila de Santa Cruz foi o palco onde esse processo se iniciou, mesmo

que tenha sido a partir de um desentendimento entre o italiano Pietro Tabacchi e seus colonos conterrâneos, como visto anteriormente. Santa Cruz é a marca física da passagem do tempo e das mudanças urbanas que o território da atual Aracruz sofreu ao longo dos séculos. Os exemplares arquitetônicos aqui trabalhados são resquícios, mesmo que alterados, de uma época de grandes transformações que se refletiram por todo o Espírito Santo. A presença humana estrangeira que antes se resumia ao litoral, à exemplo da Vila de Santa Cruz, vem com novas levas e ocupa o seu interior, espalhando-se de norte a sul da antiga província capixaba. Substituem a mão-de-obra escrava, após séculos desse ciclo de exploração humana, para colonizar a região do planalto do Espírito Santo. As etnias indígenas originárias da região de Aracruz veem seu território ser reduzido com a chegada do homem branco em levas sucessivas, desde o séc. XVI. Mesmo não fazendo parte do escopo dessa pesquisa, mas deixando o tema em aberto para uma próxima, é fato histórico o enorme impacto na cultura dos índios locais, e dos que chegaram em meados do séc. XX, da presença do homem branco em seu território, seja ele parte dos primeiros colonizadores portugueses, seja ele de imigrantes italianos e, por último, da grande industrialização por que passou Aracruz a partir de 1970.


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Esse amálgama de povos distintos em um mesmo território não expressa necessariamente uma união entre eles, mas, na verdade, e muito por conta do relevo local e pelas próprias dinâmicas do crescimento acelerado que transformou drasticamente toda essa região em menos de cem anos, em um conjunto não homogêneo que forma o atual tecido social de Aracruz. Aracruz é um município fragmentado em núcleos urbanos bem característicos entre si, de culturas marcantes e singulares, onde lhes falta a conexão necessária, mais do que somente a viária. Na verdade, suas existências não formulam ou capacitam políticas e ações de integração e convívio cultural, criando pelo contrário, polos distintos de crescimento diverso e díspares em um mesmo território. A única forma de uni-los é pela história comum de sua origem nesse território. Para tanto, se faz necessário entender seu passado tanto através de suas histórias escritas, como as orais e as edificadas em pedra. Sua arquitetura, sua cidade e seus lugares, por sua vez, são também elementos que narram seu passado, que conectam as pessoas ao seu lugar de origem. O que se percebeu nessa pesquisa, entre tantos aspectos e dados observados é que a história passada de Aracruz, em suas origens coloniais e do que resta de sua antiga Vila de Santa Cruz, está se perdendo no tempo, pelo descaso e pelo desconhecimento. Sua arquitetura antiga não é exatamente um exemplo de momentos gloriosos, mas, de momentos de transformação, de mudanças que foram aos poucos acontecendo e que, pelo acelerar da história nesses últimos cem anos, estão passando ao largo da própria história do município. O valor dessas estruturas urbanas e arquitetônicas não está somente em seu conteúdo físico no tempo histórico, mas na memória que carregam em si como parte da formação da sociedade.


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A memória, e por conseguinte, o meio de conexão com o lugar, foi trocado drasticamente pelo desenvolvimento rápido e frio da industrialização que marcou as últimas décadas do séc. XX em Aracruz. A industrialização trouxe novas levas de pessoas e deslocou outras de seus lugares. E a história não deu conta de ensinar uma nova conexão com esse lugar. Esse trabalho de pesquisa, por fim, buscou entrelaçar essas histórias com seu lugar de origem, a partir dos dados e tempo disponíveis. A história de Aracruz é rica e importante para o Espírito Santo, muito antes mesmo, da instalação de seu grande parque industrial e portuário. Convém, portanto, resgatá-la!


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em:

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