A lógica dos devassos: no circo da pedofilia e da crueldade

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quase deserta. Seguimos aquele homem por mais uns dez minutos e descemos com alívio pela ladeira do hotel. Uns vinte metros antes de chegarmos, ofereceu-nos uns tabletes de haxixe, exigiu seus dólares, enfiou-os por debaixo de seu djellaba não muito limpo e sumiu na noite. Uma cama imensa, mais baixa do que as normais, uma descarga com defeito, vinte ou trinta mosquitos dando rasantes ao redor de nosso cérebro. A cidade está silenciosa e morna. Antes de enfiar-me sob os lençóis, rabisquei uma pequena síntese do livro de Bataille sobre Gilles de Rai, o mais famoso assassino e «abusador de crianças» que a França já conheceu. Gilles de Rais e seus dois primos Roger de Briqueville e Guillaume de Sillé (todos provenientes de famílias francesas nobres e arruinadas pela guerra) eram os cabeças de uma gangue que cometia horrores com crianças no interior de seus castelos. Seqüestravam meninos que mendigavam nos arredores e praticavam com eles rituais satânicos, de sexo e morte. “Gilles se acariciaba ante sus victimas, frotava contra ellos su virilidad... se deleitaba e inflamaba de tal modo que criminalmente y en forma adversa a la normal, surtía sobre el vientre de los niños. Gilles utilizaba para esto a cada niño sólo una o dos veces, depués de lo cual los mataba o los mandaba matar...” (Bataille, p.80, 81) Esse católico fervoroso e militar exemplar pendurava suas vítimas pelo pescoço para quebrar-lhes a resistência e para que não gritassem, depois as retirava da tortura, abusava sexualmente delas e as matava. Outras vezes cortava-lhes a veia do pescoço para gozar enquanto o sangue esguichava. A orgia durava até que houvesse calor no corpo do pequeno mendigo. Outras vezes escolhia entre as crianças mortas a cabeça que lhe parecia mais bonita e mandava seus cúmplices abrirem o corpo para gozar com a visão de suas entranhas. Depois, enquanto o monstro de Rais dormia bêbado e saciado, seus comparsas queimavam as roupas e aqueles corpos «abusados» na lareira. Foi condenado à forca em 1445, mas deixou seguidores espalhados por todos os continentes. O sono foi profundo. A oração matinal que sai dos alto-falantes da mesquita quebra o silêncio e desencadeia uma onda de latidos em todas as ruas que ladeiam o hotel. Não tenho dúvida de que o silêncio –como dizia Arlt - é o vaso comunicante pelo qual nosso pesadelo de aborrecimentos e de angústia passa de uma alma para outra. Afasto a cortina e dou de cara com um cachorrinho esquelético que late apenas por latir. São seis horas. O sol já está alto. Acordar num outro país é sempre um alucínio, principalmente quando se trata de um país como este, ainda marcado pelo absurdo e pelo medievalismo. A ordem é não perder tempo. Enfiar-se dentro das calças e ganhar a rua como fazem os verdadeiros andarilhos, movido pela curiosidade e pelo instinto. Os guias reaparecem, mas agora já e fácil despistá-los. Basta falar em nome do Armet que todos recuam, como se ele fosse o chefão de todos esses crápulas. Homens sonolentos encostados pelas paredes, velhos abrindo seus negócios, cuspindo na calçada e pisando em seguida sobre o catarro, como se estivessem com muita raiva.219 Caixotes de peixes aparentemente abandonados, esgotos, legumes, coelhos, frangos e cabras degolados, fornos coletivos, mariscos, roupas, calçados, panelas, adagas, instrumentos de marcenaria, tecidos, quinquilharias decorativas, braceletes, latões de azeite, especiarias, cheiros, ruídos, policiais, bandos de meninos, mendigos, mulheres que nos olham de longe, pipas, pães, tamancos, tudo isso caracterizando e constituindo a patologia coletiva. Na Avenida Mohamed V, fileiras de mesas nos cafés onde homens (só homens, a rua ainda não está totalmente liberada para as mulheres) fumam e bebem seu chá de menta. A voz da mesquita pela quinta vez. Numa loja da rua Kadiria, ao mesmo tempo em que me rouba 219

Segundo Norbert Elias, no séc. XVI era uma obrigação social e um bom costume, colocar o pé sobre a cuspida. (p.224)


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