A lógica dos devassos: no circo da pedofilia e da crueldade

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26 Ezio Flavio Bazzo

disputando, rejeitando e invejando até mesmo os próprios filhos.60 Não seria essa cólera e esse ressentimento velado que acaba facilitando e justificando as mais duras e caóticas expressões de violência contra eles?61 Violência e mortificação que não necessariamente precisa se manifestar através de socos e de mutilações. Às vezes, até mesmo de uma violência cor-de-rosa, interesseira e voyerista, como no caso do famoso Lewis Carrol, autor de Alice no país das maravilhas, que abandonou a matemática e os afazeres da igreja anglicana onde era clérico, para escrever ficção infantil. Só recentemente soube-se que era mais um “papa-anjos”, que apreciava fotografar menininhas de sete, oito, dez anos em poses sensuais62 e que inclusive, foi uma delas que deu nome ao seu mais famoso texto literário. Que o «melhor» da literatura mundial tenha saído do imaginário de um clérico, voyerista e pedófilo, não lhes parece uma revelação desconfortável? E para nós que aprendemos a escutar e a olhar o mundo com um cuidado especial, tão impressionante quanto à pedofilia, é a fobia, a angústia, a falsidade e a falta de fôlego que a discussão deste tema provoca. Faça um teste. Negar o tema, diagnosticar, criminalizar, cair nos clichês ordinários da moralidade ou simplesmente «desumanizar» o abusador têm sido escapes e despistes freqüentes no cotidiano. Tende-se a esquecer que o sujeito bolinador também é deste mundo, que também teve uma infância e uma história e que não construiu do nada suas taras, seus fetiches ou suas compulsões. Claro que é mais prático e fácil propor, como castigo, a castração do abusador e, como prevenção, o aumento da repressão sexual dos até então (anjinhos hermafroditos e inocentes). 63 Claro que é mais fácil propor a construção de mais presídios, a volta da ditadura militar ou o extermínio dos pedófilos do que pensar nas verdadeiras causas desta agressão. Resiste-se a pensar que se o pedófilo é um pobre miserável, não o é sozinho, pois, na essência, não se difere muito dos ditos «normais», já que a sexualidade, essa convulsão da carne, é uma servidão absurda e perversa em si mesma. Já que o corpo (nosso único capital), este troço de carências, ossos e fluídos, comporta-se mais ou menos como um coágulo despencando ladeira abaixo, lançando sêmem e óvulos por todos os lados, numa tentativa desesperada de perpetuar-se e de vingar-se. Apesar de minhas evidentes restrições aos abusadores, não pensem que tenho deles uma percepção muito diferente da que tenho do sujeito padrão, religioso, cidadão normal e bonzinho que infesta o mundo. Desses bundões que cantam aos quatro ventos a sua «sexualidade», mas que, para gozar, ainda precisam puerilizar e infantilizar tanto sua mulher como suas amantes. 64 Desses cagões que, enclausurados em sua armadura medieval, nem tiram a gravata para, sábado à tarde, «copular» estressadamente com suas «esposas.65 Desses senhores «bem sucedidos» que colocam com nojo o preservativo ou que fecham os olhos para não vê-la instalando o diafragma. Desses beatos que tem o cuidado de não ir além de oito «bombadas», no escuro, com a tv ligada, bêbados, rangendo os dentes ou mordendo a língua para não 60 Na clínica psicológica vamos nos convencendo cada dia mais que na origem de quase todos os transtornos psicológicos está a inveja. O paciente, ou foi vítima da inveja dos outros (pais, irmãos, colegas, vizinhos, etc) ou não sabe o que fazer com a própria. 61 Até um sujeito como Pasolini –para que vejam- chegou a escrever em seu artigo I giovani infelici este ataque à juventude: “Os filhos que nos circundam, especialmente os mais jovens, os adolescentes, são quase todos uns monstros. Seu aspecto físico é quase aterrorizante e, quando não aterrorizante, enfadonhamente infeliz. Horríveis pelagens, cabeleiras caricaturais, carnações pálidas, olhos embaciados. São máscaras de alguma iniciação barbaresca, esqualidamente barbaresca. Ou então máscaras de uma integração subserviente e inconsciente que não provoca piedade...” (p.30) 62 Ver Lewis Carrol, photographer, Ed. Max Parrisch, New York, 1968. 63 Para Jung, a criança, como arquétipo, era andrógena. E a androgenia, segundo Libis, “era o grau zero do desejo. “ C’est pourquoi la pensée de l’androgyne nous conduit par étapes vers la pensée de la mort”. (p.211) 64 Exigir que as mulheres sigam pensando e sentindo como crianças, que depilem completamente o corpo, que tenham seios pequenos e os pés reduzidos (ver gueixas e mulheres chinesas), que se deixem penetrar sistematicamente pelo reto, tudo isto não estaria à serviço de um imaginário masculino pedófilo? 65“La heterosexualidad es sexista, misógina, homófoba y adultista. Tiene, además, cuatro características fundamentales: primero, defiende el matrimonio o la pareja estable; segundo, es coitocéntrica, genitalista y reproductora; tercero, interpreta la sexualidad femenina en perspectiva masculina y la hace subalterna y, cuarto, persigue, condena o ignora a quienes se apartan de ella.” (Guasch, p.81)


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