Pela Voz de um Gato Pardo | Online

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Secretaria Municipal da Cultura de Novo Hamburgo, apresenta:

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ID do Direito Autoral (CBL): DA-2022-022929

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Guia de Capítulos Parte I | Eventos Caóticos na Cidade de Palasita Cap. 01 | O Tratado dos Peixes Cap. 02 | Histórias de Ovelhas Cap. 03 | Gatos e Colares Cap. 04 | Encontro Auspicioso Cap. 05 | Projétil Cap. 06 | Vejamos, Gato.. Cap. 07 | Rechegar Cap. 08 | Salão de Jogos Cap. 09 | Quedas D’água, Frio e nos Perdemos Parte II | Os Rebeldes da Ilha de Turquoise Cap. 10 | O Palácio e Algumas Explicações Cap. 11 | Galos, Folgas e Ovelhas Revoltosas Cap. 12 | Um Canto Perturbador Cap. 13 | Alergia, Rinite e Clima Temperado Cap. 14 | A Biblioteca da Multileitora Cap. 15 | O Grande Torneio de Um Embate Só Cap. 16 | Elo

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Parte III | O Laboratório de Rubicântigo Cap. 17 | A Borboleta Acidental Cap. 18 | A Vontade Heroica Cap. 19 | O Resultado do Duelo Cap. 20 | Flechas!!! Cap. 21 | Divisão Cap. 22 | Mas que #&@*%! Cap. 23 | Um Par de Vasos Cap. 24 | Hermessim & Kyrily Cap. 25 | Desvios de um Resgate Cap. 26 | A Profecia Interpretativa Cap. 27 | Novas Alianças Cap. 28 | Lendas e Boatos Parte IV | A Filosofia dos Múltiplos Resgates Cap. 29 | A Prisão Pendular Cap. 30 | O Diário do Gatinho Cap. 31 | Segunda Chance Cap. 32 | Arsenal Subaquático Cap. 33 | Parcelamento de Si Cap. 34 | Invasão Descoordenada Cap. 35 | O Chá das Onze

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Parte I |

Eventos Caóticos na Cidade de Palasita

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Capítulo 1

O Tratado dos Peixes "Toda história começa com um herói – disse o narrador – mas nem sempre esse herói sabe de sua real importância. Narai era um gato de rua, falante, como todos os animais dessa história, e pardo, como poucos outros serão, que vivia entre os becos, eventualmente roubando uma comida aqui e outra ali, quando não conseguia algo de alguém. Nunca teve um dono, nasceu na rua junto com outros dois irmãos que ele não faz a menor ideia de onde estejam, mas que ele espera sinceramente que tenham encontrado um lar. Nesse momento Narai está fugindo de um cachorro que costuma persegui-lo com certa frequência, pois pertence ao dono da loja da esquina, a Peixaria Bonfin, da qual Narai costuma surrupiar um peixe ou outro de vez em quando. Não que o cachorro se importe, mas é aquela velha história, sempre bom mostrar serviço para o seu dono, no caso, o Sr. Mário Bonfin, dono da peixaria que ele herdou de seu pai, Ricardo Bonfin, que por sua vez herdou de seu avô Teófilo Bonfin, que por sua vez não herdou nada de ninguém e começou esse negócio sozinho. Teófilo sim era um homem bom e sempre alimentava os animais abandonados, traço esse que não foi herdado por Mário Bonfin que, por sua vez, é o responsável pela perseguição que ocorre em frente a sua loja nesse momento pois gritou

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“Pega!” para seu cão quando viu que o gato havia lhe tomado um peixe. - Você não aprende mesmo! - disse o cachorro enquanto desviava de um hidrante, fazendo uma curva fechadíssima à esquerda que surpreendeu Narai, enquanto este saltava por sobre uma caixa de maçãs para pegar impulso. - Afrendar asrera quaisjo? – disse Narai com certa dificuldade por causa do peixe em sua boca. - O quê? Tira esse peixe da boca pra falar! Tenha um mínimo de educação! Nesse momento Narai parou, tirou o peixe da boca e ficou esperando o cachorro se aproximar. - Meu querido Arabás – disse ele (aliás, Arabás é o nome do cachorro) – sejamos práticos hoje. Você me deixa levar esse peixe e eu te economizo uma corrida. Arabás parou bruscamente para ouvir o gato falar com toda a tranquilidade do mundo. Pegou dois pequenos caixotes e os posicionou, oferecendo assento para Narai. - Se quiser se sentar - disse o cão. - Ah, claro, vai ter chá também? - Chá não, mas podemos conversar um pouco sobre algumas coisas. - Sou todo ouvidos. - De fato estou cansado de te perseguir. - Até porque você nunca me alcança. Fico me perguntando o que o seu dono acha disso.

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- Ele valoriza o meu esforço, eu acho, mas acredito que com o tempo ele vá querer me trocar por um cão um pouco mais violento.. Nesse momento o coração de Narai disparou. Fugir do Arabás era fácil, agora fugir de outro cão, e ainda por cima um mais violento, talvez fosse mais complicado. Arabás continuou: - Se nós pudéssemos criar algum tipo de esquema de auxílio mútuo. - Esquema de Auxílio Mútuo? – perguntou, mais para mostrar que estava acompanhando o raciocínio do que para perguntar alguma coisa mesmo. - Sabe, o famoso “eu te ajudo e você me ajuda”. É de vasto conhecimento de qualquer ser que deseja alguma coisa que uma linha reta é o meio mais fácil para se ir de um ponto a outro. Esse pensamento passou pela cabeça de Arabás quando ouviu o gato dizer sua última frase. Não que ele fosse um cachorro corrupto, era só preguiçoso mesmo, sendo que se ele pudesse não ir de qualquer lugar para nenhum outro, fosse em linha reta, curva, triangular ou elipsoidal, ele preferiria. - O que você tem em mente? – perguntou o gato, soprando uma mosca que havia pousado no peixe. - Veja pelo meu lado; eu preciso mostrar que sou útil ao meu dono impedindo que você ou qualquer outro gato, animal ou mesmo ladrão roube os peixes, eu sou uma espécie de segurança canino como você já percebeu. Pra isso eu preciso fazer com que meu dono perceba que estou realizando um bom trabalho e, logicamente, eu preciso de - 11 -


algumas “provas”. Claro que essas “provas” não precisam ser, necessariamente, reais. Consegue entender onde eu quero chegar? - Acho que sim. Você quer fazer um teatrinho comigo, isso? - Basicamente. Hoje, por exemplo, seria ótimo se eu pudesse levar esse peixe de volta. - Mas e eu? Fico sem o peixe? O que eu ganho com isso? - Claro que não. Pensa comigo: eu volto com o peixe, meu dono fica feliz, joga o peixe no lixo, eu pego ele do lixo e te levo nos fundos da loja um pouco mais pela noite. - Pode funcionar.. - O que você acha? Negócio fechado? - Negócio fechado! Narai entrega calmamente o peixe para Arabás, que o pega e começa a se afastar enquanto diz: - Dez horas, não se atrase! - Estarei lá! “Vez por outra, nessa vida, as coisas realmente se resolvem de maneira civilizada” – Narai pensou enquanto via Arabás se afastando. De fato, nessa vida, muito pouco se discorre pela lógica ou pelo menos com uma conversa honesta. Bondade e compaixão são qualidades tão raras que antes de acreditar nisso preferimos assumir de antemão que ninguém possui esses atributos. Pensar o contrário disso trouxe um sorriso ao rosto do gato que agora ia em direção à casa de uma - 12 -


outra gata, chamada Lundra, com quem havia combinado de se encontrar. Lundra era uma gata atípica, possuía o pelo cinza brilhante como se uma estrela houvesse borrifado nela e a deixado assim. Seus olhos também não eram comuns, sendo cada um de uma cor diferente, um azul e outro verde, cor de vento e cor de mar. Sua dona era uma menina de oito anos chamada Mirella, filha de um casal muito rico que trabalhava com consultoria imobiliária. Por vezes Narai se sentia hipnotizado olhando para ela, imaginando como seria ter um olho de cada cor, se isso traria algum benefício além de, a cada vez que ela piscava, ele não saber qual olho abriria azul e qual olho abriria verde. Por um tempo ele pensou que esse efeito fosse por conta da luz, ou porque sua memória de fato estava ficando um pouco ruim, e como não conhecia ninguém além dele mesmo que conhecesse aquela gata, a dúvida ficava no ar: os olhos mudavam mesmo de cor ou seria apenas um aviso para que ele fosse ao veterinário? Se fosse mesmo um aviso não faria a menor diferença, afinal, ele não conhecia nenhum veterinário. Pelo menos nenhum que não quisesse levá-lo para uma casa de adoção. Apesar da dificuldade de viver nas ruas, Narai gostava de sua liberdade. Ao mesmo tempo em que não gostava de ver Lundra presa.

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Capítulo 2

Histórias de Ovelhas A Mansão dos Schopenfraulein, tal qual o livro do filósofo de mesmo nome, não apenas parecia ser de origem alemã como também parecia ter sido construída por alemães, em uma cidade alemã, e posteriormente trazida por um navio alemão para a cidade - essa sim nem um pouco alemã - onde se encontra nesse momento: Palasita. Esse pode parecer um nome estranho para uma cidade tão cheia de animais falantes mas, se formos pensar um pouco, qualquer cidade que possua mais do que trinta e sete animais falantes pode ter o nome que bem quiser visto que, no momento em que trinta e sete animais adquirem tamanha consciência da vida, o nome da cidade pouco importa. Em compensação, as pessoas que vivem em Palasita se preocupam muito com o nome da cidade, talvez por não se importarem tanto assim com o sentido da vida e o motivo para sua existência, o que deixava alguns dos animais um tanto quanto tristes. Palasita foi construída numa época que não se sabe quando, por pessoas que não se sabem quem, por motivos desconhecidos. Esse excesso de falta de informação deixou a cidade com um aspecto um tanto quanto exótico, atraindo muitos turistas que vinham em busca de coisas divertidas e acabavam voltando para casa com iguarias culinárias e um monte de histórias inventadas pelos moradores. - 14 -


Uma das mais interessantes delas remete ao início da construção do moinho da cidade e conta como Emmanuel, com apenas um martelo, oito caixas de pregos, um serrote e um machado, construiu, sozinho, em apenas uma noite, a estrutura inteira do moinho e ainda fez um canteiro de Lírios ao redor da construção. Muitos dizem que ele teve ajuda de um rebanho de ovelhas que passavam por ali naquela madrugada, mas Emmanuel garante que o mais próximo que ele ficou de uma ovelha naquela noite foi ao contar carneirinhos enquanto tentava dormir. Muitas outras histórias se escondem por detrás da criatividade dos moradores de Palasita que, até hoje, continuam enriquecendo o enredo de seu famoso “Grande Livro das Lendas Históricas de Palasita”, que recebe várias críticas por, a cada nova edição, acrescentar um capítulo para frente e dois para trás, o que deixa muitas pessoas ressabiadas em relação a veracidade dos fatos apresentados. A Mansão dos Schopenfraulein era habitada por três humanos e quatro gatos, além de um grande número de funcionários que executavam diversas tarefas diariamente numa precisão milimétrica, iniciando invariavelmente às 8h43min da manhã e concluindo às 10h37min da mesma manhã, dando lugar aos preparativos do almoço que era servido às 12h pontualmente. Lundra ficava impressionada com a quantidade de pessoas que eram necessárias para servir sua ração, ao mesmo tempo em que imaginava como seria sair daquela rotina e viajar. Por um lado era bom, pois ela sabia que exatamente no mesmo momento de cada dia ela seria - 15 -


alimentada, banhada, escovada, passaria determinado tempo brincando com os filhos de seus donos, sendo acarinhada e mimada por eles, até o momento em que seria alimentada de novo e enfim dormiria ao som de música clássica. Mas faltava algo. De vez em quando ela conseguia escapar dos olhares atentos de seus criadores e escalava o muro da mansão, indo por dentro de uma fresta que criava uma pequena escada que a permitia subir sem grandes esforços até o topo, de onde conseguia ver o pôr-do-sol, e ficava imaginando como seria andar por uma grama que ela ainda não havia andado. O sonho de se libertar de uma monotonia que ela sabia ser o desejo de uma infinidade de gatos que não tinham metade do que ela tinha. Mas, ainda assim, ela queria ver o sol se pôr em outros lugares. - Chega a ser engraçado te ver aí tão alto! – disse Menphis, a gata negra de olhos azuis que morava na mesma mansão que Lundra. – Não sei se torço pra que você caia do lado de cá ou do lado de lá! - Você sentiria a minha falta, eu sei. - É bem provável que sim, mas te ver olhando por sobre o muro sempre me dá uma certa tristeza por ti. - É bonito aqui, você devia subir algum dia – disse Lundra, dando um pequeno sorriso para Menphis. - Acho que eu tenho medo da altura. Ou talvez medo de me encantar pelo sol como você. - Prometo que pro lado de lá eu não te deixo cair. Menphis olhou em volta, averiguando se alguém estava por perto enquanto, em seu coração, algo lhe dizia - 16 -


que aquele seria um bom momento para ver o sol se pôr. Uma vontade grande de saber o que existiria além do muro se apossou dela: - Talvez em outra oportunidade – e sua pata se fechou com força, como se as palavras não fossem aquelas, mas estivessem ali mesmo assim. Lundra desceu por dentro do muro e foi para junto de sua companheira. As duas seguiram de volta para dentro da casa, pois já era quase hora de se alimentarem e não seria bom preocupar seus cuidadores com sua ausência. - Ele vem hoje? – perguntou Menphis. - Ele vem sempre. Mesmo quando não vem respondeu Lundra, olhando para a lua que já começava a aparecer.

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Capítulo 3

Gatos e Colares Narai escorregava pelas telhas do alto das casas que faziam o caminho para a mansão dos Schopenfraulein, deslizando sem medo e saltando de uma casa para outra com grande precisão. Em alguns momentos parecia até voar e, nesses momentos, ele realmente sentia, por um par de segundos, que seu corpo era mais leve que o ar, que a gravidade não fazia parte de suas leis e se sentia flutuando, voando no espaço. Por vezes ele fechava os olhos e fingia não ser nada além de uma brisa naqueles poucos segundos em que suas patas e o chão se afastavam, dando-lhe tempo de imaginar o que quisesse, se sentindo livre do mundo e de todos os muros que o impediam de voar. Minutos depois, ele saltou pelos telhados das últimas casas antes da mansão onde Lundra estava. Ela, por sua vez, havia acabado de descer do muro que cercava a mansão depois de uma conversa com sua amiga Menphis, a qual não tinha lá muita certeza sobre o que gostaria realmente de fazer da vida. Por vezes Lundra tentava levá-la para alguma aventura, mas ela sempre inventava alguma desculpa para não acompanhar a amiga. Ainda assim, era uma gata muito inteligente e boa de se conversar. Se gatos usassem óculos provavelmente Menphis usaria óculos, mesmo que não precisasse, mas para demonstrar um ar de inteligência comum que possuem as pessoas que usam óculos. - 18 -


Narai, como de costume, deu um leve chiado previamente combinado com Lundra, um chiado que originalmente era para parecer ser o canto de uma coruja, mas a falta de habilidade de Narai em reproduzir esse som o transformou num chiado de gato tentando imitar o canto de uma coruja. Menphis sempre ria quando ouvia esse som e, como ela havia apostado que adivinharia que som era aquele, arriscou um palpite: - Estática de televisão? - Não, bem longe disso! - respondeu Lundra, vendo uma leve expressão de decepção no rosto de sua amiga. Narai chiou novamente de cima do muro, aguardando uma resposta, que logo veio: - Só um segundo! – sussurrou Lundra, alto o suficiente para que ele ouvisse. – Preciso pegar uma coisa pra você. - Eu espero aqui, em cima do muro mesmo? - Sim, já subo aí com você – disse ela, entrando dentro de sua casinha, onde havia escondido um pequeno presente que terminara de confeccionar naquela tarde. Era uma espécie de colar feito de sementes que ela mesma havia colhido no quintal. Ela colocou em volta de seu próprio pescoço e saiu de sua casinha, indo em direção ao muro, subindo rapidamente pela fresta dele, em sua pequena escada improvisada, alcançando o ponto onde Narai estava. Chegando lá ela não o viu, pois enquanto subia pela fresta do muro ela não conseguia enxergá-lo, e chegando no topo não o encontrou, se sentindo sozinha por um segundo, até sentir o abraço vindo do lado - 19 -


contrário para o qual ela estava olhando, sendo surpreendida por ele. Os dois ficaram ali, abraçados por alguns segundos antes de se soltarem e dizerem as primeiras palavras daquela noite: - Você está adiantado! – disse Lundra – Eu estava indo agora receber a ração dos criadores, você precisa ir antes que eles cheguem e te vejam aqui. - Sem problemas, eu logo me vou, só precisava aproveitar essa oportunidade pra vir te dar um abraço. - Ou você é muito romântico ou é muito malandro. - Ou talvez um pouco dos dois, o que não diminui a minha alegria em estar aqui contigo – e um sorrisinho brotou no canto da boca de Narai, seguido de uma risada quase imperceptível de Lundra. - Você precisa ir logo – disse ela. - Eu sei, inclusive, me vou agora nesse instante! E, se virando num salto, pulou para o galho de uma árvore que ficava próxima ao muro. - Espera! – disse Lundra, que ainda não havia entregue seu presente. – Eu fiz isso pra você. Narai saltou de volta para junto de Lundra, que colocou o colar em seu pescoço, dizendo: - Pra te proteger quando eu não estiver por perto, afinal, eu sou bem mais forte que você. - Não é não, mas eu vou fingir que é pra poder levar o colar comigo – brincou ele. - Agora vai, antes que alguém te veja e eu de fato precise te proteger. - 20 -


- Até logo então – disse ele, saltando novamente para o galho e sumindo por entre os prédios. Lundra ainda ficou alguns segundos olhando enquanto ele se afastava, pensando que logo mais chegaria a hora de ir junto com ele, quando pudesse realmente confiar naquele gato. - Você ainda tem dúvidas, não é? – perguntou Menphis quando Lundra desceu do muro pela mesma fresta que sempre usava. - Algumas, mas eu sinto que não precisava delas. Ainda me parece que um grande evento está prestes a acontecer e depois dele tudo vai mudar. Por isso ainda não é o momento de ir, mas sinto que em breve. E é melhor você decidir logo se vai comigo ou não. O coração de Menphis acelerou por um segundo. - Eu não sei – respondeu. - Na hora você vai saber – disse Lundra, passando a pata pela cabeça da amiga, indo com ela pro ponto onde sempre esperaram a ração.

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Capítulo 4

Encontro Auspicioso “Quase na hora”, pensou Narai, deslizando novamente pelas calhas dos telhados. Pensamento curioso. Analisemos. Ele não tem relógio. Fim da análise. Arabás já estava esperando pelo gato no local combinado: a parte de trás da Peixaria Bonfin cujo slogan era o criativo: “Filho de peixe, Bonfin vende”. Nunca funcionou. Nunca mudaram o slogan. Que continua não funcionando até hoje. Mas como ponto de encontro para animais falantes funcionava. Narai escorregou pela lateral de uma parede, dando um salto final até o meio do lugar, a uns dois metros de distância de Arabás. - Você está atrasado – disse o cão. - Eu não tenho relógio – respondeu o gato. - Nem eu – retrucou o cão. - Então como você sabe que eu estou atrasado? – perguntou o gato. - Pela posição da lua – mentiu o cão. - Lorota! – percebeu o gato. - Verdade – admitiu o cão. - Meu peixe? – solicitou o gato. - Aqui – concluiu o cão, jogando uma espinha de peixe roída aos pés de Narai, que se espantou ao perceber que aquele encontro não estava indo muito bem.

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Um outro cão, preto e um pouco menor que Arabás, surgiu por entre as sombras, seus olhos um pouco vermelhos, piscando excessivamente. - Seu peixe não vem sendo bem alimentado ultimamente, acredito que seja desleixo seu ou quem sabe nem seja o mesmo peixe. Na verdade não é o mesmo peixe porque o Arabás devolveu pro dono dele o peixe que você tinha roubado e o sem vergonha vendeu ele mesmo assim. Na verdade essa espinha o Arabás encontrou no lixo, ele ficou revirando o lixo até agora há pouco, desesperado que não ia encontrar uma espinha pra fazer aquela cena linda em que ele joga ela perto de ti e te dá um baita de um susto! Não deu um minuto que ele achou isso e você chegou! Bem na hora! E ele ainda teve a pachorra de dizer que você estava atrasado.. – disse o novo cão enquanto Arabás olhava pra ele e balançava a cabeça negativamente pensando em como esganá-lo. - Quieto! – disse, enfim. – Não interessa de onde veio a espinha! - O importante é o efeito cênico, não é? – respondeu o cão preto. - Que efeito cênico o que? O importante é pegar esse gato e encher ele de pancada! - Então melhor não deixar ele fugir.. - Ele não vai fugir! - Ele já fugiu.. Arabás se virou novamente para onde o gato estava e percebeu, estarrecido, que Narai tinha se mandado mesmo. - 23 -


A alguns metros dali, o gato estava correndo com tanta pressa e vontade de escapar que, em vários momentos, arriscou manobras perigosíssimas que quase o fizeram bater nas latas de lixo, em algumas paredes, num paralelepípedo, num papagaio maltês, que proferiu algumas palavras irritadiças de tradução desnecessária em Japonês, e por uma poça de água. Narai escorregou na poça e foi lançado com uma velocidade ampliada em duas vezes pela propulsão do deslize, realizando um salto mortal de costas seguido de um giro completo no ar, pousando perfeitamente com as quatro patas, seguindo sua corrida em fuga e recebendo uma exclamação do papagaio oriental, que gritou algo que pareceu “Kawabanga!”, provavelmente uma alusão ao seriado de anfíbios ninjas que estava assistindo na televisão do apartamento em que residia. Não que essa informação seja importante pra essa história, mas pareceu digna de menção honrosa. Arabás e o outro cão, que por falar nisso se chama Júìto, seguiram no encalço de Narai, tentando a todo custo alcançá-lo antes que o perdessem de vista ou que ele atravessasse a fronteira para Nicarágua. O que acontecesse primeiro, que provavelmente seria perderem ele de vista mesmo. Para sorte dos cães perseguidores, o gato se embananou num beco sem saída, que originalmente tinha saída mas, que com a política de remodelação de ambiente urbano, havia sido bloqueada, deixando Narai sem muita opção a não ser se virar para onde veio e perceber que

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Arabás e Júìto estavam mais próximos do que ele imaginava. - Eu poderia até.. te perdoar por ter roubado aquele peixe antes.. mas eu não tenho mais idade.. pra essas corridas durante.. muito tempo.. – disse Arabás, ofegante. - Se eu soubesse disso eu nem teria fugido, custava ser um pouco mais claro? Na hora que você jogou aquela espinha pra cima de mim eu achei que era um sinal de que meus dias como gato gatuno haviam terminado – respondeu. - Não teria sido assim tão fácil escapar, claro que a gente ia te dar uma lição, mas precisava correr tanto!?! - Pelo visto eu precisava era ter corrido mais! Ainda não acredito que você vai realmente quebrar o nosso acordo de hoje de manhã, isso é tão antiético! Eu, com toda a boa vontade do mundo, fazendo um acordo extremamente vantajoso pra nós dois pra chegar aqui e ser ameaçado! Isso é um ultraje! Eu exijo meu advogado! - E desde quando gato de rua tem advogado? – perguntou Arabás. - Eu não lembro de bicho nenhum até hoje ter tido um advogado, viu – interrompeu Júìto. - Não interessa! Ninguém aqui tem advogado e isso vai ser resolvido do jeito que as coisas são resolvidas na rua! – esclareceu o cão. - Com um abraço? – arriscou o gato, sem muita esperança. – Tenho te sentido tão carente ultimamente, Arabás. Talvez seja a falta de amigos ou de uma

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companheira que te entenda e te coloque pra dormir no colo dela. Arabás imaginou a cena por um segundo, fechando os olhos e dando um suspiro. - Sabe que às vezes eu me sinto meio sozinho mesmo? – disse. – Eu preciso ficar mantendo essa pose de durão, fingindo que ainda dou conta de correr atrás de gatos, gambás, pássaros, lebres e toda uma infinidade de bichos que aparecem lá na Peixaria.. Eu também tenho sentimentos sabe, queria alguém que pudesse me dizer uma palavra de carinho, passar a pata na minha cabeça e me dizer que eu estou indo bem. - Você tá indo bem, sim – disse Júìto, passando a mão na cabeça do outro cão, que olhou pra ele com um grande estranhamento. – Eu também me sinto assim às vezes. Falta um abraço amigo, um pouco de compreensão, alguém que veja além dos meus defeitos e dos meus escudos, que perceba quem eu sou realmente, por trás de toda essa casca grossa de cão perseguidor. - Exatamente! – consentiu Arabás, abraçando o companheiro e caindo no choro junto dele. Enquanto isso, Narai olhava totalmente descrente daquilo que estava acontecendo na sua frente. Emocionado, foi se aproximando deles e os abraçou também, derramando uma lágrima enquanto falava: - Eu entendo tão bem isso tudo! Vocês até que são boas pessoas, apesar de não serem nem pessoas.

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Nesse momento Arabás largou Júìto e segurou o pescoço de Narai, empurrando sua cabeça contra o chão em uma chave de pata. - Não achei que seria tão fácil enganar você, gato – disse o cão. - Mas era mentira? – indagou Júìto, que ainda não havia se recuperado do momento altamente emocional do instante anterior. - Claro que era mentira! Só pra enganar esse gato de coração mole aqui. - Ah, claro, claro. Eu sabia – disse o outro cão, mas ninguém acreditou. - E agora, voltando aos nossos negócios, gato. Gostaria de saber quais são os meus planos pra você? - Na verdade, gostaria sim. Me parece tão promissora a situação atual, tantas possibilidades! – respondeu o gato, deixando Arabás confuso por um segundo. - Possibilidades? Não tem muitas possibilidades pra você, não. Confesso que eu não cheguei a planejar muito o que vem a seguir, mas sei que inclui te amaciar de pancada! - Não sei. Parece tão bárbaro isso, não podemos apenas conversar um pouco? Sermos animais civilizados pelo menos uma vez? - Isso não é uma opção. O único jeito de você sair dessa, gato, é com um milagre. - E qual seria a sua definição de milagre? – indagou Narai, obviamente tentando ganhar tempo para pensar.

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- Acredito que um evento não esperado que te tirasse dessa situação. Isso seria um milagre. - E se por acaso aparecesse um ser mágico e místico que brandisse um graveto e me tirasse daqui? - As chances disso acontecer estão contra você. - Só um segundo então – pediu o gato, que continuou a frase gritando para um ser mágico e místico que brandia um graveto e estava se preparando para tirar ele daquela situação. – Você pode me ajudar? - Vim aqui só pra isso – respondeu o ser mágico, para o desespero de Arabás, que o olhou de relance e só viu um pequeno raio vindo do graveto em sua direção e o lançando pra longe de Narai.

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Capítulo 5

Projétil Ao ser atingido pelo raio, Arabás pensou em algumas coisas. Entre elas o quão cansado estava por ter corrido tanto atrás daquele gato maldito. Pensou também numa cadela que ele tinha achado muito bonita no dia anterior. Lembrou que ela havia olhado para ele por um instante quando passou pela rua na frente da Peixaria Bonfin, sendo colocada ao lado de um poste, presa pela coleira, do lado de fora de uma loja de roupas femininas, pois sua dona havia entrado para fazer compras e a cadela havia ficado do lado de fora. Arabás ficou olhando para ela que, depois de algum tempo, percebeu e retribuiu seu olhar. Os dois deram um pequeno sorriso tímido. Naquele momento Arabás também estava preso pela coleira do lado da Peixaria, pois era cedo da manhã e ela ainda estava fechada, mas se esqueceu disso e tentou ir em direção a ela, sendo impedido pela coleira em seu pescoço, que o segurou tão forte que o fez escorregar no chão. A cadela deu uma risada e o cão ficou em dúvida se havia agradado ela com seu tropeço ou se ela o achara um bobo. Ele se sentiu um pouco envergonhado e permaneceu parado por alguns instantes. Ela tentou ir na direção dele e também foi segurada pela sua coleira, imitando a situação que ocorrera com cão, demonstrando que não havia sido nada muito constrangedor. - 29 -


Nesse momento a porta da loja de roupas femininas se abriu e a dona dela saiu de lá, desenrolando a coleira do poste e seguindo seu caminho levando a cadela junto, que ainda fez um pequeno esforço pra ir na direção de Arabás, mas fora puxada de volta por sua dona, que não entendeu o motivo daquela tentativa de mudar o caminho. Ele tentou novamente forçar a coleira e se soltar, mas acabou escorregando novamente, vendo a cadela sorrir mais uma vez por causa disso antes de dobrar a esquina e desaparecer. O raio que atingiu Arabás tinha essa propriedade, ele trazia memórias boas que poderiam trazer algum significado para aqueles que fossem atingidos por ele. Quando acordou, horas depois, sem saber direito o que havia acontecido, o cão simplesmente levantou e saiu em busca da cadela que a coleira o havia impedido de alcançar e, levasse o tempo que fosse, ele prometeu que a encontraria.

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Capítulo 6

Vejamos, Gato.. - Deixe-me olhar bem pra você – disse o ser mágico indo em direção a Narai e retirando uma listinha de sua bolsa. – Gato: Confere. Pardo: Confere. Local: Confere. Horário... Estamos uma hora adiantados, mas acredito que isso não queira dizer muita coisa. Ganhamos uma hora a mais para descansar no meio do caminho até o Arquipélago de Pedra, então. Começamos bem essa jornada! - Arquipélago de Pedra? Jornada? Do que você tá falando? - perguntou o gato, passando a pata pelo pescoço para aliviar a tensão. Narai estava extremamente aliviado por ter sido salvo mas, ainda assim, muito confuso com tudo que estava acontecendo. Ele nunca vira um ser daqueles e, apesar de ter percebido que aquela criatura não era deste mundo, manteve a calma e continuou conversando como se fosse tudo normal e que esse tipo de coisa acontecia constantemente com ele. Dali pra frente esse tipo de coisa realmente aconteceria com frequência em sua vida mas, naquele momento em específico, ele só estava fingindo. - Você não sabe? Pois deveria saber! Da profecia pelo menos você sabe? – disse o ser mágico, que até agora não foi descrito. - Deveria? Narai ficou ainda mais confuso e tentou escolher o melhor plano de ação para aquele momento: - 31 -


a) Fingir que sabia o que estava acontecendo e seguir o baile; b) Ser honesto e dizer ao ser mágico que ele não fazia a menor ideia do que estava acontecendo ali; c) Dar no pé o mais rápido possível antes que ele também fosse alvo daquele raio; d) Dançar uma valsa com um parceiro imaginário; e) Contar de 32 a 0 de trás pra frente dando pequenos saltinhos numa perna só; f) Realizar uma performance misturando todas as alternativas anteriores; E, entre todas estas opções fabulosas, ele escolheu a mais simples de todas: Perguntar se choveria. - Será que chove? - Acho difícil, meu joelho não tá coçando – respondeu o ser mágico. – Será que podemos ir agora? - Claro! – consentiu o gato que, a essa altura do campeonato, já estava no lucro e não via com bons olhos contrariar aquela criatura. E, por falar nisso, a criatura parecia um pequeno homenzinho arbóreo de madeira, do tamanho de um gato, com pequenos galhos saindo de seus cotovelos e outros ligamentos entre os membros. No lugar do cabelo, ramos de folhas verdes completavam seu visual que, apesar de se parecer com um pequeno homem-árvore que não precisaria de roupas, as usava mesmo assim. Além do cajado extremamente útil para situações de perigo, como pôde ser observado anteriormente.

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- Mas, primeiro - continuou Narai –, preciso saber direito o que está acontecendo aqui. Você veio me encontrar? - Sim, diz a profecia da nossa terra que eu encontraria nesse beco, desse mundo, aproximadamente nesse horário, um gato pardo que seria o salvador do Arquipélago de Pedra. - Entendo. E qual é o plano? - O plano é simples, te levar até a Ilha principal. - E depois? - Vão ter umas batalhas, uns enigmas, umas masmorras, talvez uma ou outra guerra. O de sempre dessas profecias. Mas, se eu fosse você, não me preocuparia, afinal, você tem o poder pra nos salvar! - Tem certeza? - Na verdade a profecia é um pouco passível de interpretações. Numa delas você tem o poder pra nos salvar, numa outra você só vai durar um par de dias e depois vai ser engolido por uma baleia gigante. Ah, tem uma interpretação que diz que você nem é um gato, mas um Periquito Pardo! Já imaginou? Um periquito! Não sei quem veio com essa, mas a criatura tem muita imaginação! - Não consigo nem discordar do excesso de imaginação de tudo que eu ouvi hoje. Mas preciso ser sincero, não acredito que eu seja o gato certo. - Na profecia diz que o gato certo não se sentiria digno da honra de ser o gato certo. E diz também que ele estaria segurando uma espinha de peixe.

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- Que precisa essa profecia – disse o gato, que acabara de perceber que ainda estava segurando a espinha de peixe que Arabás havia jogado aos seus pés. – Que seja então! É muito longe esse lugar pra onde vamos? - Na verdade não, conseguiremos chegar ao final do dia de amanhã se sairmos logo. - E como é esse lugar? - É lindo, estamos enfrentando alguns problemas políticos que nossa Rainha vai te explicar melhor, mas é um lugar mágico onde todos podem viver felizes, desde que cada um cuide da sua vida e não se meta na dos outros. Nesse momento Narai começou a pensar que talvez fosse uma boa ideia acompanhar aquele ser mágico até esse lugar mágico para ter uma aventura mágica e terminar levando uma vida mágica com Lundra. - Eu preciso levar alguém comigo. Tem uma gata que mora em uma mansão nos arredores daqui. Eu vou com você, mas preciso primeiro resgatar ela pra levá-la junto comigo. - Não dizia nada sobre isso na profecia. - Talvez seja só uma questão de reinterpretação – arriscou Narai. - Talvez seja. Vamos resgatar essa gata e chegando lá descobrimos os detalhes da profecia. Ela é muito grande, eu também não consegui decorar tudo. E se formos logo, com um pouco de sorte, chegaremos a tempo do festival de frutas de lá. Você vai adorar!

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Narai não pôde deixar de notar o quão atípico foi aquele dia. Mas tudo bem, estava salvo e com bons planos futuros. Talvez um pouco perigosos, mas promissores. No momento em que o ser mágico e o gato tomaram rumo em direção da residência de Lundra, um outro gato, também pardo, chegou no local, exatamente uma hora depois de Narai, e ficou lá, esperando algo acontecer. Júìto, que foi ignorado por todo mundo até agora, se aproximou do novo gato e sentou ao seu lado. - Meu, você não vai acreditar no que aconteceu aqui..

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Capítulo 7

Rechegar Lundra não esperava uma segunda visita de Narai naquele mesmo dia, então estava brincando com um novelo de lã que conseguiu pegar sorrateiramente de uma das funcionárias dos Schopenfraulein. Como ela não tinha muitas preocupações, costumava criar pequenas aventuras, como roubar novelos de lã e os esconder para brincar com eles durante a noite, quando ninguém pudesse ver. Narai reproduziu o chiado previamente combinado com Lundra para que ela viesse o encontrar. O ser mágico achou estranho aquele barulho e não se conteve em perguntar: - Que raios de som é esse? - Como assim? É o som de uma coruja. - Isso é uma coruja? Não, não, nem de longe. Isso aqui é uma coruja – disse ele, reproduzindo um som perfeito de uma coruja. Alto o suficiente pra acordar quem não deveria. - É o som de uma coruja! – gritou Menphis em sua casinha ao lado da casinha de Lundra, que respondeu: - Sim! Acertou! Espera, mas ele nunca acerta o som, tem alguma coisa acontecendo. As duas saíram juntas e foram em direção ao muro. Ao chegarem lá viram Narai descer por dentro do muro e ir na direção delas no gramado.

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- Você tá sem noção? Não pode entrar aqui! – disse Lundra, preocupada. - Por quê? - e nesse momento ouviu o latido de meia dúzia de cães que vinham da parte da frente da mansão. – Ah, verdade, por isso. Melhor a gente correr! Narai segurou firme a pata de Lundra e a puxou em direção ao muro. Ela se segurou por um instante. - O que tá acontecendo aqui? – perguntou. - Eu sempre disse que te levaria daqui quando fosse o momento certo, eu não sei porquê mas eu sempre soube, de algum jeito, que algo incrível aconteceria algum dia e que eu perceberia que seria esse o momento de vir aqui te buscar. Você não vai acreditar em tudo que aconteceu desde o momento em que você me deu esse colar na minha última visita, e eu não tenho tempo suficiente pra explicar agora. Eu só preciso que você confie em mim. E naquele ser mágico que tá ali em cima do muro. Que aliás foi quem imitou a coruja. - Eu sabia que não tinha sido você! – disse Menphis, percebendo que aquele não foi o melhor momento pra dizer aquilo. - Quem é ele? – perguntou Lundra. - É um ser mágico que me salvou agora há pouco de um cachorro – e nesse momento a meia dúzia de cães guardiões da casa chegaram. - Acho que não temos tempo pra mais nada, não é? – disse Lundra com um sorriso. – Eu não sei se é o certo, mas é o que eu quero. Eu vou contigo. E com essa

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criaturinha estranha ali, mas eu vou querer várias explicações depois! - Combinado! Agora vamos! Os cães começaram a correr na direção deles, mas Lundra ainda tinha um último assunto a resolver, mesmo que não tivesse tempo para isso. Olhou para Menphis como se perguntasse se ela iria junto com eles. Nesse momento o ser mágico saltou do muro se colocando entre os cães e os gatos. - Melhor vocês se decidirem logo, porque um cão eu até consegui enfrentar, mas seis vai ser um pouco difícil. - Você conseguiu enfrentar um cachorro, pedacinho de madeira? – disse o líder dos cães, que parou para olhar aquela situação. – Olha o seu tamanho, com certeza foi um cachorrinho fracote, você não teria chance contra um de nós que fosse. - Quer tentar? Eu e você? - Isso é um desafio, madeirinha? - Eu não fui suficientemente claro? Você é grande porque lhe falta cérebro? - Acho que alguém vai se arrepender muito de saber falar hoje. O líder dos cães saltou para cima do ser mágico tentando encaixar uma mordida, mas ele desviou rolando para o lado, disparando um raio que passou muito perto do cão, mas errou. - A gente precisa ir antes que isso piore ainda mais – disse Narai.

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- Eu vou com vocês! – disse Menphis. – Eu vou e espero não me arrepender disso depois! - Há uma grande chance de que eu me arrependa de ter aceitado resgatar tantos gatos! – disse o ser mágico, ainda duelando contra o líder dos cães que ordenou que os outros cães atacassem os gatos ao ver que eles iriam tentar fugir. - Peguem eles! Rápido, segurem as gatas e me tragam aquele gato! Nesse momento o ser mágico ergueu seu pequeno cajado e uma luz ofuscante deixou todos ali tontos. - Terminamos isso em outra oportunidade – disse para o líder dos cães enquanto segurava as patas dos gatos, que também estavam um pouco tontos com a luz do cajado, guiando eles até o muro. - Subam, rápido! O Líder dos Cães se recuperou mais rápido que os outros e, mesmo sem enxergar direito ainda, foi em direção ao muro. Eles já estavam na metade do caminho e o buraco era pequeno demais pra um cachorro daquele tamanho. - Nós ainda temos contas a acertar, madeirinha! - Temos sim, eu não me esquecerei disso, mas no momento preciso levar eles pra longe daqui. Volto pra terminarmos nosso duelo. Palavra de honra. - Temos um acordo então – disse o Líder dos Cães, que finalmente havia encontrado um rival a altura e estava ansioso para enfrentá-lo mais uma vez. Eles terminaram de escalar o muro e saltaram todos para a árvore mais próxima, seguindo por cima dos telhados das casas até chegarem a um ponto onde já - 39 -


estavam distantes o suficiente para poderem conversar. Finalmente. - Alguém me explica alguma coisa agora? – disse Menphis, que foi de agregada mas agora já estava começando a repensar sua fuga. - É o seguinte – disse Narai – eu também não tenho lá muita certeza do que está de fato acontecendo aqui. - Você ainda não sabe porque está indo comigo pra Ilha principal do Arquipélago de Pedra? – perguntou, um pouco surpreso, o ser mágico. - Eu nunca fui muito apegado a detalhes – confessou o gato –, mas sei que eu sou o escolhido porque tem uma profecia e o lugar pra onde a gente vai é super legal. - De fato é um lugar muito legal sim, apesar da guerra, claro. - Guerra!?! – gritaram Lundra e Menphis juntas, se olhando e tendo um pequeno ataque de pânico. - Você me arrancou da minha casa pra me levar pro meio de uma guerra? – perguntou Lundra. - Basicamente, sim – respondeu o gato. - Por mim tudo bem – disse ela. Menphis ficou perplexa com a resposta de sua amiga. - Você não tá raciocinando direito, por acaso? A gente tinha tudo naquela casa e agora não temos mais nada! E além disso estamos indo junto com um gato de rua e uma criatura feita de madeira que dispara raios pro meio de uma guerra! - 40 -


- Mas o lugar é realmente lindo – tentou se justificar o ser mágico. - Ahhh que bom saber! Agora eu me sinto muito melhor! – disse Menphis, virando as costas para o grupo e se afastando. Lundra foi atrás de sua amiga, que havia se sentado na beirada do telhado, e fez um sinal para que ninguém a seguisse, sentando ao lado dela. - Achei que você estava feliz até agora há pouco, correndo e saltando conosco. - Você não se preocupa? – respondeu Menphis, ignorando a pergunta. – Nós sempre tivemos tudo que a maioria dos gatos sempre quis, boa vida, boa comida, um teto sobre nossas cabeças e agora tudo se foi. Isso não te preocupa? - Não, porque eu não perdi nada que eu tenha conquistado. Porque aquele não era o meu teto, não era a minha comida, não era a minha “boa” vida – disse, lembrando de seu passado. - Eu nasci numa loja de animais, durante muito tempo a gaiola foi a minha casa, ou melhor, meu meio de transporte e casa ao mesmo tempo. Era bonito ver as crianças me olhando pelos vidros e, no começo pelo menos, a minha maior vontade era apenas de ter um espaço um pouco maior pra poder correr. Mas quando eu saí de lá, quando a nossa pequena dona nos levou, por mais feliz que eu estivesse, sentia que não era exatamente aquilo que eu queria. Foi bom chegar lá e te conhecer, poder dividir tanta coisa com você, mas eu acho

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que, do mesmo jeito que eu, você também percebeu que com o tempo nós nos tornamos um “enfeite” daquela casa. - Ela não vinha mais nos ver e os nossos criadores nos alimentavam e nos banhavam por obrigação – concluiu Menphis, acompanhando o raciocínio de sua amiga. - E o mundo foi ficando cada vez menor e mais monótono. Até agora há pouco. Hoje nós demos o primeiro passo pra encontrarmos o nosso próprio caminho. E a coragem que você teve pra vir junto mostra que isso também é um desejo teu. - Mas você tem aquele gato pra te dar força. Desde que vocês se conheceram que você é ainda mais sonhadora do que era antes. - Acredite, não foi ele que colocou essas ideias na minha mente. Ele pode ter acendido a fagulha que faltava mas, ainda assim, se não fosse ele vir nos tirar daqui hoje, eu arranjaria outra forma, outro motivo, o que quer que fosse, pra poder seguir. - Achei que você não confiasse nele, pelo jeito que você falava. - Eu confio totalmente, mas eu também sinto medo, apesar de ter dito que não. Porque eu não tenho medo de perder o que eu já tinha, mas de não estar pronta, de não ser capaz de seguir o meu caminho e conquistar aquilo que eu quero. - Então somos duas. - Duas bobas – brincou Lundra –, duas bobas muito valentes.

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- Não sei quem acendeu a tua fagulha, mas a minha eu não conseguiria responsabilizar ninguém além de você por ela – disse Menphis, olhando para a outra gata com um sorriso. - Espero merecer essa confiança toda. - Sinceramente, eu espero não estar perdendo a noção. Não só por ter fugido de casa, mas por estarmos andando com um homenzinho de madeira que fala, luta e faz mágica. Será que só eu que achei isso estranho? - Confesso que na correria eu não raciocinei muito bem no meio de toda a confusão que se armou, mas ninguém até agora disse o nome dele! Ninguém nos apresentou! Isso não pode ficar assim! – disse Lundra, rindo junto com sua amiga. - Vamos lá resolver isso, então. Eu preciso pelo menos saber por quem gritar nos momentos de perigo. - Não seja por isso, na dúvida grita por mim! Mas por hora vamos resolver a questão das apresentações! Lundra e Menphis se viraram novamente para Narai e o ser mágico e perceberam que eles estavam jogando pedra, papel e tesoura como se aquilo valesse a vida deles. - Pedra, papel e tesoura!! – gritavam juntos. - Tesoura! Ganhei! – gritavam separados, de acordo com o resultado. O ser mágico estava com um pouco mais de sorte que Narai nesse jogo e já acumulava uma vantagem de cinco vitórias sobre o gato. - Com licença, companheiros de fuga - interviu Lundra, mas sem ser ouvida. - 43 -


- Pedra, papel e tesoura! – gritaram novamente. - Papel! Ganhei! – gritou Narai, que havia diminuído a vantagem de seu oponente para quatro vitórias. - Narai.. – tentou chamar novamente. - Acho que eles estão hipnotizados – sugeriu Menphis ao ouvir eles gritarem outra vez “Pedra, papel e tesoura! Pedra! Ganhei!”. - Quem sabe vir junto não tenha sido uma ideia tão boa assim – disse Lundra, olhando um pouco preocupada para sua amiga enquanto ouviam se repetir: - Pedra, papel e tesoura! Papel! Ganheeei!!! – urrou Narai, que agora estava um pouco mais próximo de empatar o jogo. Naquele momento, Lundra e Menphis se olharam e caíram na gargalhada, rindo da situação em que tinham se metido, mas felizes por estarem juntas. “Poderia ser pior”, pensaram ao mesmo tempo, apesar de uma não saber que a outra havia pensado exatamente a mesma coisa. A definição de “pior” é bem relativa. Aquela situação não estava tão ruim quanto ficaria segundos depois, quando um corvo cinzento, com um sinal branco na testa que lembrava a ponta de uma flecha, pousou em frente a eles, fazendo o ser mágico não concluir o jogo que estava tendo com Narai. - Lazul.. – disse o Corvo com uma voz cavernosa e grave. – Bem que Elo me disse que eu te encontraria aqui nesse mundinho medíocre e podre procurando o gato da profecia. Pelo visto você não o achou e pegou qualquer um que fosse parecido, não é? - 44 -


“Lazul”, pensou Menphis, feliz por finalmente descobrir o nome daquele ser e ignorando a ameaça do Corvo. Narai flexionou suas patas, preparando seu corpo para lutar ou correr. Aquilo não parecia nada bom. - Talvez seja mesmo o gato errado, Corvo, você não precisa se preocupar, eu só estou levando ele pra um passeio. Ouvi dizer que Elo não acredita na profecia – respondeu Lazul. - A profecia é uma piada! É uma história inventada por criaturas que já perderam a esperança e precisam de algo no que se apegar. - Então você vai nos deixar seguir? - Claro, fiquem tranquilos, porque eu os impediria? Vai ser profundamente divertido ver o momento em que tudo aquilo em que vocês acreditam cair por terra. - Então o que você veio fazer aqui? – perguntou Lazul, realmente sem entender o motivo. - Curiosidade, pra dizer o mínimo. Não vim aqui machucar você ou esse gato pardo em quem você tolamente acredita. Mas também não viria aqui a troco de nada, como você bem sabe. O Corvo bateu uma das asas de maneira rápida e forte, lançando uma de suas penas tão velozmente que ninguém percebeu o que havia acontecido até ouvirem o barulho de alguém caindo contra as telhas e rolando por elas. Narai deu um salto tentando alcançar Lundra, que havia sido atingida pela pena, e que agora já estava na beira do telhado, ainda rolando pela força do tiro do Corvo. Ele conseguiu segurar a pata dela com uma das suas mas não - 45 -


teve força para se agarrar numa das telhas. Os dois caíram de lá de cima direto na calçada de concreto, Narai ainda a abraçou e girou para diminuir o impacto da queda, caindo praticamente em três de suas quatro patas, absorvendo parte da força. Lazul não se moveu, ele sabia que não podia virar as costas para o Corvo, que fez uma reverência como se estivesse recebendo aplausos e disse: - Por hora é apenas isso. Tenham um bom caminho de volta e boa sorte. Elo manda lembranças – e saltou alçando voo e sumindo no horizonte. Lazul, ao ver que ele já estava longe o suficiente, correu até onde Narai e Lundra haviam caído, saltando de cima da casa até a calçada, ao lado dos gatos. - Não precisa se preocupar – disse Narai – nós tivemos sorte na queda, não era tão alto, mas acho que ela desmaiou. - Não, é o efeito da pena daquele Corvo, ela coloca em sono profundo qualquer um que seja atingido por ela – disse, retirando a pena que estava em Lundra, que acordou devagar. - Aconteceu alguma coisa? - Não, eu só queria ficar te olhando dormir um pouco. - Eu caí de lá de cima, não foi? - Caiu, mas eu consegui te segurar. - Eu deveria te agradecer? - Acho que sim – disse Narai, esperando receber um carinho e sendo atingido por uma patada de Lundra. - 46 -


-Você chama isso de salvamento? A gente caiu do alto de um telhado no concreto! - Nem sempre sai exatamente como o planejado! – tentou se justificar. – Eu planejei sair voando, mas não deu certo. - Eu estou brincando, seu bobo. Vem cá! – disse Lundra, se abraçando no gato. Enquanto isso, Menphis continuava no topo da casa, tremendo, tentando digerir tudo que havia acontecido, e pensando em quem seria essa criatura que o Corvo nomeara tantas vezes de Elo.

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Capítulo 8

Salão de Jogos Elo aguardava o retorno do Corvo no salão do trono de um alto castelo onde jogava ping-pong consigo mesmo, rebatendo a bola de um lado para o outro, saltando para continuar o jogo contra si numa velocidade inacreditável. Elo era uma ave mágica, cor azul-turquesa, com um porte austero e contemplativo. Pelo menos quando não estava jogando ping-pong, pois nesses momentos ele parecia mais um risco azul indo de uma extremidade a outra da mesa. - Com licença, trago notícias – disse o Corvo, adentrando pela janela e pousando a alguns metros dele –, encontrei Lazul e os gatos que o acompanham. - Gatos? – disse Elo, sem parar de jogar, aumentando a velocidade dos golpes. – No plural, mais de um gato? - Sim, gatos, no plural – respondeu, tentando acompanhar com os olhos os movimentos do pássaro, mas ficando tonto depois de alguns segundos. - Devo supor que seja o início de um pequeno exército? - Pode supor que são uns bichinhos meio esquisitos reunidos aleatoriamente mesmo. São duas gatas além do gato, não chamaria isso de “pequeno exército”. No máximo de “grupinho descolado”, pois não me parece que tenham grandes habilidades. Atingi uma delas com uma de minhas - 48 -


penas e, apesar de um ato heroico do gato se lançando pra salvá-la, não vi nada de mais neles. Pelo menos nada do que havia nos dizeres da profecia. - Alguma chance de Lazul ter se confundido? Ele sempre teve a cabeça nas nuvens. - Grandes chances dele ter se confundido, sim. Ou simplesmente não ter encontrado exatamente o que estava escrito e substituído por algo similar. - Muitas possibilidades de interpretações nessa profecia. Quem escreveu ela deveria ter pensado nisso, ou ter sido pelo menos um pouco mais específico. - Facilitaria muito o trabalho de quem foi atrás do herói dela e ao mesmo tempo facilitaria o meu trabalho, que é de ir atrás daquele que for atrás desse suposto herói. - Quer jogar? - Não quero interromper a atual partida. - Não seja por isso, é o último ponto – disse, dando um corte diagonal na mesa sem se deslocar para o outro lado para receber a bolinha. – Pronto, ganhei e perdi. O Corvo se aproximou da mesa e pegou a raquete que estava sobre ela. - O de sempre? – disse, se preparando para sacar. - Claro – respondeu Elo. E eles jogaram por um único ponto, como se fossem dois raios rebatendo as jogadas, uma faísca azul e um borrão escuro, disputando ping-pong.

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Capítulo 9

Quedas D'Água, Frio e nos Perdemos.. Lazul levou os gatos até uma cascata afastada da cidade, onde ele acreditava ser a entrada para o dispositivo que os levaria até a Ilha de Pedra. - Como assim você “acredita” que a entrada é por aqui? – perguntou Narai, desacreditando no que ouviu. – Não foi por aqui que você veio? - Na verdade a minha memória visual é um pouco ruim e eu não venho muito pros lados de Palasita – respondeu ele. - Mas o mínimo que você podia ter feito era trazer um mapa! - Na verdade eu trouxe um mapa. - E cadê? - Não sei se eu comentei que a minha memória não é muito boa, comentei? As duas gatas se olharam, achando graça daquilo, mas também um pouco preocupadas com a situação. Lundra interviu na discussão dos dois: - Como fazemos pra ter certeza de que essa é a cascata? - Ah, é bem fácil! A gente se joga de cabeça nela e se atravessarmos então é aqui! A resposta de Lazul foi seguida de um segundo de silêncio, enquanto todos tentavam refletir sobre o que ele disse. - 50 -


- Nota-se o nível de segurança praticamente nulo dessa ideia – recomeçou Narai. – Quem sabe a gente não sai por aí se jogando de cabeça em qualquer pedregulho que parece uma porta pra ver o que acontece? - Melhor não, pedregulhos não costumam ser usados como passagens, só cascatas mesmo. - Então estamos em um dilema – continuou –, que tal você ir na frente pra ver se é mesmo aqui? - Posso ir, sem problemas, só que no momento em que eu passar não consigo mais falar com vocês, então se for aqui vocês vão ter que me seguir sem saber se eu atravessei um portal por detrás das águas dessa cachoeira ou se eu bati a cabeça e fui levado pelo rio. - Tem dias que me dá a sensação de que eu não deveria nem ter levantado da cama.. – refletiu Narai. – Mas vamos lá! Saltamos todos juntos, Lundra, você puxa a Menphis logo depois que eu e ele saltarmos. - Combinado! - respondeu Lundra. - Combinado nada! – interviu Menphis, que ainda não estava muito segura em relação àquele plano. Lazul saltou, Narai o seguiu depois de dar uma piscada para Lundra, que segurou a pata de sua amiga e saltou logo em seguida. Menphis ainda teve tempo de gritar: - Eu não quero pul.. glub glub glub.. – durante o salto. Por conta disso acabou engolindo um pouco de água e provavelmente uma alga desgarrada.

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- Viram? Nem foi tão difícil – disse Lazul, virando para ver se todos estavam bem. E até estavam, mas todos ensopados. - Acho que lavei até minha alma nesse salto - disse Narai. - Acho que deixei a minha no caminho - continuou Menphis. - Acho que eu quero ir de novo! – concluiu Lundra, com um sorriso gigantesco no rosto. Todos olharam para ela e começaram a rir. Depois de terem passado por tantos momentos difíceis, fugindo de todo mundo, lutando pra poder seguir, finalmente puderam parar por um segundo para rir de um momento bobo. Afinal, enquanto for possível rir, o mundo estará a salvo. - Vejam – disse Lazul –, esse é o portal que faz a ligação entre Palasita e a Ilha principal do Arquipélago de Pedra. O portal era um círculo azul, cheio de linhas mágicas e símbolos antigos que não significavam nada, mas que eram muito bonitos. Eles se posicionaram dentro do círculo e Lazul cravou seu cajado no centro dele, proferindo as palavras mágicas de ativação do portal: “Játireiávela”. No mesmo instante eles foram sugados pelo círculo, que se abriu naquele momento, fazendo-os deslizar por um gigantesco escorregador, cuja velocidade foi aumentando insanamente até o fim dele, onde foram lançados no ar em direção a um outro círculo azul que parecia flutuar. Ao cruzá-lo, todos fecharam os olhos e, quando abriram, estavam no meio de um salão enorme, - 52 -


onde bandejas com frutas eram levadas de um lado ao outro por todos os tipos de animais possíveis. Narai e Lundra se olharam, um segurando a pata do outro. Finalmente haviam chegado.

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Parte II |

Os Rebeldes da Ilha de Turquoise

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Capítulo 10

O Palácio e Algumas Explicações O Palácio da Rainha Annamelia era o ponto central da Ilha de Pedra, local onde o curioso caminho da cascata havia trazido Lazul, Narai, Lundra, Menphis e uma borboleta amarelo-madeira chamada Pupah que, apesar do susto, até que gostou do lugar onde foi parar. Ela acabou pousando no ombro de Lazul e encontrando um cantinho onde se esconder nele. O palácio recebia uma grande comemoração onde diversos animais perambulavam com uma infinidade de frutas, distribuindo uns para os outros todas as variedades possíveis. - Não falei que a festa das frutas seria muito bonita? – disse Lazul, olhando para Narai. – Peguem algo pra comer no caminho, vou levar vocês pra encontrarem nossa Rainha. Enquanto seguiam o ser mágico pelas escadas circulares que levariam aos andares superiores, foram pegando todos os tipos de frutas que puderam para recuperar suas energias. Muitas delas nunca haviam visto na vida e, por vezes, ficaram em dúvida se aquilo era realmente uma fruta. Uma das mais estranhas foi a que chamavam de “Lasco da Pétala”, que tinha um formato de coroa e uma crosta de espinhos não muito agradável, apesar de um gosto adocicado muito saboroso.

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Lazul explicou que a fruta produzia um efeito interessante naqueles que a viam pela primeira vez. De longe, visualmente, ela parecia uma fruta muito bonita, verde-amarelada e um pouco brilhante. Chamava atenção aos olhos e instigava seus observadores a comê-la. Ao se aproximarem os espinhos da fruta causavam estranhamento, fazendo com que grande parte daqueles que haviam se interessado por ela não a quisessem mais, negando-se a conhecer seu sabor por não terem gostado de seu formato. E por fim, para aqueles que se dispusessem a morder a fruta com todo cuidado necessário, ela os presenteava com uma das melhores experiências gustativas que se pode ter no mundo. Muitas relações entre beleza, futilidade, companheirismo em momentos difíceis, aceitação, oportunidade e o quanto cada um pode esconder algo maravilhoso dentro de si, foram levantadas como uma metáfora a essa fruta. Mas foram logo deixadas de lado pois haviam muitas outras frutas no mundo que não necessitavam de tanta reflexão para se comer. Mas que não eram tão saudáveis e, normalmente, bastante tóxicas. Chegando ao sexto andar do castelo, onde um guarda em frente a uma porta dupla muito grande e exageradamente ornamentada aguardava, Lazul os informou que aqueles eram os aposentos de sua Rainha. - Esses são os aposentos de minha Rainha – disse, repetindo o que o narrador disse que ele disse.

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- Você está atrasado – interrompeu o Guarda, que era uma espécie de Guaxinim um pouco maior do que o normal. - Houveram alguns imprevistos. - Você trouxe mais gatos do que nós imaginávamos. - Eles que causaram os imprevistos.. - E percebo que seu cajado precisou ser utilizado. - Nem tanto quanto parece – respondeu Lazul se sentindo um pouco constrangido. – Será que nós poderíamos entrar? - Só um instante – respondeu o Guaxinim, virando-se para falar no que parecia ser um interfone ao lado da porta. – Lazul está aqui e trouxe todos os gatos que ele encontrou no caminho pra ver se algum serve. - Não foi isso que aconteceu! – se exaltou Lazul. - Ah, me desculpe, quero dizer, Lazul solicita um encontro com a Rainha para assuntos profético-felinos. Lazul olhou para o Guaxinim com uma leve irritação no olhar. Narai percebeu que ele estava se esforçando para se controlar e deu uma leve patada nas costas dele. “Podem entrar”, ouviram do interfone. O guarda abriu passagem para eles deixando espaço para que passassem pela porta que estava abrindo. - Boa sorte – disse, malicioso, o Guaxinim. - O mesmo pra você – respondeu Lazul, sem nem olhar para ele. Eles adentraram um longo corredor todo decorado com quadros dos antigos reis e rainhas da Ilha de Pedra, além de abajures brilhantes que se sucediam no teto. - 59 -


Apesar de toda a beleza do corredor, Lundra não resistiu em perguntar: - Quem era aquele porteiro? Ele foi muito grosseiro contigo. - É uma longa história, mas pra resumir, nós disputamos o direito de buscar o gato da profecia e eu venci, mas ele não se conformou com isso. Nós somos como rivais há muito tempo. - Você tem muitos rivais, não tem? - Mais do que eu gostaria. - E menos do que você precisa – disse Annamelia, que estava sentada em seu trono no meio do salão no qual o corredor terminava. – Que bom que você conseguiu retornar são e salvo e com três vezes mais gatos do que eu havia solicitado pelo que posso perceber! - Houveram alguns contratempos - respondeu Lazul, se ajoelhando em reverência a Annamelia -, mas acredito que tudo correu como o esperado, minha Rainha. Os gatos acompanharam os movimentos de Lazul e se ajoelharam também. - Então você é o gato pardo do qual fala a profecia? - Eu tenho lá minhas dúvidas, senhora, mas como quase tudo indicava que sim, eu acreditei. - Confesso que não era exatamente essa a resposta que eu esperava. Mas também não tenho certeza de que resposta eu gostaria de ouvir nesse momento. Talvez essa seja perfeita no fim das contas.

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Narai levantou a cabeça, saindo da postura de reverência e percebeu que Annamelia não estava mais sentada no trono. - Aqui – disse ela, soprando no ouvido do gato por detrás dele, fazendo sua espinha gelar. – Apesar das tuas dúvidas, posso ver um grande potencial em você. Menphis também estava um pouco assustada com aquela criatura. A Rainha Annamelia era como Lazul, constituída de madeira, mas com longos galhos que saíam do topo de sua cabeça e chegavam quase a arrastar no chão. Ela possuía uma aura misteriosa e sábia, quase profética, de quem parece poder ler a vida toda de alguém só pelo olhar. - Não precisa ficar com medo – disse Annamelia diretamente para Menphis. – Mesmo você, que pensa não ter força alguma, ainda pode ser de grande utilidade nessa história toda. Venham comigo. Eles a acompanharam por uma passagem que ficava ao lado de seu trono e que levava a uma sala onde inúmeras pedras de várias cores estavam dispostas em pequenos altares. - Cada uma dessas pedras responde a um diferente portador. Cada um de vocês é merecedor de uma dessas pedras, a grande questão é: qual delas pertence a cada um de vocês? As pedras tinham aproximadamente o tamanho de um punho fechado e brilhavam como se houvesse uma gota de luz dentro delas. - Mas são tantas! Provavelmente tem mais de mil pedras aqui! – disse Narai. - 61 -


- Fechem os olhos – continuou Annamelia. – Se vocês se concentrarem poderão sentir aquela que pertence a cada um de vocês. Em parte é uma escolha, pois cada pedra lhes dará uma força diferente, mas apenas a pedra certa pode liberar o melhor de vocês. Nessa ilha, cada um deve encontrar sua alma de guerreiro e se preparar para enfrentar os desafios que virão. - Mas eu não quero enfrentar desafio nenhum! – interrompeu Menphis. – Vocês se escutam quando falam? Já se esqueceram do que aconteceu no telhado? Eles caíram de cima daquela casa no chão de concreto depois de serem atingidos pela pena de um corvo! Pela PENA de um corvo! - Menphis! – interrompeu Lundra. – Se acalma, ninguém está pedindo pra você se jogar de lugar nenhum. Não é? - É uma decisão pessoal – respondeu Annamelia. – Você não precisa escolher pedra alguma neste momento, não é obrigada a nada. Mas eu sinto no fundo do teu coração que há uma grande vontade por trás desse medo todo. Menphis respirou fundo, fechou os olhos por um segundo, esticou a pata e pegou uma pedra que estava próxima a ela, escondida no meio de um punhado de outras pedras. Mas ninguém conseguiu ver a cor dela. - Quanto aos outros, fiquem à vontade, fechem os olhos e escolham a pedra que mais lhes inspirar confiança. - Me desculpe - interviu Lundra -, mas desde que chegamos não tivemos muitas explicações sobre tudo que está acontecendo, sobre a situação daqui nem nada. - 62 -


Quando aceitei vir junto, por mais impulsiva que tenha sido, ainda assim eu esperava ter pelo menos algumas respostas quando chegasse aqui e gostaria de saber um pouco mais sobre o que está acontecendo neste lugar e porquê vocês estão atrás de um gato pardo como ele. - Você é uma guerreira, menina, que passou tempo demais presa entre portões, tendo uma boa vida e mesmo assim nunca conseguiu se acostumar a ela. Você realmente quer respostas? Antes de mais nada, tem certeza de que são essas as perguntas? Lundra parou por um instante, olhando para Annamelia, reconhecendo algo familiar nela. Nesse momento ela fechou os olhos enquanto pensava “Será que, de fato, eu já tenho as respostas?”, sentindo, no escuro de seus olhos fechados, uma pedra verde brilhar, juntamente com uma pedra azul. Ainda de olhos fechados ela foi em direção às duas pedras e as pegou, uma em cada pata. - E você, Narai, o que você precisa? - Nesse momento, daquela pedra vermelha ali. - Tem certeza? Ela te chamou? - Não, eu que a escolhi – disse, saltando para alcançar a pedra vermelha que estava no ponto mais alto da sala, subindo e escalando por vários apoios até pegá-la. – Pronto! Annamelia sorriu, achando um pouco de graça nas peripécias daquele gato. - Escolha interessante, Lazul. Espero não me arrepender de não contrariá-la. Agora podem ir, aproveitem

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a festa, alimentem-se bem e descansem o quanto puderem, pois amanhã será um longo dia. Lazul os guiou até a saída e de lá seguiram para o salão principal onde a festa ainda acontecia. Todos se divertiram o quanto puderam, mas as palavras de Annamelia ainda ressoavam neles, deixando uma pequena preocupação em suas mentes. Menos em Narai, porque ele não tinha entendido nada e só estava se deixando levar mesmo. Dançou por volta da mesa de frutas puxando Lundra para dançar com ele e jogando algumas uvas em Menphis, para ver se ela acordava. Lazul não ficou muito tempo e logo se recolheu aos seus aposentos, não sem antes orientar aos gatos sobre como chegar aos deles: - É muito simples, vocês sobem por esta escada circular, desviam na terceira volta, seguem reto por um corredor azul, viram à esquerda na segunda entrada e à direita na quarta seguinte. Se tiverem alguma dúvida ou caso se percam é só gritar “Romili romili romili li!” que alguém vai aparecer pra lhes guiar de volta ao caminho certo. - Acho que tá bem simples, sem problemas, a gente se encontra – disse Narai, apesar dos olhos arregalados de Lundra e Menphis. - Boa noite então – se despediu Lazul. Os gatos voltaram para a festa e ficaram por lá durante algum tempo ainda. Menphis aproveitou um momento de distração dos outros dois e entrou pelo corredor por onde Lazul havia seguido depois de se

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despedir. Andou um pouco e o encontrou escorado numa sacada, olhando as estrelas. - Não precisa se esconder – disse ele, sem tirar os olhos das estrelas. - Na verdade eu não estava me escondendo – respondeu. - Seu pelo é tão escuro que parece fazer parte das sombras, parece que está sempre se escondendo. Pelo menos os teus olhos são brilhantes como esses pontos no céu. Lazul apontou para uma constelação que conhecia. - Eu não sei bem o que eu estou fazendo aqui – disse a gata. - Aqui na Ilha de Pedra ou aqui comigo? - Acho que os dois. Você enfrentou aquele cão enorme.. ele era enorme! Lazul riu da constatação dela. Menphis se aproximou dele e ficou ao seu lado olhando as estrelas. - Ele não era tão grande assim – respondeu Lazul. – E eu senti que ele tinha um espírito bom, apesar de estarmos nos enfrentando. Às vezes nós precisamos abraçar os desafios pra podermos crescer, mesmo que a gente não saiba direito o porquê. Como você fez ao escolher a pedra num impulso. - Parecia que ela havia me escolhido, que gritava de dentro daquele monte de pedras, me chamando.. Você tem uma também? - Sim, todos os guerreiros dessa terra carregam uma daquelas pedras. O difícil é saber onde guardar ela. - 65 -


Menphis riu novamente e complementou: - De tão grandes e pesadas que elas são! - Não posso discordar, a minha fica na ponta do meu cajado. - Que cor é essa? - É a Pedra do Trovão, ela tem cor de relâmpago, pelo menos é assim que eu chamo essa cor. Um branco envolto em azul claro, meio difusa, não sei bem definir. - A minha pedra é escura como eu, deve ser uma Pedra da Sombra então. - É uma boa pedra, pode ter certeza, nem sempre a sombra tem que simbolizar algo ruim. - Espero que não, eu não quero ser sombra e nem me esconder sempre nela. - Os teus olhos vão te afastar das sombras, sempre, assim como os teus amigos e agora eu também. - Muito obrigada. Lazul fez uma reverência para ela. - Ao seu dispor. Menphis sorriu, desejou a ele uma boa noite e seguiu em direção ao seu quarto. Enquanto isso, na festa, Narai e Lundra brincavam de brigar. - Você tem que ser mais rápida! – disse o gato enquanto acertava uma uva na nuca dela. - Mais rápida? Então segura essa! Lundra arremessou uma manga na cabeça de Narai, que desviou por muito pouco, deixando que um pilar fosse atingido em seu lugar, mas ela não deu trégua e seguiu arremessando todas as frutas que encontrava em direção a - 66 -


ele. Narai pegou uma bandeja e começou a rebater as frutas, em sua maioria uvas, e Lundra aproveitava para saltar e abocanhar cada uma delas. Ela jogava, ele rebatia e ela abocanhava. Em pouco tempo a sincronia deles fez o salão inteiro parar para prestar atenção naquele jogo. Logo começaram a fazer apostas sobre qual dos dois iria errar primeiro, se o gato levaria uma uvada na cabeça, ou se a gata jogaria talvez uma melancia nele ou uma das frutas mais incomuns que estavam por lá. Metade do público torcia para que ele desmaiasse com uma jacada e já havia uma fila de animais entregando diversos tipos de frutas para Lundra arremessar. - Espera um pouco aí! Isso não vale, tá muito organizado! – reclamou Narai. - Estou otimizando os arremessos! – respondeu Lundra, rindo dele. Narai seguia firme, rebatendo todas as frutas com a bandeja, até que escorregou num kiwi e se espatifou no chão. Lundra saiu correndo para ver se ele estava bem enquanto os outros animais recolhiam o dinheiro das apostas e entregavam para quem havia apostado no kiwi. - Tudo bem contigo, amado? - Acho que eu quebrei uma costela. - Então porque você está segurando no ombro? - A costela não fica no ombro? - Sim, fica – disse Lundra para não ter que explicar anatomia naquele momento, mas guardando uma nota mental de que isso seria importante de se comentar posteriormente. - 67 -


Ela levantou ele, que estava bem, mas só se fingindo de machucado para ganhar um cuidado a mais dela, e seguiram até os aposentos que Lazul havia mencionado. Sim, eles lembraram o caminho, e ninguém se perdeu. Na verdade um suricate se perdeu intencionalmente naquela noite pois achou que seria divertido se perder. E de fato foi: ele encontrou um bambuzal num dos jardins do palácio e dormiu recostado neles. As vezes é bom se perder, para poder encontrar algo que não estava no caminho comum.

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Capítulo 11

Galos, Folgas e Ovelhas Revoltosas Um novo dia, exatamente similar ao dia anterior, a não ser pelas diferenças, começava. E com ele vinham os gritos das ovelhas que estavam substituindo o cantar dos galos depois da revolta de 1967, onde os galináceos ganharam o direito a uma folga semanal. O problema é que os outros animais não conseguiam mais acordar pois estavam muito acostumados a ouvir os galos para despertar. Então, como medida provisória (que se estendeu provisoriamente por um tempo superior a provisoriedade prevista), o Rei AnnoMello, atual gestor da Ilha de Pedra na época, decretou que seriam contratadas 370 ovelhas para realizarem o trabalho dos galos durante sua folga semanal. Fato esse que deflagrou a revolta seguinte, por melhores condições de trabalho, pois as ovelhas não conseguiam subir no topo dos celeiros onde os galos cantavam. Sendo assim, foi construído para cada grupo de ovelhas um andaime com roldanas, posteriormente conhecido como “elevador”, para que elas pudessem subir até o topo do celeiro. E assim, foi resolvido o problema da falta de feriado para os galos, criando um problema para as ovelhas, que depois de solucionado continuou sendo um problema para os habitantes das cidades, que consideravam os gritos das ovelhas muito estranhos. Lazul, Narai, Lundra e Menphis, após serem devidamente acordados pelas ovelhas, estavam diante dos - 69 -


portões da Ilha de Pedra, prontos para cruzar a ponte que levava ao cais onde um barco os aguardava para levá-los até a Ilha de Turquoise, onde Elo ocupava uma fortaleza. A Ilha de Pedra e a Ilha de Turquoise são pedaços do grande Arquipélago de Pedra, que consiste em diversas ilhas, cada uma com um clima e habitantes totalmente diferentes, sendo um Arquipélago extremamente variado e cheio de possibilidades de aventuras. Mas, no momento, o objetivo era bem específico, então ninguém prestou atenção enquanto o guia turístico que os acompanhou durante a viagem de barco contava toda a história daqueles belos lugares pelos quais eles estavam passando. O guia, uma gaivota bastante carismática, às vezes se sentia um pouco ignorado, mas ele sabia que o problema não era com ele, mas sim com o roteiro que a empresa de transportes tinha lhe entregado para decorar. Ele, na verdade, sempre quis fazer algo mais performático, mais animado, mais dinâmico! E resolveu fazer isso naquele momento! Seria, enfim, o seu desabrochar, onde ele usaria todo o seu talento para cativar aqueles animais que faziam aquela viagem. Ele iria brilhar! E então chegaram na Ilha de Turquoise, o barco parou e todos desceram.

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Capítulo 12

Um Canto Perturbador Lazul explicou, durante o caminho, que eles iriam, provavelmente, enfrentar os asseclas de Elo antes de encontrá-lo pessoalmente, sendo que cada um deles estaria em um dos andares da fortaleza, que tinha um formato espiralizado, composto por uma enorme escadaria circular que subia por todos os cinco andares de lá. - Um deles vocês já conheceram – disse Lazul quando estavam quase chegando no portão principal de entrada –, o Corvo que nos atacou no telhado daquela casa. Mas além dele existem ainda mais quatro guardiões dos andares: a Canária, o Quetzal, a Coruja e a Mariposa. - Suponho que não seremos bem recebidos em nenhum dos andares – constatou Narai. - Muito longe disso, provavelmente aquela bola de feno em chamas que está vindo do quarto andar em nossa direção, ampliada pela força da gravidade, seja um primeiro indício. E, só pra constar, cuidado!! A bola de feno em chamas se espatifou entre eles, que saltaram, cada um para um lado, na tentativa de evitar o impacto. Todos conseguiram, mas sentiram um frio na barriga e um calor nos pelos. - Entrem logo! – gritou Lazul. Ele e Narai empurraram o portão de entrada enquanto o fogo continuava a vir do quarto andar. Quando todos entraram, fecharam as portas com pressa, sentindo - 71 -


uma última labareda passar pela fresta final do fechamento do portão. Quando olharam em volta viram, no fundo da primeira enorme sala circular, um ser envolto em suas asas, em cima de um pequeno palco. Cantando uma linda melodia enquanto eles se localizavam no espaço. Ao perceber a chegada de companhia, ela parou de cantar por um instante para recebê-los: - Sejam bem-vindes! – disse a Canária, que como o nome já pressupõe, era uma canária com a penugem misturando as cores verde musgo e marrom. – Como vocês estavam demorando muito para entrar pedi que lhes mostrassem o caminho mais rapidamente, afinal, minha bela voz não pode ficar sem um público adequado e, pelo que posso ver, hoje serão quatro peludos espectadores! E mais um amadeirado espectador! Estou tão animada! Não é sempre que temos visitas, acredito que vocês ficarão impressionades com a nossa hospitalidade! E concluiu com um grito estridente que fez com que todos tapassem os ouvidos de tão alto. Nesse momento, uma das pedras de Lundra começou a brilhar, emanando uma luz azul que encobriu todos próximos a ela numa redoma de proteção, fazendo com que o som não fosse mais audível. A Canária parou de gritar no mesmo instante. - Vocês não me escutam mais? Que falta de educação, não gostaram da minha música? – debochou ela, que percebeu que Narai estava fazendo um sinal de que não estava conseguindo ouvir e ela percebeu que eles não a estavam ouvindo mesmo. - 72 -


Lundra saiu de dentro do círculo de proteção, entrando na área audível. - Quanta coragem para sair de sua casca, fico lisongeada. - Muita mesmo, você canta extremamente mal, se for possível eu preferiria ouvir um sapo – respondeu Lundra. - Você acha isso mesmo? Eu ensaiei tanto pra conseguir cantar assim, deu muito trabalho. - Me desculpa, isso foi bastante insensível da minha parte mesmo. Você canta muito bem, a sua voz é realmente incrível, aquela melodia que ouvi quando entramos era realmente maravilhosa. - Ah, agradeço o comentário, pareceu realmente sincero. - E foi, de verdade! Quando você for fazer um show ou algo do tipo me convida, por favor, eu sou apaixonada por arte! - Com certeza, convido sim! Depois dessa função toda de guerra e tretas políticas a gente combina alguma coisa, pode ser? - Sim! Com certeza, vamos mesmo! Enquanto a conversa se desenrolava, os demais animais dentro da redoma de Lundra emanavam um semblante de interrogação em suas faces, tentando entender aquele momento tão singelo entre as duas. - Ela é muito simpática - apontou Menphis. - Uma facilidade pra fazer amizade que assim, sei nem explicar - complementou Narai. - 73 -


- Desde que ela vença, ficaremos bem - torceu Lazul. Nesse momento, a Canária viu o debate que acontecia dentro da redoma e percebeu que precisava avançar com a história: - De toda forma, vejo que você será minha desafiante hoje. Eles ficarão neste teu círculo protegidos? - Sim, o seu assunto é comigo agora. Narai tentou sair da redoma azul como Lundra havia feito, mas, quando ele se aproximava de uma extremidade, as paredes da redoma ficavam duras feito concreto. Ele percebeu isso logo depois de gritar “Eu te ajudo!”, sair correndo em direção a ela e perceber, ao bater a cabeça, que não seria possível passar. Ele ainda tentou gritar mas ninguém o ouvia, como disse Lazul ao se virar para ele e dizer: - Nenhuma das duas está te ouvindo. Lundra percebeu que Narai estava preocupado e olhou para ele pelo canto do olho, piscando um deles com um sorriso, como se dissesse que estava tudo bem. - Espero que você seja uma gata habilidosa continuou a Canária – pois eu tenho de fato um desafio para você. Do chão, um labirinto de areia começou a se erguer, ocupando o espaço que ainda restava entre ela e Lundra. - Sempre fui muito boa com labirintos – respondeu a gata. - Então será muito simples pra você, basta chegar até aqui no final do labirinto. Isso, claro, antes de desmaiar - 74 -


devido ao meu canto, pois imagino que este seu poder sirva apenas para criar uma redoma protetora, e por isso você os deixou lá protegidos. - Muito bem observado, mas acredito que, mesmo assim, eu conseguirei chegar ao final. - Veremos – concluiu a Canária, iniciando novamente seu grito ensurdecedor. Lundra nem se preocupou em tapar os ouvidos nesse momento, se lançando para dentro do labirinto de areia. Seguiu reto por duas curvas, depois dobrou para a direita, depois para a esquerda e continuou seguindo, entrando pelo caminho que sua intuição lhe dizia. A Canária, ao perceber que ela estava se dirigindo pelo caminho certo, aumentou a potência de seu grito, fazendo com que Lundra finalmente tapasse os ouvidos. Ainda assim ela seguiu, dobrando a cada instante para um lado diferente. Narai tentava sair da redoma que os cercava para ajudá-la, mas era forte demais para ele conseguir passar. Enquanto isso Lundra continuava correndo para chegar ao final do labirinto, com as patas tapando seus ouvidos o melhor que podia, até chegar aproximadamente na metade dele. Nesse momento, a Canária aumentou ainda mais o tom de seu grito, fazendo até mesmo parte da estrutura de areia das paredes começar a se soltar. Lundra ergueu uma das patas fazendo com que sua pedra azul, que estava produzindo a redoma que protegia seus amigos, desfizesse a proteção e voasse em sua direção para que ela a pegasse e lançasse, milésimos após sua chegada, em direção a Canária, fazendo com que a redoma de proteção cobrisse - 75 -


sua rival, interceptando o som que ela estava produzindo, deixando-a presa com seu grito no eco interno da redoma. Nesse momento, o labirinto de areia se desfez ao mesmo tempo em que Lundra caiu, também, desmaiada. Todos correram em direção a ela, Lazul empunhou seu cajado enquanto Narai a pegava no colo do chão. - O que a gente faz? – perguntou Menphis, se ajoelhando ao lado da amiga. - Eu não sei – respondeu Narai, preocupado. – Lazul, e agora? - Provavelmente o corpo dela está totalmente exaurido, não sei se ela vai aguentar. Ao dizer isso, Lazul percebeu que uma luz, agora verde, emanava da outra pedra que Lundra havia pego no salão de Annamelia. A pedra verde flutuou no ar a alguns centímetros do peito de Lundra, emanando uma luz suave que parecia cobrir ela inteira. Aos poucos eles perceberam que aquela luz estava curando a gata, aliviando suas tensões e relaxando seu corpo, até que ela, lentamente, abriu os olhos. - Você me segurou no ar mais uma vez? – perguntou olhando para Narai, que ainda a segurava. - Dessa vez não, dessa vez foi você quem me segurou durante a queda. - Mas você não estava caindo. - Mesmo assim, eu te senti me proteger – disse o gato, acariciando com a pata a cabeça de Lundra. - Já consegue levantar? – os apressou Lazul.

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- Consigo sim, só um segundo – respondeu ela, levantando. - Preciso que você libere a Canária quando eu der o sinal. Lundra levantou e se preparou para obedecer o comando dele. - Agora! – gritou. Ao sinal de Lazul a gata ergueu a pata e convocou a pedra azul, que estava acima da redoma que cobria a Canária, de volta. No instante em que ela foi liberada todos começaram a ouvir o eco de seu grito, mas Lazul lançou um raio com seu cajado e fez com que ela entrasse num estado de sono, como havia feito com o cachorro no começo da história que, a essa hora em Palasita, estava em busca de sua futura companheira, aquela com quem ele trocou olhares um dia. Eles seguiram pela escadaria em espiral, se dirigindo ao segundo andar onde, provavelmente, encontrariam mais um desafio. Ou dois.

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Capítulo 13

Alergia, Rinite e Clima Temperado Chegando ao segundo andar, depararam-se com uma enorme floresta. O lugar era totalmente verde, repleto de árvores e plantas numa sala muito alta, a mais alta de todas, com quase 20 metros do piso até o teto. Ao olhar em volta, não viram nada imediatamente assustador, a não ser a chuva de pólen que caía suavemente. Olharam para cima e perceberam uma Mariposa no ponto mais alto daquele andar, sobrevoando em círculos, liberando de suas asas aquela nuvem que ficava cada vez mais espessa e os cercava por todos os lados. Tão logo perceberam isso, Lundra e Menphis começaram a se sentir cada vez mais cansadas, cada vez mais sonolentas, até que se deitaram no chão e pegaram no sono. Nesse momento Narai pensou que Lundra, apesar de ser uma gata muito valente, desmaiava e dormia com muita facilidade. - O que é que está acontecendo? – perguntou o gato. - Não se preocupe, é apenas o pó das asas da Mariposa, não representa perigo, mas poderia nos fazer dormir a todos – respondeu Lazul, olhando para cima e para os lados, procurando mais alguém. - E então porque vocês não facilitam meu trabalho e simplesmente pegam no sono? - disse a voz que se ouviu

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por dentro do mato verde que cobria a sala. – Não teria sido muito mais simples pra todos nós? - Dificilmente eu concordaria com algo assim, Quetzal. O pólen dela não surte efeito em mim, meus raios se utilizam do mesmo princípio de indução ao sono que as asas dela, posso dizer que eu sou imune a isso. - Você, tudo bem.. mas e esse gato aí? - Eu? – disse Narai ao perceber que falavam com ele. – Se você morasse nas ruas de Palasita também aprenderia a enfrentar o sono sem problema nenhum! Preciso dormir com um olho aberto e outro fechado pra me escapar durante a madrugada de qualquer imprevisto. É uma cidade perigosa, inclusive mais perigosa que essa fortaleza aqui. Quetzal ficou um pouco surpreso com a resistência do gato e se perguntou, inconscientemente, se ele seria realmente o gato certo de que falava a profecia. O Quetzal era um pássaro verde, com parte de sua plumagem vermelha, possuindo uma grande habilidade de se esconder por entre as árvores e se manter estático, parado, aguardando os movimentos de seus inimigos. Habilidade essa que seria utilizada no momento seguinte. - Independente da tua coragem – continuou o pássaro –, e no que depender de mim, daqui vocês não irão passar, lamento muito. Entretanto eu proponho um desafio: uma disputa de esconde-esconde! Narai e Lazul se olharam desconfiados, mas se fosse pedra-papel-tesoura eles teriam aceitado na hora, sem nem pensar. - 79 -


- O que me dizem? - Aceitamos! - confirmou o gato. Lazul o olhou desaprovando a atitude insensata de aceitar o desafio de Quetzal, mas tentando acreditar no julgamento do gato da profecia, isso se ele fosse realmente o gato da profecia.. - Se te encontrarmos poderemos passar? – perguntou Lazul. - Com certeza, dou minha palavra – disse o pássaro, quase que fazendo uma reverência. – Vou me esconder então, contem até três! - Um! – contaram juntos fechando os olhos para que ele pudesse se esconder. – Dois! Três! Quando abriram os olhos não o viram mais em lugar nenhum. Parecia que suas visões estavam turvas e tudo parecia uma coisa só. Todas as árvores pareciam um grande painel impressionista verdejante. - Eu não consigo enxergar direito – reclamou Narai. - Nem eu, tem algo errado aqui. Lazul pensou por um instante e percebeu que a Mariposa que sobrevoava eles poderia ter relação com a visão turva que eles começaram a sentir desde que chegaram ao segundo andar. Ao perceber isso, ele lançou um de seus raios em direção a Mariposa, que foi atingida e caiu daquela grande altura. - Não!!! – gritou Quetzal, saltando detrás de uma das árvores para aparar a queda da Mariposa no ar, voando rápido para pegá-la no meio do caminho, amortecendo o pouso no chão. - 80 -


Nesse momento, Lazul se aproximou dele pelas costas e tocou em seu ombro enquanto ele a segurava no colo. - Já te achei - disse com o pequeno sorriso de quem acabou de vencer uma disputa. - Podemos ir agora? Quetzal respondeu sem nem olhar para ele. - Vão logo, aqui todos somos criaturas de palavra, podem ir. Lundra e Menphis começaram a acordar, Narai foi até elas para ver como estavam e para contar o que havia acontecido ali alguns minutos atrás. Seguiram todos em direção a escadaria para o terceiro andar. Quando Lazul estava quase chegando na escada ainda ouviu Quetzal dizer: - Muito perspicaz em perceber que a visão de vocês estava comprometida por causa da Mariposa. - Não foi por isso. - Foi pelo que então? - Eu estava ficando tonto com ela dando tantas voltas, só isso. Mas não se preocupe, ela vai despertar daqui a algumas horas, provavelmente com alguma boa intenção ou ideia nova. Nós, por outro lado, vamos aproveitar a oportunidade de seguir ao terceiro andar. Com licença! O Quetzal ficou ali, abraçando a Mariposa, esperando que ela acordasse, enquanto via os outros gatos e Lazul pegarem a escadaria que levaria ao terceiro andar. Ao olhar de relance enquanto se dirigia aos degraus, Narai não pôde deixar de notar como aquela cena lembrava o momento em que ele próprio havia salvado Lundra, jogando-se de cima do telhado da casa em Palasita, e - 81 -


percebeu que, talvez, apesar de estarem se enfrentando, aqueles pássaros não fossem totalmente maus, talvez apenas pensassem diferente. - Não achei muito justo o que você fez. Atirando nela ao invés de procurarmos ele decentemente - disse o gato. - Também não foi muito justo aquele pólen em nós, dificultando a visão - respondeu Lazul. - Se nós tivéssemos vencido numa situação adversa como essa, seria mais honrado. - Isso é uma guerra. - Ainda assim não justifica sermos igualmente desleais. O que nos faz mais fortes é exatamente saber que o caminho mais fácil está corrompido, e que precisamos do dobro do esforço pra vencer. - Infelizmente em algum momento você vai perceber que todos os caminhos estão corrompidos. - Esse vai ser um momento muito triste. - Sempre é.. - concluiu Lazul, como se uma memória triste lhe percorresse o pensamento. Lundra e Menphis se olharam, imaginando o que aconteceu enquanto estavam adormecidas mas, de certa forma, entendendo aquela conversa tão bem como se estivessem.

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Capítulo 14

A Biblioteca da Multileitora O terceiro andar era uma biblioteca imensa. Cada parede do salão era sustentada por uma estante com inúmeros livros, além daqueles que estavam jogados por sobre as diversas mesas, acumulando montes e montes de exemplares, inclusive no chão, com diversos deles abertos em páginas dos mais variados assuntos, desde viagem no tempo até culinária oriental. Bem no meio do salão, uma Coruja estava, em pé, lendo um livro que era quase do seu tamanho, anotando algumas coisas num caderno que tinha ao seu lado, sem perceber que visitantes haviam chegado. Ela corria de uma mesa a outra como se estivesse tentando fazer entender a ligação entre vários livros que ela parecia ler ao mesmo tempo, se deslocando no espaço sem parar e sem prestar atenção em mais nada. - Nós poderíamos simplesmente passar pelo cantinho? – sussurrou Narai para Lazul. - Acho que não custa tentar – respondeu ele, fazendo sinal para que todos o acompanhassem. Eles se agacharam atrás de uma das mesas e foram se deslocando de um monte de livros a outro, percorrendo parte do caminho, em total silêncio, sem serem percebidos pela Coruja. Quando chegaram até uma pilha um pouco maior de livros, Narai acabou se descuidando ao ver um volume - 83 -


sobre peixes grelhados e acabou, acidentalmente, acertando com seu rabo um dos montes, que caiu em cima de outro monte, que espalhou muita poeira. A poeira por sua vez teve força suficiente para virar e derrubar uma mesa inteira, fazendo um barulho extremamente alto. Nesse momento a Coruja se virou para o lado e foi em direção a um outro livro. - Ufa! – suspirou Narai, e a Coruja ouviu o suspiro dele. - Visitas! – disse ela. – Não acredito que não iriam nem mesmo me cumprimentar, que falta de educação para com uma criatura tão culta quanto eu! - Não queríamos atrapalhar o teu estudo, você parecia tão compenetrada – tentou se justificar Lundra. - Não se preocupem, eu estava mesmo esperando vocês. Livros! Por favor, prendam eles! Diversos livros começaram a voar de um lado para o outro em círculos, criando uma formação altamente organizada e seguindo em direção a eles, cercando-os, criando uma pequena prisão bibliotecária em torno de cada um. Narai tentou cortar os livros, Lazul tentou escapar também, mas sem sucesso. - Meus livros são muito resistentes e posso afirmar que métodos violentos não serão de utilidade alguma e nem mesmo eu gostaria de que eles fossem utilizados. Prefiro um desafio mais intelectual e, pelo que pude perceber, meus livros já decidiram qual de vocês é a criatura mais inteligente para me opor - explicou a Coruja.

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Os livros em volta de Menphis começaram a tremer, caindo ao mesmo tempo no chão, desfazendo o cubo-prisão em torno dela. - Imaginei que em algum momento chegaria a minha vez. Na verdade eu já sabia disso, estava mesmo esperando pra te encontrar, Coruja. - Melhor ainda, temos um jogo para realizar então. - Xadrez. - Como você sabia? - Intuição. - Interessante. Podemos sentar? - O quanto antes. Lundra ficou impressionada com a frieza de sua amiga, ela normalmente estaria mais preocupada numa situação dessas, mas Menphis parecia ter tudo sob controle, o que a deixava feliz e preocupada ao mesmo tempo, pois parecia que algo estranho havia acontecido com sua amiga. Menphis se dirigiu até a mesa onde o tabuleiro estava. Eram peças grandes feitas de madeira, uma gama mais clara e uma mais escura, como em todo jogo de xadrez. A Coruja pegou os dois reis e escondeu cada um em uma de suas asas, esticando ambas em frente da gata para que ela escolhesse. - Eu quero o rei das pretas, que está na sua asa direita. A Coruja abriu as penas que escondiam a peça preta ao mesmo tempo em que seu rosto se enchia de surpresa. - Realmente muito boa a sua intuição – constatou, ainda surpresa. - 85 -


- As vezes ela funciona muito bem mesmo. Podemos jogar? - Claro, mas antes algumas regras adicionais: se você vencer, vocês podem seguir para o próximo andar tranquilamente. Por outro lado, quando você perder, todo o conhecimento de cada um de vocês se transformará em um livro da minha biblioteca. - Sem problema algum - disse Menphis enquanto os outros, em suas pequenas prisões de livros, começavam a ficar preocupados com aquela conversa. - Lazul.. – chamou Narai, com uma voz preocupada. - Não se preocupe, o máximo que vai acontecer é ela perder o jogo. - Isso não foi nada tranquilizante! - Ah, desculpe, que tal: Não se preocupe, ela tem uma chance em trinta mil de ganhar esse jogo! Melhor? - NÃO! PIOR! - É muito difícil agradar você, gato! - Os dois podem parar de bobagem? – interferiu Lundra. – A Coruja moveu a primeira peça. Menphis percebeu a preocupação de todos mas se manteve focada no jogo, realizando seu primeiro movimento. - Esperto.. – sussurrou a Coruja, surpresa com a jogada da gata. - É mais que esperto, em três jogadas eu vou derrubar o seu cavalo. A Coruja deu uma pequena risada ao ouvir a constatação de sua rival. - 86 -


- Você parece muito inteligente mas não tanto assim pra poder prever meus movimentos. - Primeira jogada – disse, desafiando a Coruja a fazer seu movimento. - Aqui – disse, movimentando um dos peões, seguida rapidamente pela jogada de Menphis. - Segunda jogada, à vontade. A Coruja, ainda estranhando um pouco, realizou seu segundo movimento, desconfiada. A gata fez sua jogada quase que instantaneamente depois. - E, finalmente, sua terceira – disse, em tom calmo mas desafiador. - Que seja então, xeque! Nesse momento Menphis aguardou para fazer sua jogada, como se estivesse pensando. - Não funcionou tão bem a sua previsão pelo visto – disse a Coruja. - Muito pelo contrário, eu só queria ver se você perceberia sem que eu precisasse te dar mais nenhuma pista. E então a gata fez sua jogada, derrubando o cavalo de sua adversária. - Xeque – disse Menphis. – Você tem mais doze jogadas antes do seu Rei cair. A Coruja ficou perplexa, já era a terceira vez que as palavras da gata se concretizavam. E então ela percebeu. - Me mostre a sua pedra.. - Claro – disse ela enquanto colocava a pedra negra que havia pego na Ilha de Pedra. - 87 -


- Entendo – disse, derrubando seu próprio Rei. Os livros em volta dos outros caíram pelo chão, jogados como se tivessem perdido instantaneamente suas propriedades de movimento, libertando-os. - Vou voltar aos meus estudos então. Eu poderia dizer que isso foi trapaça, mas você é assim, seria perda de tempo. Só te digo pra tomar cuidado com essa habilidade, porque apesar de ser fantástica, ela pode ser uma grande maldição. Ainda assim, agradeço pelo jogo. A Coruja voltou a correr pelas mesas de um lado ao outro, anotando e analisando trechos de livros. - O que aconteceu? – perguntou Lundra. - Da mesma forma que você conseguiu uma habilidade com a sua pedra eu também consegui uma com a minha, só que diferente. Eu consigo prever pequenas coisas, percebi isso durante a noite, depois de conversar com Lazul. Ainda são previsões simples, mas acredito que elas cresçam com o tempo, pelo que posso sentir e pude perceber. - Nós cuidaremos pra que isso não cresça demais e te consuma – disse Lazul. – Mas, por hora, bom trabalho. - Obrigada – respondeu Menphis, com um sorriso sutil. - Vamos então! – convocou ele. E todos se dirigiram ao penúltimo lance de escadas, onde Lazul sabia que encontraria o Corvo para um duelo.

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Capítulo 15

O Grande Torneio de um Embate Só O salão do quarto andar era simplesmente uma arena de combate. Nada muito diferente do que Lazul esperava: tochas iluminavam o ambiente, que era muito escuro em volta, apesar da arena em si ser muito bem iluminada. - Eu tinha esperanças de que vocês chegassem pelo menos até aqui para que pudéssemos nos enfrentar num duelo justo. Narai se colocou na frente de Lundra, em parte esquecendo que ela possuía a pedra azul que poderia protegê-la, mas lembrando que ela estava bastante exaurida pelo labirinto. De toda forma, foi fofo da parte dele se preocupar e ela achou isso bonitinho. Lazul fez um sinal para que ela criasse a barreira de proteção como no primeiro andar. - Imagino que seu adversário serei eu, não é? – disse, enquanto a barreira era erguida. - Imaginei que o gato gostaria de tentar a sorte primeiro, devido ao “acidente” no telhado naquela noite. - Você tem razão.. Narai! Você quer.. - Não, não, tá de boa, vai lá Lazul! Acaba com ele! – disse o gato, protegido dentro da redoma azul. - Tem certeza de que ele é o gato da profecia? – perguntou o Corvo.

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- Absoluta! – respondeu Lazul com uma leve incerteza pensando “Nenhuma!” e subindo na arena do quarto andar. Eles se encararam por um minuto até que começou uma música pesada, cheia de solos e firulas virtuosas de guitarra. Lazul olhou em volta sem entender muito bem de onde vinha aquilo. - É pra dar mais emoção – disse o Corvo. - Ahhhh, que legal, tem um clima todo cinematográfico então! - Tem sim, ó, além da música tem uma câmera ali, e outra ali, e tem uma grua pendurada no teto pra fazer umas imagens aéreas também. Peter Pruu, acende as luzes um minuto, faz favor! Peter Pruu era o diretor de filmagens do Corvo, um Pombo Verde da Guatemala, com sotaque gaúcho, que havia estudado muito e adorava artes marciais. Ele estava em outra sala coordenando a distância todas as câmeras. - Tamos aí, patrão velho! – disse ele no microfone. - Grava bem que essa vai ser boa de ter de recordação! - Issaê! Boa luta, gurizada! - Obrigado! – respondeu Lazul, um tanto quanto empolgado com a ideia de ter a luta filmada. - Solta umas fumaças e faz aquelas luzes coloridas também, Peter Pruu! – pediu o Corvo. - É pra já, patrão! O ambiente foi inundado de fumaça cênica. Luzes mirabolantes acompanhavam uma música muito forte e - 90 -


cheia de malabarismos instrumentais. Lazul e o Corvo deram um grito de empolgação e correram um em direção ao outro, iniciando o combate. Enquanto isso, Narai, Lundra e Menphis estavam de olhos arregalados, desacreditando aquela situação toda, mas resolveram aproveitar o espetáculo e começaram a torcer por Lazul. - Lazul, campeão, não tem pro Corvo não! Lazul, campeão, não tem pro Corvo não! A torcida de seus amigos o deixou ainda mais empolgado e a luta começou a ficar cada vez mais rápida, acompanhando a velocidade da música e das luzes. Lazul disparava seus raios no Corvo que respondia com suas penas-flecha contra ele. Algumas até alcançaram a redoma azul, mas ela aguentava firme, sem maiores problemas, a não ser um susto inicial nas primeiras vezes. Lazul e o Corvo desviavam rapidamente dos projéteis um do outro, ambos demonstrando grande habilidade e animando a plateia. De repente, uma narração começou a ser ouvida juntamente com a música pelas caixas de som. - Bem vindos amigos espectadores da TV Corvo! Hoje em combate teremos Lazul, o ser mágico e místico da Ilha de Pedra, desafiando nosso ainda invicto Corvo da Ilha Turquoise! A batalha começa a toda a velocidade, muitos golpes são desferidos e defendidos pelos participantes, o Corvo parece ter um controle maior da situação, realizando pequenos voos rasantes para se aproximar ainda mais rápido de Lazul, que continua investindo com os raios de - 91 -


seu cajado! Uma batalha épica e emocionante, meus amigos! Totalmente ÉEEPICAAA!!!! E agora nossos patrocinadores: Batata Palha Rincão Gaúcho, pra você que tem saudade da fazenda! E voltamos com a E-MO-CIO-NAAAANTE disputa pelo título de campeão do quarto andar desse lugar aqui! Está tudo acontecendo tão rápido que é até difícil de acompanhar, mas posso perceber que o Corvo mudou de tática e agora está tentando um mergulho do alto após um voo curto para surpreender Lazul, mas ele desvia rolando para o lado esquerdo disparando seu raio e finalmente atingindo o Corvo! Minha gente, primeiro impacto do combate! O Corvo cambaleia meio tonto mas resiste ao efeito do raio de Lazul e a batalha CONTINUUUAAA! Parece que o Corvo está sentindo o cansaço de ter sido atingido e agora dispara dezenas de penas ao mesmo tempo, tentando finalizar o combate antes de desmaiar, mas Lazul está conseguindo segurar TODAS as penas com seu cajado, girando ele numa velocidade IMPRESSIONANTE, meus amigos! Aos poucos a velocidade do Corvo está diminuindo, Lazul aproveita essa abertura e dispara mais um raio, finalizando o confronto! E temos um novo campeão! LAZUUUULLLLL! Narai, Lundra e Menphis aplaudiram entusiasticamente a vitória de Lazul, que erguia os braços em sinal de vitória, soltando um grito de emoção. - É muita emoção, muita emoção, meus amigos! – concluiu o narrador. – E agora voltaremos com a nossa programação normal, depois do replay! - 92 -


Enquanto o replay passava no telão, eles aproveitaram para sair de fininho e pegar as escadas para o último andar, deixando o Corvo no meio da arena, desacordado, tendo bons pensamentos sobre a vida.

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Capítulo 16

Elo Finalmente eles chegaram ao último andar onde Elo, o pássaro mágico, os aguardava em sua mesa de ping-pong, jogando sozinho contra si mesmo numa velocidade tão intensa que fez Narai perguntar: - Mas que borrão azul é aquele ali dando voltas naquela mesa? - Aquele é o Elo – respondeu Lazul. - Caramba! – exclamou Narai, lembrando que ele próprio deveria enfrentá-lo visto que era dito como o gato da profecia e esse pensamento lhe percorreu a espinha num calafrio gélido que pareceu uma cócega. Ele começou a rir compulsivamente. - Hahahahahahaahsuhausha – seguia rindo o gato. Lundra começou a estranhar esse comportamento de seu parceiro, principalmente no momento em que ele pôs a pata no ombro dela para se segurar enquanto continuava rindo. Lundra não resistiu e começou a rir também. Dali a alguns segundos Menphis não resistiu e começou a gargalhar também. Lazul continuava sem entender nada e resolveu cruzar as pernas e sentar no chão em postura de meditação. Nesse momento uma bolinha de ping-pong cruzou do lado da orelha do gato com uma força e velocidade imensas. Narai desviou e continuou rindo. A bolinha

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impactou na parede performando uma pequena cratera abstratamente simétrica e esteticamente muito agradável. - Do que você está rindo, gato? – perguntou Elo, que havia rebatido a bolinha na direção deles. - Você é um monstro, provavelmente é impossível que eu te derrote – respondeu o gato. - Mas é muito bonito, só pra constar, todas essas penas coloridas azuis e verdes, chegam a ser hipnotizantes – elogiou Menphis. Lazul, ainda sentado, continuava sem entender o que estava acontecendo ao certo durante essa sequência tão confortável de elogios. - Já estão desistindo antes de me enfrentar? – desdenhou o pássaro, aproximando-se deles como um raio, se colocando a menos de meio metro de distância do gato, que deu um salto para trás assustado com a aproximação repentina. - Uou! Quer me matar do coração?!? Isso não se faz, ora! – reclamou o gato. Lazul se levantou rapidamente, preparado para o combate caso fosse necessário. - Me desculpe, não achei que o gato da profecia fosse tão facilmente assustável - riu-se Elo. - Como não? Nós somos todos gatos que vieram de um lugar completamente diferente deste aqui, onde as coisas são muito menos mágicas e ilógicas. Claro que tudo aqui nos apavora, ainda mais alguém como você que não parece ser um pássaro mau, todo cheio das plumagens

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coloridas e brilhantes, e no fim é quem mais se desviou de um bom caminho – respondeu o gato. - Quem lhe disse que eu me desviei do bom caminho? Ele é apenas diferente do seu, ou pelo menos daqueles que vocês tentam erroneamente proteger de mim. Não acham estranho vocês terem sido trazidos pra cá sem grandes explicações e logo depois já estarem enfrentando tudo que veem pela frente só porque lhes disseram que assim deveria ser? Os gatos se olharam com desconfiança. O que o pássaro dissera fazia sentido, eles não tiveram muito tempo pra decidir alguma coisa e agora percebiam que haviam sido carregados para o meio daquilo tudo através do caos que se instaurou durante a viagem. - Você pode até tentar, pássaro – interviu Lazul. Mas esses gatos são mais fortes do que você pensa. O coração deles está no lugar certo, a intuição, o discernimento em meio ao caos. Eles podem ver o caminho, mesmo tendo medo dele, como eles tiveram agora há pouco ao lhe ver pela primeira vez. - Foi tenso, você parece um raio! – interrompeu Narai. – E pelos meus cálculos é a minha vez de duelar. - Então que assim seja, paremos com as divagações. Como vocês podem ver, eu sou um grande apreciador de ping-pong e o nosso duelo não precisa ser tão violento quanto o de nossos companheiros de agora há pouco, acredito que podemos resolver nossas diferenças com uma disputa, o que você acha? - Por mim tudo bem! - 96 -


- Cuidado, Narai, ele é um pássaro muito esperto e ardiloso – avisou Lazul. - Eu sei, pude perceber só pelo jeito dele falar. Mas eu sou um gato malandro e muito bom em ping-pong, vou dar trabalho pra ele! E se eu não for o gato da profecia, o verdadeiro gato vai aparecer em algum momento. Nós viemos até aqui, sabemos que é possível, que juntos nós conseguimos. Se eu for o gato errado pelo menos já sabemos que o gato certo estará bem amparado por nós! – respondeu Narai, com uma sabedoria que surpreendeu a todos. - Boa sorte – disse Lundra enquanto o gato se afastava em direção a mesa de ping-pong. Chegando lá, pegou a raquete e se posicionou, passando a mão pela pedra vermelha que havia pego com Annamelia. - Apenas um único ponto para vencer, concorda? – perguntou o pássaro. - De acordo – respondeu o gato. E começaram a jogar. Elo sacou e ficou surpreso com a velocidade com que o gato reagiu ao seu saque, pois não esperava que ele conseguisse rebater, imaginando vencer logo no primeiro movimento. O jogo continuou assim, a bolinha sendo lançada de um lado para o outro numa velocidade incrível. Narai continuava concentrado, tentando manter os olhos firmes no adversário, que a cada momento aumentava a velocidade das rebatidas. A tensão aumentava a cada minuto até o momento em que a pedra de Narai explodiu em uma aura vermelha - 97 -


aumentando a sua velocidade absurdamente. Elo, que ainda estava se segurando um pouco, finalmente utilizou seu poder ao máximo, ampliando sua velocidade até o limite. Lazul não acreditou no que estava vendo, pois nem mesmo os rastros dos dois ele conseguia mais ver. A cada jogada a bolinha ia mais longe e eles estavam nesse ponto jogando pelo salão inteiro, como se todo o espaço fosse a mesa mas, ainda assim, acertando sempre no pequeno campo de jogo que se encontrava no centro. A bolinha parecia estar pegando fogo com a velocidade. Todos estavam boquiabertos com o que estavam vendo. Parecia um jogo que nunca iria acabar. Eles já estavam jogando há dezenas de minutos quando, finalmente, Narai conseguiu rebater um golpe de Elo de uma forma que a bolinha desviou quando ele iria acertá-la, quase mágicamente, como se um vento houvesse mudado a rota da bolinha de ping-pong. Os dois sentaram no chão, exaustos, ainda com os nervos em velocidade acelerada e, novamente, como é comum nesta história, desmaiaram.

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Parte III |

O Laboratório de Rubicântigo

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Capítulo 17

A Borboleta Acidental Curioso como a história contada e a história ocorrida tem seus mistérios tão bem guardados e atos de heroísmo por vezes não registrados. No capítulo 10 aconteceu algo que não recebeu muito alarde, pode talvez até ter passado completamente despercebido por grande parte de quem lê, visto ter sido apenas uma frase (e uma frases muitas vezes podem ser grandes frases!)! Voltemos no tempo narrativo para dar a ele a importância merecida e fazer-lhe jus em seu reflexo no desenrolar do capítulo 16, neste momento em que me retiro como narrador para dar lugar ao formato em primeira pessoa de uma pequenina borboleta amarelo-madeira que tem muito a dizer e ainda mais a contar - concluiu o narrador." Olá, meu nome é Pupah, e estou acompanhando a jornada desse bando de gatos desde o capítulo 9 na verdade, quando, acidentalmente, resolvi pousar e me aninhar em uma pequena árvore que estava por debaixo da cachoeira onde eu havia me alocado. Entretanto, não havia percebido que aquilo não se tratava de uma arvorezinha, e sim de uma criatura arbórea que movia, andava, falava e saltava em portais cósmicos de transporte em direção a outros mundos muito diferentes do nosso aqui. - 101 -


A chegada foi um pouco conturbada, me senti um tanto tonta com a quantidade de balanço que o portal proporcionou, mas consegui me segurar com toda força das minhas patinhas naquele ser que agora me dava uma carona não solicitada para esse novo lugar. - Ahhhhhhhhhh! - foram minha primeiras palavras durante o trajeto, inaudíveis ainda por qualquer um a volta, visto a frequência sonora da fala dos artrópodes, mas acredito que meu "Ahhhhhhhhhh!" não tenha feito falta como discurso a nenhum dos presentes. Ainda assim meu susto foi bastante real. Chegando ao local, percebi que a festa de boas vindas não era a troco de nada. Eu estava na presença de heróis e heroínas de outra terra! Não havia notado que, além do ser que me carregava no momento, havia um bando de felinos muito importantes para aqueles animais ali. Apenas animais! Livres! Nenhum humano! Era inacreditável! Parecia um sonho do qual não se gostaria de acordar. Logo após a chegada, antes de aproveitar um pouco a festa, fomos levados até o sexto andar para encontrar a Rainha. A porta de entrada era protegida por um Guaxinim muito grosseiro e irritante. Nesse momento comecei a achar um pouco estranhas algumas atitudes das criaturas dali. Ouvi também algo sobre uma profecia felina e cada vez mais me parecia que algum grande perigo se aproximava daquela terra. Então conhecemos a Rainha Annamelia e tudo começou a fazer um pouco menos de sentido. Percebi a - 102 -


ingenuidade daquele grupo e o quão fácil foi pra que fossem enganados por aquela encenação festiva toda.. Não, nada ali era o que parecia.

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Capítulo 18

A Vontade Heroica Quando atravessamos a porta e entramos no longo corredor que nos levaria até a sala do trono, percebi diversos quadros com os antigos regentes do que descobri depois ser a Ilha de Pedra. Curiosamente, esses quadros tinham feições extremamente arrogantes que me passaram uma estranha percepção de que a linhagem de regentes deste local talvez não fosse muito acessível. Na verdade, eram faces assustadoras pra mim. Eu poderia descrevê-las para vocês, mas não faria diferença alguma pois, como pude descobrir mais tarde durante uma conversa que o grupo teve de forma reclusa, o rosto e corpo dessa linhagem se modificava de acordo com quem a estivesse olhando. A magia da confiança, da trapaça, da enganação em que todos caímos quando buscamos algo que nosso âmago deseja em infinita intensidade mas que nos parece impossível de alcançar ou realizar. A ilusão da realidade sem percepção de conjunto e contexto, a mais perigosa de todas. De toda forma, pra mim, a Rainha Annamelia era uma borboleta como eu. Não tão pequena quanto eu, enorme em relação a como as borboletas de Palasita eram. Ela era uma gigante mas, pelo que pude perceber desse lugar, o tamanho de todos eram compatíveis com a escala local. Então, na verdade, eu que era minúscula. E isso me

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deu todo o espaço que eu precisava pra conseguir entender o que estava acontecendo e poder agir. Achei estranho a pouca conversa que aconteceu entre o tão importante "gato da profecia" e a Rainha que o convocou. Ficou me parecendo que tudo estava acontecendo tão depressa e que não havia muito cuidado ou mesmo preocupação na assertividade das informações. Já ouviram aquele termo "bode expiatório"? Pois então, queria eu que fosse apenas um bode muito curioso no sentido de espiar, mas no momento aquele "x" da palavra me pareceu o mais acertadamente correto. Mal chegaram e já foram levados para uma sala onde poderiam se conectar com pedras mágicas que lhes dariam super poderes. Basicamente estavam sendo armados pro combate. Sem treinamento, sem consciência da situação política real do local, sem tempo de perceber as contradições de tudo que estava sendo dito e mostrado ali naquele momento. Eles estavam indo pra guerra enfeitiçados como os grandes salvadores do local, apesar de todas as inconsistências da história. Ao adentrar o altar das pedras mágicas, Lazul permaneceu na porta e eu me escorreguei de seu ombro realizando um pequeno voo até o topo da parede, tentando passar despercebida para analisar esses fragmentos de rocha mística. Interessantemente, uma delas estava rachada, sua cor acinzentada parecia não refletir luz alguma, como se fosse uma pedra de pó. Me aproximei dela e notei que a rachadura era, na verdade, a forma dela mesmo, que variava de acordo como fosse manuseada. - 105 -


Não era uma pedra, era uma nuvem. Quando me aproximei voando e minhas asas sopraram em direção a ela, sua forma se tornou condizente com a pressão do ar que eu mesma havia exercido, o centro da esfera se afundou e suas laterais se expandiram, vindo em minha direção e me cobrindo totalmente. Ninguém percebeu, pois ninguém estava ciente da minha presença ali e estavam ocupados demais com os gatos que estavam descobrindo seus chamados mágicos. O pó de nuvem me envolveu completamente. Achei que ficaria sem ar, mas não foi isso que aconteceu. Pareceu que, pela primeira vez, eu estava respirando de forma plena sem tanta necessidade de reciclar metade do meu ar através de compressão traqueal. Aquela nuvem era oxigênio e agora ela morava em mim. Eu era o ar. Eu era tufão e tempestade. Eu era o bater de asas do destino. Eu era o caos.

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Capítulo 19

O Resultado do Duelo Voemos com a retrospectiva dessa história pelo meu ponto de vista, pois não hei de recontar cada detalhe até o ponto daquele duplo desmaio que concluiu o capítulo 16, mas vou me atentar um pouco aos detalhes desse embate épico que, de fato, não teve um real vencedor. Duelos, disputas, competição, batalhas, ser o melhor, o mais rápido, o mais forte, o mais valente, o maior guerreiro, o maior líder, aquele escolhido para grandes feitos pelo destino em enfrentamentos que poderiam salvar o mundo! Sabe como salvar o mundo de uma borboleta? Plantem flores. Nos proporcionem espaços para nos pendurar e metamorfosear de lagartas para nossa forma seguinte. E então nos permitam encontrar as flores para nos alimentar e polinizar o mundo. Salvar o nosso mundo não é destruir, é criar. Enquanto subiam pelos andares da Torre de Turquoise, tudo que eu pude ver foi destruição, não heroísmo. A intenção heroica sim, eu senti a vontade e a crença no que se fazia, mas não vi a reflexão sobre isso na maior parte do tempo. Ou ela era aceita como parte da contradição, como Lazul apontou, ou ela surgia da identificação emocional, como Narai sentiu ao ver a Mariposa cair. Mas a reflexão, o parar e raciocinar sobre, - 107 -


faltou nesse momento. O talvez gato da profecia, no embalo de lutar contra o mal, contagiando todos e desligando seus cérebros da necessidade de pertencimento. Nesse momento, o entendimento coletivo do mal era o elo que conectava a visão e vontade dos animais dali, direcionada a um último inimigo, o pássaro Elo. Ao chegarem no último andar, a conversa inicial entre eles me deixou esperançosa. Havia dúvida, estranhamento, um pouco de bom humor (que me falta nesse momento reflexivo) e possibilidades. Não durou muito e logo estavam novamente competindo. Sempre assim, levando-se ao limite em troca da vitória que ambos imaginavam ser sua por direito profético ou contestador. Eu havia me cansado disso. Quando chegaram numa velocidade absurda onde ninguém mais os conseguia ver eu decidi agir. Me esgueirei despercebida novamente próxima da rede daquela quadra de ping-pong e, por mais que eu não fosse veloz como eles, eu tinha a Pedra Pó e o poder da Matemática do Caos. Me posicionei acima da rede em meio a pequena quadra. Fechei meus olhos e pude analisar infinitas possibilidades de resultados e diversas cores surgiram em minha mente, definindo os variantes resultados do que eu poderia fazer. Fiz minha escolha. Voei no meio da quadra e me concentrei. No momento em que a bolinha, que mais parecia um projétil mortal, me atravessaria, me tornei pó e a envolvi quando ela vinha do Gato em direção ao Pássaro. Modifiquei sua

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rota e fiz com que o único ponto desse duelo fosse definido. Não me surpreendi quando ambos desmaiaram de cansaço, aquilo era simplesmente absurdo. Todos ali estavam completamente exaustos pra além de qualquer noção de cansaço possível. Nesse momento, ouvimos passos rápidos vindo dos andares inferiores. Era um exército que carregava o emblema da Ilha de Pedra e que não parecia nada amigável. O Guaxinim vinha na frente, comandando aqueles que adentravam o espaço. Arcos e flechas foram erguidos em direção a todos que estavam naquele salão final. - Disparem! - gritou o Guaxinim. - Não! Parem! Eles já foram derrotados! - interviu Lazul, que ouviu o zunido das flechas sobrevoando a si e uma delas encontrando diretamente seu peito. - Nós sabemos e agradecemos muito o auxílio no processo. Mas é hora de seguirmos com a profecia, ou melhor, com uma forma de fazer com que ela não aconteça exatamente como foi escrita. Nossa Rainha gostaria de mudar alguns detalhes dela e a segunda profecia pode nos ajudar a conseguir isso. Levem todos daqui. As flechas que sobrevoaram Lazul atingiram todos que estavam no local. Pude perceber os olhares de confusão e descrença que lhes abateu. E percebo que o Caos que eu posso produzir não é a única realidade que pode acontecer. Há outros poderes movimentando as cordas do destino. E duas profecias… - 109 -


Percebo agora que preciso reencontrar no tempo e espaço quem criou as profecias. Descobrir onde isso começou. Abraçar o Caos e bater minhas asas entre as eras. Me aproximei de Lazul em seus últimos instantes de consciência para lhe agradecer a carona e dizer que, em breve, voltaria para ajudar. Ele me olhou sem entender e sorriu, como se acreditasse. Me tornei pó e desapareci no espaço-tempo.

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Capítulo 20

Flechas!!! "Toda grande história - disse a narradora - tem uma grande reviravolta. E é chegado o momento desse tornado de eventos culminar neste grupo de felinos enfrentando seu primeiro choque de realidade (apesar de estarem em um mundo mágico de fantasia, mas vocês entenderam, afinal, desde nunca algo aqui tem sentido, então sigam essa diretriz de entendimento incompreensível e estaremos em sintonia ;) As visões e sentimentos da 1ª Flecha: "Eu estava muito bem acomodada na aljava com minhas outras companheiras flechas quando senti um solavanco. Nosso dormitório havia sido removido de sua atual localização e estava em um trote constante de caminhada, em direção ao desconhecido, visto que lá de dentro não sabíamos nosso destino. Me comuniquei rapidamente com as outras flechas e pude perceber a excitação pela volta à ação depois de várias semanas em repouso. Eu, por outro lado, sempre gostei de um pouco de calmaria. Isso de atravessar a carne de outras criaturas e possivelmente lhes tirar a vida nunca me pareceu algo deveras agradável. Mas esse era um pensamento pouco recorrente entre nós, então sempre fui considerada um pouco diferentona. - 111 -


O trote aumentou por um tempo de forma constante e depois se acalmou. Era o momento em que nossos arqueiros se aproximavam do alvo, eu já sabia reconhecer. Estavam mantendo um passo silencioso e constante, tenso, mas tentando passar tranquilidade. Senti os dedos tocarem minha extremidade com a pena e me preparei para o momento do combate. Fui retirada da aljava, alocada na corda do arco e pude ver meu alvo enquanto a força contra a corda era exercida, preparando o meu disparo. E então ouvimos: Disparem! O vento nas minhas penas enquanto eu cortava o ar em direção ao alvo sempre me deu a sensação de liberdade. De sair da escuridão da aljava e ver, por alguns instantes, o mundo. Interessante que, toda vez que eu era disparada, o mundo poderia ser tanto o costumeiro campo de treinamento quanto um desconhecido campo de batalha. E como gostavam de batalhas! Confesso que, de vez em quando, eu gostaria de uma folga. De toda forma, devido a minha aerodinâmica bem calibrada, fui a primeira a chegar no alvo: o ombro de uma das gatas que se assustou com o impacto. Uma gata de pelo completamente negro que girou com a pressão que exerci e se estatelou no chão. Eu fiquei ali, com minha ponta dentro dela e pude ver que em suas veias não corria sangue, corria Sombra."

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As visões e sentimentos das outras 11 flechas daquela aljava: "Auiiiiiiiii! Uhuuuuuulll!! Vush! Vush! Vush!!"

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Capítulo 21 Divisão Quando a primeira flecha atingiu Menphis no ombro e a fez rodopiar com a pressão, o som do baque de seu corpo no chão não existiu. Não que alguém tenha percebido isto, visto que haviam inúmeros outros sons zunindo por aquela sala num acúmulo de estímulos sensoriais que deixariam qualquer um em estado catatônico tentando entender o que se passava. Mas não era tão difícil assim entender. E nem era necessário. Menphis não precisou nem pensar. Quando a flecha a atingiu e a jogou contra o chão, sua consciência se dissipou, desligando todos os seus sentidos e fazendo sua corrente sombrínea, que agora substituía sua contraparte sanguínea, entrar em ebulição. Aos poucos todas as moléculas de seu corpo começaram a vibrar e a destituir sua figura de forma. Uma fumaça escura saindo de seus poros começou a flutuar a alguns metros do chão, se acumulando no centro do espaço, iniciando um movimento circular que foi ganhando velocidade até dissolver completamente o corpo de Menphis e o transformando em um ciclone de escuridão que começou a criar pressão em seu centro, puxando em sua direção todos que ali estavam. Enquanto a velocidade do ciclone aumentava todos em volta tentaram se segurar onde fosse possível, mas logo o movimento cessou e uma nuvem de escuridão pôde ser vista no centro da sala. Pequenos relâmpagos vermelhos

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aconteciam no centro dessa nuvem em pequenos espaços de tempo. O Guaxinim gritou novamente: - Atirem!!!!! - Mas é uma nuvem, senhor! - apontou um dos guardas, que tinha algum conhecimento de eventos climatológicos e imaginou que disparar em volta de uma nuvem no máximo atingiria seus próprios companheiros. - ATIREM!!! - gritou novamente o Guaxinim, ignorando o bom senso. Nesse momento, a nuvem começou a se mover pelo espaço, atravessando os corpos de vários guardas e deixando alguns deles inconscientes quando um de seus raios vermelhos os atingiam. Quando foi atravessar o guarda que havia apontado que ela era uma nuvem e que disparar contra ela seria pouco inteligente, ele ouviu, na passagem, uma voz de dentro dela sussurrando: - Isso não faz sentido, nenhum sentido. - Eu concordo - ele respondeu, com toda calma do mundo, e percebeu que o raio vermelho, que iria o atingir, se desviou, poupando seus pelos. A nuvem de escuridão se movimentou mais um pouco pelo espaço até encontrar e encobrir Lundra, que também havia sido atingida, mas que ainda mantinha um fio de consciência. Nesse instante, Lundra, entendendo por instinto a situação, ativou sua pedra azul, criando um círculo de proteção em torno de si e da nuvem, que aproveitou a armadura de energia para se jogar contra a lateral da sala, destruindo a parede e se lançando para fora da torre, mergulhando no ar e despencando todos os - 115 -


andares que haviam subido, fugindo da situação pouco favorável em que se encontravam. Ao atingir o solo, próximo ao recife de pedras do início daquela pequena ilha, rolaram para o oceano e por ele foram levadas. A proteção de Lundra aguentou mais alguns minutos antes de se desfazer, do mesmo modo que a forma de Menphis, que agora voltara a ser uma gata como era quando havia chegado nesse mundo. Entretanto, antes que pudessem se afogar em meio a tempestade que parecia se formar nessa noite nebulosa, um pequeno e muito ágil barco movido por um engenhoso motor passou ao lado delas, as resgatando e disparando para longe da Ilha de Turquoise.

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Capítulo 22

Mas que #&@*%! Menphis e Lundra passaram três dias inteiros inconscientes e, ainda assim, muita coisa aconteceu entre elas nesse período. Comecemos por apontar que o mundo dos sonhos é um local de acessibilidade controversa que demanda alguns questionamentos: Podemos controlar nossos sonhos? Eles de fato dizem alguma coisa importante sobre nós em alguma de suas mensagens crípticas e enigmáticas? Estamos vivendo quando sonhamos ou somos apenas descargas elétricas em ebulição construindo imagens confusas? Quando a gente dorme de barriga cheia o corpo fica tão indignado por ter de trabalhar no horário de folga que, por retribuição, nos inunda de pesadelos ainda mais incompreensíveis por estar fazendo hora extra não remunerada? Sonhar é a desfragmentação de disco do nosso HD cerebral que tem que aturar um longo dia sendo atribulado de informações cada vez em maior quantidade em um menor espaço de tempo? Se o sonho fosse uma segunda vida, porque não podemos nos visitar durante eles? Essas diferentes perguntas, extremamente válidas e interessantes de se fazer, foram amplamente pesquisadas por um par de cientistas que se debruçaram sobre a possibilidade de uma vida dentro da vida, caso conseguíssemos controlar nossos sonhos. - 117 -


A inigualável Doutora Hermessim R. Salipop e sua igualmente inigualável companheira, a Doutora Kyrily S. Rindowhrist, ambas salamandras de fogo amplamente reconhecidas no meio científico-acadêmico, desenvolveram uma extensa pesquisa com mais de cinco mil voluntários entre os diversos animais da Ilha de Rubicântigo, utilizando-se de uma abordagem lógica seguindo o método científico em testagem duplo-cega de diversos medicamentos psicoativos para induzir diferentes estados de consciência e chegaram a intrigantes resultados e a frustrantes conclusões. Neste arquipélago, muito da ciência acontece permeada pela inconsistência das leis da magia. Diferentemente das leis da física e química em geral, a magia se apresenta como um mistério incompreensível por se tratar de algo que não existe e, por não existir, não pode ser analisado. Entretanto, pode ser estudado via observação, porém cada observação é um exemplo único de acontecimento que nunca mais se repetirá, visto que, ao se observar um evento, ele existe para quem observa, servindo como experiência anedótica, mas não como comprovação de recorrência. E é neste ponto em que retornamos para Menphis e Lundra, que despertaram ao mesmo tempo, mas não no mesmo mundo em que antes estavam. A psicodelia-surrealista que é possível encontrar no mundo onírico tomou uma nova proporção para as duas gatas, cujas mentes ainda lutavam contra o choque dos acontecimentos anteriores, além do desgaste de terem - 118 -


utilizado poderes muito além de seu entendimento e de sua capacidade física e mágica recém adquirida. Elas despertaram num sonho interconectado, cuja paisagem parecia um deserto de areia cinza, durante uma noite azul escura com estrelas que alternavam num espectro cromático que variava de amarelo palha até vermelho rubi. Junto delas, três luas adornavam o céu, cada uma delas em uma fase diferente, cheia, minguante e crescente. Os olhos de Menphis ainda estavam doloridos, demorando a se acostumar com a leve escuridão, necessitando de um certo esforço para se abrirem. Nessa meia visão, depois de coçar os olhos, ela apoiou uma das patas na areia, mexendo nela e a fazendo trespassar por entre seus dedos e garras, sentindo uma boa sensação de aconchego na temperatura morna da areia. - Uffs.. - suspirou Menphis. - Você poderia me dizer o que fazer? - perguntou para a areia e se deitou de costas pro chão, olhando pras luas. Nesse momento, os olhos de Menphis se abriram completamente, agora sem dor, e começaram a passear entre os astros visíveis, passando de uma estrela a outra, olhando e absorvendo a imagem de cada uma delas. A mente de Menphis começou a criar constelações, juntando os pontos das estrelas e, aos poucos, foi construindo seu próprio universo de constelações. - Você eu vou chamar de.. Dúvida. A Constelação da Dúvida. Te parece um bom nome? E você do lado, que tal algo que combine? Você eu posso chamar de.. Escuridão. E você.. você é a Constelação da Chinchila. E - 119 -


do lado a do Macaquinho! E do lado vai ser a constelação de Poste! Hahahah! As luas eu vou chamar de Zip, Bling e Ternurinha! Menphis começou a rir sem parar, mas continuou dando nomes pras constelações que criou, de forma bastante aleatória e sem um padrão coerente. Até que mudou de direção nas nomenclaturas: - E vocês! Vocês vão me chamar de..? Podem dizer, como vocês querem me chamar? Resposta nenhuma veio. - Se eu não quiser mais ser eu? Se eu nem sei quem eu fui pra saber quem eu vou ser ou quem eu posso ser? Me deem um nome, me facilitem isso não só com um nome. Me deem algo mais, palavras pra eu seguir que eu não precise escolher. Só me digam o que fazer, só me digam pra onde ir.. - os olhos dela começaram marejar. - E se eu puder ficar aqui? Nessa cama morna de areia, olhando pro céu e dando nomes pro universo? A maré em seus olhos agora enchia e transbordava, escorrendo lágrimas pelo seu rosto. - Como eu faço essa escolha, droga!? Eu quase morri! A gente quase morreu! Mas que #&@*% tá acontecendo nesse mundo? Lundra! Onde você tá?.. Onde eu to?.. Quem sou eu no meio disso tudo? A distância, Menphis ouviu uma resposta que não era pra sua pergunta, visto que também não era uma resposta e sim uma outra pergunta, mas que ela aceitou da mesma forma como se fosse uma conversa distante: - Que #&@*% aconteceu, onde eu to!?!?!!? - 120 -


- Eu não sei!!! - Menphis!?!?! - LUNDRA?!?!?! - SIMMMMMM!!!!! Menphis continuou deitada e começou a rir, secou as lágrimas rapidamente e se levantou, tentando identificar de onde vinha aquela voz. - Onde você tá? - gritou. - Eu não sei! Parece que a tua voz vem de todos os lugares, não consigo saber pra onde ir te encontrar! - Olha só, eu acho que a gente não precisa ficar gritando pra se ouvir, quer tentar?!?!?! - PODE SEEER! - TAAAAAAA! PAROU ENTÃO! - SIMMMM PAROUUUU! - ENTÃO PAAAAARA! - TÁ, PAREI!! - PAROU MESMO? - NÃOOO!! - A gente vai ficar nisso pra sempre - sussurrou Menphis, respirando fundo sem perceber. - NISSO O QUE?!?! - VOCÊ ME OUVIU?!?! - OUVI SIMMM! - ENTÃO PARA DE GRITAR! - TÁ, PAREI! - PAROU MESMO? - AINDA NÃO!

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- ENTÃO.. - e não conseguiu mais segurar o riso. Só para.. hahahah.. eu to te ouvindo.. hahahah.. pode sussurrar.. hihihi.. hahaha.. ha.. ha.. haha.. - Tá bom.. pffss.. ha.. haha.. hahahah.. E o riso delas, uma mistura de alívio pela vida e nervoso pela situação, cobriu todo o deserto de cinzas e suas estrelas avermelhadas, novas constelações e luas, Zip, Bling e Ternurinha.

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Capítulo 23

Um Par de Vasos Menphis e Lundra começaram a andar sem rumo pelo deserto, conversando baixinho, mesmo distantes, e se ouvindo plenamente. - Sabe, Lundra, agora há pouco eu tava deitada, simplesmente olhando pro céu, e claro que não era o mesmo céu da Mansão dos Schopenfraulein, mas ainda assim era o céu. Outro mundo, outro céu, mas ainda céu. A gente veio pra outra terra e fiquei me perguntando: é o mesmo céu? E se não for, como pode não ser? - Podemos estar em outro planeta - apontou Lundra. - Isso faria muito sentido na verdade. - Ainda temos estrelas e ainda há uma lua. - Três luas. - Sim, três luas! - Em fases diferentes. Inclusive eu dei nome pra elas! - Você deu nome pras luas? Quais? - Zip, Bling e Ternurinha. - Bons nomes, gostei. Mais alguma coisa pra qual tu tenha dado nome recentemente? - Algumas constelações que criei, mas são muitas, passei um bom tempo inventando elas. - Pensando nisso, não tenho nem ideia de quanto tempo estamos aqui. Eu despertei há algumas horas só, - 123 -


mas fico pensando quanto tempo fiquei desacordada antes disso. - Eu sinto que passei muito tempo aqui já mas, ao mesmo tempo, não parece que foi tanto tempo. - Uma sensação de tempo encolhido mas com muitos acontecimentos, uma dilatação de conteúdo numa contração de tempo. - Em outro planeta. - Exatamente, somos alienígenas a partir de agora! concluiu Lundra, dando uma risada. A sensação dessas palavras silenciou as duas por um instante. Estavam, de fato, longe de casa (ou daquilo que chamaram de casa por tanto tempo), mas ainda em busca de um lar. Perdidas num deserto de três luas e estrelas de cores quentes, distantes uma da outra e, ainda assim, se ouvindo plenamente. - Será que esse é um novo poder que temos agora: telefonia? - perguntou Lundra. - Eu descobri tantos poderes ultimamente que não me surpreenderia se fosse. - Eu fiquei com um pouco de medo da manifestação dos teus poderes, mas também fiquei orgulhosa por te ver tão potente e segura de si durante a subida da torre. Por alguns instantes não parecia você. - Talvez durante anos a maior parte de mim não parecesse eu. Você também, incrível como nos tornamos guerreiras superpoderosas tão rapidamente, não é? - Parece até que não éramos nós, apesar de sermos.

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- Será que essas pedras têm mais influência do que imaginamos? Me lembro das palavras de Elo antes deles começarem a jogar. Me deixaram em dúvida.. - E, logo depois, o Guaxinim.. E, nesse momento, pensaram em tudo que aconteceu depois que Narai e Elo desmaiaram. Das flechas, da nuvem, do oceano as engolindo. Novamente, calaram-se por um instante. - Você poderia ter salvo todo mundo? - perguntou Lundra. - Eu não sei nem se de fato salvei nós duas. Esse lugar não parece bem o resultado de um salvamento bem sucedido. - Será que só nós.. - Sobrevivemos? - Isso.. -… - Menphis? - Sim? - Eu to vendo um pato.. - Eu sempre gostei de patos. - ..voando.. num.. balão.. - Pelo que me lembro, os patos não voam muito bem por conta própria.. - ..seguido por um elefante num dirigível.. com um meteoro logo atrás.. e tem uma árvore dando cambalhota e saltos giratórios variados vindo na minha direção.. - Você comeu cogumelos, amiga? - ..alguns, sim. - 125 -


Menphis ficou sem resposta. Era muita informação. - Você o que, oi, hein? Ah, olha só, tem cogumelos aqui também - disse, colhendo um dos cogumelos e não vendo muito mais o que fazer a não ser comê-lo. No instante em que o cogumelo alcançou seu sistema digestivo, Menphis pôde ver uma carreata voadora de criaturas muito parecida com aquela descrita por Lundra, mas com suas próprias particularidades e, no mesmo instante em que ela agregou suas próprias associações surrealistas ao momento, Lundra passou a vê-las também. Não somente estavam num espaço que as conectava como também suas experiências alucinógenas compartilhavam a livre associação de ambas num mesmo cenário de imaginação ou realidade alternativa, como se poderia dizer, visto que a realidade é constituída pelos nossos sentidos e sensações dela, então a realidade pode ser relativa a nossa percepção, em determinadas escolas de pensamento. Dito isso, passemos ao que, de fato, Menphis adicionou aquilo que Lundra já estava observando e absorvendo: - A sua árvore é realmente muito acrobática e maravilhosa, mas você percebeu que o céu tem navios? - Navios? SIM! Eu vejo sim, navios no céu do mar! - E o tempo, se desfazendo nas árvores. - Mais elefantes! Agora com trompas no lugar das trombas!

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- E muitas, muitas borboletas, saindo das chamas das velas, se transformando das folhas das árvores que giram! - Cuidado com a chuva de âncoras!!!! Os navios começaram a disparar suas âncoras do céu-mar em direção ao solo e, a cada impacto, uma grande explosão de sementes de dentes-de-leão encobria toda visão possível no espaço em que o impacto acontecia. Menphis e lundra começaram a correr, cada uma seja lá onde estivesse em direção a lugar nenhum, com foco em não tomar uma ancorada direto na cabeça e tendo cada vez mais dificuldade pois os dentes-de-leão ocupavam cada vez com mais intensidade o espaço. Lundra, então, percebeu algo e gritou: - Menphis! Para de correr e olha! - Você tem certeza, amiga? - Simmmmmmmm - confirmou. Ambas pararam e, ao observar com mais cuidado, perceberam que os dentes-de-leão começaram a desenvolver novas cores à medida que se dispersavam pelo espaço. As âncoras ainda criavam um forte impacto e explodiam em novas sementes voadoras, adicionando outras cores a esses conglomerados de pequenos pontos flutuantes que agora cobriam todo o espaço como se fosse uma neblina profunda. Ao pararem para olhar em torno, perceberam esses inúmeros pontos coloridos e, quando respiraram mais forte perto deles, perceberam que se moldavam em formas

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impressionistas a cada movimento de ar que elas condicionavam nas sementes flutuantes. Quando Lundra soprou suavemente, elas se moldaram em um pássaro desfocado que saiu voando para longe dela e, instantes depois, foi avistado por Menphis, que soprou de volta, criando uma onda oceânica que cobriu o pássaro que, por sua vez, a atravessou e se dissipou em frente a ela. As explosões haviam parado, mas as sementes continuavam flutuando em torno delas. - Acho que agora eu posso te encontrar, é só seguir teus sinais impressionistas - disse Menphis. - Então siga, eu vou ficar aqui paradinha te esperando lançando novos sinais. E assim foi feito. Os sinais vinham em diferentes formas, movimentando os pontinhos coloridos que se tornaram os dentes-de-leão, trazendo as variadas imagens que Lundra construiu através de seus movimentos no aquário de sementes em que elas se encontravam, não apenas respirando, mas dançando e criando novas imagens gigantescas a partir de seus movimentos. Menphis não teve dificuldade em seguir o gigantesco dinossauro que surgiu em sua frente e que saltou por cima dela, nem para perceber a lontra bastante ágil que passou voando ao lado de sua cabeça, girando em volta dela e deslizando por sua cauda, desfazendo-se novamente em milhões de pequenos pontos coloridos após saltar. As imagens, por mais desfocadas que fossem devido a sua estrutura de pontinhos de sementes, ainda assim eram - 128 -


possíveis de se identificar. À medida que se aproximava, a quantidade de figuras aumentava, provavelmente porque, quando eram criadas, gastavam um pouco de tempo conversando entre si antes de se disparar em direção a ela, o que a fez perceber que logo mais encontraria a amiga. Mas é claro que, nesse espaço tão contra-lógico, algum detalhe se apresentaria. O sentimento de cuidado que sempre tiveram em sua residência de Palasita havia deixado marcas nelas que não poderiam ser facilmente esquecidas. Quando Menphis chegou ao ponto de origem das imagens que Lundra construía a partir de sua dança para guiar a amiga, percebeu que esse ponto de origem era nada mais, nada menos, que um vaso de flores vazio, de tonalidade verde-claro. Lundra também viu algo se aproximando, rolando em sua direção. Um vaso de flores azul-escuro, também vazio, que chegou bem próximo e se pôs em pé alguns metros à sua frente. - Onde você está? - perguntaram juntas. - Aqui, na frente do vaso de flores sem flores responderam também juntas. Quando o par de vasos-gatas falavam, os dentes-de-leão, que ainda cobriam como neblina todo o local, se movimentavam e criavam ondas de cores, como se esses objetos falassem por suas aberturas, onde deveriam estar as flores. - Menphis.. eu acho que nós somos os vasos. - Pronto. Não falta mais nada agora. - 129 -


Nossa querida Lundra, apesar de ter vivido tudo que viveu, ainda não havia chegado ao nível de abstração de perceber que nunca há um limite pra o que pode acontecer nesse mundo mas, por hora, ela logo seria levada para outra situação e de volta a aventura por uma voz desconhecida que veio trazer algumas explicações. Mas não muitas. - Atenção aos habitantes temporários da Ilha de Enteronigma: é hora de voltarem para o mundo da consciência compartilhada.

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Capítulo 24

Hermessim & Kyrily A Ilha de Enteronigma foi construída de forma artificial como suporte surrealista de vida para casos de extrema necessidade ou falta de informações necessárias para o tratamento de diversos quadros clínicos que não fossem óbvios. Existem diversos quadros bastante fáceis de se perceber logo que chegam a um ambulatório e que não demandam grande complexidade de tratamento. Podemos trazer como exemplos para estes casos situações simples como levar uma bolada no olho jogando algum jogo com bola, uma raquetada na cabeça jogando um jogo de raquetes, uma cartada na orelha jogando um jogo de cartas, uma facada no fígado jogando um jogo de facas ou eventualmente uma livrada no esôfago jogando jogos de livros, normalmente enciclopédias inteiras na verdade. Impressionante como o ato de arremessar um livro nunca ocorre sem o subsequente arremesso de um segundo livro e este seguido por um terceiro e assim por diante. As enciclopédias são muito unidas, fato inegável definido pelo acúmulo de casos similares a este último relatado. Outros casos, entretanto, ao chegar já demonstram uma nítida necessidade de internação profunda. Outros ainda, como este que apresentaremos agora, mostram-se nitidamente incompreensíveis. Nesta situação, é comum recorrer ao grande invento das Doutoras Hermessim & - 131 -


Kyrily, perdedoras do Prêmio Ignóbel, pois eram inteligentes demais e nenhum dos homens da comissão de avaliação entendeu lhufas daquilo que elas estavam apresentando. Ou talvez nem tenham ouvido ou prestado atenção no geral, além, claro, de, ao final da apresentação, terem tentado explicar para elas o que elas próprias tinham acabado de explicar. Mesmo sem eles próprios terem entendido patavinas. Prêmios não são importantes, alguns podem vir a dizer. Mas o reconhecimento financeiro, advindo de um prêmio como este, poderia ter sido de muita utilidade e teria apressado a recuperação das duas gatas que agora se encontravam neste espaço artificial criado pelas doutoras. Ainda bem que elas estavam sendo cuidadas por mãos não apenas capazes, mas que de fato se importavam com a vida de suas pacientes. Hermessim e Kyrily iniciaram sua pesquisa ainda na faculdade da Ilha de Arsrelif, onde se conheceram e se apaixonaram, ainda no primeiro ano de estudos. A conexão entre as duas ainda traria ao mundo inúmeras invenções incríveis, que no decorrer desta história irão aparecendo em momentos de caos e eventual utilidade mas, no momento, o trabalho sem apoio, sem recursos e sem patrocínio da vida delas estava servindo como única maneira de manter Menphis e Lundra ainda vivas. - Quanto tempo ainda temos? - perguntou a Coruja. - Elas estão se aproximando do nível de surrealismo 12 com impressionismo 7, quando atingirem cubismo 4 acho que estaremos no limite! - respondeu Kyrily. - 132 -


- Ainda temos chance, elas acabaram de se desviar para absurdismo 2, ambas se tornaram vasos de plantas agora - complementou Hermessim. - Precisamos estabilizar nesse ponto de fuga então, se elas ficarem no absurdismo teremos uma chance concluiu Kyrily. Enquanto isso, a Coruja buscava em seus livros ainda mais informações que pudessem auxiliar no entendimento do mundo que as gatas estavam criando em seu inconsciente-semiconsciente e repassando para as cientistas interpretarem e possivelmente acharem um ponto de inserção. O Ponto de Inserção é o momento em que as criaturas no suporte artificial da Ilha de Enteronigma percebem que estão num limbo de consciência, existindo dentro de si em uma consciência da consciência, identificando a polimorfia uma na outra. No caso, terem se tornado vasos de plantas. No momento em que Lundra apontou este fato para Menphis ao dizer “eu acho que nós somos os vasos” e receber um “pronto, não falta mais nada agora” como resposta, o Ponto de Inserção apareceu nos gráficos de registro do equipamento que cercava as duas gatas desacordadas no laboratório, iniciando uma sinfonia de sons que culminaram em uma bela música com estética nostálgica de 8bits vinda dos computadores que faziam a transcrição dos estímulos mentais das gatas em sons e gráficos coloridos.

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- Elas alcançaram o ponto semiótico-simbolista, precisamos agir! - gritou Hermessim para Kyrily, que correu para o microfone extraplanar para iniciar a comunicação. - Atenção aos habitantes temporários da Ilha de Enteronigma: é hora de voltarem para o mundo da consciência compartilhada - informou Kyrily. Ao ouvirem isso, Menphis e Lundra se olharam, mesmo sem olhos, visto que no momento eram vasos de plantas monocolores, e não souberam exatamente como reagir. Entre os diversos pensamentos que lhes passaram pela cabeça, um deles teve destaque, aquele em que pensaram que seria melhor não achar mais que chegaram no limite do absurdo e que a partir de algum momento não haveria algo que pudesse superar o nível das situações em que elas já se encontravam. - Ahhh por favor! Pra tudo tem um limite! disparou verbalmente Menphis. - A gente não pode simplesmente passar um tempinho que seja sendo um par de vasos não? Mal a gente respira e já acontece alguma coisa nova e diferente, não tem um minuto de sossego nem que seja pra reclamar um pouco, hein? Seria pedir demais? Kyrily sinceramente não esperava essa reação, então tentou ser compreensiva: - Olha, a gente não tem uma janela muito grande pra poder resgatar vocês mas, tudo bem, podem passar um minutinho reclamando sim, a gente aguarda. Lundra e Menphis ficaram surpresas com a resposta e com a calma na voz daquela que respondia. - 134 -


- Acho que não somos apenas nós que estamos no limite, vaso de plantas Menphis. - Acho que não, vaso de plantas Lundra. - Gostei da voz dela. - Eu também, passou confiança. - E um timbre bom, não é? - Sim, muito! Doce sem ser irritante. - Me deu até uma tranquilizada. - Simmm, parece que ela tá nos chamando pra um abraço aconchegante com um cafunezinho. - Pois não é? To querendo ir mesmo, tá pronta? - Se você estiver eu tô! - Então se tu tá eu tô! - Então se estamos então tá! - E se pá tu tá pra mim tamos! - Então vamos que vamos! - Vida que segue o baile! - Pode nos tirar daqui moça da voz bonita, fofa e cheirosa, chega de sermos um par de vasos! - Eu até que tava gostando mas, de fato, já deu disso. Kyrily estava num misto de envergonhada e contente pelos elogios em relação a sua voz e ficou um segundo sem conseguir responder, até porque também estava confusa com o rumo que a conversa entre as duas vasogatas havia tomado. Além de estar tentando entender como a voz dela poderia ser considerada “cheirosa”. Nesse momento ela teve certeza de que elas se comunicavam em - 135 -


outra frequência e que as palavras não tinham o mesmo significado e significante. Ainda assim deu um sorrisinho e ficou curiosa em conhecê-las pessoalmente. - Então, sem mais delongas, minhas queridíssimas hóspedes, preparem-se para uma viagem como nunca dantes tiveram. Kyrily fez um sinal para Hermessim ativar a alavanca de despejo infraconsciente e iniciaram o processo de ejeção das gatas da Ilha de Enteronigma. - Você está com medo de voltar? - perguntou Lundra. - Já tive mais medo - respondeu Menphis. - Mas, a essa altura, acho que já não temos mais muito o que temer. Se a gente desligar o nosso pensamento e simplesmente lutar, fazer sempre o que é preciso e se perdoar pelas decisões que não deram tão certo e aprender com elas, acredito que poderemos nos divertir no desespero. - Que perspectiva horrível. - De fato. - Mas sim, se alguma coisa mudar pra melhor por um pingo que seja de movimento nosso, vai ter valido a pena voltar. - E temos amigos pra resgatar. - Que precisam muito de resgate! - Muito mesmo! - Tenho certeza que logo depois vão se meter em mais alguma situação e aí teremos que resgatar eles de novo! - 136 -


- Essa história não vai acabar nunca - concluiu rindo. - Acho que nenhuma história termina de verdade, elas só param de ser contadas e ficam por isso mesmo, um recorte. Nesse momento, as duas perceberam que a vaso-gata a sua frente começara a rachar, como se algo estivesse soprando do chão e desfazendo o mundo ao redor aos poucos, tornando tudo em pó e alçando aos céus em fragmentos minúsculos. - Isso é assustador - comentou Menphis. - É sim - respondeu Lundra. E se abraçaram mentalmente.

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Capítulo 25

Desvios de um Resgate - Elas estão se desfazendo! - gritou Kyrily, apontando algo que na verdade era bom mas que, falando em voz alta, parecia horrível. - Preciso me conectar imediatamente pra que elas não se percam no caminho, me ajudem com isso - pediu Hermessim, apontando para vários itens que ela precisaria que as outras alcançassem para ela, que se sentou numa poltrona muito confortável para não ter dor nas costas futuramente. Enquanto isso, durante a fragmentação das gatas em Enteronigma, suas partículas flutuantes começaram a subir cada vez mais alto, deixando o deserto em que estavam cada vez mais distante abaixo delas. Por mais que agora fossem praticamente pó, completamente desfeitas de sua forma material, ambas percebiam que suas consciências habitavam todos os farelos daquilo que um dia foram e perceberam que, neste local, a materialidade era a própria consciência repartida em incontáveis partes. Enquanto iam cada vez mais e mais alto, perdendo o deserto de vista, alcançando as nuvens e atravessando por elas, ultrapassando estrelas e se distanciando delas, indo cada vez mais alto (ou pelo menos o que parecia ser mais alto), começaram a ver novos planetas, novas estrelas uma nova escuridão que foi se tornando claridade, em seguida - 138 -


nuvem, em seguida céu, em seguida, novamente, um deserto. No embalo do salto do primeiro deserto, os fragmentos delas, agora já misturados durante a travessia, se chocaram a uma altíssima velocidade com esse teto de deserto, misturando seus fragmentos com a areia e adentrando ao que seria o centro de um outro planeta mas, ao contrário, ao cruzarem essa areia toda, como se fosse um portão de sal, chegaram em uma cúpula gigantesca que parecia infinita, sem nada além de um grande globo de cristal no centro comigo olhando pra ele, narrando esse trajeto todo e agora me virando para os fragmentos de Lundra e Menphis para falar com elas. Olá, gatas, digo olhando pros fragmentos adentrando o local. Espero que não fiquem muito assustadas, não sei como chegaram aqui, mas ainda não é o momento de nos conhecermos, digo sem elas entenderem absolutamente nada do que está acontecendo, mas já acostumadas com essa sensação. - Onde nós estamos? Pergunta a nuvem Lundra achando estranho o jeito que eu falo ao falar que ela está perguntando. Apenas digo que elas estão no entremeio de quem vive e de quem lê. Em seguida ela me pergunta o que isso significa e eu decido dar um empurrãozinho pra que elas saiam logo daqui antes que eu explique coisas demais. Só que elas acabaram de me escutar dizendo isso então agora elas estão tentando fugir, só que não tem pra onde gatinhas, fiquem calmas, vocês logo serão resgatadas. Aiai, tá bom, corram aleatoriamente - 139 -


pela minha cúpula-casa, tudo bem, mas não derrubem as minhas plantas! Ahhh inferno, aqui não tem nada, é um infinito primordial e vocês conseguiram derrubar minhas plantas e que areia toda é essa aqui? Pergunto já sabendo a resposta pois eu mesma narrei isso momentos atrás.. ou não narrei? Não.. ou sim.. eu estou me tornando.. eu sou a Narradora.. eu não posso me tornar.. uma personagem..” - concluiu, inconclusivamente, a Narradora. Nesse instante, Hermessim conseguiu estabelecer uma conexão com a Ilha Suporte de Enteronigma, abrindo um vão na Cúpula do Infinito Primordial, cujo vácuo começou a puxar os fragmentos de Lundra e Menphis novamente para o exterior do local, reconectando suas consciências a seus corpos e, novamente, trazendo-as à vida. Ao despertar, ambas levaram alguns momentos para recuperar o foco da visão, deparando-se com Kyrily as observando e perguntando se elas estavam bem. - Como vocês estão se sentindo? É a primeira vez que conseguimos recuperar alguém depois de tanto tempo na Ilha Suporte de Enteronigma, estávamos preocupadas. - Quem.. são vocês? - perguntou Menphis. - Eu sou Kyrily e aquela na poltrona muito confortável é Hermessim, nós somos as responsáveis pelo sistema que manteve vocês sobrevivendo até agora, quando conseguimos trazer vocês de volta. - E quem é aquela no canto? - 140 -


- Bom, acho que precisamos conversar com calma a partir de agora. Por favor, não se assustem, mantenham a calma e eu prometo que tudo vai fazer sentido. A Coruja, ao ouvir isso, se aproximou e se mostrou pras gatas. Num reflexo, Menphis explodiu novamente em uma nuvem escura com trovões vermelhos, mas Lundra expandiu sua aura protetiva e encapsulou ela consigo, protegendo a Coruja e as Salamandras dos raios de Menphis. - Amiga - disse Lundra calmamente -, nós já passamos desse ponto do conflito, você ainda não percebeu? - Percebi sim - respondeu Menphis, retornando a sua forma de gata. - Foi apenas reflexo, desculpe. - Tudo bem, pelo menos consegui reagir em tempo respondeu, recolhendo a aura. - De fato, foi incrível, muito rápida. - To ficando mesmo, essa pedra mágica realmente veio bem a calhar. - Vocês não estão mais com as pedras - apontou Kyrily. Os olhos de Menphis se arregalaram por um instante. Se não era a Pedra da Sombra a responsável por isso que ela pode se tornar, então isso seria de fato ela? Ao perceber o pensamento da amiga, Lundra se dirigiu a Coruja, pedindo explicações: - Acho que nós precisamos de algumas explicações. A Coruja se aproximou calmamente, movimentando as asas de forma suave e convocando um enorme livro que - 141 -


estava exposto num belo altar no fundo da sala, que veio voando tranquilamente assobiando uma melodia que evocava um tom épico e disse: - Olá! Eu sou o Grande Livro das Lendas Históricas de Rubicântigo e estou muito feliz em poder contar pra vocês sobre a Profecia.

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Capítulo 26

A Profecia Interpretativa - No início dos tempos - introduziu o Grande Livro das Lendas -, não havia ninguém que pudesse apontar para nada visto que nada existia. - Quer dizer - interrompeu Kyrily -, não é possível que nada exista, visto que o nada seria absolutamente a ausência de qualquer coisa. Mas no caso o conceito de nada é algo tangível, visto que na nossa limitação intelectiva o entendimento do nada como absoluto não é viável pois somos criaturas temporais e entendemos a existência de uma forma não abstrata pois sentimos ela apesar de não termos como identificar a consciência individual. - Bom esclarecimento - apontou Hermessim, enquanto Lundra e Menphis se olhavam com pontos de interrogação no olhar. O Grande Livro continuou: - Como eu dizia.. No início dos tempos.. - O conceito de início também é um tanto quanto relativo a nossa percepção desconexa de tempo e espaço, de forma que essas duas grandezas, juntamente de velocidade e aceleração.. - retomou Kyrily antes de ter seu interrompimento interrompido. - Olha só - disse o Grande Livro interrompendo o interrompimento -, posso lançar a poesia profética e depois a gente elabora acerca dela e de suas infindáveis ramificações? Pode ser? - 143 -


- Eu apoio! - disseram Lundra e Menphis em uníssono. - Tá bom, pode ser.. - aceitou Kyrily, que era uma salamandra muito empolgada e, como já apontado anteriormente, de uma voz muito bonita, quase hipnótica. - Então que seja - retomou o Grande Livro. - De acordo com a poesia profética que diz, literalmente: No início houve um trovão Sem alguém para lhe ouvir Tão sem graça era a visão Do mundo prostrado ali Por falta de opção Ou por tédio de quem falava Era hora de brincar Com os desejos de quem cantava Era vácuo, vazio e nada Caos criando a criação A primeira estrela, um vulcão Uma montanha de lava Que não expelia calor Fogo, terror ou magma Era parte relâmpago, raio Fulgor de luz azul Pois ouvidos não haviam Perto ao norte, longe ao sul

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Três vozes então disseram Mesmo sem poder se ouvir Que era hora de um mundo Estranhamente surgir E que se fosse um bom momento Pra nova vida pretensa Acabaria a solidão Tão dolorosa e intensa E assim aconteceu Água, terra, céu, magia Quatro firmamentos que Desafiavam o dia Criando tensão entre si Num pretenso equilíbrio Tão fácil de destruir Na ignorância do indivíduo Que logo mais nasceria Achando ser dono de tudo Indisposto a conviver Num entendimento mais profundo Mas não se esperava a priori Que uma mente tão brilhante Ao ver esse lindo lugar Tão cheio de vida e encanto O decidiria tomar Para si e semelhantes - 145 -


De ganância ao coração E arrogância tão ardente O plano destruição Do presente em seu colo Como monstros insolentes Destruindo mar e solo Então a magia se fez Como forma de correção Permitindo que o horror Mudasse de direção E se um dia preciso fosse Encontrar novos caminhos As Ilhas seriam apenas Reinos em guerra vizinhos Esperando a chegada altiva De algum grande salvador Encontrado em outro mundo Num pequeno corredor Enfrentando inimigos Num horário ao fim do dia Num regular desespero Disfarçado de alegria Ao concluir o poema, o Grande Livro aguardou um instante por aplausos que não vieram e resolveu anunciar que a profecia fora completamente declamada: - A poesia foi completamente declamada. - 146 -


- É só isso? - perguntou Lundra. - Sim, é só isso. - Você pode me esclarecer uma coisinha? - É claro! - Basicamente nós fomos trazidas pra esse mundo por conta de uma dúzia de versos escritos sabe-se lá quando, por criaturas que não se sabem quem, por motivos desconhecidos, falando sobre uma era anterior a existência? - Exatamente! - Bom, eu acabei de passar por uma experiência de fragmentação do meu próprio eu, então acho que não estou numa posição de manter um alto grau de ceticismo. - Pois então - comentou Hermessim -, é nesse ponto em que nós entramos pra não deixar qualquer coisa ser válida apenas pela experiência anedótica. Existem muitos aspectos macabros cerceando essa profecia e acho que é um bom momento pra vocês entenderem onde a Ilha de Pedra entra nisso tudo.

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Capítulo 27

Novas Alianças - Vocês ainda precisam de mim? - perguntou o Grande Livro de Lendas de Rubicântigo, esperando uma oportunidade de continuar trazendo informações relevantes de forma dramática. - Sim, por favor, fique conosco mais um pouco respondeu a Coruja, de forma alegre e simpática. - Eu tenho muitas perguntas ainda - interveio Lundra, de forma curiosa e sutil. - Eu também preciso de algumas explicações mais detalhadas - complementou Menphis, de forma contemplativa e suspirante. - Ansiosa pra conversar mais com vocês - disse sorrindo Kyrily, de forma fofa e interessada. - Então vamos começar de uma vez? - tentou organizar Hermessim. - Vamos! - concordaram todas ao mesmo tempo, percebendo sua já estabelecida conexão pessoal. Após um milésimo de segundo se olhando, sincronicamente cada uma delas iniciou uma tarefa diferente para preparar o momento que se seguiria de uma forma agradável. Foram produzidos biscoitos achocolatados, chás, café, um bolo de frutas, a iluminação foi melhorada e um som ambiente acalmantemente musical foi iniciado a partir de um aparelho que as salamandras haviam desenvolvido no período de estudos no ano em que - 148 -


se conheceram. A música que tocava agora havia sido composta, executada e gravada pela dupla musical formada por Hermessim e Kyrily, que ainda não havia oficializado um nome, visto que não haviam lançado seu primeiro álbum, algo que pretendiam assim que conseguissem ter um pouco menos de censura vindo dos órgãos de regulação musical. Mas esta história deixaremos para um outro momento. Quando os preparativos estavam encerrados e elas já haviam iniciado uma conversa descontraída sobre assuntos aleatórios, a Coruja chegou trazendo um novo tipo de doce, uma mistura de waffle com limão que agradou a todas, fazendo-as seguir mais um tempo nesse ambiente agradável, de música agradável, com alimentos agradáveis e um bate-papo agradável onde havia muita escuta ativa e respostas educadas. - Eu percebi que vocês não tinham uma tendência maligna quando adentraram minha biblioteca - disse a Coruja. - Eu fiquei me perguntando isso durante um bom tempo também - respondeu Menphis. - Em poucos momentos me pareceu que vocês eram criaturas malignas como nos foi induzido a acreditar quando chegamos aqui. - Bom, teve um momento bastante vilanesco do qual eu me lembro no telhado de uma casa ainda em Palasita - rememorou Lundra. - Verdade - concordou Menphis. - Eu levei um tempo pra me recuperar daquele impacto.

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- Eu mais ainda, visto que tive um impacto literal ao despencar do telhado propriamente dito - complementou Lundra. - Aiai, o Corvo e sua teatralidade dramática comentou a Coruja. - Ele tem essa coisa com as artes cênicas, com o espetáculo, com criar esse clima e essas ilusões todas, mas é tudo fingimento. - Fingimento? - indagou Lundra. - Sim, preciso dar a ele créditos por manter tão bem a personagem, mas fora disso ele é um queridão continuou a Coruja. - E, pra além da encenação, há um motivo prático pra ele tentar esse caminho vilanesco, visto que, se ele conseguir retirar dos oponentes a vontade de lutar, menos gente se machucaria. É até engraçado dizer isso, mas ele odeia a violência. Se ele pudesse evitar todos os conflitos, ele evitaria. Se ele pudesse lutar todas as lutas pra que nós não precisássemos lutar, ele lutaria. Ele é realmente muito forte, ele treina muito e tem muita disciplina (e ensaia muito também essa cara de mau dele), mas ele prefere aterrorizar o inimigo até que ele desista de lutar pra que nem mesmo o oponente se machuque. Percebem como ele tem uma arena com toda uma produção audiovisual? É pra transmitir suas vitórias e inibir a vontade de outrens de lutar contra ele. Vencer sem lutar é a melhor vitória. Só não é melhor que não haver, em nenhum lado, a vontade de lutar. Se uma guerra começou, todos já estão derrotados. - Então é isso, nós já estamos derrotadas? Não há mais nada a se fazer nesse ponto de vista? - seguiu Lundra - 150 -


em seus questionamentos, buscando conhecer um pouco mais daquelas que ali se encontravam. - Na verdade - interveio Kyrily -, partindo desse pressuposto ético e moral de que iniciar um conflito é sempre uma derrota coletiva, podemos manter nossa vontade de seguir lutando para encerrar o conflito e dar as próximas gerações a possibilidade de não iniciar um novo. - O que, historicamente - retomou a Coruja -, não é o que acontece, mas a gente segue tentando. Eu realmente espero que, em algum momento da história do mundo, possamos simplesmente pensar coletivamente na manutenção da existência de uma forma altruísta, pensando no planeta e nas gerações futuras e não egoisticamente na obtenção e manutenção de poder político e social. - E pra isso precisamos destituir o pensamento absolutista baseado na hereditariedade e na conquista de território através de poder bélico - acrescentou Hermessim. - Parece razoável, mas confesso que isso ainda está bastante confuso - disse Lundra. - Vocês precisam lembrar que nós viemos de outra terra e que a história deste lugar é bastante nova pra nós. - Na verdade, ela tem inúmeros paralelos com a história da terra de onde vocês vieram, mas acredito que um resumo possa ser bastante útil de toda forma - apontou Hermessim. Ao ouvir isso, o Grande Livro de Lendas, que estava descansando num dos sofás do local, deu um salto e retomou a personalidade energética narrativista: - Chegou minha hora de brilhar novamente? - 151 -


- Por favor, meu querido - disse a Coruja, apontando para o centro da sala. - Nos rememore um pouco sobre a história do Arquipélago de Pedra.

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Capítulo 28

Lendas e Boatos - No início, era um boato - introduziu o Grande Livro das Lendas de Rubicântigo. - Não precisa começar tão do início, pode saltar direto pra parte em que a civilização já está razoavelmente estabelecida - direcionou a Coruja. - Ah, claro, saltemos alguns anos a frente então! respondeu o Grande Livro, fazendo suas páginas se folhearem ultrapassando mais de três quartos de seu já não tão modesto tamanho livresco e continuando: - Eras inteiras passaram desde o início do cosmos, traduzindo a vontade do universo em uma incalculável quantidade de criaturas que, aos poucos, foram povoando esse mundo e descobrindo seu lugar nele. Ou criando seu lugar nele, se preferirem. - O conceito de “início” entra em conflito com alguns entendimentos posteriores da relação entre tempo e espaço e o termo “vontade” do universo conflita com a ideia de que não há uma consciência universal regendo o cosmos e sim apenas o acaso e o caos - interviu Kyrily. Mas acho que vou ficar anotando esses comentários aqui pra não ficar interrompendo toda vez. - Eu sei que é difícil, amor - complementou Hermessim -, mas aguenta aí que eu aguento aqui e no fim a gente organiza as ideias com todo mundo. E depois de três quartos do livro mudaram a equipe de editoração e - 153 -


curadoria de informações e então tudo começou a ter muito mais respaldo científico de fato. O Grande Livro suspirou fundo olhando pra elas e continuou: - Realmente, no início tudo era muito aprendido e anotado através de tentativa e erro, além das análises terem um caráter muito mais empírico e anedótico. Mas com o tempo e a evolução das ciências, minhas páginas melhoram muito, pode ter certeza! Infelizmente eu sou um Grande Livro que guarda as histórias e as memórias inclusive dos erros, sendo que tudo segue em mim para consultas posteriores. Então eu acumulo o conhecimento mítico inicial, seguido do senso comum empírico, passando pelo filosófico e o científico. Mas irei direto ao ponto para que possamos estar em uníssono! Mais uma rodada de chá, bolachas e bolinhos foi providenciada enquanto o Grande Livro retomava sua narrativa: - Um dia qualquer, depois de muito e muitos milhões de anos, alguém decidiu que era uma criatura superior as outras e inventou inúmeros motivos descabidos para isso. Esta criatura foi seguida por infindáveis outras que, em diferentes lugares deste arquipélago, tiveram a mesmíssima ideia estapafúrdia. Desta forma, diversos reinos foram criados e dinastias se iniciaram. Com o passar do tempo, o poder desses pioneiros foi se cimentando através de guerras e conflitos diversos, principalmente quando havia algum grupo que tentava se articular para modificar esse sistema de manutenção de poder e trazer - 154 -


mais igualdade entre todos os habitantes de cada local. Mas era muito mais complicado criar novas organizações visto que o poder acumulado por aqueles cujas famílias iniciaram esse processo era muito maior que aquele que seria possível desenvolver sob as vistas dessas próprias famílias. A solução foi um êxodo parcial dessas populações, que aos poucos fugiram desses regimes autoritários e iniciaram novas comunidades onde uma nova filosofia de vida e de relações fosse possível. - Mas aqueles reinos já estabelecidos não gostaram muito dessa ideia, porque estavam imbuídos de uma sede de poder e superioridade que lhes corrompeu completamente - complementou a Coruja. - Exatamente o que eu iria dizer - prosseguiu o Grande Livro. - E, nesse momento, a Rebelião teve início. Ao serem atacados sistematicamente, essas comunidades começaram a revidar e a ficar mais fortes, se tornando uma pedra no sapato dos reinos iniciais. - Nós somos uma dessas comunidades - apontou a Coruja. - E estávamos em conflito direto com o reino da Ilha de Pedra, de onde vocês vieram. - A Ilha de Pedra.. - iniciou Lundra, sem concluir a frase. - É um reino que mantém seu poder se aproveitando da crença de seus habitantes em profecias míticas de salvadores resgatadas de sítios arqueológicos de eras passadas - disse Hermessim. Um silêncio reflexivo se instaurou no ambiente. Lundra serviu mais um chá para si e sua amiga Menphis, - 155 -


que pegou mais um pedaço de bolo e misturou com algumas castanhas que haviam sido colocadas há pouco na mesa. - Nós somos muito tontas, não somos? - perguntou Menphis. - Não são, não - respondeu Kyrily. - Vocês são incríveis, valentes, corajosas, simpáticas, poderosas, fofinhas e muito agradáveis. Lundra e Menphis sorriram ao ouvir essa sequência de elogios. - Somos mesmo - disseram juntas, baixinho. Um pensamento em comum veio a todas naquela sala ao perceberem que esse momento de confraternização estava prestes a terminar: precisamos resgatar nossos amigos e aliados. - E como faremos isso? Aliás, onde eles estão? perguntou Lundra. - Foram todos levados para a Prisão Pendular respondeu Kyrily. - E a gente vai ter que se desdobrar em mil pra conseguirmos resgatar eles. - Quando você diz “se desdobrar em mil”, seria num sentido literal ou figurativo? - Acho que vocês não vão gostar muito da resposta pra essa pergunta.. - Eu já imaginava, não sei nem porque me presto a perguntar ainda. E todas riram juntas. De nervosismo mesmo. Enquanto isso, o Grande Livro de Lendas de Rubicântigo se fechava e voltava a dormir em sua estante particular. - 156 -


Parte IV |

A Filosofia dos Múltiplos Resgates

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Capítulo 29

A Prisão Pendular Imaginem vocês a situação deste gato, que estava jogando ping-pong tranquilamente (okay, nada tranquilamente na verdade) até a exaustão física completa e o eventual desmaio, ao despertar dentro de uma cela sem aviso prévio após acontecimentos dos quais ele não participou conscientemente. Não deve ser nada fácil, convenhamos. Mas acostumado como ele sempre esteve em se meter em confusões as quais não previu, manteve sua habitual calma e começou a gritar: - Onde eu toooo!?! Tem alguém aqui!?! Ouvindo uma resposta um pouco distante de alguém que ele não soube identificar a voz que dizia: - Aguarde um momento e logo mais entraremos em contato com você! Na verdade você entrará em contato conosco! Na verdade a sua cela entrará em contato conosco! Daqui a pouco eu te explico sem gritar quando as celas pendularem! “Quando as celas pendularem?”, pensou Narai, não entendendo o que aquilo significava ao certo, mas imaginando que logo mais saberia, visto ter sido informado de que a informação viria assim que a cela entrasse em contato com o outro ser que estava gritando com ele. O que aconteceu minutos depois. Narai estava olhando em volta, tentando entender onde estava, e se percebeu numa espécie de gaiola, parecida - 159 -


com aquela que os humanos de Palasita usavam para aprisionar pássaros, e ficou imaginando se precisaria aprender a cantar para se manter naquele lugar, tentando antecipar eventuais situações vindouras. Notou também que essa gaiola estava pendurada ao teto por quatro cabos de aço que a impediam de balançar e que, em volta, era uma grande caverna sem entrada ou saída, com a gaiola erguida acima de uma espécie de poço d'água. Essa era sua situação, preso em uma gaiola, numa caverna sem entradas, acima de um aglomerado de água. Sem escapatória, sem saída e sem companhia. Pelo menos ao que parecia, pois alguém havia gritado de volta pra ele. Seria talvez um eco consciente que ao invés de repetir respondia? Não podia ser. Ou seria? Esses pensamentos ocuparam sua mente por alguns minutos até que percebeu as grades começando a vibrar e a girar, fazendo com que a visão do exterior ficasse borrada a ponto de se tornar visualmente indefinível. Depois de girarem em alta velocidade por alguns segundos, as grades pararam abruptamente, desvelando a nova localização da gaiola, agora com uma ponte para uma saída e um morcego que o aguardava. - Isso que significa “pendular”? - perguntou o gato, agora sem sentir a necessidade de gritar. - Exatamente - respondeu o morcego. - Depois de um tempo você se acostuma. Já era hora de você acordar depois de tantas horas se recuperando. - Quantas horas? - Umas cinquenta, eu acho. - 160 -


- Isso dá mais de dois dias! - Eu poderia ter dito dessa forma também, é preferível? - Eu acho que sim, pelo menos dá uma noção mais realista. Quando você disse “horas” eu pensei: tá tudo bem, não passou tanto tempo. Mas agora sabendo que foram dias eu fiquei preocupado. - Com o que? - Minha turma, claro! - Ah, mas não precisa se preocupar. - Uffa, que bom. Pode me dizer onde estão? - Claro que sim! - Então diga, por favor. - Parte deles está presa em outras celas pendulares, como essa sua, e a outra parte está desaparecida e nós não temos a mais pulha ideia de onde estejam. Narai levou um segundo para reagir pois teve que desconstruir o sorriso de alívio que havia incorporado a sua face ao ouvir que não precisava se preocupar ao perceber que provavelmente deveria se preocupar e muito. - Isso não foi nada tranquilizador - disse, finalmente. - Desculpe, acho que estou um pouco destreinado em traquejo social depois de tanto tempo aqui. - Você é um prisioneiro também? - Não, não. Eu sou o guarda da sua seção. - Você é bastante simpático. - Eu tento, não é porque você está preso aqui que precisa ficar mal alojado ou ser mal tratado. Eu não sei o

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que você fez pra ser encarcerado, mas será bem tratado de toda forma. - Pois então.. eu não sei como eu vim parar aqui. - Você não teve um julgamento? - Não. - Humm - o morcego se afastou um pouco e buscou a ficha do gato em uma escrivaninha um pouco mais distante. - Realmente sua ficha é bastante confusa. - Será que você pode me ajudar? - Vou ver o que posso fazer. Até mais tarde! - Até mais tarde? E a cela pendulou novamente, levando Narai para um outro ponto da Prisão Pendular, muito parecido com o primeiro, mas com diferentes formatos de rocha e de tamanho ao seu redor.

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Capítulo 30

O Diário do Gatinho Durante sua estadia na Prisão Pendular, Narai teve muito tempo para pensar e refletir sobre diversos assuntos que sua agitada vida não o havia permitido previamente. Por conta das tantas ideias que lhe ocorreram, decidiu começar a escrever um diário para manter registro desses pensamentos: Prisão Pendular, Dia 1 depois dos dois que eu dormi: Querido Diário, Que lugar estranho. Pelo menos fiz um novo amigo: um morcego que eu não descobri o nome porque eu pendulei antes de conseguir perguntar. Prisão Pendular, Dia 2, eu acho, entra pouca luz aqui: Queridíssimo Diário, Até agora não entendi muita coisa do funcionamento desse lugar, apenas que, de tempos em tempos, a gaiola faz um remelexo e se pirulita pra um lugar diferente. Toda vez eu aproveito e danço junto dela pra me exercitar um pouco e acho que estamos começando a estabelecer uma conexão. - 163 -


Prisão Pendular, Dia 3, provavelmente: Inigualável Diário, Descobri o nome do Morcego que cuida da minha seção, mas esqueci, amanhã eu pergunto de novo e lembrarei de anotar no mesmo momento. Quando a gaiola pendulou comigo dançando acho que ela entendeu que eu queria conversar com ele e me levou pra lá. Vou tentar de novo logo mais, mas acho que só posso ficar um tempo do dia em cada parte dessa intrincada caverna. Prisão Pendular, Dia 4, com certeza: Sintético Diário, Meu amigo morcego chamado Spiralisfurolagiro (aposto que agora não estão mais me julgando por ter esquecido o nome dele ontem, não é?) começou a conversar mais tempo comigo. Parece que a gaiola percebeu que eu fico mais feliz com a companhia dele e tem me deixado mais tempo por aqui.

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Prisão Pendular, Dia 5: Lacrimoso Diário.. Tenho pensado sobre muitas coisas durante esse período em que estou aqui sem muito contato com outras criaturas. Escrever é algo estranho, sabe. Nesse momento escrevo pra mim mesmo sem saber se um dia isso será lido ou mesmo se eu vou sobreviver ao que quer que seja esse lugar estranho. Ter feito um amigo que é, ao mesmo tempo, quem me mantém aqui, me deixa um pouco triste. Nossa amizade se desenvolveu através desses poucos dias e, hoje, ele me contou sua história e confesso que, apesar de ter grandes tristezas na vida, ainda assim encontrei refúgio nas aventuras e naqueles que estavam sempre comigo, diferente dele que, pra sobreviver, precisou suprimir muitos pensamentos diferentes daqueles que constantemente cobram dele. Preciso dar um jeito de fugir e de levar ele comigo. Prisão Pendular, Dia 6: Meu primeiro Diário.. Perguntei ao meu amigo se ele gostaria de fugir comigo. Ele disse que sim, mas que seria impossível pois a mágica pendular que existe nessa prisão impede qualquer movimento coordenado de escapatória. Começo a me sentir entediado com os longos períodos de solidão.. - 165 -


Prisão Pendular, Dia 7, talvez..: Diário, Perdi novamente a contagem dos dias, acho que eles de fato não importam muito mais. Acho que vou apenas anotar as inserções que faço por aqui, esperando ter alguma ideia de passagem de tempo. Talvez seja até pior saber quantos dias se passaram, pois é vida se partindo. Mas não posso perder a alegria, pois ainda tenho muito o que descobrir e fazer. Perguntei ao meu amigo se ele poderia me trazer algumas informações e espero que sejam boas notícias. Aguardo ansiosamente e sigo dançando com a gaiola. Prisão Pendular, Dia 9?: Inebriante Diário! Hoje descobri que Lazul está em algum lugar daqui também! Além dos outros que encontramos na Ilha Turquoise, o que me faz pensar o motivo de estarmos todos presos juntos no mesmo lugar.. Tem algo muito estranho acontecendo por aqui. Mas agora estou mais animado, talvez consiga dar um jeito de me comunicar com os outros! Com certeza Spiralisfurolagiro vai me ajudar, isso pode dar certo!

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Prisão Pendular, Dia 12!: Diário dessa vida! Acabei não conseguindo escrever muito em você durante esses últimos dias pois fizemos um esquema super complexo de comunicação e agora poderemos iniciar nossos planos para, de alguma forma, nos libertarmos daqui, apesar de parecer uma tarefa extremamente difícil e que nos tomará muitos e muitos e muitos dias ou até meses, mas eu sei que será possível se unirmos nossas mentes e potencialidades de forma a superar esse impressionante obstáculo que se apresenta diante de nós! Não há nada que nos impeça de fugir daqui e retomarmos a nossa vida e continuarmos a nossa luta contra as forças do mal! Apesar que agora a gente tá um pouco em dúvida de quem sejam as forças do mal e parte dos nossos debates tem sido sobre essa área cinzenta entre o bem e mal e decidimos colocar uma régua um pouco diferente, algo como a dicotomia entre civilização e barbárie, mas esse conceito também puxou outros aspectos reflexivos. Dito isso decidimos montar um grupo de leituras filosóficas antes do nosso plano de fuga para termos mais consciência daquilo que estamos nos propondo a construir como sociedade.

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Prisão Pendular, Dia 17: Querido Diário filosófico, Nossos debates tem sido muito produtivos, Spiralisfurolagiro tem encontrado grandes pérolas na biblioteca local e temos estudado muitos aspectos do existencialismo, debatido profundamente os textos propostos e estamos percebendo as contradições de como várias das ilhas deste arquipélago são gerenciadas e estamos construindo um manifesto sócio-cultural para apresentar futuramente e iniciar um debate para mudanças estruturais no formato de gestão estabelecido. Prisão Pendular, Dia 21: Querido Diário, Depois de muito seguir conversando através de cartas entre as seções da Prisão Pendular, conseguimos juntar diversas criaturas pensadoras que se uniram à nossa causa e manifesto sócio-cultural, contribuindo com ideias e apontando contradições e possibilidades. Esse processo também juntou alguns guardas de outras seções que agora estão pensando conosco inclusive sobre o sistema prisional e como ele não faz muito sentido e não traz uma real mudança social do jeito que está sendo aplicado.

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Acabamos esquecendo um pouco de planejar uma forma de fuga e nos demos conta de que precisamos retomar esse pensamento ao mesmo tempo em que mantemos nossas leituras e debates avançando. Prisão Pendular, Dia 24: Esperançoso Diário, Descobrimos, utilizando a lógica das informações que temos que, para conseguirmos fugir, precisaríamos de uma ação coordenada extremamente elaborada que não temos capacidade de executar neste momento e com nossos atuais recursos. Vamos seguir atentos e desenvolvendo nossos aspectos intelectuais confiando naquelas que, agora supomos, conseguiram escapar da emboscada a que fomos vítimas. Lundra.. pensei em te escrever uma carta de despedida caso a gente não se visse mais e deixar ela nesse diário pra que talvez, um dia, pudesse te trazer essas minhas últimas palavras.. mas não, porque eu sei que mesmo sem ter ouvido você dizer que viria.. Você sempre vem.. Mesmo quando não vem. Prisão Pendular, Dia 43: Querido Diário, Estamos livres! - 169 -


Capítulo 31

Segunda Chance Depois de ter sido demitido de sua antiga empresa de viagens por ter se revoltado contra o roteiro que deveria apresentar e na qual realizava o trabalho de guia turístico durante os translados entre as ilhas do Arquipélago de Pedra, a gaivota chamada Zízar buscou refúgio em lugares que lhe permitiriam desenvolver e desabrochar seus dons artísticos. Iniciou sua busca em agências de talentos, mas logo percebeu que haviam outros aspectos mais importantes do que simplesmente sua aptidão artística, começando pela tendência de tratar seus integrantes mais como modelos que como atores e por ver que a quantidade de seguidores que se tinha em suas redes sociais e de influência eram mais valiosas do que a sagacidade, perspicácia, prontidão, brilhantismo, dedicação ao ofício e qualidade geral na criação e execução de obras. Em seguida, buscou grupos artísticos independentes e percebeu que, parte deles, tinha muita resistência em abrir oportunidades para novos integrantes e que se mantinham fixos em seus seletos artistas pioneiros. Com isso, seguiu seu caminho atento a outras possibilidades e começou a compor canções, escrever poemas, criar enredos para peças, desenhar e produzir seus próprios trabalhos. Iniciou com uma pequena apresentação mais intimista, mesclando contos que colheu e enfeitou - 170 -


durante suas viagens com canções que compôs também durante elas. Por falar em suas viagens, ao perceber a visível dificuldade de adentrar os espaços que almejava inicialmente, e também ao perceber a limitação que alguns deles o acarretaria, partiu em viagens por todo o Arquipélago para acumular referências e inspirações. Durante suas inúmeras viagens, aproveitava os momentos de trajeto entre as Ilhas, dentro dos navios onde anteriormente havia trabalhado, para colher histórias e conhecer criaturas diferentes, utilizando o seus recém desenvolvidos carisma e autoconfiança, visto que agora estava em uma busca a qual não apenas acreditava, mas que lhe fazia muito feliz, lhe trazendo essas novas habilidades. Entre uma dessas diversas viagens, encontrou um grupo com duas gatas que lhe atiçou uma parte da memória. Chegou perto delas, que estavam utilizando um capuz cada, nitidamente tentando manter a discrição, e falou baixinho: - Acho que tenho lembrança de já ter encontrado com vocês. As gatas trocaram olhares entre si e com as companheiras salamandras e a coruja, que começou a fazer um movimento como se fosse invocar um dos livros que carregava para acertar a gaivota que havia se aproximado, no que Lundra fez um sinal para que ela aguardasse um pouco mais.

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- Eu acho que também me lembro de você - ela disse. - Quando chegamos nesse mundo e fizemos o trajeto entre a Ilha de Pedra e Turquoise você era o nosso guia. - Exatamente - ele respondeu. - Achei que ninguém havia me notado naquela viagem. - Eu notei, percebi que você não estava muito contente com o roteiro que estava declamando. - Exatamente! Ele era muito ruim - falou rindo. - Demais - respondeu Lundra, rindo junto. - Mas eu percebi que você tinha pensado exatamente isso e que alguma fagulha efervesceu dentro de ti. - Que frase bonita, uma fagulha efervescendo. - Não sei se é possível uma fagulha efervescer. - A sonoridade é boa, acho que podemos apostar no elemento da licença poética e buscar algum elemento metafórico para que seja validada como arte da palavra. - Realmente podemos sim! Eu me interesso muito pelo mundo artístico na verdade, acho incrível. - E já pensou em participar de alguma obra artística e levar esse teu interesse pra um outro nível? - Pensar, assim, até pensei sim.. - Ela vivia criando cenas em frente ao reflexo dela na fonte que tínhamos - se intrometeu Menphis. - Que interessante! - retomou a gaivota. - Então não era apenas um pensamento, mas algo que já estava se manifestando em ti. - E eu me divertia muito admirando, um dom fabuloso para comédia, na minha humilde opinião.

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- Menphis! - clamou Lundra, um pouco envergonhada com as considerações da amiga. - Lundra! Não é você que sempre acreditou em buscar nossos sonhos pra além das estrelas e acreditar em possibilidades impossíveis? - Vejo que temos duas poetisas lado a lado comentou Zízar. Ambas riram e se olharam com um ponto de interrogação no olhar e pensando que “talvez seria muito divertido viajar o mundo numa trupe artística”. - Agora, antes que eu esqueça de perguntar, vocês comentaram que no primeiro dia “quando chegaram nesse mundo”, se me recordo a frase corretamente. De que mundo vocês vieram? - Ah, nós viemos... - iniciou Lundra, sendo interrompida pelo sinal de Kyrily apontando o local da incursão que deveriam fazer. - Acho que vamos ter que deixar essa conversa pra outra hora. E saltaram todas no mar, iniciando o desvio de curso para chegar na Prisão Pendular e salvar seus amigos. Zízar não entendeu muito bem a situação mas achou muito curiosa tanto a conversa quanto o desfecho inesperado dela, torcendo para um dia encontrá-las de novo e descobrir o que de fato estava acontecendo.

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Capítulo 32

Arsenal Subaquático Quando saltaram no mar, muito certas e conscientes de suas funções na inserção que fariam na Prisão Pendular, não esperavam certos contratempos em seus planos. O frio da água não chegou a ser um grande problema, pois estavam protegidas por roupas subaquáticas térmicas que conseguiram segurar um pouco do frio que lhes assolaria. Cada uma delas tinha consigo, também, um respirador muito útil, visto que nenhuma delas respirava embaixo d'água, o que se tornou uma parte imprescindível desse primeiro momento do resgate. Seguiram nadando, em diferentes qualidade de movimento mas razoavelmente treinadas, até alcançar uma grade que seria a entrada inferior da prisão e sua única forma de acesso real. Protegendo a entrada, haviam dois peixes guardas que teriam, com certeza, muita agilidade nesse ambiente. Kyrily sacou sua espingarda de bolhas, um item que haviam desenvolvido especialmente para esse momento, e se escondeu atrás de um grande recife de corais, que estava mais abaixo da posição dos guardas, e se preparou para atirar. Lundra, Menphis e a Coruja aguardaram um pouco mais afastadas, escondidas em outra parte dos corais, aguardando o sinal dela. - Alvo avistado, amor - disse Kyrily no rádio para Hermessim, que acompanhava a inserção no laboratório - 174 -


em Rubicântigo juntamente do Grande Livro de Lendas através de câmeras acopladas aos respiradores que as quatro estavam usando. - Alou, alou, alou, minhas queridas invasoras! respondeu o Grande Livro. - Não fique interrompendo nossa comunicação, Livro! Cada instante é muito importante nesse momento, não podemos nos distrair falando mais do que o necessário e sendo divertidinhas, precisamos de total objetividade e muito foco e concentração e não de palestrinhas aleatórias que eu sei que você costuma fazer, eu vou ficar de olho, veja bem, mas sim, pode ficar junto aqui vendo a invasão delas porque vai ser muito divertido e vamos por em teste os nossos novos equipamentos e eu estou muito empolgada! - apontou Hermessim, nitidamente divagando excessivamente após ter apontado a necessidade da objetividade do momento. - “Por em teste os equipamentos” você disse? perguntou Menphis pelo rádio. - Detalhe, detalhe, tá tudo funcionando muito bem, na teoria tá tudo seguindo como o esperado - respondeu Hermessim. - Quando algo sair segundo o que não for esperado lembre de nos avisar com alguma antecedência então. - Claro, pode ter certeza, estou monitorando tudo aqui, desde o nível de oxigênio, presenças nos arredores, carga dos equipamentos, tudo sob controle! Kyrily aguardou pacientemente até que todas fizessem seus apontamentos e retomou: - 175 -


- Alvo desavistado, amor. Mas avistei um novo, caso esse interesse um pouco mais a atenção de vocês. E oi, Livro! Que bom que você está nos acompanhando, lembre de escrever muito bem o que acontecer aqui pra termos essa história pra posteridade. - Sem dúvida nenhuma! Pode contar comigo, estou duzentos por cento atento, será uma obra magnífica, monumental, colossal, histórica e muito gostosa de se ler! Uma pena tinteira mágica surgiu de entre as páginas do Grande Livro de Lendas de Rubicântigo e começou a anotar de maneira flutuante tudo que acontecia, com alguns floreios e liberdades poéticas, diga-se de passagem, mas muito bem escritas. Com certeza, entre os diversos Grandes Livros, este era um dos que se permitia uma maior liberdade estilística em seus relatos, mas sem perder a veracidade dos fatos. - Pode disparar - autorizou, finalmente, Hermessim a Kyrily. A arma utilizada por ela era extremamente específica para utilização debaixo d'água pois disparava bolhas de ar condensadas, ou seja, em terra firme sua atividade principal seria, no máximo, servir como ventilador para dias de calor intenso que precisassem de uma corrente contínua de ar para diminuir a sensação térmica de se estar próxima a um vulcão. Porém, em uma situação como a que se apresentava no momento, ela era extremamente útil, com uma tecnologia surpreendente.

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Ao apertar o gatilho, a arma produziu uma bolha do tamanho de uma bola de basquete que disparou em direção a um dos peixes-guarda e o atingiu na cabeça, fazendo com que ele levitasse através do mar em direção a superfície. Importante apontar que as criaturas marítimas deste mundo também possuem a habilidade de respirar ar, podendo viver tanto na sociedade em terra quanto no mar, de forma que esse processo causou apenas um desconforto no guarda quando este pensou “lá se vai meu prêmio de funcionário do mês depois dessa, aiai”. - Boa, garota! Um excelente disparo! - bradou o Grande Livro efusivamente. - Nada menos do que o esperado de nossa grande Kyrily, que será eternamente lembrada como nosso ás da distância, a pontaria certeira, a grande mestra da arma de bolhas! Kyrily, a Embolhadora! - Eu espero que você tenha outras opções além de “a Embolhadora” - apontou Kyrily pelo rádio enquanto disparava contra outro peixe-guarda. - Posso pensar em outras opções, mas acredito que logo mais você vai começar a gostar desse título. - Talvez possa me acostumar - e disparou contra o terceiro peixe-guarda, encerrando as atividades de segurança externa do local em uma fração de segundo. Com a ameaça de serem descobertas anulada, avançaram em direção a grade de proteção que era a entrada e iniciaram um extremamente complicado sistema de desabilitação de trancas. O equipamento que seria prontamente utilizado era carregado pela Coruja, como uma mochila, pois era o mais pesado e suas asas - 177 -


conseguiam criar uma boa força de impulsão debaixo d’água, compensando o peso e mantendo a unidade de velocidade e furtividade da equipe. Ao ser conectado a grade, a mochila de metal cheia de engrenagens começou a se transformar e abrir diversos compartimentos por onde saíram pequenos braços mecânicos que iniciaram um processo paralelo de tentar destrancar os inúmeros cadeados, trancas e fechaduras, enquanto tentava encontrar a melhor forma de romper as grades com serras e lasers. O que acontecesse primeiro já estava valendo, sem muito critério, o importante era mesmo o tempo ganho, então podemos dizer que iniciou uma corrida entre a parte da mochila que tentava resolver a tranca e a parte dela que tentava cortar as grades e, claro, o Grande Livro não deixou essa oportunidade passar: - O embate do século começou! De um lado da mochila mecatrônica temos os Destrancadores e do outro os Cortadores! Quem sairá vitorioso desse embate? Façam suas apostas enquanto ainda há tempo! Ambas as funções estão gastando um bom momento analisando suas opções, calculando a melhor rota de inserção para começar seu embate! A Coruja parece um pouco incomodada com a minha narração então vou ficar em silêncio - conclui sabiamente. - Na verdade não é um embate, Livro, elas estão trabalhando em conjunto para definir o melhor plano de ação e não gastar tempo e recursos sem necessidade apontou a Coruja.

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- Exatamente, por favor, não nos coloque como rivais, nós somos parceiras - respondeu a Mochila Mecatrônica, com uma mensagem coletiva de todas as suas inteligências artificiais internas. - Oh, claro, desculpem, vou refrasear, fui levado pela empolgação e tensão do momento, mas agora entendi o que está acontecendo - compreendeu o Livro. - Nós somos uma equipe, precisamos atuar como um organismo só nesse momento, lembre disso, querido amigo - concluiu a Coruja. O Grande Livro percebeu, nesse momento, que a história tem sido carregada sempre pelos conflitos, pela narrativa das guerras e dos grandes desbravadores e conquistadores. Por aqueles que lutam e são agraciados com a glória histórica por terem sido vencedores, normalmente de batalhas que sequer precisariam ter acontecido. Essa percepção fez o Grande Livro perceber que ele era grande apenas no nome, pois estava retratando a história da mesma forma que sempre se fizera antes, através do conflito, do drama, do ponto de vista que mostrasse a luta. Mas nem tudo é luta, percebeu. Muito se alcança pelo amor e pelo trabalho em conjunto, pela tentativa de se fazer algo pensando não na glória pessoal, mas no coletivo e na comunidade. Ele percebeu que deveria narrar não só os conflitos e dramas, mas também aquilo que era calmo, coerente, tranquilo e pacificador. Mostrar em suas páginas não só a tristeza e tragédia do mundo que cria heróis que foram monstros, mas também a sutileza daquilo que mudou o mundo em sua utopia e tranquilidade. - 179 -


Ele percebeu que poderia sim, escrever páginas onde ações não violentas inspirassem uma mudança de pensamento e não o ímpeto de conquista e glória. O Grande Livro, neste momento, retirou de si a alcunha de Grande, pois era prepotente se proclamar assim, e passou a ser apenas o Livro de Lendas de Rubicântigo, ainda refletindo sobre o conceito de Lendas, pois nele também percebeu que Lendas são criadas como algo fora da realidade. Enquanto o Livro se degladiava internamente em uma crise existencial e de identidade, a Mochila Mecatrônica havia concluído sua análise e decidiu que utilizaria seus mega processadores para simplesmente destrancar a grade, pois percebeu que apenas uma das trancas era real, enquanto as outras eram armadilhas que ativariam alarmes e possivelmente bombas. Ao descobrir a tranca real, iniciou um processo intrincado de entender o complexo sistema de segurança interna e código de acesso. Depois de um minuto de calculados movimentos com seus diversos bracinhos mecânicos, a entrada estava aberta, a mochila voltou para as costas da Coruja e elas seguiram adiante em sua missão de resgate.

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Capítulo 33

Parcelamento de Si Agora me encontro em um momento bastante complexo: como explicar a Prisão Pendular em palavras de forma que ela seja compreendida e possivelmente visualizada por quem lê? Já sei! Vamos voltar um pouco no tempo para acompanhar um diálogo muito específico onde Hermessim e Kyrily tentaram realizar essa proeza: - Bom, vamos lá - começou Hermessim. - Nossa missão consiste em uma incursão furtiva por uma das entradas subaquáticas da Prisão Pendular. - Na verdade só existem entradas subaquáticas complementou Kyrily -, então não temos muita escolha nesse sentido, podemos apenas definir qual das entradas utilizaremos. - E como decidimos isso? - perguntou Menphis. - Aleatoriamente - respondeu a Coruja, com um suspiro de quem já sabia por onde essa conversa iria. - Exatamente - retomou Hermessim -, mas não pelo motivo que possa parecer. Vejam bem, a Prisão Pendular é uma ilha que na verdade é uma montanha que há tempos atrás foi um vulcão. - Isso não parece nada promissor - sussurrou Lundra. - E não é mesmo.. - sussurrou de volta a Coruja.

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- E dentro dessa montanha ex-vulcão - continuou Hermessim -, temos inúmeros túneis e cavernas interiores que levam as gaiolas onde os prisioneiros estão. A grande questão é que eles estão e não estão ao mesmo tempo nos lugares onde eles deveriam estar. O silêncio se instaurou por metade de um minuto, também conhecido como trinta segundos, enquanto as cientistas esperavam alguma pergunta. Mas as gatas decidiram, mutuamente, aguardar a conclusão da explicação para surtarem posteriormente de uma vez só e não ir parcelando mini infartos. Kyrily assumiu a explicação nesse ponto: - O que acontece é que, ao ser trancafiado em uma das gaiolas de lá, cada prisioneiro é fragmentado entre todas as gaiolas, de forma que se abrirmos apenas uma, o fragmento que estiver nela vai ser redividido entre as outras gaiolas da instalação. - E, só por curiosidade, de quantas gaiolas estamos falando? - perguntou Lundra. - Umas duzentas e trinta e oito, pelos nossos cálculos estimados. - Mas nós temos tudo isso de equipe disponível? - Na verdade não temos. - Então isso quer dizer que.. - Iremos apenas nós quatro, vocês duas, eu e a Coruja, numa missão furtiva de incursão. E como todos os prisioneiros estão fragmentados em todas as gaiolas suspensas, nós precisamos abrir todas elas ao mesmo tempo. - 182 -


- E como a gente vai fazer isso com apenas quatro de nós entrando lá? - interveio Menphis, já percebendo pra onde a conversa caminhava. - Não me diga que.. - Se você quiser que eu não diga eu não digo respondeu Kyrily. E não disse. - Então a gente acabou de voltar de uma experiência de fragmentação e vocês querem que a gente se fragmente outra vez? - continuou Menphis. - Exatamente isso! Coisa simples, de boa respondeu sorrindo efusivamente Kyrily. - Vai ser uma experiência incrível! Lundra fixou seus olhos nos de Menphis, tentando perceber sinais de seus pensamentos, e tiveram uma conversa mental através de olhares e expressões faciais que pode ser traduzida em palavras mais ou menos como: Leve levantamento de sobrancelhas de Lundra instigando a pergunta “O que você acha?”, recebendo como resposta uma compressão de lábios de Menphis que evocava um “Acho que não temos escolha”, que foi prontamente respondido com um leve baixar de cabeça e olhar para o chão que trazia a tona um reflexivo “Não temos mesmo” que inspirou um balançar de cabeça veemente trazendo um potente “Então vamos!” concluído por uma resposta similar de balançamento de cabeça, porém mais sutil, encerrando um “Vamos sim”. Nesse meio tempo interno delas, Hermessim, Kyrily e a Coruja seguiram comendo alguns biscoitos e tomando chá, despreocupadamente. Elas já sabiam a resposta. - 183 -


Capítulo 34

Invasão Descoordenada Quando finalmente adentraram no saguão principal da Prisão Pendular, saltando de dentro d’água para um espaço amplo de uma caverna subterrânea, perceberam que deveriam agir ainda mais rápido do que imaginaram pois, quase instantaneamente depois de sua entrada, o alarme foi acionado, levando por água abaixo (hahaha!) toda parte furtiva do plano de incursão. Mas não havia nada a fazer além de seguir com o planejado da forma mais prática e rápida possível, confiando nas habilidades de cada uma das integrantes deste curioso e muito bem preparado grupo. O local onde estavam agora tinha diversas aparentes poças de água, que na verdade eram túneis aquáticos que levariam para as diversas outras subcavernas onde as gaiolas suspensas se encontravam. No reflexo, ao perceber a aproximação de diversos guardas do local, Kyrily tomou posição e começou a disparar sua arma de bolhas, que agora, em um local com ar abundante, se transformara em uma espingarda de hiperpressão de vento, disparando lanças de ar que derrubavam aqueles que tentavam se aproximar delas. Ao mesmo tempo, a Coruja acionou uma segunda função de sua Mochila Mecatrônica, que se transformou em um casulo de ampliação de poder para que a Coruja pudesse executar sua parte no plano, que consistia em utilizar sua habilidade de desfragmentação de

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consciência para que pudessem liberar todas as gaiolas ao mesmo tempo na maior velocidade possível. O poder da Coruja, como vocês podem até imaginar, sempre lhe foi muito útil para acumular conhecimento, lhe permitindo particionar sua consciência e ler diversos livros ao mesmo tempo sem perder a capacidade de absorver suas informações. Apesar de ser uma habilidade que utilizou apenas para si, depois de muita pesquisa e estudo com Hermessim e Kyrily, descobriram como ampliar sua capacidade para outrens além dela mesma. E esse era o plano. Utilizar a Mochila Mecatrônica como amplificadora para que a Coruja pudesse desfragmentar Lundra e Menphis de forma que elas pudessem encontrar todas as subcavernas e destravar todas as gaiolas. Como Lundra e Menphis haviam sobrevivido ao suporte surrealista da Ilha Artificial de Enteronigma, elas duas eram as únicas capazes de manter essa conexão ancoradas com a Coruja sem se perder no absurdismo das múltiplas consciências. Quando a Mochila Mecatrônica concluiu sua mudança de forma para servir de amplificador, a Coruja fechou os olhos desejando “Boa sorte!” para as agora amigas e deflagrou a desfragmentação de corpo e consciência de Lundra e Menphis, que se multiplicaram em dezenas de versões paralelas delas mesmas, tornando-se espectros semi corpóreos flutuantes que se lançaram em todos os canais de água que as levariam até as gaiolas suspensas onde poderiam encontrar seus amigos e antigos inimigos. Essa partição fez as duas gatas terem apenas um - 185 -


objetivo semiconsciente guiado pela Coruja, o de libertar quem encontrassem atrás das grades, e assim o fizeram. Cada um dos espectros alcançou uma das gaiolas, depois de atravessar os túneis aquáticos que levavam até elas, e as abriram, retornando imediatamente para onde estava a Coruja, que era sua âncora na realidade objetiva. Cada gaiola que era aberta, causava um pendulamento entre todas as outras, modificando a localização de seus habitantes temporários. Ao perceber o que estava acontecendo, em função do alarme disparado e de seu entendimento do funcionamento do local, o Morcego, que estava naquele momento com Narai, o alertou: - Vocês estão prestes a ser libertados, se preparem pra nadar através desse túnel d’água e, logo mais, acredito que estarão de volta ao lugar que deveriam estar. - Venha conosco - pediu o Gato. - Não - respondeu o Morcego -, é melhor que eu fique pois depois disso seremos todos realocados em diferentes frentes de combate e eu posso agir como um espião pra vocês, enviando informações que possam ser úteis pra que alguma coisa mude nesse mundo. - Você tem certeza disso? Imagina o perigo! - Como se vocês não fossem ser caçados loucamente por toda Ilha de Pedra. Se pensar bem, é possível que eu esteja mais seguro que vocês. - Agora vendo por esse lado, é uma possibilidade.. - Então aceita e vai, chegou a hora. E um dos espectros semi corpóreos de Lundra surgiu do túnel de água, abrindo a gaiola onde estava Narai, - 186 -


que teve apenas um vislumbre das feições de Lundra antes dela retornar, de pronto, para o túnel d’água. Narai acenou um último adeus para o amigo que havia feito ali e saltou. Quando todas as gaiolas foram abertas, a Prisão Pendular simplesmente desligou, dando por encerradas suas atividades e aguardando o reinício de seus sistemas. Alguns instantes depois desse acontecimento, os agora libertos prisioneiros chegaram ao saguão principal da caverna subterrânea onde a Coruja e Kyrily estavam mantendo a posição. - Nós não temos tempo de explicar agora - gritou Kyrily -, só dancem conosco! Depois de tanto tempo presos e trocando cartas filosóficas e pensando sobre o mundo e suas atribuições éticas e morais, não houve dúvida nenhuma em ninguém sobre como agir. Lazul, Elo, o Corvo, a Mariposa e o Quetzal cercaram a Coruja e começaram a ajudar Kyrily a impedir o avanço dos guardas do local. Cada um lutando com suas habilidades enquanto Lundra e Menphis iniciavam o processo de desfragmentação, retomando suas formas físicas completas. Quando Narai finalmente chegou viu o final desse processo, as dezenas de Lundras se reunindo em apenas uma e despertando novamente, vendo ele chegar. A Mochila Mecatrônica, ao perceber que ambas as gatas já estavam novamente inteiras, desfez sua forma de casulo que cobria a Coruja e voltou a se alocar nas costas dela, que olhou rapidamente para Kyrily e sorriu, vitoriosa, antes de desmaiar. A Mochila lançou para cada um que ali - 187 -


estava um pequeno respirador e fez com que quatro patas mecânicas saíssem de si, o que a permitiu carregar a Coruja, ainda desacordada, e se lançar na passagem subaquática novamente, iniciando a fuga. Enquanto cada um dali mergulhava na passagem, Kyrily e o Corvo mantiveram a posição, protegendo os demais, até o último momento possível, mantendo os guardas, que ainda surgiam, afastados com seus disparos de pressão de ar e penas de sono. - Chegou a nossa vez - apontou Kyrily. - Quando quiser - respondeu o Corvo. - Agora! - gritou Kyrily, esperando o Corvo saltar primeiro para poder lançar uma bomba de argamassa antes dela mesma saltar, que explodiu, expandiu e selou a saída para que não pudesse ser seguida. Guiados pela Mochila Mecatrônica que carregava a Coruja desacordada, subiram até a superfície onde um outro barco, da mesma companhia que as havia levado até ali, passava. - Opa! Precisam de carona? - perguntou o piloto. - Adoraríamos! - respondeu Kyrily. - Pra onde vão? - Pra longe daqui, em direção a Rubicântigo! - Então podem subir, passaremos por lá logo mais. - Agradeço infinitamente! - Não por isso! Mas ainda assim eu vou cobrar a passagem. Afinal, esse é um navio turístico e logo mais um showzinho de jazz instrumental vai começar e está imperdível! - 188 -


- Nada mais justo, só nos tire daqui, por favor concluiu Kyrily, finalmente se permitindo respirar com algum pingo de alívio, mas não muito, pois a Coruja parecia estar pior do que elas imaginaram que ficaria depois de todo o estresse de ser a âncora de consciência das duas gatas. Ainda não era o momento de comemorar.

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Capítulo 35

O Chá das Onze Longe de toda turbulência que haviam passado durante o resgate e da viagem de barco até Rubicântigo, que contou com uma belíssima apresentação de jazz de fato, muitos pontos ficaram abertos para serem esclarecidos, apesar de ainda ser de noite. Quando saltaram em Rubicântigo, despedindo-se da banda e do capitão da embarcação, uma Morsa muito simpática com longos e belíssimos dentes caninos, perceberam o desgaste físico e mental de todos e o quanto esses quase cinquenta dias haviam sido penosos para cada um daqueles que ali estavam. Os olhares, apesar de trazerem a alegria de estarem livres e de terem seus amigos resgatados, ainda assim traziam muitas preocupações. Durante toda a viagem de barco, o Corvo não saiu um instante sequer de perto da Coruja, mantendo controle de seus sinais vitais e a mantendo aquecida, tanto quanto possível. Quando entraram, finalmente, na residência de Hermessim e Kyrily, pararam por um instante e suspiraram de alívio, soltando todo ar de tensão que haviam guardado até o momento por todo esse tempo. - Sejam bem vindos de volta, vamos preparar um chá com biscoitos logo mais - cumprimentou Hermessim. - Onde eu coloco ela? - perguntou o Corvo com a Coruja nos braços. - 190 -


- Por aqui - apontou Kyrily, guiando o Corvo até o mesmo quarto onde Lundra e Menphis haviam permanecido enquanto estavam em Enteronigma. O resto dos recém-chegados se dispersou pelo espaço, buscando um lugar confortável para sentar e descansar depois de toda ação que haviam enfrentado. O Livro de Lendas, agora não mais Grande, começou a preparar a lareira e a tentar acender o fogo, sendo prontamente impedido por Hermessim que percebeu que, apesar da boa vontade do Livro, uma criatura feita de papel não deveria tentar acender lareira nenhuma visto o perigo iminente para suas páginas altamente inflamáveis. - Deixe que eu faça isso, Livro - interrompeu -, por favor tome nota dos relatos que ouvir aqui. - Com certeza! Pode contar comigo! E se abriu novamente em seu pedestal, fazendo a caneta tinteira flutuar pelo ar, preparando-se para escrever em sua sublime caligrafia o que viria a seguir: “Antes de tudo, o silêncio. Enquanto o Corvo deita a Coruja na cama onde ela vai repousar não ouço outro som além daqueles de Hermesim separando os talheres e louças do preparo do chá que faremos com bolos de cenoura, doces e sucos que já tínhamos preparado antes do resgate. Narai e Lundra estão abraçados desde que chegaram, da mesma forma que a Mariposa e o Quetzal. O Corvo e Kyrily acabam de retornar do quarto e estão ajudando Hermessim a preparar a mesa para o chá. Enquanto isso, Elo parece estar fazendo uma bebida - 191 -


diferente, misturando diversos ingredientes curiosos e os aquecendo no fogo, também sem ter dito palavra alguma desde que chegou. Agora, com a mesa totalmente posta, todos se aproximaram e se sentaram em torno dela, aguardando Elo terminar de preparar seja lá o que esteja preparando, mas se juntando ao resto, pouco depois, colocando um frasco com a bebida que fez no centro da mesa, sendo a primeira criatura a falar algo:” - Por favor, coloquem duas gotas dessa poção no chá de vocês. Isso fará com que se aqueçam mais rápido e com que o corpo de vocês se regenere melhor de qualquer possível hipotermia. - Vou aumentar a potência do aquecedor então, quem sabe ajude um pouco também - prontificou-se Kyrily. Enquanto isso, o chá foi sendo servido, pequenos pratos com bolo e doces foram montados, com cada criatura pegando o que queria na mesa posta. À medida que foram enchendo seus pratinhos, os olhares consternados foram dando lugar a uma mistura de determinação, calma e foco. Quando adicionaram a poção de Elo em suas bebidas, puderam perceber que a respiração de todos tomou outro ritmo, aos poucos fazendo com que se sentissem entre amigos. Começaram a trocar olhares e sorrisos enquanto comiam e bebiam, sentindo-se seguros nesse momento e, ao mesmo tempo, sabendo que ele logo mais terminaria, pois conversas sérias deveriam iniciar. Mas não agora. Agora era o momento de ter a certeza que toda resiliência e a crença uns nos outros era - 192 -


realmente poderosa. Dali em diante, muito mais haveria de acontecer, pois durante todo o tempo em que estiveram presos puderam descobrir muito sobre esse mundo e o quanto ele precisa de ajuda pra se tornar um lugar justo e feliz de se viver. Mas não agora. Só mais um pouco de sorrisos, por favor, um pouco mais desse sentimento de entre partes, de fim de capítulo que traz a resolução de algo. Um pouco mais de felizes para sempre antes que outro fim de mundo comece. Ao contar essa história, sinto muito mais do que essas personagens sentem do que aquilo que tenho espaço para contar. E dói em mim como dói nelas porque há em mim o poder de interferir, mas não o direito de fazer isso. Então eu peço, não sei a quem ou a o que, que lhes dê um capítulo de folga pra que recolham seus pedaços e recomponham as partes de seus eus porque ali há heróis e heroínas que eu sei que não vão fugir de lutar. Um capítulo de folga, acho justo e merecido. Mas só um. Porque depois.. o que vem depois não poderia ser nada menos que revolução.

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MAURÍCIO FÜLBER - AUTOR Escritor, músico, professor de filosofia e diretor de teatro e cinema, começou sua carreira oficialmente em 2014 com a peça teatral “As Cinco Pontas de uma Estrela Torta”, assinando texto e direção, com a qual realizou 60 apresentações para um total de 11 mil espectadores, além de participar de 15 festivais, conquistando mais de 20 prêmios entre as quase 70 indicações que a peça acumulou. “Pela Voz de um Gato Pardo”, lançado em 2022, é seu romance de estreia, onde mistura diversas influências para construir uma aventura divertida e reflexiva para falar sobre o mundo real através da fantasia. Redes Sociais: @mauriciofulber @estudiofulber Outros Links: http://linktr.ee/estudiofulber Contato: estudiofulber@gmail.com VERGÍLIO LOPES - CAPA E ILUSTRAÇÕES Artista plástico, ilustrador, músico, poeta e diretor de arte, iniciou seus trabalhos artísticos em 2014 dentro do ramo da publicidade em paralelo com projetos autorais, passando a trabalhar principalmente com artes para espetáculos e livros. Redes Sociais: @vergiliolopes @xicaradetinta Site: www.vergiliolopes.com

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Este livro foi lançado no ano de 2022, produzido a partir do financiamento do Funcultura NH, programa de fomento à cultura do município de Novo Hamburgo, tendo seu registro de direito autoral sido efetuado no mesmo ano.

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