antologia_poesia 21

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mais que o nosso próprio sangue. Fizeram-nos respiratórios, esquinados pelo desejo e pela fome. Corpos fracturados – presa fácil. A força com que cada um de nós, reduzido às braçadas, abre caminho na gordura da experiência. Olhar em volta e sentir que tudo é contrafeito, que parte de nós se falsificou por cumplicidade. Agora há que denunciar tudo, fazer um auto, livrar-se dos espelhos automáticos. Sofro o desejo de uma droga cuja flor ardeu. Não existe mais, não há substitutos. Resta-me tremer. Ouvir a minha própria voz. Usar para esse efeito carruagens de comboio. Arrecadações. O interior de uma lanterna. A destruição é uma prerrogativa do desejo. Esta fúria de puxar um corpo e resumi-lo à sua posição. Isto é, abrandá-lo aos repelões. Segurar o bisturi da minha própria sombra e não falhar. Como um veneno, a minha vida começa a actuar. Não é de repente. É ir perdendo os dedos, os braços, cada vértebra – a ortodoxia do corpo. O que eu habito é a minha vulnerabilidade. Em poesia, o sentido é o corpo intacto dentro do veículo sinistrado. Ferro contorcido e carne verbal, guardada em segredo. O poema é desencarcerar-se. § DO PRINCÍPIO E DO FIM é uma fala reduzida, quase silêncio: quando as primeiras nuvens habitaram o céu, os animais reuniram-se nas margens dos rios e esperaram até que a água reflectisse o rosto da mãe fundamental que os iria ensinar a sobreviver às chuvas o mistério não pede que o expliques o mistério pede que sejas misterioso

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