nanoescritas_antologia de micro-ficção portuguesa

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[ nanoescritas ] antologia de micro-ficção portuguesa: 24 vozes para 24 cigarros…

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MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA ANA HATHERLY

ANTÓNIO TORRADO RUI MANUEL AMARAL HENRIQUE MANUEL BENTO FIALHO GONÇALO M. TAVARES LUÍS ENE PAULO CONDESSA PAULO KELLERMAN FILIPE NUNES VICENTE JOSÉ MÁRIO SILVA PAULO RODRIGUES FERREIRA AFONSO CRUZ AUGUSTO MOTA CARLOS QUEVEDO/RUI ZINK

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FERNANDO DINIS/FERNANDO GOMES/JOÃO CARLOS SILVA/ RAFAEL MOTA MIRANDA/SÓNIA DUARTE

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ADÍLIA LOPES ALBERTO PIMENTA ALEXANDRE O’NEILL

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Selecção, organização e nota prévia | Paulo Pires Maio de 2011 1


| [breve] NOTA PRÉVIA

A selecção aqui apresentada centra-se sobretudo em 16 autores contemporâneos que, pela sua regularidade, originalidade e qualidade criativas, são, na minha óptica, claramente incontornáveis no que toca ao panorama da micro-ficção em Portugal. A esse conjunto acrescentei algumas vozes que integraram a Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa publicada em 2008, bem como três poetas (haveria, com certeza, muitos outros exemplos que se poderia elencar) que, em vários momentos do seu percurso, também privilegi(ar)am o texto curto de pendor narrativo, sob a forma versificada ou não, casos de Alexandre O’Neill, Alberto Pimenta e Adília Lopes. O objectivo fundamental desta compilação é fornecer uma visão relativamente diversificada e panorâmica da produção literária ao nível da escrita breve em Portugal durante a 2.ª metade do século XX, nomeadamente a partir dos anos 90, enfatizando previamente o papel central e precursor que Mário-Henrique Leiria e Ana Hatherly desempenharam nesse âmbito, e, depois, a plêiade de autores que, inicialmente na blogosfera e/ou depois através de publicações impressas (como sejam os casos de Luís Ene ou Henrique Manuel Bento Fialho, entre outros), foi enformando e aumentando este dinâmico movimento em torno do género micronarrativo, o qual, porém, ainda é relativamente desconhecido de grande parte do público português, daí também a pertinência adicional da concepção e divulgação desta antologia. As composições aqui antologiadas abarcam várias temáticas, estratégias discursivas, formas textuais, influências e abordagens estilísticas (reflectindo assim a vitalidade, diversidade e “promiscuidade” deste género), tendo sido escolhidas também a pensar na possibilidade de utilização em contextos de promoção da leitura, quer com públicos (essencialmente jovens e adultos) pouco ou nada familiarizados com o universo dos livros, quer com leitores mais consolidados e dotados de maior background literário. Para complementar este quadro, e de modo a fornecer ao leitor um maior número de instrumentos de pesquisa sobre este tema, no final da antologia inseri uma listagem bibliográfica exaustiva de autores estrangeiros de micro-ficção traduzidos para a língua portuguesa, ordenados cronologicamente, bem como um corpus alargado de links para revistas, projectos colectivos, editoras, e-books e sites/blogues de autores nesta área, quer ao nível nacional, quer no plano internacional. A fechar, a voz de Gabriel Jiménez Emán: Convenço-me agora de que a brevidade é um fim em si mesmo quando leio uma linha e me parece mais larga do que a vida, e quando, depois, leio uma novela e esta me parece mais breve do que a morte. 2


[MÁRIO-HENRIQUE LEIRIA]

ÚLTIMA TENTAÇÃO E então ela quis tentá-lo definitivamente. Olhou bem em volta, com extrema atenção. Mas só conseguiu encontrar uma pêra pequenina e pálida. Ficaram os dois numa desesperante frustração. Não há dúvida que o Paraíso está a tornar-se cada vez mais chato.

RIFÃO QUOTIDIANO Uma nêspera estava na cama deitada muito calada a ver o que acontecia chegou a Velha e disse olha uma nêspera e zás comeu-a é o que acontece às nêsperas que ficam deitadas caladas a esperar o que acontece

JANTAR DE AMIGOS – A vida é um problema complicado – decretou Armindo o corrector, enquanto cortava com precisão mais um bocado de rosbife à sua frente. A luz discretamente tamisada do QUATRO ASES fazia realçar a transparência do vinho no copo alto, junto ao prato.

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– Não mais complicado do que qualquer outro – retorquiu Guilhermino, o xadrezista que, no lado oposto da mesa, se limitava a um puré de legumes e queijo de soja. Era vegetariano. E também GRANDE MESTRE. – Desculpem a interrupção – permitiu-se dizer o maître com uma leve inclinação, aparecendo junto à mesa. – Mas creio dever informar os senhores que, por um engano inesperado, o chefe da cozinha deitou no rosbife a estricnina que tínhamos para usar nas ratoeiras. É lamentável. Podem crer que a casa está sinceramente penalizada com o acontecimento. – Com um sorriso discreto e compreensivo, retirou-se deslizando e desapareceu entre o ruído animado da sala. Armindo estremeceu contra vontade. O rosto mudou-lhe um pouco. Para verde. E arrotou. Então teve um movimento em que parecia retorcer-se e começou a inclinar-se para o prato. – Realmente não mais complicado do que qualquer outro – insistiu Guilhermino, enquanto desviava o copo para que o corrector não lhe acertasse com a cabeça. Levou à boca um pouco mais de puré de legumes. Com prazer. – Queiram desculpar-me ainda mais esta interrupção – disse o ‘maître’, reaparecendo-lhes ao lado e inclinando-se levemente. – Parece-me ser de minha obrigação informar os senhores que, por engano realmente impróprio, o chefe da cozinha deitou no puré de legumes o arsénico que estava destinado aos cães vadios. Permito-me afirmar que a casa lamenta e que isto não voltará a acontecer tão cedo. – Com o sorriso discreto retirou-se, deslizando até desaparecer entre as mesas murmurantes. Guilhermino, o xadrezista, ficou a olhar o espaço. Apenas a imaginar como conseguiria, só com um copo, o paliteiro e o saleiro, dar xeque à garrafa de Armindo, o corrector. Então sentiu a dor que, fulgurante, lhe subia dos intestinos. Pelo chão alcatifado começavam a estrebuchar clientes.

AMOR ESCREVE-SE COM ÁGUA Querida Acabo de receber a carta que me enviaste pelo cabo submarino. Vinha um pouco húmida, mas dada a enorme distância líquida que nos separa, é perfeitamente compreensível. Senti-me contente por te saber bem, assim como os pequenos, nessa calma profunda e silenciosa de que já tanta saudade tenho. O nosso trabalho, aqui, vai prosseguindo, lento mas eficaz. As falésias do litoral estão já suficientemente corroídas pelo nosso labor persistente, para permitir que as brigadas de chernes escavadores recentemente chegadas dos mares do Sul comecem a actuar em profundidade. 4


Também a infiltração e demolição nos rios se tem feito como convém, obedecendo com rigor ao plano estabelecido, tudo na maior ordem e sigilo, graças às informações de uma exactidão realmente admirável que os salmões exploradores nos têm fornecido. Creio que esta parte do continente em breve começará a oscilar, a desaparecer nas águas, o que marcará o verdadeiro início do Grande Salto para o Fundo. Segundo informações concretas que aqui obtive, fiquei a saber que as Brigadas de Choque dos tubarões-martelo estão já a concentrar-se nas zonas previstas. Isto, por enquanto, é segredo rigoroso como calculas, claro. Compreenderás, querida, quanto me custa o estar tanto tempo separado de ti e dos pequenos mas, quando todos nós sabemos que este esforço culminará na aparição de um mundo melhor em que as águas serão realmente limpas e seguras, a separação torna-se mais suave. Lembras-te da grande baleia branca que às vezes avistávamos aquando das férias que costumávamos fazer no Norte e a quem os pequenos chamavam de Tia Josefa? Pois trabalha agora connosco: dirige as equipas de ataque com icebergs, calcula tu! Apenas temos de lamentar certos golfinhos que se tornaram colaboracionistas, o que nos obrigou a expulsá-los. Felizmente são apenas casos esporádicos, talvez até recuperáveis. Como vês, estamos realmente trabalhando para um futuro em que os novos de todos os mares possam vir a ter uma vida livre e digna. Querida, despeço-me de ti com saudade mas, também, com orgulho. Diz aos pequenos que o pai os recorda constantemente. Tem cuidado com o Chuxo, ultimamente andava com as guelras inflamadas. Não lhe dês águas poluídas, é um perigo, bem sabes. Águas transparentes para ti, meu amor do teu Estêvão

EXAGEROS O Alfredo atirou o jornal para o chão, irritadíssimo, e virou-se para mim: – Estes jornalistas! Passam a vida a inventar coisas, é o que te digo. Então não afirmam que, no Sardoal, foi encontrado um frango com três pernas! Vê lá tu! É preciso ter descaramento. Ajeitou-se melhor no sofá e, realmente indignado, coçou a tromba com a pata do meio. 5


A FAMÍLIA Vamos à pesca disse o pai para os três filhos vamos à pesca do esturjão nada melhor do que pescar para conservar a união familiar a mãe deu-lhe razão e preparou sem mais detença um bom farnel sopa de couves com feijão para ir também à pescaria do esturjão e a mãe e o pai e os três filhos foram à pesca do esturjão todos atentos satisfeitíssimos que bom pescar o esturjão! que bom comer o belo farnel sopa de couves com feijão! e foi então que apanharam um magnífico esturjão que logo quiseram ali fritar mas enganaram-se na fritada e zás fritaram o velho pai apetitoso muito melhor mais saboroso do que o esturjão vamos pra casa disse o esturjão 6


REMODELAÇÕES GOVERNAMENTAIS – Podem sentar-se, meus senhores – determinou o Presidente aos Ministros que, atentos, o esperavam ao longo da mesa magnífica. E sentou-se também, no lugar que lhe competia. – Parece-me ser conveniente uma remodelação integral do ministério. Entre o silêncio respeitoso, o Presidente levou a mão discreta ao bolso interior do casaco. Tirou o apito e apitou. Três vezes. A porta da antiquíssima sala dos Passos Longos abriu-se. De par em par. A guarda presidencial entrou e abateu os Ministros com rajada de metralhadora competente. Todos. – Muito bem – confirmou o Presidente, levantando-se. O cabo Ludovino encostou a metralhadora à parede, com todo o cuidado. Esfregou o nariz, olhou em volta, sorriu e atirou o Presidente pela janela daquele quarto andar.

CASO ZOOLÓGICO O Avestruz realmente não estava nada bem. Via-se logo. Depois do trambolhão ficara a tossir e agora era aquilo. O director preocupou-se, não havia ninguém que percebesse fosse do que fosse. Então tomou a decisão. Vieram os melhores veterinários, por via aérea. Três de Chakinktoo (Pa.USA) e um da Bósnia-Herzegovina, que diz-se serem os jugoslavos muito entendidos no avestruz. As actividades legislativas foram suspensas. Esperava-se a observação e a análise. A Velha foi metida no cercado, para evitar que os visitantes dessem pela ausência do Avestruz. Era conveniente, nunca se sabe. – Nada a fazer – foi a decisão final do especialista da Bósnia. Os técnicos de Chakinktoo entreolharam-se e concordaram, num discreto movimento pesaroso de cabeça. – Mas não se amofinem, que vai continuar a acenar até ao fim. E, de vez em quando, ri – explicou ainda o especialista bosniano. Contritos, voltaram todos para casa, de avião. A Velha continuava a contentar os visitantes. Era um rico Zoo. O apreço geral à Velha foi votado e, entretanto, o Avestruz finava-se, discreto, ao tentar um último gesto inconveniente na tratadora. O luto nacional. A força armada destinou sem hesitar, a título póstumo, o bastão de Marechal ao Avestruz então desaparecido. A força desarmada compareceu, é evidente, no funeral magnífico.

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E, enquanto se processava o acto solene, foi decretada a obrigatoriedade de serem rigorosamente observados três minutos de contágio em toda a nação.

A CATA DO VENTO O cata-vento tem obrigações legais deve catar o vento portanto quando o vento passa diz-lhe logo atento espera aí preciso de te catar mas o vento sempre a passar tem outras coisas em que pensar não está para ser catado no ar e vai passando desatento ao cata-vento sem se importar com o tristonho catador de vento obrigado legalmente a catar o vento senta-se no telhado aporrinhado e sem vento para legalizar o seu direito de ser elemento respeitado pelos elementos sentado no telhado queixa-se isto não é vida 8


ANFIBIOLOGIA Ainda não conseguiu voltar à superfície e pôr outra vez a cabeça fora de água. Então deram-lhe mais uma bordoada com a pá do remo, sólida e certeira, bem no alto da cabeça. Ao mergulhar definitivamente, engolindo água e sentindo-se ir para o fundo, teve um último pensamento lúcido: “que felizes devem ser os anfíbios!”.

LIBERDADE EM SEGURANÇA Os réus entraram. Três. Fardados de azul. De escudo a tiracolo e viseira erguida. O juiz pôs a touca com um pequeno jeito da mão direita. Afirmou: – Levante-se o queixoso. O queixoso estava deitado. Não se levantou. – Tem alguma coisa a acrescentar quanto à sua arguição contra os réus? – insistiu o juiz, dando outro pequeno jeito na touca. O queixoso nada disse. Continuava deitado. – Dadas as circunstâncias atenuantes e outras, declaro os três réus inocentes. O queixo demonstra à saciedade ser provocador. E silencioso. Revolucionário alterante da ordem estabelecida. Destabilizador da liberdade em segurança. Que os réus, absolvidos, se retirem. Em segurança e liberdade. Os três réus perfilaram-se. Fizeram a continência com a mão direita. E saíram. Pela porta da direita. Saíram os meirinhos. Pela porta do fundo. E também o juiz. Já sem touca. Pela porta da frente. Saíram todos. O queixoso não. Estava deitado, como já tive oportunidade de informar. Com cinco tiros no baixo-ventre. E morto.

GIN SEM TÓNICA Uma garrafa de gin estava a preocupar o pescador a garoupa e o rodovalho não tinham aparecido pró jantar que fazer? telefonou ao ministro 9


da Pesca e do Trabalho mas o ministro estava a trabalhar na cama com a mulher foi então que a garrafa de gin sugeriu discretamente porque não telefonar ao presidente? telefonaram o presidente da nação estava em acção na cama com a mulher nessa altura até que enfim encontraram a solução o pescador foi para a cama com a garrafa de gin

CARREIRISMO Após ter surripiado por três vezes a compota da despensa, seu pai admoestou-o. Depois de ter roubado a caixa do senhor Esteves da mercearia da esquina, seu pai pô-lo na rua. Voltou passados vinte e dois anos, com chofer fardado. Era Director Geral das Polícias. Seu pai teve um enfarte.

FACILIDADE Quando fez a primeira comunhão o pai explicou-lhe com honesta rectidão as comunhões são como os bonés de caça basta tapar as orelhas 10


e já está tens o que desejas ficas logo comunhado gostou e comunhou-se mais três vezes sempre atento e preocupado mas era fácil daí em diante teve a certeza bastava tapar as orelhas era só era uma beleza pronto orelha protegida e comunhão logo garantida

CINEGÉTICA Um caçador perdeu a cedilha e por isso sua mulher nunca mais quis ir à caça com ele sem cedilha

NOIVADO Estendeu os braços carinhosamente e avançou, de mãos abertas e cheias de ternura. – És tu Ernesto, meu amor? Não era. Era o Bernardo. Isso não os impediu de terem muitos meninos e não serem felizes. É o que faz a miopia.

CASAMENTO “Na riqueza e na pobreza, no melhor e no pior, até que a morte vos separe.” 11


Perfeitamente. Sempre cumpri o que assinei. Portanto estrangulei-a e fui-me embora.

CEGARREGA PARA CRIANÇAS A Velha dormindo o rato roendo a Velha zumbindo o rato correndo a Velha rosnando o rato rapando a Velha acordando o rato calando a Velha em sentido o rato escondido a Velha marchando o rato mirando a Velha dizendo o rato escutando a Velha ordenando o rato fazendo a Velha correndo o rato fugindo a Velha caindo o rato parando a Velha olhando o rato esperando a Velha tremendo o rato avançando a Velha gritando o rato comendo

REPREENSÃO Depois de fuzilado ao levar o tiro na nuca pra acabar chateou-se 12


e viu-se obrigado a explicar ao major que comandava o pelotão que o tinha fuzilado por favor preste atenção e não me obrigue a repetir a repreensão na próxima vez que mandar matar dê tempo ao morto pra gritar convicto um último viva a revolução

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[ANA HATHERLY]

10 Nesse dia eu lera um artigo em que se falava da evolução das artes e se concluía que nada nos restava já fazer uma vez que tudo estava feito já e nada lhe poderíamos acrescentar. Fiquei a pensar seriamente no assunto durante um certo tempo. Até que finalmente compreendi. Dirigi-me para o meu escritório sentei-me à secretária tirei da gaveta uma folha de papel e comecei a escrever um longo telefonema. Praticando mais uma vez aquilo a que chamo a prova de resistência dos materiais poéticos chamei o meu porco Rosalina e pedi-lhe que o lesse e depois mo enviasse pelo correio.

12 Era uma vez duas serpentes que não gostavam uma da outra. Um dia encontraram-se num caminho muito estreito e como não gostavam uma da outra devoraram-se mutuamente. Quando cada uma devorou a outra não ficou nada. Esta história tradicional demonstra que se deve amar o próximo ou então ter muito cuidado com o que se come (sic!).

17 Era uma vez uma chave que vivia no bolso de um homem. Durante muito tempo desempenhou com honestidade o seu trabalho de abrir portas. Até que um dia descobriu que todo o seu trabalho tinha consistido sempre em abrir portas que já estavam abertas. Quando descobriu isso lançou-se corajosamente para fora do bolso. Caiu no chão. Ficou ali. Passa uma criança, vê a chave e diz que coisa tão engraçada para fazer um carrinho.

29 Quando cheguei a casa o meu porco Rosalina estava a escrever à máquina. Fiquei num grande estado de perplexidade e por isso perguntei o que estás aí a fazer. Sem erguer a cabeça Rosalina apontou com o chispe para o papel convidando-me a ler. A folha estava em branco porque Rosalina tinha retirado a fita da máquina para a enrolar na sua encaracolada cauda que nesse momento agitava com prazer. Rosalina foi sempre o que me impeliu ao mergulho na metafísica. Por isso sem dizer nada dirigi-me para a 14


cozinha. Abri a gaveta dos talheres. Tirei a grande faca do estojo do trinchante. Acendi o lume e pus a grelha a aquecer. Dirigi-me de novo para o escritório onde Rosalina escrevia à máquina. Cortei-lhe algumas febras do lombo. O suficiente para uma bela refeição. Cortei também um pedaço de fita para enfeitar a travessa.

38 A profissão de porteiro é a mais fascinante porque é a mais inútil: só as portas abertas têm porteiro. Ora as coisas são o que parecem e toda a gente sabe que uma porta que se fecha é uma porta que se abre. Neste paradoxo a única coisa que sempre me fascinou foi que ninguém perguntasse nunca onde é que assenta a dobradiça, a articulação da porta, verdadeira tentação para os espíritos meticulosos. Mas um dia pude verificar que isso às vezes acontece. Ia ele a 110 km à hora quando de repente viu que à sua direita ia eu igualmente a 110 km à hora. Como ele era perito olhou e viu que eu tinha perdido o tampão da gasolina. Começou fazendo sinais e eu, apercebendo-me da mensagem, respondi com um gesto circular da mão direita, o qual queria dizer que o tampão me tinha sido roubado. Ele ficou entusiasmado e perseguiu-me até eu parar. Quando eu parei e me apeei do carro para tapar o buraco do depósito da gasolina com um jornal, ele ofereceu-me a chave da casa dele. Aí começou a minha perplexidade porque eu não tinha maneira de saber se a porta dele estava fechada ou aberta. Porque se uma porta que se fecha é uma porta que se abre, a porta dele devia estar aberta. E se inversamente uma porta que se abre é uma porta que se fecha, como ia eu resolver o problema, sim, porque abrindo eu a porta iria simplesmente fechá-la. Então perguntei mas a sua porta está fechada ou está aberta ao que ele não soube responder dizendo se ela estivesse aberta para que lhe daria eu a chave. Então cresceu a minha perplexidade porque se as coisas são o que parecem, a porta dele devia estar fechada e nesse caso estava aberta e então para que queria eu a chave e se a porta estivesse aberta para que queria eu a chave, se uma porta que se abre é uma porta que se fecha e se ele me dava apenas a chave da porta presumivelmente aberta e não a da porta obviamente fechada, então para que queria eu a chave. Então perguntei e tem porteiro e ele disse não não tenho. Então é porque a porta estava fechada, pensei eu rapidamente, nesse caso estava aberta e então ele estava sendo extremamente sádico oferecendo-me um instrumento de tortura dessa natureza porque na verdade era impossível compreender para que usaria ele a chave para abrir uma porta aberta, apesar de eu saber que a perversidade impera. Então eu disse essa chave não serve deve dar-me a outra ao que ele respondeu qual outra não compreendo. Nem eu disse eu porque na verdade ou me dá as chaves todas porque as suas portas estão todas fechadas uma vez que não tem porteiro ou então estão todas abertas e eu não sei para que me está a dar essa chave. Aí ele abriu a boca e eu vi a boca aberta e pensei está fechada é por isso que não pode dizer nada. Então eu disse 15


porque não arranja um porteiro para a sua boca assim podia tê-la sempre aberta e talvez conseguisse dizer-me alguma coisa. Ele fechou logo a boca e nesse instante ela abriu-se para mim e eu comecei a compreender e agarrando a chave apontei-a ao espaço compreendido entre os olhos dele os quais ele fechou precipitadamente e recuou dizendo o que é que está a fazer ao que eu respondi faz bem fechar os olhos porque então os abre e talvez possa começar a ver melhor. Então ele abriu a boca e abriu os olhos o que resultou numa mudez absoluta porque então fechou-se tudo e eu comecei a compreender muito melhor e retirei a chave de entre as sobrancelhas e agarrando a mão direita dele pus-lhe a chave dentro e fechei-lhe os dedos e ele ficou com a mão fechada e então eu sorri e disse gosto das pessoas que sabem abrir as mãos corajosamente e ele então abriu a mão e a chave caiu no chão e resvalando no passeio caiu num buraco que estava ali aberto e ele deitou-se no chão e começou a procurar no buraco a ver se descobria a chave e então eu comecei a compreender que as coisas são o que parecem porque se o buraco estivesse fechado não estaria aberto e como estava aberto estava fechado e por isso foi possível cair lá a chave é lógico e se o tampão estivesse no seu devido lugar o depósito teria estado fechado e não aberto e então para que precisava eu de parar o carro para tapá-lo com um jornal e se o não tivesse feito como poderia ele ter-me oferecido a chave da sua porta que não se sabe se estava fechada ou aberta porque agora quando ele chegar a casa terá de resolver esse problema de saber se a porta estava fechada ou aberta para resolver o problema da utilidade da chave, a não ser que arranje um porteiro e então para que serviria a chave

55 As relações entre os indivíduos são tão pavorosas que a natureza teve de trabalhar longamente para conseguir que atingíssemos na consciência da criminalidade a ciência da convivência. É por isso que mal chego a casa mato logo a primeira mosca que se me depara: Os mortos fazem muita falta.

126 O autor e o leitor: estamos no limiar do prazer. Um de cada lado como anfitriões esperando tensos. Vivemos a problemática do segredo – se for divulgado deixa de existir se não for torna-se um horrível tormento. Alguns mestres dizem que o próprio do prazer é não poder ser dito.

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204 Há dias tive uma óptima ideia: Quando uma pessoa está muito muito doente, é evidente que se torna candidata a morto. Então devia fazer-se o seguinte: assim que os sintomas fossem iniludivelmente fortes, o candidato a morto devia desde logo jazer no seu caixão aberto, convidando-se os amigos a vir colocar flores, dizer adeus, etc. Assim o candidato poderia apreciar devidamente as homenagens.

234 Hoje sinto-me realmente sem ninguém. Mas o motivo é que eu não estou capaz de fornecer aos outros os elementos necessários para que me restituam o que é meu. Como Pessoa, também eu sinto-o-que-não-sinto.

249 Olho-te e penso naquele poeta que fala da loneliness of much beauty. Quantas vezes nos sentimos extraordinariamente sós embora sentindo-nos felizes. O amor é impossível mesmo quando possível.

268 Tinha havido uma revolução. No viaduto as letras tinham saído dos livros e lançadas com ardor sobre a cidade a água desaparecera. Não podendo já distinguir entre o rio e a estrada as letras tinham invadido a cidade outra vez e tantas eram que a terra saltava e então compreendeu-se que se tratava de um letramoto e as pessoas apavoradas queriam fugir para o campo mas nas auto-estradas tantas eram as letras que já ninguém conseguia saber para onde iam ou onde mudava a direcção e atropelando-se as pessoas enterravam-se em tinta procurando desesperadamente lembrar-se

336 Durante o jantar vou contando coisas que me aconteceram mas de tal modo que todos me ouvem como se eu estivesse contando histórias. Apercebendo-se disso digo: sou uma efabuladora, percebem? Percebem e tranquilizam-se.

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374 Era uma vez uma pessoa que procurava a sabedoria. Tinham-lhe dito que para a atingir tinha sempre de aceitar e recusar ao mesmo tempo tudo o que lhe fosse oferecido, dito ou mostrado. Quando perguntava por onde era o melhor caminho e lhe diziam “é por ali” ela devia seguir imediatamente nesse sentido e depois no sentido contrário. Tendo assim percorrido todas as direcções indicadas e as não indicadas, sem mais caminhos a percorrer, sentou-se no chão e começou a chorar. Sem saber, tinha chegado.

404 Quando eu era criança a minha avó levava-me a ver filmes do Buster Keaton, Harold Loyd e Chaplin. Nunca me levou a ver a Branca de Neve. Foi um erro. Mas como haveria ela de saber que eu estava condenada a viver rodeada de anões?

428 Acordo no meio da noite despertada por um sonho perturbante. O sonho era que subitamente tenho uma violenta hemoptise. O sangue jorra-me da boca, cai-me sobre as mãos tingindo-as de um violento vermelho. É uma emergência mas ninguém me acode. Já acordada comento para mim própria: é uma metáfora da criação. A poesia que eu faço é uma sangria do meu corpo. E ninguém me salva.

433 Os livros estão sempre sós. Como nós. Sofrem o terrível impacto do presente. Como nós. Têm o dom de consolar, divertir, ferir, queimar. Como nós. Calam sua fúria com sua farsa. Como nós. Têm fachadas lisas ou não. Como nós. Formosas, delirantes, horrorosas. Como nós. Estão ali sendo entretanto. Como nós. No limiar do esquecimento. Como nós. Cheios de submissão ao serviço do impossível. Como nós.

436 O conforto é um acontecimento raro. Na verdade qual é o nosso respaldo? Um tecido de pressupostos. Mas quem se sente ameaçado ao encostar-se num fofo sofá? Platão

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dizia que ser-se experiente não é igual a ser-se sábio. Mas quem se preocupa com essa antiquada verdade?

443 No Museu do Cairo o escriba é uma estatueta dentro de uma caixa de vidro. Expectante, com a mão levantada, com um ar ansiosamente submisso aguarda a ordem de escrever. É um escravo do ofício. Como eu já disse, a escrita é uma escribatura. Encerra quem a pratica numa prisão transparente.

448 Leio: A escrita alfabética de 26 letras a custo germinou na Europa mas depois explodiu. Estimam-se em 20 milhões os incunábulos que se imprimiram até ao início do século XVI. E agora? pergunto eu. Desde 1950 há o livro de bolso que se julgava iria procurar o leitor em vez de ser procurado por ele. Então: quais são os livros que nos procuram? Onde está o verbo preciso? Quem se fascina com as audácias acrobáticas da escrita, com o seu corpus de artifícios? O escritor foi sempre um funâmbulo cego e o leitor é apenas um espectador de passagem.

449 Os portugueses adoram as doenças. Alguém que está doente torna-se logo importante. Para muitos esse é mesmo o único momento de importância nas suas vidas. Há nisso uma obscura memória da deformidade essencial de existirmos, uma espécie de obscura paródia do Paraíso, uma tenaz e absurda lembrança da expulsão de lá. A doença é uma auto-acusação ritualizada.

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[ANTÓNIO TORRADO]

ASPAS As aspas conviviam mal com a citação. Asas minúsculas que eram, faziam os possíveis e impossíveis por levantá-la em peso e fazê-la viajar pelos ares, ao sabor do vento que agita as folhas dos jornais e das revistas literárias. A citação despedira-se do livro. Já não precisavam um do outro. Ele dera-lhe o casulo donde houvera vida. Ela ia dar-lhe, dali em diante, alguma fama, porque sempre mencionaria a fonte donde proviera. Isto o prometido, o jurado por ela. Mas os escritores são pouco fiáveis e descuidados. Uma vez aqui, outra ali, foram-se esquecendo do local de nascimento da citação. Até do próprio autor se esqueceram, a ponto de alguém, sem escrúpulos, lhe retirar as aspas e a incluir como invenção sua, num discurso, sob o pretexto de que, nos discursos, as aspas não se vêem. E ninguém mais as viu.

SURDO Era uma vez um surdo hipócrita. Completamente surdo e a dizer que ouvia. Não que o fizesse por estratégia de autoconvencimento. Tão-pouco por ilusão, pela embriaguez inextinguível dos sentidos, mesmo quando enfermos, caducados. O caso deste surdo não tinha desculpa. Toda a velhacaria dele residia no facto de camuflar-se de ouvinte, ouvinte melómano até, de orelha atenta à harmonia do mundo. Crítico musical com coluna certa em publicações especializadas, o surdo devorava concertos. Respeitavam-lhe as opiniões, solicitavam-lhe o conselho, temiam-no. Ele, embora surdo que nem um tumulado, ganhara, no íntimo convívio com a sua carência, peculiares intuições e um modo muito hábil de evitar confrontos que o desmascarassem. De escrita sinuosa e juízos nunca excessivos, o surdo singrava com elegância pelos corredores da música. Um dia tropeçou, fisicamente, entenda-se. Fraco da visão, desequilibrou-se e caiu dois ou três degraus, se tanto. Num anfiteatro de um festival. Os degraus eram de pedra e ele, ao bater com uma das fontes no lajedo, é óbvio que se ressentiu da queda. Entre escoriações várias, sangrou dos ouvidos. Não se sabe que recorrentes fenómenos o embate desencadeou. O certo é que passou a ouvir como qualquer um. Podemos imaginar que daqui em diante o apuro crítico se acentuasse. O desensurdecido acidentado, ou do choque craniano ou do súbito torvelinho de sons que lhe alagaram os ouvidos, sentiu-se perdido. Já não dominava as opiniões. 20


A delicada hermenêutica que lhe sustentara os critérios rompeu-se ao peso brutal dos sons uns contra os outros, desavindos. A concluir: o crítico renunciou às funções que o haviam projectado no mundo da música. Ele que, depois da queda, coxeia, tem sido visto ultimamente por salas de exposições de pintura. Claudica, aproxima-se, recua diante dos quadros, em busca talvez do silêncio das pinceladas com que foram urdidos. De olhos semicerrados, turvados pela irremediável miopia que o levará à cegueira, o ex-crítico musical parece querer tirocinar para crítico de arte. Não lhe será difícil.

VERRUGA Proponho aquela história do pintor que tinha uma verruga na face. Não era um sinal grande. Era mesmo uma verruga. Ostensiva, irrevogável. Pediram-lhe um auto-retrato. – Com ou sem verruga? – perguntou o pintor. – Com verruga – responderam. – Não faço. Lá vão dizer que quero exibir a verruga como marca de diferença. – Então, sem verruga – condescenderam. – Também não faço. Lá vão dizer que quero escamotear a verruga para absolver a imagem. E o pintor não fez o auto-retrato.

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[RUI MANUEL AMARAL]

LITERATURA Uma macieira que dá laranjas.

LUCIANO GORECIUS Certa manhã, Luciano Gorecius acordou com um abcesso. Quer dizer, com um dente obcecado com qualquer coisa. Ora, como é sabido, não há nada mais desagradável do que um dente obsesso. – Que rica prenda! – comentou Luciano com os seus botões. – Um abcesso dos antigos. Os botões, com a sua habitual lucidez e capacidade de síntese, não disseram nada. Luciano marcou uma consulta e foi ao dentista. – O senhor está com uma obscenidade na boca – disse o médico. – Eu sou um profissional sério e recuso-me a tratar obsessos – gritou-lhe o dentista antes de virar as costas e sair pela janela. Luciano pagou a consulta e regressou a casa bastante mais aliviado.

AS CALÇAS DE PELÚCIA No decorrer dos trabalhos, a meio do debate sobre um assunto de grande relevo, o Senhor Presidente da assembleia ergueu-se do imenso cadeirão presidencial, tomou a palavra, embrulhou-a com todo o cuidado e, baixando as calças de pelúcia até aos joelhos, limpou solenemente o rabo com ela. Esta resolução, apresentada assim tão vivamente e num tom tão esclarecido, mereceu do plenário um aplauso quase unânime. No entanto, um elemento da bancada minoritária – um cavalheiro, aliás, que nunca abrira a boca e que todos julgavam gago –, veio dar um rumo inteiramente novo à sessão. Pediu a palavra – gaguejava um pouco, de facto – e, fungando violenta e ruidosamente, limpou o nariz com ela. Uma onda de entusiasmo irrompeu de um dos lados da assembleia caindo de chofre sobre os elementos do lado oposto. Estes, sentindo-se na obrigação de responder, lançaram sobre aqueles uma chuva de protestos. Convém lembrar que os membros da assembleia estão impedidos pelo regulamento de usarem guarda-chuva durante as sessões. O Senhor Presidente, receando que a sessão se transformasse numa constipação geral, tomou de novo a palavra, desceu ainda com mais cerimónia as calças de pelúcia até 22


aos joelhos e limpou pela segunda vez o rabo com ela. O Senhor Presidente pretendeu com isso chamar a assembleia à ordem, no que foi muito bem sucedido.

A VIDA E QUASE MORTE DE ARQUIMEDES TRISMEGISTO Dentro de breves instantes, três ou quatro linhas no máximo, alguém será assassinado nesta história. Ainda faltam alguns segundos de leitura. Matemos primeiro o tempo. Como é sabido, a melhor forma de matar o tempo é espetar-lhe uma esferográfica na canela esquerda. – Ui, ai, ei, credo! – diz o tempo enquanto espeto a esferográfica na sua canela direita, que, diga-se de passagem, é uma bela canela. – Não é na canela direita, palerma, mas na esquerda! – reclama o tempo em altos berros. Bonito serviço, penso cá para mim, enquanto corrijo o movimento e espeto a esferográfica na canela correcta. Por que motivo esta é a única maneira de matar o tempo, é coisa que nunca entendi. Porque não usar um lápis, uma caneta de feltro ou mesmo um espeto de assar? Bem, só para fazer a experiência e contribuir para uma mais clara ilustração desta matéria, decido matar o tempo batendo-lhe com um dicionário nas orelhas. Mas entretanto reparo que o tempo já esta morto. Por esta altura, desgraçadamente, também já passaram mais linhas do que aquelas que seriam necessárias para retomar a história no ponto em que alguém é assassinado. E, como seria de supor num personagem de segunda categoria, a nossa vítima, Arquimedes Trismegisto – ou não se chamasse ele como se chama –, esgueirou-se cobardemente pelo portão das traseiras enquanto estávamos distraídos a matar o tempo. Hoje em dia não se pode confiar em ninguém.

HISTÓRIA DE JOSÉ SALMASIUS José Salmasius era um homem bafejado pela sorte. Quando tinha fome bastava pensar em comida para que um bolo de arroz voasse directa e literalmente para dentro da sua boca. Vou escrever esta frase de novo: quando tinha fome bastava pensar em comida para que um bolo de arroz voasse directa e literalmente para dentro da sua boca. E isto é apenas um esboço daquilo que de facto sucedia, porque normalmente voava para dentro da sua boca toda a espécie de excelentes assados, cozidos, grelhados, estufados, etc. Sim, concordo que isto não tem muito a ver com literatura, mas a culpa não é minha; limito-me a contar a verdade.

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Um dia, de repente, também Salmasius desatou a voar. E voou, voou sem parar. Do outro lado do mundo, um crocodilo bafejado pela sorte estava a pensar em comida. Salmasius quase não sentiu nada. Foi tudo rápido demais.

A VIDA DO POETA O poeta passa os dias a coçar o anacoluto. Muitas vezes, porém, a comichão só passa aplicando um cacófato. Não é fácil a vida do poeta.

AS SETE VIDAS DE DON PRINGELLO Durante anos a fio, Gaspar Ponocrates viveu com macaquinhos na cabeça. “Uma família inteira de macacos”, confessou certa vez a Don Pringello, o seu gato. E continuou nestes termos (deixo-lhe a palavra): “Não quero atribuir a isto um sentido demasiado pessoal. Quero dizer, não tenho nada contra os macacos. Mas é uma situação bastante desagradável e, para ser inteiramente franco, levanta alguns problemas de ordem prática: os macacos são bichos muito barulhentos, ladram e uivam por tudo e por nada, e geralmente sofrem de dispepsia, queixando-se disso a toda a hora. Para além de que viver com macaquinhos na cabeça é um pouco inestético.” “Idiota” foi o comentário mental de Don Pringello. Enfim, aparentemente os macacos faziam a vida negra a Gaspar Ponocrates. De noite, não conseguia dormir e de dia era incapaz de se concentrar no trabalho de mestre de pastelaria. Por isso, procurou por todos os meios livrar-se deles. Consultou médicos, padres, bruxos. Mas o resultado foi sempre o mesmo: os bichos não arredavam pé. No entanto, num entardecer cinzento de um dia muito frio, lá pelos finais de Janeiro, Gaspar notou, com surpresa, que os macaquinhos tinham desaparecido, súbita e misteriosamente. Agora, a sua cabeça estava vazia como um poema de amor. Ao princípio, tudo correu pelo melhor. Gaspar sentia-se ágil e livre como um pássaro. Digamos, como um pardal comum, só para dar um exemplo conhecido. Mas, com o tempo, a falta dos macaquinhos começou a pesar com insistente persistência na sua cabeça. E a cada dia que passava, mais sofria com a sua ausência. Ora, Gaspar fez tudo o que podia, e realmente fez muitíssimo, para recuperar os macaquinhos. De todos os seus esforços, eu destacaria as invocações a um certo número de santos e santas: São Heribaldo, Santa Máxima, São Germano, Santo Ireneu, Santa Radegunda, São Alberico, Santa Justina, São Benigno, Santa Fabiana, Santa

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Cássia, Santa Bernardette, Santa Lúcia, virgem de Siracusa, etc. Mas todas as suas tentativas pouco mais foram do que vãs. Durante algum tempo, Don Pringello guardou um estranho e estudado silêncio sobre o caso. Mas quando chegou a altura, tossiu um pouco, cofiou os bigodes, olhou para o ar, coçou a cabeça e disse: “Tenho estado a pensar sobre o seu o problema e creio que encontrei uma solução. O meu bom dono e senhor pode convidar uma família de ratos de biblioteca para ocupar o lugar dos macaquinhos.” Gaspar acolheu com tanta satisfação esta ideia que começou a saltar e a dançar pela casa, batendo as palmas e manifestando a sua alegria com os mais extravagantes e desvairados excessos. Os ratos, que detestavam viver na biblioteca e eram miseravelmente pobres, mudaram-se nesse mesmo dia. Duas semanas depois, Gaspar Ponocrates foi encontrado morto em sua casa com a cabeça aberta. Don Pringello, por seu lado, encontrava-se de boa saúde e muito bem disposto, como se tivesse acabado de devorar uma família inteira de ratos de biblioteca.

O METEOROLOGISTA Quando o sol tem dificuldades de natureza interna e não consegue evacuar as matérias redundantes, enfia um meteorologista no cu. (Infelizmente não sou poeta e por isso não sei dizer isto de uma maneira mais bela e justa.) Pois bem, só depois de o astro-rei se sentir aliviado das desordens e angústias do corpo, as previsões voltam a bater certo. São assuntos de que a ciência evita falar.

O RELATÓRIO Um homem precisava urgentemente de uma transfusão de sangue. No hospital, o médico disse: “Este homem precisa urgentemente de uma transfusão de sangue.” O assistente, que era um profissional muito hábil, e além disso muito experiente, preparou de imediato a transfusão. Pendurou o saco, picou o homem, instalou o cateter e o sangue começou a correr. Pouco depois, o homem morreu. No relatório de averiguações, os peritos concluíram que se tratou de um lamentável erro humano. O assistente, que era um profissional muito hábil e além disso muito experiente, por qualquer enigma ou mistério da natureza, picara o homem na veia poética. Portanto, o sangue fora transferido para a veia poética do doente, acabando este por bater a bota.

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E as pessoas podem rir se quiserem, mas a verdade é que os problemas não ficaram por aqui. Ao bater a bota, o homem fê-lo com tanta determinação que aquela soltou-se-lhe do pé e foi atingir com estrondo a cabeça do médico. Resumindo, o médico ficou incapacitado para o trabalho e o morto desatou a escrever poemas no paraíso.

MARFORIO PANURGO* Ao concluir a sua primeira peça, Marforio Panurgo fica convencido de que escreveu a mais divertida das comédias. A obra é levada à cena de acordo com as suas instruções. No entanto, o público e a crítica aplaudem-na, no meio do maior entusiasmo, como uma das mais bem sucedidas tragédias contemporâneas. Panurgo resolve então dedicar todas as suas forças e talento à escrita de uma verdadeira tragédia, cuja encenação é executada sem delongas. O público acorre em massa porque está interessado em tragédias. Contudo, todos quantos têm o privilégio de admirá-la recebem-na, no cúmulo do arrebatamento, como uma comédia hilariante. E a crítica, rendida ao seu “humor corrosivo e inteligente”, classifica-a como “a mais extraordinária comédia dos últimos tempos”. Depois deste segundo sucesso, e numa altura em que o futuro lhe reservava grandes oportunidades, o autor decide afastar-se da ribalta sem dizer palavra. Há quem diga que se terá afastado a trote num pónei roubado (um animal, diga-se de passagem, de belo e garboso passo, sem nada que se lhe apontasse)**. Mas isso não vem agora ao caso. Hoje, e decorridos que foram todos estes anos – estou a exagerar, obviamente –, Panurgo é o dono de uma bem sucedida cadeia de agências funerárias. Mas é conhecido sobretudo pelos seus artigos sobre pudins, muito apreciados pelos leitores dos suplementos de culinária, lá diz a cantiga. E diz muito bem. *Filho do poderoso financeiro Cipião Panurgo, cuja família de origem patavina se estabeleceu no Languedoque há mais de um século. **Embora me tenham assegurado que esta parte da história é falsa, também é possível que seja pura verdade.

CLEMENT NÉMIROVSKY Numa certa tarde de Inverno, encontrava-se em sua casa a beber chá, na mais doce e aprazível das salas de estar, sob a luz amigável de uma janela, comodamente sentado à lareira, na companhia do seu fiel perdigueiro, Clement Némirovsky. Encontrava-se o nosso bom homem, dizíamos, nestas benignas circunstâncias, quando sucedeu o mais infeliz, o mais inoportuno, o mais cruel, o mais despropositado e o mais desagradável dos acidentes. 26


De facto, o traiçoeiro destino não podia ter imaginado nada mais impertinente, mais aborrecido, mais indigesto e mais destrutivo da paz doméstica e do bom humor de Némirovsky. Num segundo apenas, o seu rosto foi passando de surpreso para atemorizado, de atemorizado para varado, de varado para embranquecido*, de embranquecido para outra coisa qualquer que não sou capaz de descrever, e dessa outra coisa qualquer para outra ainda mais espantosa. O cão, vendo o dono em tal estado de sobressalto, pediu-lhe para que se acalmasse, invocando os efeitos negativos que a situação podia representar para a sua saúde. E não tendo obtido qualquer sinal de melhoria, sentiu-se na obrigação de aplicar duas fortes bofetadas na cara do dono, de maneira a despertá-lo daquele sufoco consternado em que se encontrava. Ora, muito me agradaria poder dizer que o par de bofetadas surtiu o efeito desejado. Mas infelizmente a situação era de facto desesperada e o cão não só não foi bem sucedido, como ainda teve que levar a cabo outras tentativas, tais como despejar uma garrafa de rum pelas goelas do dono e dar-lhe trinta e três palmadinhas nas costas. Bom, voltando ao início, e para não manter mais tempo a expectativa a respeito do acontecimento que deixou Némirovsky subitamente sem fala, branco, aterrado, amedrontado, horrorizado, varado, atónito, perplexo, assustado e, no mínimo, banzado, devo dizer que tanto por consideração pela sensibilidade do leitor como por se tratar de algo profundamente desagradável para a harmonia das coisas, prefiro não escrever mais nada. *É preciso observar que o rosto de Clement Némirovsky era já de si dos mais pálidos.

JORGE, O ESCRITOR MALDITO Nunca conheci ninguém como o Jorge. Era realmente um escritor maldito. E era um escritor maldito tanto em casa como nos cafés, como ainda no meio literário. A mulher tinha a pior das opiniões a seu respeito e chamava-lhe “maldito”, mas também “velhaco”, “malfeitor”, “falaz”, “beberrão”, “vadiolas”, “espécie de bruto”, “tratante”, “espertalhote”, “macacão”, “pardal”*, e ainda “traste”, “refolhado”, “laparoso”, “rebotalho da sociedade humana”, “alquimista” e, de novo, “maldito”. Aos seus olhos, Jorge era o próprio Diabo. Nos cafés, era igualmente tido em muito baixa consideração. Os seus companheiros tinham dele uma ideia mais desprezível do que acerca de outra pessoa qualquer do mundo. E os outros escritores detestavam-no, invejavam-no e diziam coisas horríveis a seu respeito. E quais eram os motivos para tudo isto? Ninguém sabia. Talvez por isso alcançara uma reputação nada pequena de escritor maldito.

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No entanto, Jorge fazia de tudo para que as pessoas mudassem de opinião a seu respeito. Corria atrás delas e oferecia-lhes chocolates, gasosas, pistácios, livros de agricultura, nos dias pares, e manuais de astronomia, nos ímpares. Mas, acima de tudo, tentava convencê-las, esbracejando com toda a força como faria um louco, de que nunca na vida tinha escrito uma linha que fosse, simplesmente porque era analfabeto. Seja como for, ninguém lhe dava ouvidos. E neste ponto há que introduzir um esclarecimento necessário: Jorge também era mudo. Que Deus o tenha na Sua santa paz. *Em especial, durante os meses de Inverno.

AS ESPLANADAS DA BAIXA Um autor passava os dias inteiros nas esplanadas da Baixa à espera de que uma história caísse do céu. Certo dia uma história extraordinária caiu, de facto, vinda do céu. Acertou-lhe em cheio na cabeça. O autor ficou amnésico e nunca mais se lembrou dela. A história, essa, continuou a vaguear pelas esplanadas da Baixa à espera que o céu lhe enviasse um autor.

O BIBLIOTECÁRIO Sempre ao fim da manhã e também ao fim da tarde, o bibliotecário recolhe os livros abandonados em cima das mesas. Aproveita para afagar as lombadas, ajeitar as folhas, limpar as capas, com gestos ternos e profissionais. Depois, e usando de todo o cuidado para não lhes causar algum desgosto ou perturbação, conduz cada livro ao seu exacto lugar. Com veemente paciência, procura então colocar cada volume na posição mais cómoda, alinhando a lombada com as restantes lombadas da mesma estante. As mãos tremem-lhe de tanto zelo. No entanto, e apesar de todo o cuidado com o que o bibliotecário se entrega à sua meticulosa tarefa, os livros dedicam-lhe uma profunda inimizade. Conspiram e manobram nas suas costas, desde o primeiro dia. O bibliotecário ouve-os falar e dá conta de tudo. Mas tanto se lhe dá porque ama verdadeiramente os livros. Porque ama-os apaixonadamente com todas as suas forças. Os livros, porém, não se deixam comover por estas demonstrações de afecto. Escarnecem do seu irritante desejo de agradar, lançam ofensas, urdem as piores armadilhas: os livros de história disfarçam-se de livros de botânica, os de medicina escondem-se sob as capas dos de teologia, e assim por diante.

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Ora, os mais acérrimos inimigos do bibliotecário são os livros de poesia. Já vi livros de poesia enterrarem os dentes, sem cerimónias, nas mãos pequenas do bibliotecário. Mais do que isso: já vi clássicos da poesia puxarem-lhe a língua, cuspirem-lhe na cara, chamarem-lhe falso Judas e lambe-cus. Felizmente, são dos menos solicitados pelos leitores. De facto, apesar dos seus esforços para atraírem as atenções, com as suas capas escandalosamente azuis ou desmesuradamente grandes, raras são as vezes em que saem do lugar. Por isso, o ódio cresce a cada dia que passa. E à noite, colados à sua imensa imobilidade, os livros de poesia sonham com a morte do bibliotecário.

AMOR PLATÓNICO Para passar o tempo, Platão decidiu divertir-se à custa da sensibilidade de certos poetas. Pois bem, o que fez Platão? Inventou o amor platónico. Depois, aborrecido com a sua própria invenção, saiu de casa e foi às putas.

RED DELICIOUS Adão trincou a maçã com prazer, mas quase de imediato franziu o sobrolho, combinando o gesto com uma aguda careta de desagrado. – Com a breca! Mas o que vem a ser isto? – perguntou Adão com toda a severidade. – Afinal, o fruto proibido, que me custou os olhos da cara, está cheio de bicho? Essa agora! É assim que o Senhor nosso Deus trata as pessoas? Adão pediu o livro de reclamações. (O narrador faz agora uma breve pausa para ampliar o efeito dramático das palavras de Adão.) Deus, para usar uma expressão vulgar, ficou embasbacado e atirou para o ar uma desculpa qualquer. De facto, Ele esquecera-se de criar o livro de reclamações. E tivera sete dias para o fazer. "Que maçada", pensou. Enfim, Adão estava furioso e absolutamente decidido a fazer uma queixa às autoridades competentes. Eva era sua testemunha. Deus mandou chamar o Diabo para se ver livre de Adão. – O Diabo é a autoridade competente – disse Deus para o despachar. Durante toda a Sua existência, nunca conhecera ninguém tão impertinente. Adão era exactamente o tipo de pessoa capaz de dar cabo dos nervos a um santo. E o efeito era ainda mais devastador tratando-se dos nervos do pai de todos os santos. A verdade é que a partir desse dia a vida no paraíso nunca mais foi a mesma. E o contrário também é verdade.

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PÊSSEGO Markus Grob nutria uma forte paixão por Vivienne Bugowski. Uma paixão tão forte que tinha vontade de a trincar como a uma maçã. “Uma maçã fresca, tenra e perfumada. Em suma, uma maçã especialmente apaladada”, pensava ele com os seus botões, tentado pela sua imensa gulodice. Assim, tentado pela sua gulodice imensa, Markus ajoelhou-se certa vez na frente de Vivienne, levantou-lhe delicadamente a saia com a febril ponta dos dedos e, usando de uma simplicidade e sentimento que eu nunca conseguiria traduzir por palavras, trincou – oh, maravilha! – a sua perfumada e tenra canela. A toda a volta cupidos satisfeitos aplaudiram com as asas. Vivienne, porém, soltou um gritinho de dor e repugnância – mais de repugnância do que de dor –, seguido de uma violenta bofetada no idólatra, para dizer a coisa com educação. Uma bofetada tão violenta e certeira que arrancou e atirou para longe a orelha esquerda de Markus Grob. Ora, privado da orelha, Markus ganhou novos motivos para amar ainda mais Vivienne. O desejo dele concentrou-se então no adorável pescoço do seu amor. E de dedos enfiados na boca, imaginava um pêssego.

A NOVIDADE – Tenho uma novidade para contar – gritou Cláudio Sokhiev, em pulgas, sentando-se e começando a descascar batatas. Em seguida, sem largar a faca e uma batata meio descascada (das boas), encheu e engoliu um copo de vinho tinto, lambeu alegremente os beiços, emitiu um estalinho com a língua, levantou-se, bateu na nádega esquerda com a mão direita (o que não é tarefa fácil), passou a mesma mão pelo queixo, coçou a cabeça, fungou abundantemente e com assinalável distinção, ajeitou o nó da gravata, enrolou lentamente um cigarro, expeliu um arrotozinho muito bem disfarçado no meio do fumo, e pouco faltou para acompanhar o dito arrotozinho com uma careta desagradável. E com tudo isso, ainda não tinha dito nada. – Diabo, é bem verdade – reconheceu Cláudio, objectivamente. – Ainda não contei a grande novidade. E bateu de novo na nádega esquerda, mas desta vez usando a mão que estava mais a jeito.

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QUANDO O SILÊNCIO CAIU EM VOLTA A noite era de um esplendor invulgar. A lua, embora não estivesse cheia, brilhava e envolvia toda a paisagem com uma beleza que desafiava qualquer tentativa de descrição. Os campos estavam tomados de sombras amenas e rumores longínquos. Não havia vento, nem o mais leve sopro. Os demais corpos celestes derramavam sobre o lago uma luz pura, estável, branca. Os pirilampos cintilavam junto dos arbustos. As árvores estavam como que hipnotizadas numa espécie de encantamento misterioso. Sentada na varanda, a senhora Ana Novak desfrutava das ternas e encantadoras sensações daquela noite maravilhosa, e sonhava, sonhava, sonhava, contemplando a lua resplandecente. Depois, durante um segundo, durante dois segundos, o céu e a terra pareceram imobilizar-se, todas as cigarras se calaram, o silêncio caiu em volta, e a senhora Novak soltou um audível e majestoso pum.

UMA PESSOA FELIZ Innocentius Prioris era, sem dúvida alguma, uma pessoa feliz. Muito feliz. Desde sempre, profundamente feliz. Por isso, esfregava as mãos e girava sobre si mesmo cantarolando velhas valsas. E enchia o peito aspirando o ar com prazer, consciente de que era iluminado por uma boa estrelinha. E abria os braços e batia com os pés no chão, e mostrava os dentes amarelos, e deitava a língua de fora, e fazia piruetas, e dava gritinhos, porque se sentia muito feliz. E adormecia satisfeito e tinha sonhos felizes, e acordava cheio de felicidade. E dava graças a Deus e a Santo Inácio, e a todos os santos, e a todas as santas pela alegria concedida. Oh, era feliz, feliz, feliz, feliz. E se multiplicássemos a sua boa fortuna por mil ainda ficaríamos longe da medida correcta da sua felicidade. E pronto, é tudo. Esperavam talvez que, de repente, alguma coisa conduzisse a história numa direcção totalmente diversa? Que irrompesse de algum lado um grão de areia, uma pedra, um vidrinho afiado que colocasse um ponto final em tanta felicidade? Compreendo. Mas não. Innocentus viveu e morreu feliz, muito, muito feliz. E não digo nada acerca da alegria com que foi recebido no Paraíso, por ser coisa óbvia.

RECITAR POEMAS É COISA QUE NÃO SE PODE ADMITIR NOS CAFÉS É um tipo como os outros, de longas madeixas pretas e suíças muito farfalhudas. Está sentado num café a beber cerveja. De repente, levanta-se e começa a recitar versos em voz alta. Um cliente aproxima-se e aplica-lhe uma vigorosa bofetada. O homem, parecendo não se incomodar, insiste na sua solene actividade poética. 31


Uma velha, muito irritada com a pouca vergonha*, ergue o punho e administra-lhe um soco rápido e seco em pleno rosto. Um bêbado atira-lhe com um copo. O homem cerra os olhos e esforça-se por elevar ainda mais a voz. Os empregados do café, animados pelo desejo louvável de proteger a dignidade do estabelecimento, caem-lhe em cima, numa fúria avassaladora. Mesas viradas e copos quebrados. Ouvem-se injúrias em todos os idiomas. Murros e pontapés seguem-se uns aos outros com uma tal violência que as janelas chocalham nos caixilhos e o chão treme. O homem muda de cor, perde o nariz, estilhaça as rótulas, mas não se deixa vergar pelo evoluir dos acontecimentos. – Ah!, pudesse eu ser presa de um fogo cruel ou engolido pelo mar tempestuoso! – grita ele, com uma determinação inflexível, quase sem dentes, debaixo de uma trovoada de socos e bofetadas. O dono do café, que é uma alma justa e boa, segura um revólver e, sem gastar tempo com palavras, alveja o homem no peito. Em consequência disso, o homem morre. E é muito bem feito. Recitar poemas é coisas que não se pode admitir nos cafés. *– Vá recitar para outra freguesia, seu atrevido – diz ela, esbaforida de indignação.

UM GRANDIOSO PLANO Permitam-me, deixem-me que apresente Maslav Daslov*. Um obscuro funcionário de uma repartição ministerial. Vinte anos de serviço, nenhuma promoção, nenhum êxito digno de nota. Calvo, baixo, seco e infeliz. Fato cinzento, peúgas passajadas, vida monótona, futuro insípido. Uma noite, meteu-se-lhe na cabeça que queria mudar de vida. Não podia suportar, por mais tempo, a sua desbotada existência. Decidiu tomar uma atitude radical e, com uma luzinha perversa nos olhos, pensou num grandioso plano. Ora, o plano era a tal ponto brilhante que todo o sangue do coração lhe subiu ao rosto e um suor frio deslizou pela testa. Na manhã seguinte, entrou na repartição e desatou a morder os colegas, um após outro. Fincou os dentes nos braços das telefonistas, nas pernas das secretárias, nas orelhas dos contabilistas, nos pés dos assessores, nos pescoços dos porta-vozes, nas costas das relações públicas e assim por diante, acompanhando cada mordedura com terríveis e agudíssimos uivos. Mas Daslov não se limitou aos níveis inferiores da hierarquia: no rigoroso cumprimento do plano, também mordeu o chefe de secção no nariz e deixou dois dentes pregados na canela do director. Estava lançado. Finalmente encontrara a sua vocação e um modo de vida bem sucedido. Os resultados superaram de longe as melhores expectativas. Ao fim de um dia, tinha mordido todos os colegas, era um funcionário respeitado e a sua fama galgara já as mais imprevisíveis barreiras. As altas chefias desceram dos largos gabinetes para o felicitar com grandes ovações e

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sorrisos do canto direito ao canto esquerdo da boca. Foi imediatamente promovido e recebeu ainda uma choruda bonificação. Mas não terminou aí, como é fácil de imaginar, a história de Maslav Daslov. *Há no conjunto formado por este nome e apelido um efeito pouco eufónico produzido pela repetição do grupo fonético [az] e pela semelhança entre os grupos fonéticos [lav] e [lov], que o torna um tanto ou quanto desagradável. Infelizmente, não há nada que se possa fazer.

E MORREU MUITO VELHO De manhã, mal acordava, abria a janela que dava para a Rua de Naugarduko e respirava o ar fresco durante quinze exactos minutos. Em seguida, contava minuciosamente as telhas da casa em frente até chegar ao número cento e cinquenta. Terminada essa tarefa, contava, uma após outra, as pessoas que passavam na rua, no sentido ascendente, até perfazer o número de mil e quinhentas. Após o almoço fumava doze cigarros e observava atentamente a passagem dos segundos, dos minutos e das horas no relógio de pêndulo até este bater as seis e meia. Nesse preciso momento empunhava um revólver e enfiava uma bala nos miolos. No dia seguinte, repetia os mesmos gestos com o mais rigoroso e obstinado dos escrúpulos. E fez isto durante toda a vida. E morreu muito velho.

A TAMPA DE UMA ESFEROGRÁFICA Jens Jahn escarafunchava o ouvido com a tampa de uma esferográfica. Primeiro para a esquerda, depois para a direita, depois novamente para a esquerda. De seguida para cima, depois para baixo, e de novo para cima, entreabrindo a boca desdentada, e escarafunchando com desenvoltura. Por que escarafunchava ele o ouvido com a tampa de uma esferográfica? Bem, talvez por causa disto: uma grande, redonda, brilhante e interessantíssima catota. E por que é que uma catota pode ser tão interessante? Ora, como todos os geógrafos experimentados sabem, as catotas germinam e saem exclusivamente do nariz. Esta, porém, saiu do ouvido, solene e orgulhosamente empinada na tampa da esferográfica. Portanto, reflectindo um só instante, verifica-se de imediato que o caso é muito curioso. Aliás, raríssimo. Pois bem, Jens Jahn também ficou satisfeito e surpreendido com o resultado das suas prospecções. Alguma vez se vira coisa mais bela ou mais tentadora? Em dois tempos roeu a catota como se fosse um acepipe precioso, sorrindo carnivoramente com os seus vinte e oito dentes e duas coroas. § 33


[HENRIQUE MANUEL BENTO FIALHO]

6. Quando se usavam crucifixos, ajoelhava-me nos altares a espreitar as pernas das deusas. Como as máquinas não continham sistemas digitais de captura, atribuía ao polegar o serviço de aparelhar a respiração. Mas depois os dias alongaram-se, com eles as máquinas ficaram inteligentes, digitais, breves. Reformei o polegar, votei-o ao descanso, ao esquecimento. Os olhos trabalhavam muito mais nesse tempo de gangas e lixo.

11. Quando acompanhava o meu pai ao café, em dias de fortuna calhava-me na rifa um carro. O último, recordo-me, caiu para debaixo do congelador. Durante anos imaginei o carro a morrer enregelado. Certo dia o congelador avariou e foi removido. Lá estava o carro, intacto, empoeirado, abandonado. Pude constatar, pela primeira vez, a ambiguidade do real.

15. Depois do banho olhava-me no espelho embaciado, por detrás dos vapores. De indicador firme, atravessava o rosto como se arrancasse a pele. Cheirava-me em carne viva, mas não me contentava só com isso. Pegava no baton e fazia sangrar o rosto, para logo de seguida, com a lâmina de barbear, cortar-me todo por dentro.

24. Com Rembrandt troquei carícias: agachados atrás do muro da pocilga onde cortaram todos os dentes à porca. Ninguém nos viu. Ninguém nos via. A não ser uma sardanisca que usámos para assustar a irmã de Rembrandt enquanto balouçava o ar que lhe respirava as cuecas. E ninguém nos viu. Ninguém nos via. Mas quando chegou a minha vez de ficar por baixo, inventei uma desculpa que não lembro. Também não importa, pois ninguém nos viu. Ninguém via, de tão baixos que éramos.

26. Quando apanhou raiva, o meu cão foi oferecido ao padeiro com o móbil de ser abatido. Durante anos os pães chegaram ao pequeno-almoço manchados de sangue. Durante anos os cães confundiram-se-me na mente com os pães. Comecei a perder peso. Fiquei muito magro. E sempre que escutava o pregoeiro do padeiro, anunciando o pão a chegar à mesa, escondia-me debaixo da cama – não se lembrasse minha mãe de me ceder ao padeiro, para que a raiva me fosse curada para sempre.

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MESA 4 Algumas pessoas transportam-nos para o passado. Não que no-lo lembrem, elas são o próprio tempo perdido, pessoas que não mudam, parecem nunca haver saído de onde nós as conhecemos. Aquelas com quem nunca trocámos um olhar transformam-se rapidamente em símbolos das horas corridas, veículos das marcas que os anos incrustam na carne. Por exemplo, aqueles dois velhos: ela, numa cadeira de rodas, e ele, sentado a seu lado, ambos observando os movimentos do céu que ora finda. Aqueles dois velhos são reais. No entanto, encarnações da ausência que trazemos dentro. São o céu que já passou.

MESA 6 Os artistas da minha terra enchem de sucesso as mesas dos cafés. Vêm todos de famílias muito antigas, numerosas e diversificadas. Enquanto perecem em leitos de versos, sons e imagens, alguém lhes pergunta: vão deixar-nos filhos? Mas eles respondem como se ouvissem: vão-nos deixar, filhos? Abotoam-se em casacões de feltro, abraçam-se uns aos outros. Com cem euros de idiotia compram muitas soluções para cozinhados líricos. Dão-lhe com o almofariz na rima e o poema d’alho na frigideira. É refeição. A fábrica que lhes coseu as dobras faliu, o psi foi entrando numa queda que nunca mais se viu, a idade ordena-lhes revisões no orçamento. Para eles, é apenas uma questão de tempo. Transaccionam acções como quem coça os colhões.

MESA 7 Sempre que o Noel entra no café, olham-no como se ele fosse um cancro. Uns chamam-lhe Pai Natal, outros chamam-lhe prémio. Ele senta-se, trauteia uma cantiga francesa, bebe um vinho de um só trago. É um cancro benigno.

MESA 9 A vida nos cafés tem inspirado muitos poemas. Tantos que é um insulto voltar a insistir no tema. Contudo, este poema não se cumpre ao balcão. Rejeita associações prévias. Daí que não diga da rapariga solitária na mesa ao lado, não faça minhas as palavras escutadas sem querer, evite madame blanche, sarcasmos reluzentes, lantejoulas. Daí que não queira saber do tédio, da dispersão e dos indícios elegíacos dos meus contemporâneos. Dispenso também a mulher de pó, o empregado com ar de empregado, a velha prosápia das pessoas que passam do lado de lá das montras. Um 35


cumprimento ao balcão, a sugestão do chefe e o velho cauteleiro, são disposições demasiado demoradas. Quero apenas o essencial dos cafés onde paro, das esplanadas onde espero um dia vir a parar definitivamente. Quero a suspensão do tempo, a contorção das horas, esse apuro do coração a bater enquanto escutamos o borbulhar do álcool no copo, no corpo. Sento-me à espera dos ponteiros do relógio no sítio certo, nesse sítio que quotidianamente nos sitia. Dispenso entretanto as pessoas, a respiração intrincada dos homens à procura de nada que não seja este silêncio de parar, apenas parar, por breves instantes.

MESA 16 Aquelas ruínas foram preservadas a pensar no nosso enforcamento. No Coliseu vagueavam os restos da História. Apertei o mundo entre os braços como se o mundo fosse uma mulher nua. Naquela latrina já não existiam mulheres. Culpei os pássaros pela minha solidão, enquanto as sombras se cruzavam, se atropelavam, se desalentavam. Culpei os pássaros que debandaram para outras vidas, outros lugares. Os pés suplicavam a aventura dos dedos entre as pernas, numa sublime comunhão de imagens desfeitas à luz das cavernas. Subi a escadaria da Praça de Espanha, mergulhei numa lata de cerveja e aguardei que a sede te apertasse. Disse-te: “Por hoje serei teu amigo, mas prometo trair-te amanhã. Nem que seja ao espelho”. Cumpri.

MESA 17 Rasguei mais uma página do livro que me ofereceste antes de partir. Devo confessar que me arderam as unhas enquanto a rasgava. Antes, porém, molhei as pontas dos dedos com cuspo, calei o estômago com um pêssego roubado no mercado, dobrei bem os lençóis e estendi as pernas para descansar os músculos. Depois, afoguei-me em álcool até os sonhos se transformarem em pó. Uma mulher, confesso, veio agarrada ao pêssego que roubei no mercado. Podes ficar descansada, não era mais bonita nem fodia tão gentilmente como tu. Porém, não resisti e li-lhe o nosso poema. Foi precisamente essa a página que rasguei, não sem antes lhe ter dito que a amava – a trincar a mentira como quem mastiga a própria língua.

MESA 18 Um café, pela tarde, depois de quilómetros percorridos à procura da imagem perfeita. Não mais direi amor, palavra opressiva. Apago a memória dos instantes que passaram. Sabes quem escreveu um dia que “it’s so easy to be a poet and so hard to be a man”? 36


Adormeço debaixo dessas palavras, sobre o tampo da mesa. Acordo. Vou ao WC. Tenho uma cerveja a aguardar-me o vazio da boca. Agarro as imagens com as pontas dos dedos e vejo-te sentada ao balcão. Abraço-te, beijo-te, desintegro-me. Previno-te de que continuo burguês, que a aventura não me socializou. Afago-te as mamas, enquanto me apertas os colhões. Metemos os pés à frente do destino e abrigamo-nos um no outro. Apanhamos um táxi: é para o futuro, se faz favor.

MESA 26 Tento abrir um livro na página certa. Retomar o sentido dos sublinhados. Dobro o pescoço para a esquerda. Depois, para a direita. Como se quisesse encostar os ouvidos aos ombros. Rodo a cabeça. Descomprimo os nervos. Não encontro a página certa deste livro. Estarei pronto para a página certa? Volta e meia, sou interrompido por uma gargalhada. Duas mulheres aconchegam-se no frio. Duas mulheres nuas, sentadas à beira do cais. Todas as mulheres nuas sentadas à beira de um cais são belas. Amo-as. Acendo um cigarro, bebo um copo de vinho. Não fosse real, seria um cliché. Olho as mulheres no cais. O mar tão vazio que até ofende. Retomo os sublinhados. Os papéis amarelos destacando certas páginas cuja importância esvanece ao pé das mulheres. Que consideração dar a um caixão de palavras secas, quando a natureza nos grita do outro lado da rua? Tanto tempo perdido. Assaltam-me alguns momentos. Assaltam-me livros fechados em estantes poeirentas. Mais uma imagem. Mas nada justifica esta desistência. Nada justifica este ritual morto de respirar o mundo numa página manchada de tinta. Como quem evita desalentar uma oportunidade. A oportunidade de aceitar, humildemente, o sorriso que nos é enviado por duas mulheres nuas à beira de um cais.

MESA 28 Um desconhecido senta-se à mesa e pede por nós o que jamais ousaríamos pedir. Ele tem nos olhos o corpo da nossa alma, é um desconhecido extraordinariamente familiar. Pede-nos um mundo de algodão doce com pequenos pedaços de chocolate negro. Pede-nos um mar de natas com tubarões domesticados. Pede-nos uma morte nova para uma vida caducada. Pede-nos, até, uma flâmula de sol por dentro dos cubos de gelo com que aliviámos a vodka na garganta. O desconhecido transforma-se na nossa sombra, deitados que estamos ambos sobre a mesa. Derramados no chão, crescendo para o tecto pelas paredes oblíquas. Momentos antes de sermos expulsos do sonho, por havermos vomitado sobre as pernas do barman o desconhecido que ousou pedir, por nós, mais um pouco de nós mesmos.

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1. Classifiquemos as divisões: a) o hall de entrada é literatura epistolar; b) a cozinha é um livro de poesia que tem por dicionário a despensa; c) a sala de estar é um drama, uma tragicomédia; d) a sala de jantar, onde raramente vamos, só pode ser um álbum de arte dos que nos oferecem no Natal; e) o nosso quarto é um romance, embora por vezes pareça uma novela; f) as casas de banho são livros científicos, pois nelas produzimos todo o tipo de teorias; g) o sótão é uma biografia e as partes esconsas são autênticos livros de memórias; h) resta o quarto da criança, a nossa Bíblia Sagrada.

6. A filosofia da piaçaba: não se pode tomar banho duas vezes na mesma merda.

10. Como ninguém tomava banhos de imersão, a banheira andava deprimida. Encheu-se de água e deixou-se afogar.

16. Já para Anaxímenes o princípio de todas as coisas era o ar. Coisa que a bomba para a asma nunca entendeu.

18. Acusavam o espelho de lascívia porque o homem vinha-se para cima dele. Acusavam-no de perversidade porque a criança beijava-se ao espelho. Acusavam-no de traficância quando as visitas se serviam dele para snifarem coca. Por fim, acusavam-no de voyeurismo porque ele não voltava a cara para o lado sempre que à sua frente acontecia a cobrição. O espelho era o Deus da casa. Acusado de tudo, sem nunca ter culpa de nada.

24. O microondas é o metrossexual dos fornos eléctricos.

26. No Inverno, o frigorífico era o único lá em casa que andava sempre cheio de calor.

29. A panela de pressão fez um bico ao fogão. Não satisfeito, o fogão atirou-se à chaleira. A colher de pau, invejosa, fez-se aos tachos e acusou o fogão de pedofilia. O mais certo é o processo vir a prescrever por falta de gás.

32. Também o ferro de engomar morreu. Mas de calores pela tábua de passar a ferro. 38


33. Algo ia mal naquela casa. As unhas tinham posto os palitos aos dentes.

42. O aquecedor a gás é um regateiro. No outro dia, ouvi-o dizer que o desumidificador não aquece nem arrefece.

43. Quando se aproxima o Inverno, as hormonas das fichas tomadas começam todas aos saltos.

44. Quando recebiam visitas em casa, era com orgulho que mostravam os quadros espalhados pelas paredes. Invejoso, ciumento, ressentido, o quadro da luz deixava-se ir abaixo.

52. O fósforo perdeu a cabeça quando viu o isqueiro.

QUITÉRIA E OUTRAS OBSERVAÇÕES Deixem que vos fale de Quitéria, uma cigana aqui do bairro. Vestida de negro, voz de bagaço, Quitéria vive de mandar o mundo às favas. Anda pela casa dos 50, o que se lhe nota no andar trôpego, no cheiro manco, na pele amolgada. De vez em quando, Quitéria vem à janela, com seus braços esbaforidos, invectivar tudo o que passa: chama putas às vizinhas, cabrões a seus maridos, porcos às criancinhas, com latejos caninos de abananar a boca mais deslavada deste ermitério nacional. A filosofia de Quitéria é breve e simples: Não há corno que não encorne um encornado, e para corno mais vale sê-lo de punho em riste e bucho alargado. Gosto da raiva com que Quitéria manda o mundo ao seu lugar, mesmo sabendo que nunca leu Charles Fourier. Sempre que por mim passa, não resisto: dou-lhe os bons dias; ao que ela me responde: – Só se for para as suas tias. Mas eu, que não tenho tias, vivo de viver os dias de Quitéria. Para alguns eles são uma porca miséria, para mim não há-de haver poema que, de hoje em diante, não seja feito da sua matéria.

MENINOS, CÃES O menino choroso, ranhoso, tem apenas cinco anos e não está emoldurado, pendurado em nenhuma parede de um qualquer solar burguês. Ele anda pelas ruas a aprender o inglês dos motherfuckers mais velhos. Já sabe pronunciar: ass, fuck, sorry, 39


man. E, muito atrapalhado, sai-lhe por vezes um love da boquinha desmiolada. Tem dias que o menino choroso, ranhoso, anda só consigo próprio mais as pulgas do seu cão adoptivo. Enquanto não chegar um cão que o adopte, resolveu ele adoptar o seu próprio cão. Uma das leis da vida, ele já aprendeu: quem não tem trato, caça com cão. E assim como ass im, em cada assalto, sempre pode deixar de troco: uma nociva praga de pulgas.

AS FALTAS Há dias os carros começaram a aparecer riscados. Toda a gente pensou nos ciganos, mas ninguém arriscou acusá-los na ausência de provas factuais. Até que certa tarde, mestre Cipriano da Costa Domingos, patriarca de sabida lei, deu no flagrante com a velha do 23. Ninguém queria acreditar no sucedido. Uns diziam que era loucura, outros queixavam-se da solidão.

DRAGÃO Às vezes o coração pára. Subitamente acelera. Sempre que os cães uivam o coração pára. Sempre que os grilos cantam ele acelera. As crianças já não caçam grilos nem se comovem com o uivo dos cães. Matilhas de cães abandonados, famintos. Cães quase lobos. As crianças já não coleccionam bichos de seda. Mas que raio de colecção para uma criança fazer. Às vezes o coração pára. O insomníaco uivo dos cães obriga-o a parar. Mas logo subitamente ele acelera. Basta que escute os grilos. Nada confirma o sacrifício irradiante que acontece entre o momento de às vezes o coração parar, para logo de súbito acelerar. Há uma monotonia neste mecanismo que atravessa todas as coisas que vivem desta maneira, uma monotonia universal. Não digamos apenas coisas. Digamos que talvez seja já o homem que há nas crianças a cuspir fogo.

ESFINGE Terrível é olhar a mulher grávida dormindo, sua serena mão aconchegando o ventre, e não poder deixar de pensar: dentro de momentos, esta imagem autodestruir-se-á. Terrível é olhar uma mãe morta. Terrível é ver a criança nascida, embalada pela respiração da mãe, com suas pequenitas mãos adormecidas sobre o peito materno, e não poder deixar de pensar: guarda este instante, pois dentro em breve ele será um mero fragmento. Terrível é ver uma infância morta dentro da maturidade. 40


LOBISOMEM Não preciso de luas cheias para que os uivos se soltem da garganta e sigam disparados contra as estrelas. Basta-me o quarto minguante das iniquidades, a lua gibosa dos hipócritas, a mediocridade dos cretinos aleitados pela sagrada vaca da pesporrência. Na verdade, não careço de dia treze para que o azar me bata à porta e entre sem sequer eu ter oportunidade de perguntar quem bate. Queixar-me não posso, mas dói quando o pêlo irrompe dos poros, as unhas saltam afiadas para fora dos dedos, os dentes procuram a carne que satisfaça o apetite. Quem pensar que não dói, desengane-se. Pago a raiva com uma incomensurável solidão. Mais ainda quando dizem estar comigo todos os crápulas de latido dissimulado. Debaixo do meu uivo, mal podem imaginar sua ínfima condição de cachorros domésticos.

NUVENS Já nada perguntam, as nuvens. Não têm dúvidas. Só o céu que por elas passa, de quando em vez, se interroga sobre as árvores caídas. Onde farão os pássaros seus ninhos? Em que árvores pousarão seus cantos? Em que cantos pousarão seus rituais de amor? Como eles, os desterrados. Cada vez mais próximos da terra, os pássaros parecem agora gafanhotos. Cada vez mais enterrados, os homens parecem agora toupeiras. Porém, desterradas toupeiras. A cada ser responde o declínio com uma fatia a menos de ar. Os homens puxam das orelhas seus mp3 terapêuticos. Puxam e puxam e puxam, até que no lugar dos auscultadores surjam tímpanos inflamados. Os homens têm os tímpanos nas mãos. Nada escutam, nada ouvem, ensurdeceram como as nuvens que já nada perguntam. Desterrados são os homens sem dúvidas. Os nossos, os de agora, desterrados como as nuvens.

OPHIUCHUS Já ninguém se indigna com o que quer que seja. Toda a gente tem perguntas a colocar, dúvidas a fazer, objecções a levantar. Não haja dúvida, porém, de que já ninguém se indigna com o que quer que seja. Houve um tempo em que a indignação se confundia com a ignição, agora ela é apenas o recheio de um saco de tempo perdido. Talvez seja mesmo preferível uma metáfora, uma vestimenta distintiva, maquilhagem a condizer, compras no supermercado.

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Há poetas que citam outros poetas e dizem indignar-me é o meu signo diário. Mas dizem isto com as mãos nos bolsos e os ombros encolhidos. Talvez tenham razão e eu esteja equivocado. Talvez seja preferível afundar a indignação no saco, aconchegar as costas ao conforto da poltrona e exercitar os dedos num teclado. Façam-se weblogs, corredores por onde passear a maçã inerte da nossa agonia. Afinal, teremos todos um ar muito respeitável à hora da nossa morte. E uma licenciatura também.

OS AMEAÇADOS Os ameaçados calam-se. Concentram-se nas tripas e omitem, fingem não saber, olham para o lado. Sabem tudo, vêem tudo, regam teorias com o cuspo das palavras. Falam em demasia aquilo que calam. Os ameaçados plagiam as horas com fintas cheias de estilo. Preferem votar à ignorância o que julgam estar ao seu alcance. Eles não entendem o quão rasteiras são as suas vidas, que aos répteis foi atribuído o dom de: arrastar o corpo sobre a própria porcaria. Envolvem tudo num véu discutível e dizem sim ao flash, para à mesa discutirem com a família o ângulo perfilado de medo. Engraxam os sapatos, por isso sujam os dedos. Vestem o melhor fato, frequentam casas de chá, pedem uma cerveja ao fim da noite e suspiram por fim o desgosto de estarem tão sós no seu rasteiro caminho. Gosto dos ameaçados, quem mais lembra a ditadura do esquecimento. Gosto de os ver perdidos como cães cegos focinhando contra a vaidade.

QUIMERA Nada disto, absolutamente nada, tem que ver com poesia. Isto é mais do domínio excessivo das armas íntimas, uma nova forma de estar com os outros. Isto é como aquelas tardes que começam cedo a despedir-se do dia. Uma árvore seca, uma lagoa choca, um pedregulho a desfazer-se em pequeninos grãos de areia. É o ínfimo do papel, a cinza. Isto é, sucessivas ameaças de morte sucedendo-se umas às outras ao ritmo das páginas voltadas de um jornal diário. Isto é uma técnica de colonizar versos. Mata-se um líder, faz-se a guerra, regressa-se a casa para o jantar. Nada disto, absolutamente nada, tem já que ver com poesia. Só se for a crosta que fica do bombardeamento, o fumo que matiza o céu sobre nós caído, o sangue derramado em cada sombra. Se ao menos pudéssemos atravessar as sombras, sentir-lhes a transpiração dos nossos anseios.

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Mas nada disto tem já que ver com poesia. Tarde demais. Devolvamos ao mundo a sua sinfonia de arrendamentos. Paguemos com o corpo a alma dos nossos ossos. Em cada fio de transpiração, esta música de estarmos mais perto do estremunho com que pomos termo a todos os pesadelos.

VELHAS Vou até à varanda e debruço-me para ver se algum dos outros inquilinos terá tido a mesma ideia. Alain Morin

Que farão as velhas, debruçadas no parapeito das pedras, com as rugas encaixadas umas nas outras como se a idade fosse um puzzle? Que farão, de lentes grossas, os seus olhos quase cegos que tudo vêem e observam? Vestidas de negro, de lenço na vergonha, as velhas iludem a insatisfação dos velhos rituais. Sobrepõem imagens desfazendo-se como o papel debaixo de água, ambientes submersos na memória do passado. Que nos dizem as velhas? Que estaremos quase mortos. Plantaram enxovalhos, colheram espigas de ódio e traição, cuidaram dos filhos, curvaram-se aos maridos, tiraram fotografias – a primeira das quais num domingo frente à igreja, em dia de visitar mortos no cemitério. Olho as velhas desdentadas e rio-me dos seus pescoços galináceos, maiores que os dias, com tanto de invadirem o caos da terra. Têm pescoços elásticos que se levantam sobre a sombra e espreitam pela fechadura dos segredos. As velhas são o esplendor desta guerra. Não há escritor que lhes valha, não há vigor que lhes crepite a ostentação de um fim. Somos todos um plágio das velhas.

AS VÉRTEBRAS As vértebras são um elemento essencial na personalidade. A postura diz muito das pessoas, a forma como colocam os pés à frente das costas e a barriga acima da testa. Um endireita é, antes de mais, um tratador da alma. A cor bege fica mal às pessoas decompostas, sobretudo se tiverem dores nas costas. As pessoas com dores nas costas são como os filhos-da-puta: aprendem mais depressa que as mães. Gilles Deleuze e Félix Guattari lembram: as bandeiras, as nações, os exércitos e os bancos fazem tesão a muita gente. Às vezes fazem tanto que inflamam o músculo. 43


Um músculo inflamado é como um deus curvado. Isto não é nenhuma metáfora, é mais real do que escrever sobre tabernas. A taberna é hoje uma metáfora, as bandeiras não. São ossos. Diria mesmo que há pessoas que estão para os ossos como os ossos estão para a história. Faltam-nos arqueólogos, gente que reconstrua os sinais da invídia. Saberá o leitor o significado da palavra invídia? Se procurar no dicionário, não procure num da Porto Editora. Lá aparece inveja, mas na realidade invídia quer apenas dizer músculo inflamado.

ZAROFF Um dia entrou numa livraria e, folheando ao acaso um dos livros em que o olhar primeiro se deteve, leu: “Vem sempre dar à pele o que a memória carregou…” Fechou-o e fugiu dali, horrorizado. Luís Miguel Nava

A chuva passa pelas crianças aos saltinhos. Calçam-lhes botins de borracha com olhos de sapo para que possam saltar para dentro das poças, para que possam molhar as bainhas, enxaguar as nódoas negras deixadas pelas mãos dos pais. Regressam a casa, sentam-se ao fogão eléctrico, apanham choques. Comem uma tosta com manteiga a esbarrar pelos dedos, enxugam assim os receios antes de adormecerem. Quando dormem não têm sonhos, só acordadas – durante a dança da chuva, contra as paredes dos carros, contra o ar, contra os cães vadios que ladram a tudo o que mexe, excepto se tudo o que mexe for um deles atropelado. As crianças passam pela chuva aos saltinhos como se fosse um sonho, como se não houvesse país, como se não existissem pais. Mas eles existem, estão longe, estão perto, estão distantes. Uns bebem pelo gargalo os sonhos que lhes roubaram, a chuva a passar por eles quando ainda saltava. Outros escorregam para dentro das poças e lá se deixam ficar, vidas inteiras, à procura dum naco de lodo por onde possam sair. Há ainda os que vencem na vida como um cão a uivar. Esses, deixam para sempre os filhos para trás e entregam-se a pais falsos, ao país, como uma chuva fria, de pedra, a escorrer pelas paredes ate ao chão onde depois escorregam e caem e soçobram a pensar: como era boa a chuva quando passava por nós aos saltinhos.

O PRIMEIRO AMOR Com o passar dos anos, o ursinho de peluche foi trocado por um lego, o lego foi trocado por um livro, o livro foi trocado por uma consola, a consola foi trocada pelo primeiro amor, o primeiro amor foi trocado por uma mulher, a mulher foi trocada 44


pelos filhos, os filhos foram trocados pelo trabalho, o trabalho foi trocado pelo solidĂŁo, a solidĂŁo foi trocada pelo ursinho de peluche. Um homem regressa sempre ao seu primeiro amor.

§

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[GONÇALO M. TAVARES] TRÊS SONHOS: 1.º SONHO DE CALVINO Do alto de mais de trinta andares, alguém atira da janela abaixo os sapatos de Calvino e a sua gravata. Calvino não tem tempo para pensar, está atrasado, atira-se também da janela, como que em perseguição. Ainda no ar alcança os sapatos. Primeiro, o direito: calça-o; depois, o esquerdo. No ar, enquanto cai, tenta encontrar a melhor posição para apertar os atacadores. Com o sapato esquerdo falha uma vez, mas volta a repetir, e consegue. Olha para baixo, já se vê o chão. Antes, porém, a gravata; Calvino está de cabeça para baixo e com um puxão brusco a sua mão direita apanha-a no ar e, depois, com os seus dedos apressados, mas certeiros, dá as voltas necessárias para o nó: a gravata está posta. Os sapatos, olha de novo para eles: os atacadores bem apertados; dá o último jeito no nó da gravata, bem a tempo, é o momento: chega ao chão, impecável.

PROBLEMAS E UMA SOLUÇÃO O senhor Calvino era muito alto e a sua cama não correspondia.

Quando dormia assim, como no desenho acima, ficava com a cabeça de fora. Sentia que as ideias pingavam uma a uma, para o chão, como de um pote de água furado. Acordava vazio, sem iniciativa. Por outro lado, quando dormia assim

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ficava com os pés de fora e não se conseguia libertar da sensação de que estava a cair. E o pior não era a sensação de queda, mas sim o facto de o chão nunca aparecer. Acordava cansadíssimo. Por essa razão, o senhor Calvino dormia sempre na diagonal

Deste modo, além de não ficar nenhuma parte do seu corpo de fora, tinha a sensação de atravessar mais rápido a noite. Mal adormecia, acordava logo.

COMO AJUDAR OS REFORMADOS Por inadvertência a senhora de idade avançada – contava o senhor Calvino –, reformada, já sem agilidade para recuar ou avançar mais rápido, ficou entalada no portão que se fechara devido a um automatismo que, esse sim, ainda funcionava como se estivesse em plena juventude. Ali se viu, pois, a velhota, instalada de maneira invulgarmente incómoda entre o exterior e o interior da propriedade. Exactamente no meio. – E por que razão estava ela ali? – perguntou Calvino aos seus interlocutores. – Simples – continuou Calvino –, depois de vários anos sem qualquer contacto com esse seu vizinho, de modo imprevisto, a senhora fora convidada para um chá. Na altura, ficou contente – toda a gente aprecia que lhe dêem um pouco de atenção – mas agora, com o portão encravado mesmo entre as omoplatas, não poderia deixar de se sentir incomodada. Estranhou depois os dias passarem e o dono da casa não vir saber dela. E ninguém entrava ou saía da extensa propriedade e por isso o portão ali continuava, imóvel, pressionando o seu corpo contra o suporte de ferro que servia de base ao portão. Ao fim de uma semana começou a sentir uma dor na cabeça, mais propriamente na zona da nuca. O portão continuava a fazer pressão sobre os seus ossos, já um pouco enfraquecidos pela idade. Mas por que razão a convidaram se era notório que não sentiam a sua falta?

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A COLHER Para treinar os músculos da paciência o senhor Calvino colocava uma colher de café, pequenina, ao lado de uma pá gigante, pá utilizada habitualmente em obras de engenharia. A seguir, impunha a si próprio um objectivo inegociável: um monte de terra (50 quilos de mundo) para ser transportado do ponto A para o ponto B – pontos colocados a 15 metros de distância um do outro. A enorme pá ficava sempre no chão, parada, mas visível. E Calvino utilizava a minúscula colher de café para executar a tarefa de transportar o monte de terra de um ponto para outro, segurando-a com todos os músculos disponíveis. Com a colher pequenina cada bocado mínimo de terra era como que acariciado pela curiosidade atenta do senhor Calvino. Paciente, cumprindo a tarefa, sem desistir ou utilizar a pá, Calvino sentia estar a aprender várias coisas grandes com uma pequenina colher.

O SOL Calvino tinha nas mãos um livro cuja capa estava já por completo desbotada pelo sol. O que antes era uma cor verde-escura estava agora transformada num verde tranquilíssimo, quase transparente. Olhou para os outros livros na prateleira. Todos estavam a perder a sua cor original, como se a luz do sol mastigasse ou roesse – sim, aquilo parecia o trabalho de um roedor subtil – a capa dos livros. Um livro, por exemplo, que fora colocado há menos de um mês nesse local da casa onde o sol, a dadas horas do dia, incidia directamente, apresentava um aspecto curioso: apenas uma linha da parte de cima perdera a cor, para baixo o resto da capa mantinha o vigor da coloração inicial. Não se sabe por que associação de ideias, mas Calvino lembrou-se das diferenças entre as zonas do corpo tapadas ou não tapadas, durante o verão, pelo fato de banho. Olhou de novo para a prateleira e para as capas sem cor e subitamente como que percebeu tudo: a origem primeira do fenómeno, os verdadeiros motivos daquele acontecimento que alguém poderia classificar apenas, à superfície, como um acontecimento químico. Mas não era assim tão simples. Calvino não estava perante uma mera alteração de substâncias, havia ali uma vontade, uma vontade forte que se diria munida de músculos frágeis. E essa vontade insuficiente vinha do sol: o sol queria abrir os livros, a sua luz concentrava-se, com toda a potência, na capa de um livro porque o queria abrir, queria entrar na primeira página, ler as narrativas, reflectir a partir das grandes frases, emocionar-se com os poemas. O sol queria simplesmente ler, ambicionava-o como a criança que está prestes a entrar na escola.

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Calvino meditou. De facto, não se lembrava de ter visto uma única vez um livro aberto ao sol numa das suas páginas. Bem vulgar era que alguém, ao ar livre, pousasse um livro numa mesa ou num banco de jardim (ou mesmo no chão), mas sempre, percebia agora Calvino, sempre com as duras capas fechando o seu conteúdo, tapando o acesso às principais palavras. Era tempo pois de alguém agir. Era tempo de alguém retribuir esse toque carinhoso que em certos dias a luz do sol projecta no rosto do homem, tranquilamente, mas como que o salvando de uma grande tragédia, do desespero, por vezes mesmo do suicídio. Calvino olhou de novo para os livros da prateleira contemplada pelo sol. Rapidamente passou os olhos pelas lombadas. Estava a escolher um livro para alguém ler. Com atenção profunda escolhia o livro mais apropriado; não estava, repare-se, a escolher de acordo com o seu gosto, mas sim de acordo com o gosto do outro. E finalmente tirou o livro. Eis um bom primeiro livro para um leitor!, exclamou Calvino para si próprio. Abriu-o, a seguir, na primeira página, passada a ficha técnica (quem a quer ler?) e pousou o livro, assim, aberto, no início da narrativa, virado para o ponto por onde o sol costumava descer: (“Alice começava a ficar mais que farta de estar para ali sentada ao lado da irmã, na margem do rio, sem nada para fazer.”) Amanhã, voltaria de novo para virar a página. E nos dias seguintes faria o mesmo até ao final do volume. E se, depois disso, a luz do sol continuasse a forçar a entrada nos livros, Calvino respeitaria esse ímpeto avaliando-o como a ansiedade de um leitor que já começou e não quer parar, não consegue: quer ler mais. Se fosse caso disso, Calvino escolheria outro livro – colocando algo de novo debaixo do sol – depois outro e outro, e voltaria todas as manhãs, sem falta, antes de nascer o dia, para virar a página.

Apesar de a sala estar praticamente vazia o senhor Brecht começou a contar as suas histórias. […] O DESEMPREGADO COM FILHOS Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão. Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou. Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego. Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a mão que te resta. Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou. 49


Mais tarde foi despedido e de novo procurou emprego. Disseram-lhe: só te oferecemos emprego se te cortarmos a cabeça. Ele estava desempregado há muito tempo; tinha filhos, aceitou.

ESTÉTICA Uma mulher gorda que queria perder peso, chegou ao médico e disse: Corte-me uma perna.

A VIÚVA Mediu o morto e confirmou o facto: a morte encurtara-lhe as pernas. O resto do corpo permanecia igual, mas as pernas haviam encurtado quinze centímetros, e apenas em duas horas. Mais tarde o fenómeno acelerou. No dia seguinte o morto era já composto apenas por uns sapatos pretos novos e pela cabeça. A mulher do defunto estava irritadíssima. Só conseguia pensar no dinheiro desperdiçado no enorme caixão de madeira. – A minha madeira, a minha querida madeira! – murmurava ela, sem que ninguém a ouvisse. No dia do enterro a viúva não suportou mais e, à frente dos familiares, desatou a chorar, agarrada à madeira do caixão.

O ESTRANGEIRO O homem entrou para o coro, mas insistia em cantar individualmente uma canção que só ele conhecia. O maestro, que gostava de integrar todas as pessoas, cheio de boa-vontade, pediu ao novo elemento para lhes ensinar a canção. Esta, no entanto, era numa língua que mais nenhum elemento dominava. O homem explicou que, para cantarem com ele, teriam primeiro que aprender aquela língua pois só assim conseguiriam absorver por completo o significado de cada palavra da canção. O homem começou assim a ensinar a língua aos outros elementos do grupo, passando por regras de gramática, questões etimológicas e por fim pelas entoações correctas. Passados dois anos os elementos do grupo estavam finalmente aptos a cantar aquela canção na língua que haviam aprendido arduamente. 50


Ensaiaram vezes sem conta. Todos os elementos do coro estavam entusiasmados. Marcou-se a estreia, mas o homem não compareceu. E nunca mais ninguém o viu na cidade.

A REVOLTA Para o Rei era fundamental que toda a população, sem excepção, estivesse satisfeita. Quando apareceu aquele estrangeiro extremamente feliz e com seis dedos em cada mão, o Rei ordenou que os médicos do Reino implantassem mais um dedo em cada um dos habitantes. E que os médicos fizessem o mesmo uns aos outros. Ninguém invejaria os seis dedos daquele estrangeiro. Assim se fez. Todos ficaram com seis dedos em cada mão. No ano seguinte chegou outro estrangeiro – com um ar ainda mais feliz – que tinha sete dedos em cada mão. O Rei de novo ordenou que os médicos do Reino implantassem mais um dedo em cada um dos habitantes. Assim foi feito. No ano seguinte um estrangeiro com oito dedos por mão, que não parava de exibir a sua felicidade, provocou nova implantação geral: oitavo dedo. No ano seguinte: um estrangeiro com nove dedos. E ainda mais feliz. A mesma operação. Todos os do Reino ficaram com nove dedos em cada mão. Dezoito no total. Foi então que no ano seguinte chegou um estrangeiro com o rosto mais feliz que alguma vez fora visto por ali e com cinco dedos em cada mão. Depois de um momento de hesitação, o Rei ordenou aos médicos que cortassem quatro dedos por mão a cada habitante. Havia um problema, no entanto. Os nove dedos em cada mão dos cirurgiões já não conseguiam operar: os dedos atrapalhavam-se uns aos outros. Já não era possível: teriam que ficar todos com nove dedos em cada mão. Como o Rei não conseguiu dar à população os cinco dedos daquele estrangeiro feliz, rebentou uma revolta, e o Rei foi deposto.

PERFECCIONISMO Um pássaro foi abatido a tiro. Acabava de passar a fronteira.

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A IMPORTÂNCIA DOS FILÓSOFOS O filósofo dizia que só os homens faziam o importante, enquanto os animais só dispunham de acções insignificantes. Foi então que chegou o tigre e devorou o filósofo, comprovando com os dentes a teoria anteriormente apresentada.

O PERIGO DA CULTURA Uma galinha pensava tanto e era tão culta que ganhou uma obstrução interior, deixando de pôr ovos. Mataram-na no dia seguinte.

O AMIGO Era um rapaz passivo. Aceitava tudo o que vinha dos chefes. Porém, como era bajulador, incomodava. Cortaram-lhe a língua: deixou de elogiar. Depois cortaram-lhe os dedos. Deixou de escrever textos laudatórios. Foi num desses dias que, com a cabeça a bater numa mesa – em código morse – ele disse, para os seus chefes: – Mais uma como esta e perdem um amigo.

O PRESIDENTE Um pintor que não tinha jeito para as cores, mas pegava bem no pincel, foi escolhido para maestro da banda. A escolha foi feita pelo presidente da cidade, que era praticamente surdo, mas apreciava os gestos minuciosos do pintor. Foi a sua primeira e única decisão. O presidente tinha sido eleito porque era muito indeciso e pelo menos assim não incomodaria ninguém. A população, no entanto, quando ouviu o primeiro concerto da banda, revoltou-se. Voltem a dar uma tela ao maestro!, alguém gritou. O presidente, satisfeito, depois da sua primeira decisão ao fim de quatro anos, e julgando que a população estava a gritar Bis, decidiu candidatar-se a um segundo mandato. A população, apesar da música, elegeu-o de novo.

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UM HOMEM Num certo país apareceu um homem com duas cabeças. Foi considerado um monstro, e não um homem. Noutro país apareceu um homem que estava sempre feliz. Foi considerado um monstro, e não um homem.

OS SÁBIOS Uma galinha, finalmente, descobriu a maneira de resolver os principais problemas da cidade dos homens. Apresentou a sua teoria aos maiores sábios e não havia dúvidas: ela tinha descoberto o segredo para todas as pessoas poderem viver tranquilamente e bem. Depois de a ouvirem com atenção, os sete sábios da cidade pediram uma hora para reflectir sobre as consequências da descoberta da galinha, enquanto esta esperava numa sala à parte, ansiosa por ouvir a opinião destes homens ilustres. Na reunião, os sete sábios, por unanimidade, e antes que fosse tarde demais, decidiram comer a galinha. Depois de contar a última história o senhor Brecht olhou em redor. A sala estava cheia. As pessoas eram tantas que tapavam a porta. Como poderia agora sair dali?

A QUESTÃO O senhor Henri disse: se a laranja viesse de uma árvore chamada macieira, à laranja teria de se chamar maçã ou era à maçã que se teria de chamar laranjeira?

O BANCO DO JARDIM O senhor Henri estava no jardim em frente ao seu banco preferido, onde sentada uma mulher tocava violino. O senhor Henri interrompeu a violinista e disse: António Stradivarius foi o mais famoso construtor de violinos. … era o arquitecto dos violinos, bem se pode dizer. … ele experimentou vários tipos de violinos até se decidir pela dimensão e forma do actual violino Stradivarius. … eu poderia ter sido um grande violinista, mas nunca soube tocar violino. … porém, o álcool apareceu muito antes do violino. 53


… muito antes de existirem violinistas já existiam pessoas inspiradas artisticamente pelo álcool. … por isso faça o favor de sair desse banco com o seu violino. … porque esse banco é meu – disse o senhor Henri.

O AZAR O senhor Henri disse: as maldições são cálculos matemáticos que acertam no futuro e esperam por nós. Entretanto, o senhor Henri baixou-se para apertar um sapato e, nesse momento, uma enorme pedra passou por cima da sua cabeça e caiu violentamente no chão. ... a minha sorte foi mais uma vez pontual – disse o senhor Henri, depois de se levantar. ... ou seja: a minha sorte está sempre sincronizada com o meu azar. ... se uma pedra me batesse na cabeça seria azar – disse o senhor Henri. ... mas felizmente veio a sorte de me ter baixado no momento em que a pedra me queria abrir a cabeça. ... as pessoas que têm azar não deixam de ter sorte. ... o que têm é sorte nos momentos errados – disse. ... é como se no meio do deserto encontrassem um saco cheio de areia... – disse o senhor Henri.

A PORCARIA O senhor Henri disse: os celtas acreditavam que se tornasses surdo um homem, esse homem ficaria para sempre teu escravo, porque não poderia recolher ensinamentos de mais ninguém. ... mas isto era no tempo em que a escrita ainda não tinha sido inventada. Nem o cinema. ... agora é preciso tornar surdo, cegar, cortar as mãos e os pés de um homem se o quiseres como escravo. ... é que nos dias que correm aprende-se por todos os lados do corpo. ... o que na minha opinião é uma falta de higiene.

O MOTOR A DOIS TEMPOS O senhor Henri disse: hoje não vou tocar num copo. 54


... haverá, então, alguém disponível para me despejar absinto pela garganta? ... estou a brincar – disse o senhor Henri. ... metade do prazer de beber absinto está em pegar no copo. ... metade talvez seja um exagero. ... quero um copo cheio de absinto até aos miolos, e já – disse o senhor Henri. … quando eu deixar de frequentar este estabelecimento vossas excelências irão ter saudades minhas. ... eu sou um dos grandes financiadores deste honrado estabelecimento. ... visto numa lâmina de microscópio um rei é um conjunto de vermes de 30 cores diferentes – disse o senhor Henri. ... o microscópio é o invento mais importante para a democracia. ... um pobre ao microscópio tem tantos vermes e tantas cores como um rei. ... se não tivesse sido inventado o microscópio não teria sido inventada a democracia. ... os Gregos foram mais ou menos uma democracia sem microscópio o que é, de facto, uma grande porcaria. [...]

A REALIDADE O senhor Henri disse: se um homem misturar absinto com a realidade obtém uma realidade melhor. ... podem crer, excelentíssimos ouvintes, que vos falo, não por via de uma erudição, que sem dúvida alguma possuo em grandes quantidades; mas não, não é por aí que a minha voz vem. ... a minha voz vem da experiência, caros concidadãos! ... é verdade que se um homem misturar absinto com a realidade fica com uma realidade melhor. ... mas também é certo que se um homem misturar absinto com a realidade fica com um absinto pior. ... muito cedo tomei as opções essenciais que há a tomar na vida – disse o senhor Henri. ... nunca misturei o absinto com a realidade para não piorar a qualidade do absinto. ... mais um copo de absinto, caro comendador. E sem um único pingo de realidade, por favor.

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O CONTRATO O senhor Henri disse: os meus pais não me adormeciam com histórias infantis. ... os meus pais adormeciam-me a ler contratos de arrendamento e outros. ... o meu pai trabalhava num notário que tinha um notário e três homens que ninguém notava. ... o meu pai era um deles. … o meu pai não tinha tempo para estar comigo e não tinha tempo para reler os contratos que era obrigado a redigir. … o meu pai aproveitava os momentos antes de eu dormir para me ler alto os contratos e assim verificar erros, e eu cresci a pensar que as histórias infantis tinham sempre dois lados, o lado da direita e o lado da esquerda, dois outorgantes, e que um só dava uma coisa em troca de outra. … só mais tarde percebi que isto acontecia mesmo na vida real – o dá e recebe – e só nos livros infantis é que se dava algo sem querer receber nada em troca. … antes de morrer o meu pai chamou-me e disse: nunca faças nada sem antes celebrares um contrato. … foram as suas últimas palavras. Era um homem sensato. … mais um copo de absinto!, excelentíssimo 2.º outorgante aqui presente. … muito obrigado.

A TEORIA O senhor Henri disse: o telefone foi inventado para as pessoas poderem falar afastadas umas das outras. … o telefone foi inventado para afastar umas pessoas das outras. … é exactamente como o avião. … o avião foi inventado para as pessoas viverem afastadas umas das outras. … se não existissem aviões nem telefones as pessoas viviam todas juntas. … isto é uma teoria, mas pensem bem na teoria. … o que é preciso é pensar no momento em que ninguém espera. … é assim que os surpreendemos.

A FISIOLOGIA […] … a vantagem do álcool é que mexe cá dentro pois é um anarquista interior, o álcool. … muito mais eficaz que as ideias revolucionárias. … pensar não nos transtorna tanto interiormente como um copo de absinto e os intelectuais deveriam pensar com seriedade neste facto. 56


… eu não sou um intelectual, mas poderia ser – disse o senhor Henri. … se por cada vez que bebi um copo de absinto nesta excelentíssima biblioteca tivesse lido um livro nas outras bibliotecas, já saberia de cor a história inteira dos Visigodos. … o problema é que há mais povos que cerejas, e se eu aprendo a história toda dos Visigodos, perco o tempo necessário para estudar a história dos Ostrogodos, que por acaso não existem. … o melhor era reunirem todos os factos e todos os acontecimentos num livro, e depois reduzirem esse livro a metade do tamanho, e assim sucessivamente, até conseguirem pôr todos os conhecimentos do mundo numa frase de dez palavras. … depois cada um decoraria apenas esta frase, tendo tempo, então, para se divertir a sério a beber copos de absinto, uns a seguir aos outros, como os Deuses recomendam. … no entanto há muito tempo que não me consigo concentrar totalmente nos copos de absinto decido às minhas necessidades intelectuais. … eu tenho quase tantas necessidades intelectuais como fisiológicas. … se eu contabilizar as vezes que a urina me acorre ao vaso de baixo, e as vezes que a vontade de saber factos me acorre ao vaso de cima, decerto que a contabilidade de cima será bem superior à de baixo. … e isto já tendo em consideração que o absinto apela muito à liquidez. … por mais estranho que vos possa parecer, no fim do ano eu apresento um claro défice no vaso de baixo. … com mais solicitação intelectual que fisiológica não há dúvida nenhuma de que, afinal, me posso incluir na categoria dos intelectuais. … eu tenho mais raciocínio que fisiologia, caros amigos. E basta olhar um segundo para as vossas caras para perceber que o mesmo não se passa convosco. … espero que não se ofendam, mas a verdade é que os vossos rostos, caríssimos amigos, são puramente fisiológicos. … são fisiologia e nariz, as vossas caras. … enquanto o meu rosto, se observarem bem, é um pouco de fisiologia e um pouco de nariz, é certo, mas é principalmente uma máquina de raciocínio, um animal do pensamento, uma indústria filosófica. … só para vos dar um exemplo: sabem em que data foi inaugurado o primeiro porta-aviões? … nada: é só fisiologia. Vossas excelências cheiram até a fisiologia, o que é raríssimo. … foi em 1918, mil-novecentos-e-dezoito. Apontem e não esqueçam. … quando o senhor Henri vos faltar é que vão sentir a falta, é o que é. … uma rodada geral de absinto, que pago eu. … hoje sinto-me particularmente feliz.

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A GAVETA E A UTILIDADE O senhor Juarroz insistia em manter na casa uma gaveta para guardar o vazio. Costumava até dizer esta estranha frase: – Quero encher esta gaveta de vazio. Claro que a esposa do senhor Juarroz, cada vez com menos espaço em casa, protestava por aquilo que considerava ser uma péssima utilização do metro quadrado. Para impedir que a sua gaveta fosse ocupada por objectos desinteressantes, transformando-se num mero depósito, o senhor Juarroz por vezes abria-a, irritado, exibindo-a à sua esposa como quem exibe um tesouro: – A gaveta está totalmente vazia! – exclamava logo a esposa, como que a dizer: é o momento de a ocupar. Mas o senhor Juarroz discordava com a cabeça: – Ainda não totalmente vazia. Ainda falta. – Esperamos, então, mais um mês – murmurava, resignada, a paciente esposa do senhor Juarroz.

TEORIA SOBRE OS SALTOS A 2.ª parte do salto para cima é descer, mas a 2.ª parte do salto para baixo não é subir – pensava o senhor Juarroz. Se do chão saltares para cima ao chão voltarás, mas se de um 30.º andar saltares para baixo é provável que não voltes a subir ao 30.º andar. De qualquer maneira, o senhor Juarroz, por preguiça, usava sempre o elevador.

A ESCURIDÃO – A luz! A luz! Se existisse uma electricidade para fazer aparecer o escuro como existe uma electricidade para fazer aparecer a luz, o número de possibilidades duplicaria, mas também duplicaria a conta do mês. No entanto parece-me desagradável – pensava o senhor Juarroz – que baste desligar a luz para aparecer a escuridão. Para darmos a devida importância ao escuro – tanto, pelo menos, como damos à claridade, deveria ser necessário o acto de ligar a escuridão. Assim, quando se apagasse a luz, não surgiria logo o escuro, mas sim um qualquer estado intermédio.

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Só se dá importância ao que tem um custo: ligar a escuridão e pagar por ela, parece-me urgente – pensava o senhor Juarroz, um segundo antes de bater com o joelho contra uma mesa. – Quem desligou a porcaria da luz?! – gritou, irritado, o senhor Juarroz.

A BIBLIOTECA O senhor Juarroz gostava de organizar a sua biblioteca de maneira secreta. Ninguém gosta de revelar segredos íntimos. O senhor Juarroz primeiro organizara a biblioteca por ordem alfabética do título de cada livro. Rapidamente, porém, foi descoberto. O senhor Juarroz organizou depois a sua biblioteca por ordem alfabética, mas tendo em conta a primeira palavra de cada livro. Foi mais difícil, mas ao fim de algum tempo alguém disse: já sei! A seguir o senhor Juarroz reordenou a biblioteca, mas agora por ordem alfabética da milésima palavra de cada livro. Há no mundo pessoas muito perseverantes, e uma delas, depois de muito investigar, disse: já sei! No dia seguinte, assumindo este jogo como decisivo, o senhor Juarroz decidiu arrumar a biblioteca a partir de uma progressão matemática complexa que envolvia a ordem alfabética de uma determinada palavra e o teorema de Godel. Assim, para estranheza de muitos, a biblioteca do senhor Juarroz começou a ser visitada, não por entusiastas da leitura, mas por matemáticos. Alguns passaram tardes a abrir os livros e a ler certas palavras, utilizando o computador para longos cálculos, tentando assim encontrar a todo o custo a equação matemática de desvendar a organização da biblioteca do senhor Juarroz. Era, no fundo, um trabalho de descoberta da lógica de uma série, semelhante a 2 | 9 | 30 | 93 Pois bem, passaram dois, três, quatro meses, mas chegou o dia. Um reputado matemático, completamente eufórico, segurando, na mão direita, um bloco gigante coberto de números, disse: Já sei!, e apresentou depois a fórmula da série que baseava a organização da biblioteca. O senhor Juarroz ficou desanimado e decidiu desistir do jogo. Basta! No dia seguinte pediu à sua esposa para organizar a biblioteca como bem entendesse. Por ele estava farto. Assim foi. Nunca mais ninguém descobriu a lógica da organização da biblioteca do senhor Juarroz.

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O ÁRBITRO Como o senhor Juarroz não era muito adepto do desporto, optava por competir consigo próprio, através daquilo que ele designava como ‘os seus dois jogadores’: o pensamento e a escrita. Fazia, assim, jogos para verificar quem era mais criativo: se o seu pensamento se a sua escrita. Para o senhor Juarroz – que se considerava árbitro desta disputa, portanto: exterior e neutro em relação ao seu pensamento e à sua escrita – a vitória final era sempre da mesma parte: do pensamento. A sua escrita nunca conseguia ser tão original como os seus raciocínios. Porém, a decisão do senhor Juarroz levantava sempre grande polémica interna pois a escrita argumentava que possuía provas físicas e concretas da sua criatividade, ao contrário do pensamento, que nunca apresentava qualquer tipo de prova. A escrita do senhor Juarroz acabava sempre por o acusar de ser um árbitro parcial. Um batoteiro, portanto.

A MORTE DE DEUS O senhor Juarroz pensou num Deus que, em vez de nunca aparecer, aparecesse, pelo contrário, todos os dias, a toda a hora, a tocar à campainha. Depois de muito meditar sobre esta hipótese, o senhor Juarroz decidiu desligar o quadro da electricidade.

A CONSTIPAÇÃO De manhã, ofereceram ao Chefe o mapa do país, todo dobradinho, a cores, para que o Chefe deixasse de confundir o Norte com o Sul, o Litoral com o Interior, uma cidade grande com uma aldeia pequena, um castelo com um centro comercial moderno, uma fonte de água com uma taberna. Enfim, ofereceram o mapa do país ao Chefe para ele deixar de confundir tudo com o seu contrário. Mas como o Chefe guardou, distraído, o mapa no bolso, à tarde estava já a assoar-se a ele. – Raio de lenço que me ofereceram! – protestou. – É para partir o nariz! Os dois Auxiliares que, quando tinham testemunhas, eram muito patriotas – e naquele caso um era testemunha do outro – estavam gelados, ao longo de toda a espinha, da cabeça aos pés: aquilo não se fazia. Nem as luvas, nem o casacão ou o cachecol impediam os calafrios. Além disso, estavam alguns graus negativos. – Oh, Chefe. Isso não é um lenço: é o mapa do país! 60


– Ah! – exclamou o Chefe –, por isso é tão áspero! O Chefe protestou, encolheu os ombros e, como o mal já estava feito, continuou a assoar-se ao mapa. – Assoe-se ao litoral – propôs então um dos auxiliares. – É a melhor maneira de não fazer uma ferida no nariz. É mais mole. O Chefe, subitamente, parou, e fixou os olhos no seu Auxiliar. Uma certa comoção na atmosfera: aquela preocupação com a sua saúde… Sem uma palavra, o Chefe inclinou-se e deu um pequeno mas significativo beijo na testa do dedicado Auxiliar.

A PONTE (2) No dia seguinte, no entanto, o Chefe mudara de opinião. – Por razões que fazem parte da minha intimidade intelectual, que não me parece de bom-tom expor, decidi que não vamos fazer duas, nem uma. Vamos fazer três pontes. Lado a lado. Ou melhor: lado a lado a lado. Cada uma delas só com um sentido de trânsito. – A que distância umas das outras? – A distância exacta ainda não está decidida. Faltam-me cálculos. Estas decisões não podem ser tomadas antes de uma certa… Mas aponto para os cinquenta metros. Gosto do número. O Auxiliar escreveu no seu bloco de notas e sublinhou: 50 metros! – Vamos manter então duas pontes – continuou o Chefe –, cada uma apenas com um sentido de trânsito – uma para cá, outra para lá – e a terceira ponte ficará opcional. De manhã, quando existirem muitos carros para entrar na capital, a terceira ponte terá apenas o sentido periferia-capital. E, ao fim do dia, o sentido será capital-periferia. – Assim… – exclamou, tentando conter a sua emoção, um dos Auxiliares – … assim teremos sempre duas pontes abertas no sentido que necessita de escoar mais trânsito! – Exactamente – disse o Chefe. – E investimos três vezes mais na modernização do nosso país do que investiríamos só com uma ponte! – Exacto! – E Chefe… – Sim? – Chefe! Os lábios do Auxiliar tremiam de emoção. – Chefe, Chefe! – Diga, homem! 61


– Construir três pontes lado a lado ainda é mais inédito do que construir duas. – Nem me tinha lembrado disso. – É extraordinário!

INAUGURAÇÕES (1) O Chefe estava nervoso. Andava de um lado para o outro. – Nada para inaugurar, nada! Estes homens não fizeram uma única cadeira. Não há nada para inaugurar! – Nem uma agulha, Chefe. – Nem uma agulha para inaugurar – murmurou o outro Auxiliar. – Nem uma agulhinha! – Nem uma assim – insistiu o Primeiro Auxiliar, juntando, expressivamente, o polegar e o indicador. – Nem uma assim! Assim! – Nada! Os dois Auxiliares estavam como que hipnotizados por aquela lengalenga. – Nem o buraco de uma agulha se fez! – Nada. Nem um buraco. – Nem metade de uma agulha. – Nem metade do buraco de uma agulha. – Nada, nada! – Basta! – gritou o Chefe. – Já não vos posso ouvir! – Nós calamo-nos, Chefe. – Tive uma ideia – exclamou, subitamente, o Primeiro Auxiliar. – Bravo! – A minha ideia é a seguinte: o Chefe já alguma vez veio a esta terra tão desagradável, friorenta, deserta, nojenta até, sob certo ponto de vista, mas tão prometedora? – Eu? Claro que não. Você é louco? – Ora aí está! – O que é que aí está?! – Podemos inaugurar a sua presença nesta terra. É a primeira vez que o Chefe vem a este espaço. Isso não é extraordinário? – Começo a gostar da ideia. E faz sentido. – Nunca mais se fará nada de tão importante nesta terra! – Não seja exagerado – murmurou o Chefe, enquanto quase se afogava de contentamento no seu próprio queixo. – Talvez seja, então, de um de nós inaugurar a presença de Vossa Excelência nesta terra, Chefe. Que lhe parece? – Eu mesmo vou inaugurar a minha presença nesta terra!! 62


– Não é fácil – disseram os dois Auxiliares em coro. – Inaugurar e ser a coisa inaugurada ao mesmo tempo… Foi então que, levantando vigorosamente o queixo em direcção ao céu, o Chefe respondeu, de uma vez: – Sou um homem que gosta de enfrentar as dificuldades. E era, de facto.

INAUGURAÇÕES (2) […] – No fundo, inaugurar coisas que não sejam visíveis – esclareceu o Chefe. – Exactamente. – Inaugurar o invisível! Oh, Chefe, que ideia!!!

INAUGURAÇÕES (3) – No fundo, a ideia é passar esta mensagem: Tudo o que não se vê fomos nós que fizemos. – Excelente, é isso mesmo. – Porque em relação àquilo que se vê há sempre contestações: isto fui eu que fiz, isto foi o outro, etc., etc. Já se sabe como funcionam as pessoas. – As pessoas... – Assim ficamos à vontade. Sem nos sujeitarmos a críticas. – Completamente. – Podemos dizer: olhem em redor, olhem atentamente em redor: tudo aquilo que não se vê fomos nós que fizemos!! – Mais. Podemos até dizer: tudo aquilo que não se vê, antes de nós não existia. – Essa é inteligente. – Grande slogan. – Se há frases que são capazes de apanhar uma multidão num único golpe, essa é uma delas. – Excelente, excelente! – Mas deveríamos marcar um limite – disse um dos Auxiliares. – Limite, como? – Devemos dizer algo do género: tudo o que está à nossa volta numa área de 150 quilómetros quadrados e não se vê, foi feito por nós; antes de nós não existia. – É que se não traçamos limites, podemos apontar para coisas exteriores ao nosso país. – E então? 63


– Então, as pessoas podem desconfiar. Como é que conseguíamos fazer coisas – mesmo que invisíveis – fora do nosso país? Por exemplo no país vizinho? – Tem razão. – Mais: se dissermos que aquilo que não se vê do outro lado da fronteira foi feito por nós, arriscamo-nos a ser processados. Trata-se de uma questão jurídica. – Tem razão. – Fizemos tudo o que não se vê, mas só da fronteira para dentro. É isso? – É isso. – Parece-me bem.

AS SONDAGENS (1) As eleições aproximavam-se e as sondagens não eram boas para o Chefe. – A questão é esta – disse o Chefe –, quando um indivíduo, mesmo na plena posse do seu cérebro, diz que a sua opinião é para a esquerda e não para a direita, quem nos diz a nós que ele não pensa exactamente o contrário? – É uma questão que se pode sempre pôr. – Mais – prosseguiu o Chefe. – Quem nos diz que quando ele diz que quer ir para a esquerda não quer afinal de contas ir para a direita? – Já tinha pensado nisso – murmurou um Auxiliar. – Eu também já tinha pensado nisso – acrescentou o outro. – Pensámos ao mesmo tempo – concordaram os dois. – A minha teoria sobre as sondagens da opinião é, pois, em primeiro lugar, a seguinte – e passo explicar... Os dois Auxiliares haviam já colocado o rosto, por completo, em pose de orelha. O Chefe avançou: – Não basta receber a opinião da população. É necessário interpretá-la. Mesmo quando só escrevem uma cruz: o que significa essa cruz? Cada opinião pessoal deverá ser interpretada à lupa, por especialistas. – Que são...? – Que são aquilo que designo como: Especialistas do Eu. – Especialistas, portanto... – murmurou o Auxiliar – ... no estudo da mente humana, da personalidade... – Quem falou de humanos?! – ripostou o Chefe, carregando depois na primeira palavra. – Eu disse: especialistas no Eu. No Eu, percebem?! – Ah, especialistas em Vossa Excelência, no Chefe. – Ora aí está! Finalmente! E qual o melhor especialista no Eu, pergunto Eu? Quem está mais bem habilitado para interpretar a subjectiva opinião dos indivíduos altamente subjectivos deste país. Qual o melhor especialista no Eu? 64


– Vossa Excelência? – arriscaram os Auxiliares. – Exacto. Eu! Eu! Eu é que vou interpretar objectivamente a opinião subjectiva das pessoas. – Bravo! Eis a ciência.

SONDAGENS (2) – Tudo bem – aceitou o Chefe, finalmente. – Se as sondagens querem apelar à participação da população, que assim seja. – Falam em amostras ao acaso. – Ao acaso…? Que imprudência! – Ao acaso, mas não tanto. Há uma certa ordem, apesar de tudo. Com um certo número de mulheres, de homens, etc. Tudo muito científico. – Que se mantenha o científico das sondagens, sempre gostei da ciência. Mas que as unidades dessa ciência sejam definidas por mim. – Como assim, excelência Chefe? – A proposta que me parece mais justa e equilibrada é a seguinte: que se alargue a sondagem a uma amostra tanto maior quanto possível: homens, mulheres, jovens, velhos. E ainda outros… – Até os outros…? – Até os outros. – Isto é democracia! – Viva! – gritou logo o outro Auxiliar… – E se dê a todos eles o meu número de telefone. – Como? – O meu número de telefone – disse o Chefe. – Que cada um dos elementos dessa amostra representativa, escolhida aleatoriamente segundo critérios científicos, me telefone para saber a minha opinião. Assim teremos uma sondagem justa, com uma amostra alargada, e com uma opinião objectiva e ponderada. – Portanto, a proposta do Chefe é que a amostra da sondagem, em vez de dar a opinião, telefone ao Chefe para o Chefe dar a sua opinião a todos. – A um de cada vez. – Não nos poderão acusar de viciar os resultados? – Claro que não. A pergunta será sempre feita por uma pessoa diferente. É aqui que deveremos centrar a atenção. Qualquer elemento do povo poderá perguntar a minha opinião. Como poderão estar viciados os dados se é o próprio povo que me faz as perguntas? – Tem razão, Chefe. – E é original.

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DECISÕES LEGAIS, E OUTRAS (2) Lá chegou o legislador aos saltos: encontrara uma formulação para um decreto que parecia atingir o objectivo: fazer uma lei que não prejudicasse ninguém. – E qual é essa formulação, caro legislador? – É simples. Ela aqui está. E leu: “Esta lei decide que esta lei não decide nada.” – Mas isso é uma lei? – Se esta frase – porque no fundo, excelência, as leis são frases –, se esta frase for editada como decreto de lei passa a ser um decreto-lei. – “Esta lei decide que esta lei não decide nada” – murmurou o Chefe para si próprio, como quem repete um verso que o fascina. – É uma lei absolutamente moderna, não lhe parece? – Sim, parecendo uma lei conformista, é afinal uma lei drástica. – Porque as pessoas... – ia a dizer o Chefe, mas calou-se. – Sim, mais precisamente: o que todos querem é que nada mude, mas que a vida melhore. – Ah, não vai ser fácil. – Não. Mas se continuarmos nesta linha de leis, há uma série de variações que se podem desenvolver. Por exemplo: “Esta lei decide que se pode fazer de uma maneira ou de qualquer outra.” Que tal? Não é uma lei que também se enquadra no objectivo de fazer leis que não levantem qualquer protesto? “Esta lei decide que se pode fazer de uma maneira ou de qualquer outra.” É uma brilhante formulação, desculpe-me a imodéstia. – Sim, não é má. Mas eu sempre gostei de fazer leis concretas, objectivas, que as pessoas percebam. – Oh, Chefe, não seja teimoso.

DECISÕES LEGAIS, E OUTRAS (3) O Chefe não estava convencido. Gostava do som da lei, do seu ritmo, da forma como começava e acabava, mas o conteúdo da lei, esse, não o convencia por completo. Havia como que algo que faltava. Isso mesmo: faltava ali qualquer coisa. Mas o quê? O Chefe repetiu novamente, agora em voz alta: – “Esta lei decide que se pode fazer de uma maneira ou de qualquer outra.” – Já sei! – murmurou o Chefe. – Já sei de que é que sinto falta. É uma percepção muito individual, reconheço, mas é isto: nesta lei trata-se de permitir fazer 66


de uma maneira ou de qualquer outra – muito bem, mas a questão é: o quê? De que é que esta lei está a falar? – Isso nunca se explicita – murmurou, com condescendência, o Auxiliar mais velho –, deixa-se sempre a coisa ambígua, indeterminada. Fala-se de algo como se todos soubessem o que é esse algo. Eu não sei o que é esse algo, o Chefe não sabe, ninguém sabe, porém, pode ter uma certeza: a população gosta deste tipo de leis. – Gosta? – Claro que gosta. Poder fazer de uma maneira ou de qualquer outra? Há alguém que não goste deste tipo de imposições? – Mas o que é que muda com isto? – perguntou o Chefe. – O que é que muda, por exemplo, com: “Esta lei decide que esta lei não decide nada.” – Não muda nada. – Nada? – Nada. Mas é o que a população quer. – O que eu quero, sabe – exclamou o Chefe, no seu tom empolgado –, o que eu quero é fazer tudo, tudo, pela população! – Então, Chefe, não faça nada; eles não notam a diferença.

PAGAR MAIS IMPOSTOS É MUITO BOM PARA QUEM PAGA MAIS IMPOSTOS (1) – Trata-se no fundo… – Exacto, Chefe. No fundo! O Chefe tossiu, estava a meio da frase – não era ainda o momento para interrupções servis. – Trata-se no fundo – recomeçou, irritado, o Chefe – de um problema de crença, não de dinheiro. – De crença, Chefe? – murmurou o Primeiro Auxiliar. – Sim, de crença. Temos de passar a ideia de que os impostos são bons para a pessoa que paga impostos. Quanto mais pagar, melhor para ela. É nisto que ela tem de acreditar. – Oh, Chefe… – E temos de transmitir isto de um modo pedagógico; utilizando ainda, tanto quanto possível, complexas fórmulas e complexos raciocínios económicos. – Mas não é isso que estamos constantemente a fazer? – murmurou o Primeiro Auxiliar. – Não estaremos a ser suficientemente complexos? – perguntou o segundo, a medo. – É isso mesmo! – disse, de uma vez, o Chefe. – Por vezes vossas excelências simplificam, e isso é fatal. 67


– A vida nunca é simples – filosofou, de imediato, um dos Auxiliares. – Exacto. Devemos por isso investir ainda mais na publicidade técnica e obscura. Devemos investir mais na complexidade. – Temos de contratar mais economistas! – Isso.

OS AMIGOS O senhor Valéry era pequenino, mas dava muitos saltos. Ele explicava: – Sou igual às pessoas altas só que por menos tempo. Mas isto constituía para ele um problema. Mais tarde o senhor Valéry pôs-se a pensar que, se as pessoas altas saltassem, ele nunca as alcançaria na vertical. E tal pensamento desanimou-o um pouco. Mais pelo cansaço, no entanto, do que por esta razão, o senhor Valéry um certo dia abandonou os saltinhos. Definitivamente. Dias depois saiu à rua com um banco. Colocava-se em cima dele e ficava lá em cima, parado, a olhar. – Desta maneira sou igual aos altos durante muito tempo. Só que imóvel. – Mas não se convenceu. – É como se as pessoas altas estivessem com os pés em cima de um banco e mesmo assim conseguissem mexer-se – murmurou o senhor Valéry, cheio de inveja, quando regressava já a casa, desiludido, com o banco debaixo do braço. O senhor Valéry fez então vários cálculos e desenhos. Pensou primeiro num banco com rodas, e desenhou-o

Pensou depois em congelar o salto. Como se fosse possível suspender a força da gravidade, apenas durante uma hora (ele não pedia mais), nos seus percursos pela cidade. E o senhor Valéry desenhou o seu sonho, tão comum

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Mas nenhuma destas ideias era confortável ou possível, e por isso o senhor Valéry decidiu ser alto na cabeça. Agora, quando se cruzava com as pessoas, na rua, concentrava-se mentalmente, e olhava para elas como se as visse de um ponto 20 centímetros mais acima. Concentrando-se, o senhor Valéry conseguia mesmo ver a imagem do topo do cabelo de pessoas que eram bem mais altas que ele. O senhor Valéry nunca mais se lembrou das hipóteses do banco ou dos saltinhos, considerando-as agora, a uma certa distância, ridículas. Porém, concentrado de tal modo nesta visão, como que de cima, tinha dificuldade em se lembrar da cara das pessoas com quem se cruzava. No fundo, com a altura, o senhor Valéry perdeu amigos.

OS DOIS LADOS O senhor Valéry era perfeccionista. Só tocava nas coisas que estavam à sua esquerda com a mão esquerda, e nas coisas que estavam à sua direita com a mão direita. Ele dizia: – O Mundo tem 2 lados: o direito e o esquerdo, tal como o corpo; e o erro surge quando alguém toca o lado direito do Mundo com o lado esquerdo do corpo, ou vice-versa. Seguindo escrupulosamente esta teoria, o senhor Valéry explicava: – Eu dividi a minha casa em dois, com uma linha. E desenhava

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– Defini um lado direito e um lado esquerdo

– Assim, para os objectos do lado direito reservo a minha mão direita, e vice-versa. Nesse momento, perante uma dúvida colocada por um amigo, o senhor Valéry explicou: – Aos objectos muito pesados coloco-os exactamente com o seu centro na linha. E desenhou

– Assim – explicava o senhor Valéry – posso carregá-los utilizando a mão esquerda e a mão direita, desde que tenha o cuidado de os transportar com o seu centro exactamente sobre a linha divisória. – Para os objectos leves – continuou o senhor Valéry – não necessito de tantas preocupações: mudo-lhes a posição apenas com uma das mãos. A mão certa, claro. – Mas como manter esse rigor em todas as situações? – perguntou-lhe o mesmo amigo: – Quando o senhor Valéry está de costas, por exemplo, como sabe qual a parte direita e esquerda da casa? O senhor Valéry mostrou-se quase ofendido com a questão, pois não gostava de ser posto em causa, e respondeu, bruscamente: – Eu nunca viro as costas às coisas. (Isto era o que o senhor Valéry dizia, mas na verdade, para nunca se enganar, havia pintado todo o lado direito da casa, incluindo os seus objectos, de vermelho, e todo o lado esquerdo de azul. Assim se percebia melhor a verdadeira razão de o

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senhor Valéry ter pintado a sua mão direita de vermelho e a esquerda de azul. Não tinha sido um acto estético, como ele dizia. Era bem mais do que isso.)

OS SAPATOS O senhor Valéry andava pela rua com um sapato preto no pé direito e um sapato branco no pé esquerdo. Um dia disseram-lhe: – Trocou os sapatos. E riram-se. O senhor Valéry olhou, então, para os pés, e batendo na cabeça, exclamou: – Que disparate! Voltou a casa, trocou de sapatos, e regressou à rua, mais tarde, com um sapato preto no pé esquerdo e um sapato branco no pé direito. Quando lhe disseram, cada vez mais divertidos, Trocou de novo os sapatos!, o senhor Valéry enervou-se. Porém, recordando os princípios da lógica que havia aprendido, fincou os dentes, e para si próprio, enquanto continuava o seu passeio, exclamou: – Não. Agora têm de estar certos. O senhor Valéry explicava, a si próprio: – Parece um paradoxo, mas é mesmo assim: se estão trocados, é necessário trocá-los de novo para ficarem direitos. E desenhou:

E depois desenhou:

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– Uma destas duas situações tem que estar certa para a outra estar errada, já que são inversas. E se dizem que as duas estão erradas é porque as duas estão certas. O senhor Valéry, após esta conclusão, nunca mais se preocupou com o facto de trazer o sapato preto no pé direito ou no pé esquerdo. Está sempre certo, pensava. A CHAVE DE CASA Saído de um tribunal onde se ouviram versões contraditórias do mesmo acontecimento, o senhor Valéry disse: – A única hipótese de a verdade sobreviver é multiplicá-la. Se a verdade é uma única, e a mentira pode ser todos os biliões de possibilidades que restam, então, descobrir a verdade será quase impossível: um acaso milagroso; e a mentira, pelo contrário, aparecerá sempre, em todo o lado. E, para exemplificar o que dizia, o senhor Valéry fez um desenho

– O que é preciso é ter tantas verdades como mentiras – disse o senhor Valéry. (E desenhou)

– … ou então… – e o senhor Valéry não conseguiu deixar de fazer um sorriso irónico, enquanto desenhava

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– … ou então… – concluiu o senhor Valéry – é necessário ter uma única hipótese para a mentira. O senhor Valéry regressou de tal forma contente, com as conclusões que tirara da sessão de tribunal, que só quando viu que as chaves não entravam na fechadura se apercebeu de que estava em frente à casa errada. – Cá está – murmurou o senhor Valéry – se todas estas casas fossem minhas, com a excepção de uma, provavelmente não me tinha enganado. Seria mesmo muito azar enganar-me. E com este pensamento na cabeça o senhor Valéry, sem se aperceber, estava, de novo, em frente a uma porta errada. – Se ao menos fosse rico – murmurava o senhor Valéry – não me preocuparia com a mentira. E de tanto forçar a chave numa fechadura errada o senhor Valéry acabou por parti-la, o que muito o irritou. Felizmente tinha sempre consigo uma segunda chave. E para não falhar de novo concentrou-se totalmente na tarefa, esquecendo, assim, por momentos, os seus raciocínios. E desta vez a porta abriu-se.

O TRUQUE O senhor Valéry vestia sempre de negro. Ele explicava: – Ao verem-me de preto julgam-me de luto e, por compaixão, não me enviam mais sofrimento. E dizia ainda: – Não se pode sofrer o dobro de muito. É essa, aliás, a única razão por que consigo ser feliz, em certos dias: o meu fato de luto engana-os. E é sempre boa a sensação de enganar os mais fortes – acrescentava, orgulhoso, o senhor Valéry, nunca se sabendo propriamente a quem se referia. O senhor Valéry, porém, insistia: – É como uma reacção química. E desenhou

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– Se de um lado se encontra tudo escuro e do outro tudo claro, a tendência é para o lado escuro oferecer escuro ao lado claro, e o lado claro oferecer claridade ao lado escuro. Passado algum tempo encontra-se um equilíbrio. (E nessa altura o senhor Valéry fez outro desenho)

– O meu truque – dizia o senhor Valéry, enquanto distraído pelos raciocínios, vestia um fato branco – o meu truque – dizia ele – é andar sempre vestido de luto. Para atrair a alegria.

A TRISTEZA O senhor Valéry percorria sempre as mesmas ruas da cidade com os mesmos sapatos, um par de sapatos para cada rua. Desde que nascera que vivia por ali, mas só conhecia 5 ruas que percorria com os seus 5 pares de sapatos diferentes. O senhor Valéry explicava: – É que absorvo demasiado as coisas. É como se ao atravessar uma rua nova o chão ficasse colado aos meus sapatos e mais ninguém tivesse espaço para pousar os pés. É como se a partir daí só os pássaros pudessem percorrer a rua – finalizava, num tom poético, muito raro para si, pois era um homem que se orgulhava da sua lógica. – O problema – explicava o senhor Valéry – não é dos sapatos, é da minha vontade de levar para casa tudo aquilo em que toco. E o senhor Valéry clarificava: – Como não me sinto completo comigo apenas, penso que tudo o que não sou eu me poderá completar, e portanto quero-o para mim, e roubo-o ao mundo. – Na verdade, as ruas agarram-se aos meus sapatos porque eu não sou feliz – disse o senhor Valéry, melancólico. E depois disse ainda, recuperando os seus raciocínios habituais: – Se um triângulo rectângulo tiver saudades do tempo em que era um quadrado e se quiser voltar a ser de novo um quadrado, não deverá juntar-se ao que deseja ser (o quadrado), pois assim nunca ficará como deseja. E o senhor Valéry, depois deste raciocínio algo confuso, viu-se obrigado a desenhar para clarificar a ideia. 74


– Vejam, então, o que sucede se o triângulo rectângulo se juntar à forma em que deseja transformar-se, o quadrado. E o senhor Valéry desenhou

No fundo – disse o senhor Valéry, enquanto fazia outro desenho – devemos juntar-nos, sim, àquilo precisamente que não gostamos de ser, para assim nos conseguirmos transformar no que pretendemos. E o senhor Valéry desenhou

– E isto é confuso de mais, e é também um pouco triste – disse, a concluir. O senhor Valéry depois não disse mais nada – já estava cansado e era tarde – porém o último desenho que fez foi o de um quadrado dividido em muitos bocadinhos.

SEDUÇÃO 1. O que é a sedução?

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2. Um ponto a caminhar à frente de um quadrado. É isto a sedução.

3. O que é ser seduzido?

4. Os ângulos rectos ganham formas curvas. É isto ser seduzido

5. O que é ser seduzido?

6. Ser seduzido é perder a forma original

7. Ser seduzido é bom ou é mau?

8. Ser seduzido é perder a forma original e ganhar a forma do sedutor 76


9. É bom ou é mau?

10. Ser seduzido é perder a forma original e ganhar a forma geral do sedutor

DEPRESSÃO 1. Não há nada a fazer

2. Mas podes fazer algo

3. 1, 2, 3, 4, 5, 6: seis possibilidades

4. Podes aumentar as possibilidades

5. Aumentar as possibilidades

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6. Aumentar as possibilidades

7. Mas há um limite: depois de fazeres tudo verás que não há nada a fazer

8. Nada a fazer

9. Nada a fazer.

DEPRESSÃO (DIA SEGUINTE) 1. Mas afinal há ainda possibilidades (um novo dia)

2. 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7: sete possibilidades

3. Multiplicação de possibilidades

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O OUTRO (I) 1. Ao medo podemos chamar: Possibilidade de perder a forma

2. Perder a forma pode não significar deixar de ter forma. 3. Pode significar mudar de forma. 4. Ao medo podemos chamar: Possibilidade de mudar de forma. 5. Mudança da Forma

6. A Mudança da Forma é provocada por uma força

7. Se a força é maior, a mudança da forma é maior

8. Se a força é menor, a mudança da forma é menor

9. À força que nos muda a forma poderemos chamar: o Outro

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O OUTRO (II) 1. O que é então o medo? O Medo é a sensação provocada pela proximidade do Outro

2. Como pode acabar o medo? Eliminando o Outro ou afastando-o

3. Mas é o Outro que nos muda

4. Sem o Outro (vento, homens, mulheres, animais, coisas) eu permaneço imóvel e igual

5. Como o tempo prossegue, permanecer imóvel é avançar na direcção desagradável. Não mudar não é ser imortal, é envelhecer. 6. Aproveitar, então, o medo para mudar; seguindo a direcção desejada

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7. Hoje estou mais próximo daquilo que desejo

8. Não me arrependo do meu passado

9. Aproveitei o Medo…

10. …para mudar a minha forma…

11. …e aproximar-me daquilo que desconheço

SOBRE O SISTEMA DE EMPATIA 1. A determinada distância, uma linha é uma linha

2. Se nos aproximarmos o suficiente (e como aproximação no espaço corresponde a tempo de observação poderíamos também dizer: se olharmos o tempo suficiente) teremos a surpresa de ver que uma Linha é, afinal, um plano…

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3. …um volume

4. Enquanto uma linha não tem interior pois é apenas exterior…

5. …um volume já possui interior. É exterior e interior

6. Conclusão: todas as formas olhadas de longe (ou por pouco tempo) possuem unicamente exterior

7. As formas olhadas de perto (ou por muito tempo) têm interior

8. Ao exterior podemos chamar pele

9. Ao interior chamemos coração

10. Só as formas vistas de perto ou durante muito tempo parecem ter coração

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SOBRE O AMOR E SUAS CONSEQUÊNCIAS 1. O ego é a energia das linhas

2. Um…

3. …e o outro

4. Impossível comunicar com o Outro se a energia das linhas permanecer tensa. 5. É necessário retirar tensão às linhas, para tornar possível a comunicação… 6. …e para abrir possibilidades

7. O espaço vazio no meio da linha é a aceitação da existência da linguagem do Outro. 8. É o início do amor

9. Duas linguagens cujas fronteiras se confundem (o amor)

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10. Duas linguagens cujas fronteiras se confundem

11. O amor é uma linguagem (que não se confunde com as outras)

12. Mas o ego do casal amoroso é ainda manifestado pela energia tensa das linhas

13. A energia tensa das linhas impede a comunicação com os Outros

14. Um exército isolado está isolado.

ALBERT CAMUS Calado entrou na sala ruidosa assustando com a sua imobilidade e mudez aqueles que gritavam e davam murros na mesa. Todo o homem que entra traz um segredo. Mas o homem que entra calado traz um segredo e uma força. Calado saiu da sala de novo ruidosa. Mas os homens que gritavam e davam murros na mesa tinham agora algo mais: o medo. Todo o homem que sai rouba um segredo aos que ficaram. E todo o homem que sai calado leva o segredo e a força daqueles que ficaram.

ANTONIN ARTAUD Deita a língua de fora aos médicos e aos objectos. Cada objecto tem um olho e uma medicina e tu és visto por ele e és dele o doente. O homem que partia ao meio 84


todos os objectos com um machado, nas suas fúrias, e que tremia com a realidade que não era quebrável. O que assusta no mundo são as coisas insensíveis à lâmina ou à brutalidade. O sol, o vento, a água.

ARISTÓTELES Um filósofo deverá ter um candeeiro para ler e outro candeeiro para ver o corpo de uma mulher nua. Se utilizar o mesmo candeeiro para as duas actividades o filósofo arrisca-se a confundir tudo; lendo a mulher, do início ao fim, e dormindo com o livro, de modo simultaneamente perverso e apaixonado. Claro que se formos minuciosos descobriremos sítios na mulher que permitem um funcionamento semelhante ao acto de passar as páginas de um livro. Existem as pálpebras, os dez dedos dos pés e das mãos, e ainda outras partes, mais privadas, que por decoro a literatura não deverá tocar. Porém, o homem apaixonado sim.

CATULO Há nomes traquinas que parecem troçar com a própria língua, como se pertencessem à família e simultaneamente fossem estrangeiros. Catulo é um nome que apetece descascar, como uma laranja. Catulo, Catulo, Catulo.

CECÍLIA MEIRELES Minha cara Cecília, certas lâmpadas de luz tranquila vestem melhor um dorso nu que um vestido de linho, comprado nas lojas mais decentes da cidade. Sou capaz de me sentar sobre a erva a comer bolacha, vendo passar a guerra e o dinheiro. Mas é difícil. Atrás da superfície do dia, uma rapariga toca nos calções do seu rapaz, e ri-se como uma criança que aprende a descascar laranjas. Se uma laranja não for descascada com um sorriso saberá mal. Isto foi o que a avó ensinou. Na Faculdade aprendi outras coisas, mas nenhuma mais importante.

CLARICE LISPECTOR Uma barata pode ser mais importante que um imperador. Se os teus olhos olharem mais tempo para uma barata do que para um imperador, a barata torna-se 85


mais importante que o imperador. Chamamos imperador ao imperador e barata à barata porque a média dos olhos humanos olha mais tempo para o imperador do que para a barata. O que é um revolucionário, pergunta-me a minha filha de três anos, e eu respondo: é quem olha mais tempo para uma barata que para um imperador. E o que é um imperador, pergunta-me a minha filha. É aquele que não deixa que se olhe demasiado tempo para a barata – respondi. E, por favor, não me faças mais perguntas.

EDGAR ALLAN POE A imaginação não é uma questão de habilidade. É mais uma questão de levantar as coisas do seu sítio e ver o que elas escondem debaixo. Como se faz a uma pedra. Se levantares uma pedra pesada do jardim verás que debaixo dela está um pedaço de terreno de cor diferente da restante relva do jardim. Mais esbranquiçada, com ar mais doente: o sol não passou por ali. A imaginação? A imaginação é o sol também passar por ali. (Levanta a pedra, meu caro, faz um esforço.)

FLAUBERT Excelentíssima madame, eis que primeiro vou descrever o seu esplendoroso vestido e logo a seguir, sim, a despirei com toda a ansiedade possível. Belo programa, meu bom senhor. Mas essa primeira parte, não poderá saltar-se? Excelentíssima madame, eu sou um escritor, não sou um fornicador. Oh, meu bom senhor, que pena.

FREUD Da cave podes ver a montanha mas terás de esticar demasiado o pescoço. É preferível saíres para a rua, até porque o vento doméstico de uma ventoinha não tem origem na mesma máquina que o vento exterior dois metros acima do nível do chão. Uma casa não teve infância, nasceu logo grande, sem crescimento progressivo nem ossos; e, no entanto, tem fendas e canalizações perturbadas, o que, em arquitectura, é sinal de maus tratos com origem nos deuses e nas intempéries. A parte do mundo e da realidade que não tem infância é triste; por que razão? Ninguém sabe. 86


De resto, nem todas as estratégias sexuais se concentram no planeta terra, o que alguns lamentam.

HAROLD BLOOM A única angústia de homem sensato é a angústia da não influência. Se o teu quarto de hotel entre os vivos for vizinho de habitantes imbecis, muda a direcção da cama, para que, pelo menos, em sonhos sejas influenciado por diferente vento. A literatura é uma habilidade que os lúcidos têm. O balde brutal, vazio, no centro de uma casa de telhado fraco, anuncia a chuva que aí vem. O balde pode ser, em objecto, o profeta que Sócrates foi para os Gregos. Bêbado de biblioteca, Bloom (James-Joyce-Bloom) baixa as calças-Bloom e abandona sobre o chão-Bloom uma urina-Bloom culta. Dir-se-ia mesmo bela, não fosse ela urina simplesmente. (A vantagem das ideias em relação à rima é que as ideias rimam em qualquer língua, enquanto a rima não. O som é menos traduzível que o raciocínio. A excepção é a música, arte inventada certamente por deuses mais perfeitos.)

JAMES JOYCE James Joyce desceu num autocarro em Berlim e disse: esta não é a minha cidade. Não vejo Bloom. Há escritores que moram em personagens como há putas que moram em esquinas. James Joyce era um homem que morava em Bloom. De resto, havia um amigo de todos que era o homem mais lento do mundo: demorava mais de seiscentas páginas a percorrer um dia. Homem meio inteligente meio parvo, mas que só actuava com metade de si.

LUCIANO Era um velho amigo que primeiro olhava, depois respirava, depois falava e só no fim agia. Claro que foi escritor.

MANUEL BANDEIRA Meu caro Manuel, tenho água para dar às galinhas mas disseram-me que as galinhas bebem pouco. 87


Tenho também alguns grãos para dar aos porcos, mas disseram-me que os porcos muito comem, e eu trago um cesto pequeno, um cesto onde os meus filhos guardavam brinquedos. Meu caro Manuel, trago o calendário do sol e de mais sete planetas, mas dizem-me que há sempre outros que surgem, e que modificam as contas. Acordo com o galo, lavo-me com a água, amo com a mulher, adormeço na cama, morrerei com um livro.

PASOLINI Tocava um piano perfeito de modo desgraçado. A ternura tinha sido uma invenção dos criminosos no dia seguinte ao crime. Sem crime não haveria dia seguinte ao crime. Nem ternura. E o homem que tentava cansar o mar. Um homem que tentava enlouquecer sem sair do meio dos lúcidos. Um homem que de noite contava menos mentiras que de dia. E dormia cada dia com um nome novo. Um homem que deitava fogo às igrejas para que os padres se tornassem pescadores.

PLATÃO Era um homem que introduzia fendas nos diálogos. Se pensares muito na forma dos talheres enquanto almoças acabarás por ficar magro. No fundo a diferença entre seres apenas um ponto preto no mapa e pisares a terra concreta é muita. Por exemplo: no mapa não apanhas um tiro definitivo na cabeça, nem te excitas com a mulher de material reprodutor. Daí que alguns prefiram obviamente viver com os pés nos sapatos e os sapatos na terra, enquanto outros, se pudessem, viveriam em mapas. Alguns destes últimos chamam-se escritores; os piores deles: filósofos.

ROLAND BARTHES Havia um homem que escrevia em fragmentos até o próprio nome. Assinava com metade da caneta, com metade da tinta e escrevia metade das letras. Mas havia outro homem, porque há sempre dois homens. Era um homem que escrevia em fragmentos que se multiplicavam como se entre eles estivesse a operação multiplicação.

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Há quem escreva como num testamento: é uma linguagem que separa e deixa apenas parte a cada um. E há depois quem escreva com mão de agricultor: deixa mais do que acabou de deixar. Ver duas vezes no mesmo dia um cego é torturar um cego. Porque o cego nesse dia nem uma vez te viu.

THOMAS MANN Escreveu sete mil páginas sobre a alta sabedoria e seis páginas sobre uma mulher de estatura mediana. Ninguém tem necessidade de guerra nem de adjectivos. A criação é uma juventude. Atravessei a grandeza evitando olhar para cima. Se atravessares a grandeza olhando em frente no final serás grande. E se ainda te lembrares do percurso terás uma metodologia.

VINICIUS DE MORAES Acima de tudo, gostaria de agradecer uma tarde, onde o sol exibia a inclinação certa sobre os anjos que rodeiam os livros, e o vento era uma forma de limpar os assuntos do mundo. E havia uma mulher bonita numa outra mesa tranquila. Sons breves que partiam e que ninguém coleccionava. Os meus pés, imóveis, faziam exercícios de euforia. O meu coração calmo, como se um cabide o pendurasse numa corda calma e amarela do sol. E então lia os teus versos. E era bom.

§

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[LUÍS ENE]

3 A pequena barata voadora gostava muito de ouvir as histórias que a avó barata lhe contava quando regressava a casa, a meio da noite, a cair de bêbeda. Havia sempre baratas fortes e corajosas e muitos, muitos homens esborrachados. Eram histórias maravilhosas que a enchiam de uma enorme satisfação e orgulho. Dormia sempre muito melhor e tinha sonhos radioactivos em que as baratas governavam o planeta. É sabido que as histórias favorecem o desenvolvimento da personalidade e fortalecem a moral. Foi o que aconteceu com a pequena barata: cresceu e tornou-se uma barata responsável que nunca se mete em confusões.

4 Todos sabem que o pato é um animal completo, ao mesmo tempo aquático e gramático, características que lhe permitem viver na água e exprimir-se com toda a elegância e desenvoltura. Mas nem sempre foi assim, durante muito tempo os patos tinham um medo horrível da água, e da gramática então nem se fala. Não se sabe ao certo o que aconteceu, mas existem várias histórias sobre o assunto. Infelizmente desconheço-as todas e sou completamente incapaz de inventar seja o que for. Faz muito tempo que só avisto aquela ave rara à refeição, quando é ao mesmo tempo prática e aromática.

6 Uma cadeira, igual a todas as cadeiras daquela sala, decidiu certo dia não deixar que a voltassem a usar. A partir daí, sempre que alguma pessoa tentava sentar-se nela, logo ela dobrava uma das suas quatro pernas ao acaso, derrubando sem apelo nem agravo a infeliz, tudo isto perante o espanto das outras cadeiras. Passado pouco tempo, foi substituída à força e mandada abater por insubordinação. As outras lamentaram então a sua má sorte, nunca mais se iam divertir tanto. [A moral desta fábula é: o público deve apreciar o artista em vida. Ou outra.]

7 Durante três meses esteve fechado em casa com a carne e os ossos daquele que tinha sido o seu dono. Quando finalmente a porta do apartamento se abriu, o cão 90


saiu para a rua e por ali andou em loucas correrias até que foi abatido pela polícia. Ninguém na vizinhança se preocupara com o longo desaparecimento do homem, mas foram rápidos a censurar o comportamento do cão. [Há histórias que cheiram mal, mesmo muito mal.]

8 UMA HISTÓRIA LOUCA Um dia, quando andava pela sala, o gato, ensimesmado, caiu. Saltou imediatamente para o candeeiro e deitou o morcego ao chão. Então, correu porta fora para o quarto e vislumbrou o rato numa escrivaninha. Ainda conseguiu entornar um copo de gin tónico que se encontrava na mesinha de café. Depois de 1001 minutos de entusiasmada perseguição pela casa toda, finalmente consegui agarrá-lo e pô-lo na rua. Trepou então rapidamente para a história. [A moral desta história é: até numa história louca pode existir muita sabedoria.]

15 Há muito tempo já que os ratos não têm medo dos gatos, e que estes, por sua vez, não os comem, mas isto não quer dizer que sejam amigos. Na verdade, ainda está por descobrir se os ratos deixaram de ter medo dos gatos porque estes os deixaram de comer, ou se os gatos deixaram de comer os ratos porque estes deixaram de ter medo deles. Seja como for, não há notícia de um rato ter comido um gato, o que não deixaria de ser um desenvolvimento possível nos tempos que correm. Vamos todos esperar e ver o que acontece.

17 DONA RAPOSA Dona Raposa não caça há muito tempo, há quase tanto tempo quanto não come carne crua. Agora só come congelados aquecidos em instantes no micro-ondas. Diz quem a conhece bem que pouco ficou da Dona Raposa de outrora, a não ser o seu amor pela intriga e o seu desprezo pelas fábulas. [A moral desta história é paradoxal: tudo fica igual mesmo quando tudo muda.]

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25 UMA ANDORINHA Se é do conhecimento de todos que uma andorinha não faz a Primavera, o que talvez não saibam é que há uma andorinha que faz o Inverno, e tem muito orgulho nisso. Ela bem sabe que é vista com desprezo por ser diferente das outras, pois quando todas as andorinhas se vão, só ela fica. E talvez isto possa parecer estranho, mas a verdade é que ela não gosta mesmo nada de viajar, e prefere de longe passar o Inverno no quentinho, à lareira, a beber enormes cálices aquecidos de aguardente velha e a ler um bom livro. Chamem-lhe parva!

31 UMA PERGUNTA Era uma vez uma pergunta que procurava sem cessar uma resposta, uma resposta definitiva, um sim ou um não, mas tudo o que conseguia era ficar perdida entre ambos, sem chegar afinal ao fim. Um dia que se sentia muito cansada, ficou a pensar se o problema não estaria em si mesma, e foi nesse momento que encontrou a solução. Percebeu finalmente que ela mesma era a resposta, e que não há resposta por mais definitiva que seja que possa negar a sua natureza de pergunta. A partir daí nunca mais procurou fora de si o caminho para si mesma.

34 O PRIMEIRO CONCURSO LITERÁRIO Certo dia as letras começaram a falar sobre a importância de cada uma delas, e muito se disse mas nada se concluiu, a não ser que se iria organizar um concurso para decidir de uma vez por todas qual delas merecia o maior destaque. E foi assim que nasceu o primeiro concurso literário. Ia ser um sucesso, diziam as letras, mas os sinais de pontuação é que não gostaram mesmo nada da ideia, e recusaram com veemência o convite para formar o júri. “Onde é que já se viu uma coisa assim!”, exclamou o ponto, o de exclamação, claro está, logo secundado pelo ponto de interrogação, que repetiu uma a uma as mesmas palavras com uma indignação crescente.

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Muito tempo discutiram, mas não chegaram a qualquer conclusão, e o concurso teve afinal de ser anulado. As letras ficaram bastante zangadas, e dos sinais então nem é bom falar. E a verdade é que ainda hoje este assunto não parece estar resolvido de um todo, chegando mesmo alguns a interrogar-se se a dificuldade, sentida por muitos, em usar correctamente os sinais de pontuação não será, afinal, nem mais nem menos do que uma manifestação dessa desavença latente.

ALAMEDA DAS ROSAS […] 3. Deambulava um homem pelo jardim, pensativo, quando disse a si mesmo em voz alta: — Sou aquilo que faço ou faço aquilo que sou? Quem me dera compreender! Quem me dera! Uma formiga que por ali passava, carregando sem esforço aparente um peso muitas vezes superior ao seu, respondeu-lhe desta forma: — Se fizeres aquilo que és, serás aquilo que fizeste. É tão simples como isto. O homem olhou a formiga com espanto, esmagou-a displicentemente, com o pé direito, e afastou-se dali repetindo a pergunta inicial: — Sou aquilo que faço ou faço aquilo que sou? E desta vez não obteve qualquer resposta. […]

1 Muitas vezes acontecia-lhe esquecer-se de quem era, sem qualquer aviso prévio ou razão aparente. Não era uma sensação completamente desagradável, mas podia ser bastante aborrecido, tendo em conta as consequências óbvias. Decidiu então escrever o mais importante de si mesmo, aquilo que o tornava diferente e singular (não deviam ser precisas muitas palavras) e trazê-lo consigo, talvez um pequeno papel colado na carteira, talvez uma pequena inscrição numa pulseira, qualquer coisa que o fizesse regressar a si. O seu nome não era importante, na verdade pouco dizia de si, a sua idade, sexo e coisas que tais, estavam à vista, e quanto às suas características morais, elas reflectir-se-iam necessariamente nos seus actos. Acabou por fazer uma pequena tatuagem nas costas da mão direita, junto ao polegar, onde se podia ler a palavra SOU, não se fosse esquecer de ser, que isso sim, é que seria completamente desagradável e bastante aborrecido. 93


6 Um homem foi ao fundo uma vez, outra, e outra ainda, mas não morreu. A questão que lhes quero colocar, caros leitores, não é quantas vezes mais pode ele ir ao fundo e ficar vivo, mas sim quanto tempo poderá ele ainda estar vivo sem ir de novo ao fundo.

10 O CORAÇÃO (HISTÓRIA FEITA) Foi a casa dela com o coração nas mãos, disposto a tudo esclarecer e perdoar. Ela recebeu-o à entrada com três pedras na mão. Ele abriu o seu coração, mas nada do que disse a fez mudar de opinião, e fechou-lhe a porta na cara. Ele ficou sem pinga de sangue, e o coração caiu-lhe aos pés. Mas há males que vêm por bem, pois foi só nesse momento que ele percebeu que o seu coração era de ouro, maciço. Vendeu-o por bom dinheiro, fez das tripas coração, e levou até ao fim da vida uma existência sóbria mas feliz.

13 A minha mulher é excepcionalmente quente, e eu gosto de acender os cigarros no seu corpo, declarou ontem o homem detido por maus-tratos conjugais.

15 Um livro que se fecha é um livro que se abre. Um amor que acaba é um amor que começa. Na leitura e no amor não há intervalos. Se ainda não começou de novo é porque ainda não acabou de vez.

17 Quando deixou de escrever, após uma carreira fulgurante, todos quiseram saber porquê. Leiam a minha obra, disse ele, e calou fundo a verdadeira razão. Nunca mais escreveu, e muitos anos passaram, mas o interesse pela sua obra aumentou e foi várias vezes reeditada sempre com sucesso. Por sua vontade expressa, todos os jornais publicaram, após a sua morte, uma pequena mensagem dirigida aos seus leitores. Não procurem na Literatura o que está dentro de vós.

27 Um homem sentiu-se tão infeliz que começou a chorar, e quanto mais chorava mais infeliz se sentia, até que chegou uma altura em que já não sabia se chorava porque se sentia infeliz ou se estava infeliz porque chorava. Não sei se em tudo há uma causa e um efeito, disse o homem, mas chorar de certeza que não me faz feliz, e eu não gosto de estar triste. Deixou de chorar, limpou a cara, e sentiu-se logo melhor. Não estava feliz, é verdade, mas também não estava triste, e não estar triste, se pensarmos bem, é quase estar feliz.

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29 Porque queria parecer mais magro, certo homem passou a andar na companhia de gordos. E porque queria parecer mais inteligente, passou a andar na companhia de idiotas. Verdade seja dita as coisas não lhe correram bem: os gordos achavam-no idiota, e os idiotas achavam-no gordo.

31 SOLILÓQUIO É talvez porque esperamos dos outros o que eles não nos podem dar que nos sentimos tão sós. E afirmar que não estamos sós ou que estamos sempre sós não é afinal a mesma coisa? Pelo menos ambas as afirmações assentam na crença que existe um Eu. Mas se o Eu verdadeiramente existe, só podemos então estar sós, porque os outros existem fora de nós. E se o Eu não existir, todos serão afinal um só, em completa solidão. E depois? Desde quando estar cheio de si é um problema? [Disse isto e calou-se: ninguém estava ali para o ouvir!]

36 Ontem, cerca das 21 horas, um homem matou a mulher por causa de um iogurte. Ele queria comer iogurte mas a mulher queria que ele comesse sopa. Eram horas de jantar, disse-lhe ela, comer iogurte estava fora de questão. Discutiram durante muito tempo, em voz alta, quebrando copos e pratos. A dada altura o homem agarrou um garfo, avançou lentamente em direcção da mulher, e espetou-lho com força na jugular. Depois foi para a varanda comer o iogurte. Era um iogurte cremoso e com pedaços de pêssego amarelo. O homem adorava aqueles iogurtes e comeu-o com prazer. Interrogados os vizinhos, aqueles foram unânimes, todas as horas são boas para se comer iogurtes.

46 Esperou por ela uma hora. Já tinha bebido dois gins tónicos e tinha comido quase uma cesta de pão variado com um queijo seco de cabra. Telefonara-lhe duas vezes, e das duas deixara mensagem. Pediu a ementa e a lista dos vinhos e, depois de uma leitura atenta e minuciosa, encomendou o jantar: rosbife, com puré de maçã e batatinhas coradas, e uma garrafa de vinho tinto, reserva, do Douro. Comeu e bebeu com um prazer intenso, tonto de sabores e aromas. Não quis sobremesa, terminou com um café forte, da Etiópia. Quando ela chegou queixando-se do trânsito e da vida, ele sorriu-lhe, levantou-se e saiu, deixando-lhe a conta para pagar. Caminhou durante meia hora, aspirando voluptuosamente o ar frio da noite lunar; sentia-se feliz. Decidiu jantar mais vezes sozinho.

47 Leu o texto com redobrado interesse: simples mas conciso, a linguagem vulgar mas carregada de uma poesia suave. Gostava, gostava mesmo muito. Leu-o novamente, em voz alta: homem só procura mulher só para partilharem em conjunto a solidão. Ficou 95


tão entusiasmado que foi imediatamente para a janela gritar o seu pregão. Estava ele debruçado a ouvir uma das muitas candidatas que haviam acorrido, quando caiu desamparado nos seus braços. Podia ter sido uma história com um final feliz, mas não estava destinado que assim fosse. Morreram a caminho do hospital sem terem retomado consciência. Inconvenientes de viver em locais elevados!

56 Um homem que passeava o seu cão no jardim público desapareceu misteriosamente. Desapareceu de repente, à frente de várias testemunhas. Todas as pessoas interrogadas foram unânimes em afirmá-lo, não houve forma de demovê-los, o homem desaparecera no ar. Os jornais falaram em alucinação colectiva, chegando mesmo alguma imprensa a afirmar que o homem fora raptado por alienígenas. Nunca se soube quem era e, apesar das investigações realizadas, parecia nunca ter existido. Muitas pessoas foram ouvidas, muitas opiniões foram avançadas, mas ninguém deu atenção ao escritor que, em poucas palavras, afirmou que muito provavelmente o homem caíra fora da sua história.

64 COMO FAZER UM AFORISMO De um dicionário de Língua Portuguesa qualquer retire uma mão-cheia de palavras, por exemplo: azul, cadeira, descansar, poeta. Coloque-as num copo misturador, junte uma pitada de sintaxe e outras coisas que tais. Agite até ficar tudo muito bem misturado. No final, deite o preparado com muito cuidado numa folha de papel branco. Está pronto, por exemplo: a cadeira do poeta descansa no azul. Se não lhe agradar, pode sempre repetir a operação, juntando ou não mais palavras. Serve-se a frio, a qualquer hora do dia e em qualquer ocasião. É ideal para impressionar os amigos. Deve beber-se de um trago.

65 ISSO É UM LIVRO? Entrou numa livraria e pediu o nariz de Gogol. A empregada tentou vender-lhe a mãe de Gorki. Ficou muito perturbado, e exigiu-lhe em alternativa as três irmãs de Tchekhov. Mas ela só conhecia a mãe de Gorki e nunca tinha privado com as três irmãs de Tchekhov ou sequer entrevisto o nariz de Gogol. Ele falou-lhe então longamente da riqueza da literatura russa, e ela escutou-o com atenção. Estão muito apaixonados e vão casar-se. A mãe de Gorki foi convidada. Ela insistiu, e ele não foi capaz de lhe dizer que não, mas é óbvio que preferia de longe convidar a Ana Karenina. [E não se esqueçam, nada disto teria acontecido se ela tivesse apenas respondido: Isso é um livro?]

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82 Tinha em casa muitos espelhos e olhava-se neles vezes sem conta. E o mesmo acontecia com todos os outros espelhos que encontrava. Era um homem belo e atraente, muito preocupado com o seu aspecto. Não admira pois que a sua obsessiva contemplação de si fosse considerada como uma mera preocupação com a aparência, quando na verdade ele o fazia para se assegurar que existia. Levava a existência muito a sério.

85 A PEDRA NO SAPATO Era uma vez um homem que tinha uma pedra no sapato, e por mais vezes a deitasse fora, nunca dela se via livre, pois a pedra, a mesma ou outra, sabe-se lá, sempre voltava a aparecer como por artes mágicas. O homem desesperava e não encontrava solução, até que depois de muito matutar resolveu não mais se calçar. Muitos foram os que acharam que ele endoidecera, muitos os que riram dele, e muitos deixaram até de lhe falar. Mas o homem não se importou mesmo nada. A verdade é que se sentia muito melhor e só isso era realmente importante.

100 Se ela estivesse apaixonada por ele, escrever-lhe-ia sem dúvida uma doce carta de reconciliação. Isto foi o que ele pensou, mas esperou em vão, que é o que acontece muitas vezes a quem confia nos correios. Antes isso do que deixar de acreditar no amor.

107 UMA HISTÓRIA EXTRAORDINÁRIA Certo homem recebeu um dia a extraordinária notícia de que ganhara o mais importante concurso literário do seu país, facto tanto mais extraordinário quanto tinha a certeza de não só não ter concorrido como de nunca ter escrito um única linha em toda a sua vida. Era, verdade seja dita, um excelente contador de histórias, mas completamente analfabeto, facto que não o impediu de comparecer à cerimónia de entrega com um sorriso vencedor e proferir um discurso que ainda hoje é citado amiúde. E até à sua morte contou esta história a quem a quis ouvir. Eu fui um deles.

109 A OBRA, O ESCRITOR E O HOMEM O Escritor e o Homem eram vistos juntos com frequência, a maior parte das vezes a discutir, em voz alta, mas sempre com grande cordialidade e respeito. Só quando falavam da Obra é que os ânimos sobreaqueciam e quase perdiam as estribeiras, pois a verdade é que tinham opiniões muito diferentes e por vezes mesmo contraditórias. O escritor e o homem morreram entretanto. A obra continua por aí e recomenda-se. 97


114 Certo dia uma página disse a outra que desaparecesse, estava farta dela, já não podia suportá-la; ao que esta lhe respondeu com muitas e boas, quem está mal muda-se e outras que tais. Foi tal a discussão, que se estendeu em pouco tempo a todo o livro, e não havia página que não gritasse alto e bom som o seu descontentamento. Ainda nem um minuto tinha passado quando um homem de uniforme chegou ao local, agarrou o livro com determinação e folheou-o com vigor, pondo fim ao tumulto. Era uma biblioteca onde se mantinham regras estritas quanto ao silêncio.

115 A HISTÓRIA ATRÁS DA ORELHA Um homem acordou um dia com uma história atrás da orelha, e por mais que tentasse nunca lhe conseguia pôr termo. Só vários livros depois é que percebeu afinal que tinha sido picado pelo bichinho da escrita.

118 O EMIR DOS CRENTES Certo dia o sultão Harum Al Raschid, Emir dos Crentes, ordenou que trouxessem à sua presença dois homens em tudo comuns, e a cada um deles ordenou: Escolhe entre matar alguém ou ser morto! Um deles escolheu matar e o outro ser morto, mas a ambos o Emir dos Crentes mandou degolar sem demoras. Ao velho sábio que ousou perguntar, esclareceu que ambos lhe tinham dado uma resposta, quando na verdade só a ele cabia escolher.

PRESCRIÇÕES PARA UMA VIDA COMPLETAMENTE INSANA 1. Fica sempre de pé quando observares o que está longe. 2. Se leres deitado, que o faças de barriga para baixo. 3. Não olhes as pessoas nos olhos quando disseres a verdade. 4. Nunca deixes de comer sentado, mesmo que seja no chão. 5. Caminha num passo de dança leve, secreto e íntimo. 6. Ao acordar, bebe um longo e profundo copo de água. 7. Dorme com a cabeça virada para ti mesmo. 8. Evita acariciar-te, ainda que só a ti próprio ames. 9. Esforça-te por não falar com a boca vazia de palavras. 10. Podes comer carne e peixe, mas não te vanglories disso. 11. Ostenta em todas as ocasiões um ar levemente incomodado. 12. Escreve muito, mas apenas e tão-só por necessidade.

§ 98


[PAULO CONDESSA]

SESSÃO DE POESIA n 14101999

Eu sei lá o que é a poesia, dizia o poeta. Fazem-me com cada pergunta. Escrevam aí silêncio. Silêncio. Eu era eu e muitas pessoas ao mesmo tempo. Estava aqui onde estou e vocês aí onde estão. Agora estou a ver se o fígado responde à vossa pergunta. Claro que o silêncio escondeu a vossa pergunta. Mas sei que a fizeram. Não vos escondeu os olhos. Nem essas luzinhas que alguns têm à volta da cabeça. Que pergunta. Eu sei lá o que é a poesia. Ora apalpem o fígado. O fígado tem uma opinião particular da poesia, como devem calcular. Há gente que pensa que o fígado é amarelo. Eu pensava. Mas é castanho ou vermelho depende da lanterna. Apalpem o fígado mas ninguém apalpou. É sempre assim na poesia. As pessoas não a levam a sério. Se não a levam a sério para que raio querem saber o que é? Para pôr no telejornal? Não brinquem comigo. Se estivessem aqui crianças a conversa era outra. Uma criança joga logo mão ao fígado. Experimenta. Sem experimentar não há poesia. Ora calcem lá umas luvas. Ora tirem lá as luvas. Qual é a diferença? O fígado é uma espécie de filtro, com guichets e barreiras que sobem e descem e olhos a espreitar lá de dentro. Um poema que entre no fígado faz maravilhas. Claro nos intestinos. No coração. Mas agora estamos no fígado e além disso os poemas não vão a todo o lado. Ora apalpem o fígado. Se os dedos fossem estetoscópios, em vez dos estetoscópios que abundam, sentem logo as vibrações do poema a rearranjar as ligações da linfa. Não são as letras que entram nos tecidos, é só um tremido, uma insubstância linfática que mexe nas células parecem uma orquestra escangalhada pede sempre ajuda a um menino. Não chorem. Está ao vosso alcance. Ponham coisas de parte. Deixem-se de merdas. Furem o espelho com os olhos de manhã. Uma coisa vos garanto. Sem perguntar ao fígado nunca vão saber a opinião do fígado sobre a poesia. Fazem-me com cada pergunta. São do telejornal? Mas não se importavam de ser, pois não? Aah.

RATINHO 119101999

Nesse dia levantei-me senão ainda lá estaria agora. Tinha um rato no pulmão. Um ratinho. Os pulmões não trazem espaço para os ratos e portanto doía. Por muito pequeno que fosse o rato doía. Lá estava ele roía, mas era pequenino o ratinho. Apesar de pequeno não tinha muito espaço e portanto forçava os tecidos pulmonares. Às vezes aconchegava-se, não sei se lhe faltava a respiração. O certo é que às vezes aquilo aperta e eu perco a paciência e dou-lhe uma sapatada ou grito-lhe coitadinho e 99


ele cresce subitamente quanto mais lhe brusco mais ele cresce. Comecei a fazer-lhe festinhas, a dar-lhe carinho. Ele desce em vez de cresce. Quanto mais carinho mais pequenino. Não posso gritar-lhe sai daí rato. Dar-lhe um beijinho. Quando no outro hoje acordei senti que precisava acarinhá-lo até à morte. Pobre ratinho. Pobre destino morrer de carinho é coisa nada melodiosa. É muito. E eu, quando me sinto pequenino, trato mal o ratinho mas quando sou grande dou-lhe carinho e ele esquece-me o pulmão apertado e vou direito pelo meu caminho enquanto o rato definha definha, até que um dia a dor fininha desapareça o rasto de uma coisa que ainda não sei. Mas tem cara de ratinho. E aí está como as coisas queridas são às vezes as que mais roem, pensei eu, enquanto o rato me mordia o dedinho. Ái! Caramba menino. Já vai, já lhe dou mais um carinho.

ARMÁRIO c/ gavetas mentais 101999

O homem-com-nariz-de-unicórnio andava pelo labirinto a dizer – Perceber as pessoas é uma coisa muito como dizer?, é uma coisa muito. As palavras servem para pouco. Servem apenas para perceber o armário das pessoas. – Aaah, não! – diz o doutor Mobíliaz – As palavras servem para muito. Servem para perceber o armário das pessoas. Ora mostre lá as suas gavetinhas… E espreitava como o dentista espreita os dentes e depois diz coisas. É sabido que o hálito das nossas gavetas é muito eloquente. Mas a pessoa não era o armário da pessoa. A pessoa carregava o armário nas costas mas o doutor pensava que a pessoa era o armário da pessoa. Mas não. Era só a pessoa. E quando lhe percebeu o armário pensou que percebeu a pessoa. Mas não. Só o armário.

MINISTÉRIO um ministério é como o próprio nome indica em contracção, um mistério. pequenino. mini.

MAXISTÉRIO há maxis que se vestem de minis. e vício versa. 100


PANIFICAÇÃO Trabalhava numa padaria. Por gostar de fazer pão. Andava a tratar-se num psicólogo. Por causa de uma sensação. De pânico. Era uma sensação que lhe irritava os olhos e as pontas dos dedos de cada vez que se aproximava do forno do pão. Era mais forte que ele, era um vento vermelho nos sentidos, era um turbilhão interior turvava tudo. Ficava cego pelo pânico. Inconveniente e desmedido. Depois o pânico passava, entre uma fornada de pão e a seguinte. Nessas alturas dizia em voz bem alta, com toda a propriedade, que trabalhava na indústria da panificação. Andava por ali e por onde calhasse, a dizer gritar à boca cheia que a panificação lhe estava a tomar conta da vida. Os seus colegas padeiros não percebiam muito bem mas achavam plausível, uma vez que ele, efectivamente, trabalhava na indústria da panificação. Levavam a panificação para um lado. Os psicólogos que lhe tratavam o pânico levavam para o outro. Também plausível. E todos ficavam contentes com a explicação – “estou na indústria da panificação”. ah. muito bem. Se os padeiros e psicólogos se encontrassem, julgariam entender-se perfeitamente, apesar de mundos diferentes se poderem separar pela igualdade de uma palavra.

LINGUAL CONDIÇÃO das lianas da língua Bela sem senão não haveria. Porque, sem verbos no condicional, sorria um paraíso choravam outras chuvas. Dizem que há outras ilhas outros povos que não têm a palavra eu. Só têm a palavra nós. A língua são lianas amarram-nos soltam-nos penduram-nos viajam-nos prendem-nos balançam-nos jogam-nos à lua jogam-nos à terra azulam-nos acastanham-nos amarelam-nos esverdeiam-nos brincam-nos assustam-nos iludem-nos embevecem-nos viajam-nos masmorram-nos viajam-nos viajam-nos etcetram-nos o que quisermos assim quisermos assim soubermos viajar-nos dentro e fora de nós dentro e fora de tudo assim soubermos e quisermos viajar-nos ao segredo da liberdade escondida em todas as coisas que prendem.

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GRAMÁTICA SINTAXE & COMPANHIA revelação fantástica 11121999

Quem não sabe fica a saber. A Gramática é uma menina bem comportadinha. ui ui. E a Sintaxe? A Sintaxe é uma filha uma menina bem comportadinha. ui. Daquelas de colégio. Tão bem comportadinha a menina não percebe nada do que é a Vida. às vezes é preciso despentear a menina. ó menina esteja-se nas tintas de várias cores. sinta o que é ser livre. assim sem preorcupações, olha um erro, que se lixe, logo se manda o erre para a reciclagem. às vezes o kéquintréssa. supentiado está no sítio adequado. ade quado a quê? olhó ritmo. ade-qua-do-a-quê? ora, às regras da Gramática. a Gramática não é nada disso que pensam. ai não? nem a Sintaxe às vezes adormece e não acorda nem concorda: então, sintaxe? nãotaxe! Então há ou não cá pão pamalucos, ó seus Engravatados Gramaticais? Só se for numa ocasião solene mas quando chegar a Marlene, por favor mostrem o decote. Tirem a gravata à Gramática. Meus senhores, não a bafiem. Não façam isso dela, ó reitores do vosso diário. Fazer asneiras também é vida não matem a Gramática numa gaiola não sabe cantar. flái flái. fri ézabard. Olhó trio maravilha, olhá Gramática Sintaxe & Companhia: tudo meninas de coro. lálálá. depois é como num colégio de freiras.

INSURREIÇÃO Vinha de pasto invisível, de campos imprevistos, vinha uma voz esquisita, era um arrepio soltava um som tentava atravessar as consciências: era a voz do Capitão Incorrigível que troava. Antes da voz troar nas almas primeiro o coração do Capitão, a mão do Capitão dançava no ar quando o Capitão Incorrigível deslaçava alguns nós da Grande Rede. Finalmente soltava os cavalos da voz começava sempre com jeitinho, enquanto o Capitão balançava as vocais como se fosse um menino: vá lá. um esforçozito. a Organização Oficial das Palavras e a sua amiga Gramática de Gabinete podem mandar prender muito. mais do que se pensa. é só mandatos e mandatos de captura. é hora de soltar amarras! E o Capitão subia o tom Entãooo?? meus senhores minhas senhoras pessoááalllllll!! soltem-se! Subia o tom Revolução!! Subia o tom Revvooluuuçãooo!! Brroooaaaarrr. Nesta altura a voz do Capitão tinha chegado à montanha. Lá do cimo choviam relâmpagos e relâmpagos acompanhavam os sons subiam as cordas na garganta troavam flashes, era uma verdadeira tempestade sonora penetrava o espaço e as pessoas todas ainda sem ainda 102


completamente ainda totalmente Gramatizadas ainda agarradamente Gabinetizadas, as pessoas tinham cataratas opacas enquanto o Capitão lutava com relâmpagos ainda havia uma branca e espessa apatia no ar resistia à trovoada quando o Capitão subitamente inflecte a voz e pergunta: será que nunca viram escrito na porta duma casa de banho pública: abaixo o estilo. viva o esquilo. senão quem é que rói as instituições totalitárias? nunca viram? ah sim? ah não? será que nunca se disse num reclame humanitário: alimenta o esquilo que há em ti! ora cum camandér. Finalmente voltou a costas e voltou ao seu pasto invisível, aquela voz esquisita era um arrepio soltava um som tentava atravessar as consciências. O Capitão afastou-se nos seus passos acompanhavam o ritmo do nevoeiro. Agora era a vez do tempo. O tempo quando trabalha precisa fazer a digestão das pessoas não se resolvem sem fazer a digestão primeiro. Ao fundo um som surdo vibrava. Era a espera do tempo do seu tempo a chegar outra vez e lá dentro a voz do Capitão troava.

TELENOVELA MEXICANA relatório dos técnicos da especialidade, ponto 5. 5. As pessoas não são as pessoas que estão a falar. São outras a falar por elas. Na nossa vidonovela particular às vezes também parece que está alguém a falar por nós. Nós abrimos e fechamos a boca e saem gestos palavras saem coisas tudo menos nós. Só um restinho de nós, um rótulo de nós a dar o mote um cheirinho

OLHA 10021999

O homem-escritor observa. As pessoas dizem aaahh muito bem, muito bem observado. Gostam. As pessoas gostam que os escritores observem porque as pessoas já não observam. Se observassem não achavam nada de especial, é só abrir os olhos abrir a cabeça. 103


Mas as pessoas precisam de outras pessoas para fazerem coisas. Precisam dos escritores para isso. Observar o mundo que as rodeia. O homem-escritor pergunta porque será. Não podem não querem não conseguem observar será por alguma coisa? Não se pode dizer que andar sempre a ver o mundo com os olhos alheios seja propriamente uma coisa muito própria.

TARZAN por exemplo o tarzan. tinha ou não tinha tanga? tinha ou não tinha selva? existia ou não existia verde? saltou da selva para a têvê através da sua linha hertziana? mas que lindo nome para uma menina: hertziana! hertziana, filha, vai-me buscar os chinelos que vai começar o tarzan, mas que bela tanga! a tanga do tarzan era muito bela e toda a gente gostava de ver o tarzan a dar a tanga aos pobres. o tarzan da selva era primo dos bosques e dava a mesma tanga aos ricos e aos pobres. toda a gente ninguém sabe que a vida selvagem já foi toda explicada. extinta. agora sobra o zoo, agora sobra a televisão e ainda bem porque assim não cheira. porque os mosquitos satélicos não picam, porque as explicações não atravessam a pele. porque enfim, o fim vem aí. toda a gente está sempre à espera do fim, as pessoas anseiam pelos fins, e os durantes são só uma maneira de aumentar a expectativa e o valor comercial do fim. os durantes ao serviço dos fins, os meios ao serviço dos fins, tudo a servir os fins com tal fervor que algum fim há-de chegar. hão-de nos dar um fim. ai, hão hão. dá a pata. eles dão. então e como é que se explica um durante se não houver um fim? um fim faz muita falta! faz falta às explicações. sem fins não se sabe se as explicações sobreviviam e depois se calhar só tinham mercado lá para o cantinho dos aborígenes ou para os algures em algures e era muito pouco. era uma espécie em vias. um fogo de extinção. mas por causa do contágio da vida, as lianas marcam as mãos, de verde e húmido, ou… olha! que queridas! pequenas sanguessugas minúsculas, bchibchibchinina, vivem nas lianas! as lianas marcam as mãos, os meios contaminam os fins vitaminam propósitos mais explicativos mais explosivos. oh mas tudo a querer justificar os fins, a venerar os fins com certas venéreas, certos meios contaminam certos fins mas anda tudo a venerar tudo a servir os fins com tal fervor que algum fim há-de chegar por acaso este está no meio uma liana entre duas árvores.

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O POETA ASSASSINO A mesa era uma mesa ao centro de um palco estava acima da plateia. Nada de confusões. A mulher-polícia repara em certas coisas. Tem uma espécie de olhar digital sobre os dedos do seu cérebro desenvolve-se uma atenção policial às evidências escondidas debaixo das capas da trivialidade. As cadeiras chegam-se atrás. Ruído de cadeiras. O poeta senta-se na mesa do debate era daqueles para se falar de poesia em vez de fazer. Com olhar milimétrico a mulher-polícia anota numa página já reservada no seu bloco mental. O poeta tinha um casaquinho de cangalheiro. A mulher-polícia claramente suspeita que o poeta mata as coisas para depois as poder ver. Escrever. Mais ninguém suspeita. Está tudo embasbacado. Mais: embevecido que o poeta veio à nossa terrinha. Farta de lidar crimes rurais, com olhar afilado a mulher-polícia repara. Enquanto ah grandessíssimo poeta pensam todos o admiram desde a plateia vêem ohh’s e aah’s de sim senhor grande poeta. Mais que promessa, este nosso é uma certeza. E tão rigoroso, tão rigoroso. Igualmente no rigoroso cumprimento da sua actividade, a mulher-polícia tira consecutivas radiografias mentais ao suspeito aclamado poeta. Anota. a) tem mãos de quem pode matar uma mulher à paulada. b) e voz de quem é capaz de jurar que nunca o fará. Mas atenção que o poeta discursa uma rigorosa interpretação do seu talento analítico. Sobe o som da plateia. Fragor. Um enorme bloco de admiração cresce no calor da aclamação geral deflagra um incêndio emocional desenvolve grossas labaredas e o ruído da lenha a estalar as palmas. Aaah oooh aaah seu Gandapoeta! Uma única uma só mangueira apontada ao fogo percorre uma fria lucidez gela os neurónios da única pessoa alerta na plateia. Mesmo sem lupa, a mulher-polícia sabe que este poeta pode escrever com o mesmo rigor com que um assassino planeia um crime

O POETA CALADINHO O poeta caladinho vinha doutro planeta tinha uma atmosfera onde escrevia as coisas que tinha que escrever para resolver a vida não é fácil. Às vezes era ainda pior por causa do calor é preciso enxotar as moscas. Andava assim às vezes quando me perguntam se é prosa ou poesia ou porque é que escrevo poesia sei lá, é mais solto, é mais não me chateiem com perguntas, uma pessoa aqui a fazer poesia e as pessoas a desfazer com perguntas.

PALAVRÕES Os palavrões são palavras altas grandalhonas e tronchudas que andam aos encontrões com as outras para lhes roubar a atenção. tipo aqueles meninos na escola brutamontes que empurravam os outros e faziam o que queriam só porque tinham 105


mais força bruta muita bruta na cabeça afogava a sensibilidade diferencial. quando eu for grande vais ver.

MANEIRAS certas pessoas quando estão a falar… há pessoas que quando falam… como dizer?... há pessoas que quando estão a falar parece que estão a falar em itálico. assim fininho e inclinadas para a frente. mas sem querer marcar posição querem marcar posição. se calhar até foi o itálico que começou por imitar essas pessoas que falam assim.

INCLINAÇÃO ora inclinem-se lá para a frente, e digam qualquer coisa. por exemplo, futuro. mas cuidado não caiam para a frente. há pessoas que andam sempre inclinadas para a frente, a ver se ultrapassam o tempo. reparem no pescoço. querem chegar primeiro não sei onde. primeiro que não sei quem. tipo aquelas pessoas que no cinema se sentam na primeira fila, para ver o filme primeiro que os outros. as coisas chegam sempre quando chegam. estamos imersos nas coisas. não vale a pena pensar que a água dum lado da banheira nos lava primeiro que a água do outro lado não é a mesma, mas é como se fosse. para efeitos de limpeza é como se fosse. a água dilui o tempo cá de uma maneira.

INCLINAÇÃO certas fontes jorram que foi o ministro do futuro que inventou o itálico. antes as letras tinham grandes sapatos e andavam com os pés assentes na terra. andavam direitas, com tempo e solidez. mas depois vieram as novas modas e elas começaram a despentear-se e os cabeleireiros alfabéticos inventaram estilos sem eira nem beira pus o pé não molhei a cerifa. foi o que nos saiu na rifa. a partir daí as letras foi um ver se te avias. e as pessoas também. não é que isso seja exactamente um problema. o problema é uns a quererem andar a aviar os outros, avoar os outros. enfim um pouco de terra não faria mal debaixo de certos pés.

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nesta coisa das letras da vida há sempre uns que andam a pé e outros de bicicleta. outros a voar e outros também. só que uns vão a motor e outros a planar. há uma diferença no combustível e na poluição. na combustão alfabética da coisa.

TRAMPOLIM o p da palavra Egipto é um trampolim alfabético. dá a sensação que sem o p o Egipto perdia a capacidade de se elevar. há muitas subtilezas assim. mas andam a querer varrê-las do mapa.

ROUPA DE PRAIA o homem de fato estava ali na praia. ah sim? na praia, de fato? de fato. mas não estava calor demais? desculpe? se não estava calor para estar de fato… mas o homem estava de tanga. então não estava de fato? não. mas o senhor não disse que estava? não. ai disse, disse. o senhor disse: de fato o homem estava na praia. áaaah, de fato. de fa-to. é um fato que ele estava na praia. o quê, o senhor é brasileiro? sou. ááahh, então está tudo explicado. de fato.

ACORDO fragmento N.O.L. Um dos homens era do campo. O outro era da cidade. Um tinha uma horta. O outro tinha uma gráfica. Um dia acordaram os dois na mesma página e decidiram fazer um acordo. E fizeram. Um acordo horta-gráfica.

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PRECONCEITO Um preconceito é um torcicolo. um nó muscular que, depois de desfeito, nos faz redescobrir o prazer da liberdade de movimentos. a liberdade natural.

HOMEM COM H Há homens que afinal são pessoas, há homens que são só homens. o agá diz-se com h mas depois quando se escreve, o agá não tem h. percebe-se. há coisas que, como dizer, se escapam à condição da há coisas que é isso, há coisas.

HOMENS Entretanto os homens discutem significativamente essa coisa de ter um grande ou pequeno. mas seja ele grande ou pequeno, o agá não está entre as pernas nem está na cabeça. o agá está antes do omem e quando não está antes, não está em parte nenhuma. grande ou pequeno pouco interessa. se não estiver antes de tudo não está. pelo menos enquanto a comutativa existencial não der sentido ao omemh.

NORMAL 27101999

Caramba! Escreva lá uma coisa mais normal. Mais normal quisto? Um quisto é normalíssimo. Tive um sebácio. Era o primogénito. Eu dizia-lhe – Sebácio, filho, vai comprar o jornal ao pai. E ele não ia. Também nunca vi um quisto ir à rua comprar o jornal. Coisas que não acontecem. É absolutamenet normal. Não há nada mais normal quisto.

PASTAGEM POÉTICA 04111999

Uma vez mesmo no meio de um poema apareceu-lhe uma vaca assim sem mais nem menos fez múú. uuh! que estúpida! pregaste-me cá um susto. Claro que um susto primeiro mas depois que engraçada que era a vaca abanando a cauda sacudia as letras pensava que eram moscas. Entretanto o poeta continuava escreveu esse poema e outros poemas normais. mas depois da vaca vieram outros animais. alguns até menos leitosos entravam por ali pelos poemas pareciam estábulos alfabéticos. E as pessoas 108


começaram nas chalaças chamavam-lhe pois é, poeta não é? ou poeta noé. Até poeta d’arca e continuavam a espicaçá-lo então achas normal ter tantas vacas na poesia? mas ele não percebia o problema – qual é o problema das vacas na poesia? dizia também há tantas sílabas na vida.

AUTO-INSTRUCÇÕES cada um tem as suas 07111999

Um dia o homem-com-um-olho-em-si-outro-no-mundo nem queria acreditar. Estava tudo ali. Tudo escrito nos interstícios do ar. Que o ar os tem, e perigosos, lindos. Então o homem-com-um-olho-em-si-outro-no-mundo pegou nos olhos que faltavam, e nos dedos, e pôs-se a ler por entre os espaços contínuos. preliminares: um poema é um bocado do mundo arrancado ao fio que se passeia entre a terra e o que não é terra. puxa-se e pronto. ele aparece. mostra as costuras do mundo. e depois: cada poema é um puzzle do mundo. por exemplo. eu sou um puzzle do mundo. por exemplo os meus poemas são puzzles do mundo por exemplo há tantos exemplos o mundo é uma enorme manta de exemplos vivos. por exemplo vou fazendo uns poemas, às vezes há uns que são mais ou menos pouco verdade, mas outros são limpinhos. bocados do tal fio das costuras. quando se começam a ver bocados das costuras do puzzle está meio caminho andado. já só faltam os outros todos meios caminhos. um dia tenho meu puzzle completo. nesse dia o mundo sorri mais um bocadinho. agora por exemplo um dia. Houve um senhor que disse que o poema não se percebia. ok. fomos a uma loja e comprámos. eu peguei numa peça do puzzle. de uma parte do céu era todo azul era um azul lindo. a peça era desse azul. só tinha esse azul. o senhor disse que não se percebia nada. escreveu um abaixo assassinado. abaixo os poemas que não se percebem. então o senhor pôs-se a explicar que cada peça tinha que lá ter um boneco a explicar em que medida é que aquilo era uma parte do todo compreensível. eu disse hã. ele disse hã o quê. eu disse hã, os todos, enfim, um todo não se compromete, quando muito sabe-se, sente-se. é da natureza do todo não ser compreensível. ele disse hã. e disse que o todo não era assim. ah, claro, ele estava a falar dos fechados. eu estava a falar dos abertos. ele disse que esses tais todos abertos não só não se vendiam em lojas. nem estava provado cientificamente que existiam. eu pedi-lhe para me provar cientificamente que ele próprio existia. ele ficou a olhar para mim. passou tempo. mais um pouco de tempo eu disse-lhe: Onde é que você está?

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Não estou a vê-lo. Ele agitou os braços e gritou disse: “Aqui”. Onde? Não sei se estou a vê-lo. Ele agitou nervoso mais os braços gritou: “Aqui, aqui, estou aqui”. Onde?

ONTEM HOJE E AMANHÃ […] A menina-dos-olhos-do-pai olha para o pai e pergunta: – Hoje é amanhã? – Essa pergunta é difícil de responder, filha. Hoje nunca é amanhã. Amanhã é depois de dormir. – Mas depois de dormir, quando acordo é sempre hoje, nunca é amanhã. As dúvidas as crenças os desejos das crianças não pesam em cima dos nenúfares são absolutamente eloquentes. A menina-dos-olhos-do-pai deita-se sempre a pensar que acorda amanhã. Mas é sempre hoje.

§

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[PAULO KELLERMAN]

CATÁLOGO DE FINGIMENTOS Havia uma actriz que todos elogiavam pela excelência dos seus desempenhos; mas ela estranhava: porque o que louvavam era, afinal, a sua capacidade de fingir, mentir, iludir: de não ser ela própria. Sim, percebera há muito que a sua vida era um extenso catálogo de fingimentos: para cada circunstância escolhia a personagem adequada e encarnava-a. Actriz a tempo inteiro, na verdade. Até que, certo dia, apaixonou-se. E disse-lhe: amo-te tanto. Ele encolheu os ombros, indiferente: como poderia adivinhar que ela efectivamente (e talvez pela primeira vez) sentia o que dizia?

LIXO Era uma vez um homem que passava uma parte considerável dos seus dias a mexer no lixo alheio. Explicava, a quem o desejasse saber, que procurava uma alma. Perdera a sua e, por isso, precisava encontrar outra com urgência. Acrescentava que o local mais óbvio para procurar era entre o lixo dos outros. Pois se a bondade apenas se destaca quando contraposta à maldade, se a virtude apenas o é em relação ao pecado, se a verdade apenas existe enquanto a mentira existir, em que outro local procurar a pureza senão entre a impureza? Sorria e continuava a revolver o lixo.

PEIDO Tudo o que sou, devo-o a um peido. Foi assim: estava na sala de aulas quando dei um sonoro peido. A professora corou de raiva e expulsou-me. Caminhei pelos corredores desertos, aborrecido. Decidi dar um salto ao café, ansioso por contar a minha proeza a alguém. Mas, quando atravessava a rua, fui atropelado. Condenado a uma cadeira de rodas, regressei à escola. Como não podia jogar à bola e correr atrás das raparigas para lhes apalpar as mamas, lembrei-me de começar a estudar. Hoje, quando discursar a agradecer o Nobel da Física, não sei se falarei do peido ou não. 111


GREVE Houve um dia em que as cegonhas decidiram entrar em greve, recusando-se a fazer entregas de bebés. Reivindicavam que o seu papel na sociedade fosse reconhecido e que se acabasse definitivamente com a ideia, errada, de que os bebés nascem das barrigas das mães. Contudo, os bebés continuaram a nascer. Então, as cegonhas perceberam o que, para todos, era óbvio: já há muito que tinham sido substituídas pelas mães. A partir desse dia, as cegonhas deixaram de ser os animais alegres que sempre foram; sentindo-se inúteis, começaram a desaparecer, tornando-se uma espécie em extinção. (Pouco depois, apareceram os primeiros hospitais.)

IDEIA Era uma vez um menino muito infeliz porque o seu pai era bastante mau e batia-lhe com o cinto. O menino não sabia o que fazer. Estava farto de levar cintadas, mas não descobria como se opor, não imaginava como se defender. Não podia fugir (para onde?), não podia lutar (como?), nem sequer podia tentar esconder o cinto, porque depois seria muito pior. Foi então que teve a ideia. Sentiu-a nascer, pequenina, indefinida, tímida, nas traseiras da sua cabeça, ir crescendo, devagarinho e, de repente, explodir no seu cérebro, imponente, brilhante, salvadora. Teve a ideia de oferecer uns suspensórios ao pai.

FARMÁCIA Entro sem hesitação, decidido e corajoso. Aguardo a minha vez, enquanto um par de velhos é atendido. Ao balcão, está uma jovem, bastante bonita; poderia ser minha filha. Distraído, olho o expositor dos preservativos; sinto-me corar e desvio o olhar, embaraçado. O tempo vai passando. A rapariga pergunta-me o que desejo, sem sorrir. Tento não gaguejar, parecer casual. Ela avia-me sem hesitar, distante e indiferente. Saio, com a pequena embalagem no bolso. Sinto-me agradecido pela indiferença da moça, certo de que não lhe passou pela cabeça a mais ténue suspeita. Jamais lhe ocorreria que aqueles comprimidos serviriam para me suicidar. 112


TORNEIRA Era uma vez uma torneira de banheira que se apaixonou. O alvo do seu amor era uma simples torneira de bidé, a quem a ideia de despertar o interesse da torneira de banheira causava tal entusiasmo que, por vezes, até entupia. As torneiras namoravam-se. Conversavam e olhavam-se. Claro que nada mais poderiam ambicionar (fazer amor, por exemplo), pois, como se sabe, as torneiras estão fixas às paredes. Até que um dia houve um tremor de terra. A casa foi destruída e abandonada. No meio dos escombros, as torneiras, finalmente juntas, concretizavam o seu amor. E, claro, foram felizes para sempre.

PEDRADA Era uma vez um menino que gostava de atirar pedras à lua. Quando chegava à noite, refugiava-se nas traseiras do quintal, acariciava as pedras que recolhera durante o dia (para dar sorte) e atirava-as, uma a uma, olhos fixos na lua. Quando sentia o braço cansado, ia para a cama e, exausto, adormecia de imediato. Mas, um dia, o menino foi viver para a cidade, onde já não podia atirar pedras, pois feriria pessoas, partiria vidros, provocaria estragos (disse a mãe). A partir desse dia, nunca mais o menino conseguiu adormecer com facilidade, como antes. E nunca ninguém descobriu porquê.

TOALHA Devo confessar: sou uma toalha muito feliz. Vivo com uma mulher maravilhosa, que não me larga, não existe sem mim. Sou eu que, todas as manhãs, aconchego o seu corpo, secando-o e acariciando-o. Seco os seus olhos, quando chora, massajo as suas costas, quando doem, limpo a sua boca, quando necessário. Protejo os seus seios, beijo as suas pernas, limpo o seu sexo. Toco-a com volúpia e ela adora. Estamos juntas todos os dias, quando viaja acompanho-a, cada manhã é apenas nossa e o mundo deixa de importar. Ama-me, tenho a certeza. E o cornudo do marido não percebe nada…

§

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[FILIPE NUNES VICENTE]

I Dizem-me: mas a mentira não mata o amor? Um pouco difícil. Ela funda o amor. Quando julgamos que vamos ver crescer os nossos filhos ou quando estamos certos de que ela é só nossa, o que fazemos senão mentir? O que conta é o tempo, e a mentira dá-lhe espessura. Experimentem dizer sempre a verdade a quem tanto querem e verão quanto tempo dura o vosso amor.

V Querer ficar com alguém até ao fim da vida é um projecto megalopata. Hoje (desde os anos 50) pensa-se que a ousadia reside na experiência sucessiva. Nada mais errado. Descobrir todos os dias motivos suficientes para não deixar o outro – uma facilidade obrigatória – é uma tarefa que faz de Sade um menino de coro. Dor e recompensa, o abandono sempre no horizonte, dá uma tesão insuportável.

VI Não julguem que existe algo de heróico na durabilidade de uma ligação. A simples sobrevivência pode ser mais inteligente. Muitas coisas podem terminar com um automobilista alcoolizado, muitas coisas acabam numa TAC bem feita. O tom certo é a cor da descendência: dar-lhes um mundo que possam estragar é mais razoável do que estragar-lhes um mundo que não podem consertar.

IX Hoje em dia é difícil arranjar uma boa mulher – asseada, ilustrada, neurótica, sexualmente competente, boa mãe – mas é fácil arranjar uma mulher boa: deprimida, técnico-sexualmente avançada, vadia e sem pachorra para conversas de biberões.

XXIX Estás diferente, já não te reconheço. Deixando os trocadilhos psicanalíticos de lado (re-conhecer), a verdade é que a modificação é um agente político. A mudança no outro pode ser natural (gelhas, estrias, calvície, desinteresse) ou jacobina: agora vejo as coisas assim, agora o mundo é assim. E desata a fazer novos amigos, muda de 114


emprego, compra roupa nova. A mudança assusta-nos porque o amor é conservador. Não pode ser de outra forma. É uma trabalheira – pior do que escovar um cão – aceitar a mudança. Até porque é uma recusa: se eu gostava do que ele/ela era, por que raio mudou ele/ela? Ou: como raio vou agora gostar disto?

LXI Ser duro com as crianças é uma doçura. Não falo da pior dureza: o desinteresse, o enfado, a superprotecção ou o caos. Falo de outra, da que liberta. Regras simples e duras (como com os cachorros) delimitam o território e esclarecem os papéis. Não é suposto o cão morder o dono, não devia ser tão frequente os meninos mandarem os papás à outra parte. O respeito por essas regras é o respeito pela nossa função. Isto as crianças percebem bem quando sentem que os pais não se tentam livrar delas na primeira oportunidade. Uma mãe que é inflexível com os modos à mesa mas que brinca com a criança depois de chegar a casa estafada cria um laço para a vida.

LXII Tal como os animais não devem dormir na nossa cama, também as crianças devem ser duramente expulsas da relação dos adultos. Isto significa que não há nada melhor do que adormecer com um bebé, mas que quando ele cresce devemos abster-nos de discutir – com aquela amargura com que os casais discutem – à sua frente. As regras são para todos ou não são para nenhum.

LXIII A vida nunca é demasiado longa, diz Petrarca ao queixoso de uma velhice precoce. É um conselho mais enigmático do que o habitual no teórico do secretum. Se me queixo de não ter dado conta do tempo passar, por que razão ele me diz que a vida é curta? Aceitar as coisas, agradecer ter passado por esta vida, não desperdiçar nada (nem o fim da viagem). É a costela estóica de Petrarca, pouco compatível com o desejo da eterna juventude. Voltamos sempre ao mesmo: o tempo é a única coisa que possuímos.

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LXIV Ao fim de alguns (poucos) anos os meninos passam a dividir-se por duas (ou mais) casas, porque os papás já não sentem o “clique” erótico. Por que motivo os papás exigem o tal “clique” da relação com o parceiro de tantas insónias é coisa que merece curta análise. A sobrevalorização do sexo acompanha uma menorização emocional que transforma as relações de longa duração num lamentável equívoco. Um casal que partilha a cama há uma dezena de anos não tem, obrigatoriamente, de manter “clique” nenhum. Esse sexo pode e deve ser fisiológico, limpo de lamentações e deserto de tristezas.

LXXV Um europeu bem instalado há muito esqueceu o motivo pelo qual os avós rapavam o prato com o pão. A guerra tem destas coisas: harmoniza os comensais. O excesso de mesa, mais pela quantidade do que pela qualidade, é um sinal de demência social. Já não nos recordamos do que é apreciar uma batata velha e fugidia, já não sabemos o que é matar a fome. Talvez por isso a angústia dos que tentam chegar não nos impressiona. E perdendo essa memória da fome perdemos a memória da partilha. Já não se conhecem os comensais. E isso nota-se.

LXXXVIII Anos a fio a ouvir histórias de amores e é sempre a mesma coisa: elas querem tudo, eles só querem uma coisa. Se há um amor feminino, ele é uma mancha de óleo no mar do Norte. Elas querem filhos, carinho, segurança, dinheiro, diversão. É um amor adulto, total, absoluto. Se existe um amor masculino, ele enrola-se na posse. O corpo delas, evidentemente, mas também a cabeça. O ciúme masculino é sempre um adiantamento que a imaginação faz ao lençol. Mas esgota-se quando chega o novo catálogo. É um amor igual ao que as mulheres têm por um par de sapatos novos.

XCIV Sempre que os fracos se tornam fortes, outros fortes se tornam fracos. Na arena reivindicativa, duas categorias perderam poder: as crianças e os velhos. As crianças 116


porque são hoje um fardo que impede viagens regulares a Punta Cana; os velhos porque a mensalidade de um lar decente dá para pagar três do jipe novo com controlo de velocidade nas descidas acentuadas. Depois da paz, a comodidade.

CIV Intrigam-me os motivos pelos quais se diz que as mulheres fortes intimidam os homens. Não encontrei até agora nada de interessante, nada que ultrapasse os chavões habituais (inversão do instinto de predador e outras psico-larachas semelhantes). Qualquer homem deveria adorar ir para a cama com a mulher forte (rica, poderosa, inteligentíssima, etc.), pois nenhum outro sítio é mais socialista, igualitário e utópico. No dia seguinte, claro, a realidade prossegue.

CXVII Um paradoxo lento rodeia os pais: quanto mais as crianças crescem, o que desejamos, mais a solidão nos acena, o que gostaríamos de evitar. E raramente damos conta, sem remerecer, da beleza irrepetível de uma boquita desdentada que nos pede uma história-traz-o-sono. Guardar é bom, viver é ainda melhor.

CXIX Quando nos morre alguém, para lá de tudo o mais, passa a existir um espaço mental e físico desalinhado. Quem perdemos fazia parte de um ritmo antigo, de uma repetição cadenciada de experiências que nos entranhou na pele. Esta perturbação é mais subtil do que a tristeza imensa, mas não menos letal. Aparece sob a forma de uma cadeira vazia à mesa de jantar, coisa com a qual já contávamos mas que mesmo assim nos surpreende; como uma campainha habitualmente pontual mas agora inexplicavelmente muda; ou, ainda, vestida de uma voz cujo silêncio, naquele exacto momento, nos arranca as orelhas.

CXXXV O lixo amontoa-se nas cidades, as pessoas também. Existe uma correlação significativa, sempre existiu. Já se viveu pior? É certo. 117


O que causa desconforto, por comparação com os tempos antigos, é a dissonância. Fazemos hoje tanta coisa impossível, deixamos por fazer tanta coisa essencial. Conseguimos fazer seres vivos a partir de um pedaço de pele, mas não conseguimos fazer pele suficiente para agasalhar todos os seres vivos.

CXXXVI A raiva deverá ser a mais antiga das emoções humanas. Deve ter vindo antes do medo, do amor e do ódio. A raiva não precisa de companhia.

CXLII Um filho será herói, outro ladrão; um salvará a Pátria, outro será traidor e por aí adiante. Pôr filhos no mundo e esperar que eles não nos envergonhem, rir das suas brincadeiras, aproveitar todos os momentos. A regra de Séneca é: os deuses não nos prometeram nada. O estoicismo, nas suas várias declinações, parece banal. Talvez, mas um bom sono também e não é por isso menos precioso.

CLIII A certa altura milhares de pais levam os filhos – os que acabaram o 9.º ano – aos psicólogos para fazerem testes vocacionais. Esta área da psicologia tem o rigor preditivo do lançamento de búzios e a utilidade de uma pulga na cama. Aqui há uns anos, numa escola de Coimbra, todos os miúdos foram apontados como futuros arquitectos. Acreditarei nos testes vocacionais no dia em que um psi disser à mãezinha: “A sua Vanessa Carina, se perseverar, dará uma excelente puta.” Ou ao paizinho: “O seu Bruno Renato, se não se estragar, há-de ser um burlão de estalo.”

CLXV Gosto da mesma maneira de todos os meus filhos. É uma mentira defensiva, mais comum no sexo feminino. Tende para a desactualização, no ocidente remediado, devido ao encolhimento demográfico. Se uma mãe tiver parido três filhos, estes nasceram e cresceram em épocas diferentes do seu casamento, da sua carreira 118


profissional, dos seus sonhos e das suas desilusões. Poderá amar todos os seus filhos, mas nunca da mesma forma. Uma mãe que diz isto, está a mentir; ainda que piedosamente e por insondáveis motivos.

CLXIX Depois de Smolensk, Napoleão chega a Gjastk. As coisas não andavam depressa e Napoleão, fazendo fé em Tarlé, arranjava tempo para escrever a Maria Luísa: “Há dezanove anos que faço a guerra e dei muitas batalhas e fiz muitos cercos na Europa, Ásia e África. Abreviarei esta guerra para te voltar a ver bem depressa.” Se fosse hoje, esta carta provocaria um tumulto. Mas, vendo bem as coisas, hoje ninguém abreviaria uma guerra para voltar a ver a amada.

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[JOSÉ MÁRIO SILVA]

PARAÍSO PERDIDO Após vários meses de triagem (os candidatos foram mais de 20.000), a produção de “Paraíso Perdido” escolheu por fim os dois únicos participantes – um homem (A) e uma mulher (E) – do mais aguardado programa televisivo dos últimos anos. Transportados de helicóptero, com uma venda nos olhos, A e E foram deixados numa floresta virgem, algures no interior de uma ilha do Pacífico, exactamente como vieram ao mundo: nus, frágeis e desprotegidos. Um número não especificado de câmaras e microfones, montados nos sítios mais improváveis (raízes, lianas, quedas de água, formigueiros), capta, 24 horas por dia, o mínimo gesto ou sussurro do agora célebre par. A saga começou há uma semana mas as audiências têm sido decepcionantes. A e E quase não falam e pouca gente acredita que o amor possa nascer assim, de geração espontânea, no meio da selva. Ontem, os responsáveis pelo programa tomaram a medida que se impunha. Numa conferência de imprensa, anunciaram que a serpente (uma piton com sete metros de comprimento) já está a caminho.

PARÁBOLA Toda a gente conhece a história de Chuang-Tzu. Um dia, o mestre taoista sonhou que era uma borboleta e, ao despertar, já não sabia se era um homem que sonhava ser uma borboleta ou uma borboleta que sonhava ser homem. A história, porém, não termina aqui, onde toda a gente julga que ela acaba. Chuang-Tzu (ou terá sido a borboleta?) foi apanhado mais tarde na rede literária de Jorge Luis Borges e a borboleta (ou terá sido Chuang-Tzu?) foi apanhada na rede literal de Vladimir Nabokov.

PEQUENÍSSIMO CONTO (QUASE BÍBLICO) No princípio era o Verbo, Ou outra coisa qualquer. Deus já não se lembra.

HONESTIDADE Ao fim da manhã, visitou o amigo no hospital e assinou-lhe o gesso (mesmo por baixo da frase: “Fui eu que te empurrei”).

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ASSALTO AO MUSEU Cúmulo da sofisticação: alguém conseguir roubar, não os quadros de Monet, mas apenas os nenúfares dos quadros de Monet.

CAIXA NEGRA No rescaldo de cada relação falhada, lia de novo todos os e-mails e SMS, à procura do erro humano.

HOMODIEGÉTICO Há histórias que puxam tudo lá para dentro. Até o narrador.

TACTO B ainda espera toques que não sejam de telemóvel.

CRISE DE IDENTIDADE Andava tão confuso que criou um heterónimo chamado Fernando Pessoa.

NOÇÕES DE GEOMETRIA AFECTIVA Os triângulos amorosos nunca são equiláteros.

INSTITUTO DE SOCORROS A NÁUFRAGOS As miúdas giras iam saindo da água – ilesas, magníficas, botticellianas – enquanto ele ficava a tarde inteira junto à bandeira verde, fazendo respiração boca a boca a septuagenárias e homens de bigode.

O QUE ESTÁ NO MEIO NÃO INTERESSA Era uma vez e foram felizes para sempre.

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[PAULO RODRIGUES FERREIRA]

5 … Foi atropelado por um comboio mas logo se levantou a dizer “não doeu, estou bem.” Parece que estavam mulheres a ver.

45 … Perfeitamente consciente da imortalidade que alcançara com a sua obra-prima, o escritor atirou-se do topo de um arranha-céus.

72 … Era tão chantagista que, quando o médico o tentou puxar de dentro do útero da mãe, enrolou o cordão umbilical no pescoço, ameaçando suicídio caso não lhe dessem mais um mês de descanso.

76 … Procurava no corpo de todas as mulheres o sorriso de uma só.

95 … O velho tinha um problema: apaixonara-se pela mulher ideal mas não conseguia passá-la do desenho para a realidade.

112 … Era um cavalheiro: em vez de dar um tiro na testa da mulher que o enganava, matou-se.

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[AFONSO CRUZ]

ADÃO SAIU PRIMEIRO DA PARAÍSO “A sua passada era maior do que a da mulher, uma questão antropométrica. Por isso saiu ligeiramente à frente de Eva, que tinha passinhos pequeninos, delicados. O segundo a mais que Eva se demorou no Jardim é responsável pela beleza redonda das suas formas, sem grandes pilosidades, tal como os anjos e as crianças. Um segundo a menos no Éden e Adão saiu cheio de pêlos no peito, um grande bigode turco e um profundo amor pela sua equipa de futebol.” (J. Dameron, Primeiro Segundo)

CLASSICISMOS “Uma mentira dita em latim é uma máxima jurídica.” (Samuel Lieber)

CONTAR HISTÓRIAS “Um homem antes de morrer deve cantar a sua vida, contar histórias, tornar-se leve. A verdadeira gordura é passado que não se liberta, que não retorna ao mundo e fica encafuada no corpo, sólida, densa, nos quadris, nas coxas, nas articulações. É por isso que os velhos têm dificuldade em mexer o corpo. Estão carregados de passado nos ossos, nas rótulas, no espinhaço, na cerviz. Tudo calcinado por ontens. Quando o homem liberta as suas memórias, pela palavra, fica leve, e é tanta levidade que por vezes tem de se impedir de falar para que não se vá pelos ares, como uma folha seca. Contar histórias destrói toda a gravidade e todas as leis.” (Tal Azizi, Discursos)

(ACUSAÇÃO AO) GIRASSOL A dália, o girassol e a margarida não são o que parecem. Parecem ser uma flor, mas são uma comunidade delas, de ambos os sexos, com umas flores estéreis a fingirem ser pétalas (na verdade são sépalas disfarçadas) de modo a enganar quem as olha e 123


atrair insectos. É no círculo central que vivem as verdadeiras flores, minúsculas e hipócritas. Cada dália é, na verdade, uma comunidade de burlões. E nós somos tal qual o girassol e a margarida, parecemos ser um, mas somos muitos. Vivem egos, aos milhões, dentro de nós, mesmo quando pensamos ser uma unidade, uma singularidade, um indivíduo. Exceptuando Pessoa, que se dividia em pouco mais do que quatro, isto cá dentro é uma Legião.

INFINITOS Nicolau de Cusa disse que uma circunferência infinita é uma recta; Dovev Rosenkrantz disse que um homem infinito é aquele que não tem parte de fora; Miroslav Bursa disse que uma casa infinita é uma igreja; Teodoro de Reims dizia que uma bebedeira infinita não dá ressaca; Deus determinou que a justiça eterna é o tempo que os tribunais terrestres levam a despachar os processos; e Malgorzata Zajac disse que uma língua infinita é da porteira do meu prédio.

MECANISMOS ANIMAIS “As pessoas agem tanto como autómatos que me espanta que recorram a psicólogos, em vez de mecânicos.” (E. Richardson)

PARADOXO DE LIEBER “Se a incompetência é feita por incompetentes, por que motivo a incompetência é feita com tanta competência? Só podemos concluir que a incompetência é feita por pessoas competentes. Um incompetente seria incapaz de ser competente a fazer coisas incompetentes.” (Samuel Lieber, Imagiologia do Estadista)

PASSAR À FRENTE NA FILA; OU QUANTO MAIS SE DESCE, MAIS IMPULSO SE GANHA “Matou, violou, roubou, pensou, violentou, mentiu, enganou, espancou, praguejou, vituperou, canibalizou, ofendeu, enfim, cometeu atrocidades que não lembram ao Diabo. Foi julgado e condenado e, ao lado dele, outro condenado disse-lhe, de braços 124


abertos em cruz: ‘Em verdade te digo que hoje mesmo estarás comigo no Paraíso.’ E foi assim que o ladrão, o malfeitor e criminoso, passou à frente de tanta boa gente e foi para primeiro da fila.” (Théophile Morel, Histórias das Cunhas e Compadrios, Desde a Antiguidade Clássica Até aos Nossos Dias)

PESSIMISMO Há principalmente duas coisas que se perdem com a idade: a visão e o optimismo. Mas para a primeira existem óculos. (Malgorzata Zajac, Fragmentos do Espanto)

TAXA DE DESEMPREGO “Bergson dizia que o homem é o único animal que ri. Para ser mais preciso, o homem é o único animal que ri apesar da elevada taxa de desemprego.” (Séneca)

UPDATE “A dúvida é o update da certeza.” (Malgorzata Zajac)

UPDATE PARA TECNOLOGIA SEM FIOS “Graças à tecnologia, deixámos de ser meras marionetas nas mãos do destino, para passarmos a ser meras marionetas sem fios nas mãos do destino.” (Ari Caldeira)

§

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[AUGUSTO MOTA]

08 | PAIXÃO Inscreveu-se no corpo de bombeiros voluntários. Queria apagar um fogo que ardia sem se ver. Estava apaixonado.

09 | NAUFRÁGIO Passava horas a fio a navegar na net. Um dia apanhou uma tempestade das sérias e salvou-se por um triz, agarrado ao teclado. Mas o rato foi o primeiro a abandonar o computador.

15 | ANTIVÍRUS Apaixonou-se na net. Juraram fidelidade na net. Tiveram relações na net. Como não se protegeu devidamente, o computador contraiu uma terrível infecção.

17 | TRAVESSIA Tomou a decisão da sua vida. Comprou um camelo. Para atravessar o deserto que lhe ia na alma.

22 | EFICIÊNCIA Era um mecânico desconfiado. Desmontou a sua noiva peça por peça. Para ver se tudo funcionava devidamente.

34 | SURTIDA O rato deixou de lhe responder às ordens da mão. Logo o técnico de informática descobriu a causa de tão grande mal-estar. Ainda havia imensas migalhas de queijo espalhadas pelo tapete.

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47 | VISÃO “Os políticos têm cada vez menos sentido de orientação” – dizia, desiludido. Por isso recorreu ao microcrédito e montou um negócio promissor. Uma escola de treino para cães de cegos.

55 | LIMITAÇÃO Tomava sempre as coisas ao pé da letra. Um dia convidaram-no para uma mesa redonda. Recusou-se a participar porque a mesa, afinal, era quadrada.

63 | ALCUNHA Chamavam-lhe “Rouxinol”. O seu casamento foi sol de pouca dura. Passava as noites em longos trinados pelo meio dos canaviais e a mulher viu-se obrigada a pedir o divórcio. Queria que ele cantasse em casa.

§

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[CARLOS QUEVEDO e RUI ZINK]

RAPIDINHAS CULTURAIS Marcel Proust, À la recherche du temps perdu, Paris, Gallimard, 1992 – À Procura do Tempo Perdido, Livros do Brasil (Colecção Dois Mundos), 1965. Resumo: Um rapaz asmático sofre de insónias porque a mãe não lhe dá um beijinho de boas-noites. No dia seguinte (p.486, II vol.) come um bolo e escreve um livro. Nessa noite (p.1334, VI vol.) tem um ataque de asma porque a namorada (ou namorado?) se recusa a dar-lhe uns beijinhos. Tudo termina num baile (vol.VII) onde estão todos muito velhinhos e pronto. James Joyce, Ulysses, Paris, Shakespeare Co., 1992 – tradução portuguesa (obrigatório dizer que é má) de João Palma-Ferreira. Resumo: Um dia na vida de um judeu chamado Bloom que vai cagar no primeiro capítulo. Um estudante chamado Daedalus masturba-se na praia. O judeu bebe uns copos e fala com o sapato. A mulher do judeu (que é cantora) lembra-se de como fornicou o dia todo com o seu amante. Termina com a palavra “Sim”, prova indiscutível de que se trata de um livro inteiramente positivo. Júlio Dantas, A Ceia dos Cardeais, Lisboa, Lello, 1908 – tradução portuguesa de David Mourão-Ferreira. Resumo: Era uma vez três cardeais. Um era português, o outro espanhol e o outro francês. Estavam a jantar no Vaticano e lembraram-se de comparar engates. O francês tinha muita lábia, o espanhol muita basófia, mas o português é que a sabia toda. No fim, os outros baixaram a bola e reconheceram como é diferente (e melhor) o amor à portuguesa. Ou, como disse no fim o cardeal inglês, “Portuguese do it better”. Leão Tolstoi, Guerra e Paz (1800 páginas). Resumo: Um rapaz não quer ir à guerra e por isso Napoleão invade Moscovo. A rapariga casa-se com outro. Fim. Luís de Camões, Os Lusíadas (várias edições, versão portuguesa de João de Barros). Resumo: Um poeta com insónias decide chatear o rei e contar-lhe uma história de marinheiros que, depois de alguns problemas (logo resolvidos por uma deusa porreiraça), têm o justo prémio numa ilha cheia de gajas boas.

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Gustave Flaubert, Madame Bovary (378 páginas). Resumo: Uma dona de casa engana o marido com o padeiro, o leiteiro, o carteiro, o homem do talho, o merceeiro e um vizinho cheio de massa. Envenena-se e morre. William Shakespeare, Hamlet, Londres, Oxford Press. Resumo: Um príncipe com insónias passeia pela muralha do castelo, quando o fantasma do pai lhe diz que foi morto pelo tio que dorme com a mãe, cujo homem de confiança é o pai da namorada que entretanto se suicida ao saber que o príncipe matou seu pai para se vingar do tio que tinha matado o pai do seu namorado e que dormia com a mãe. O príncipe mata o tio que dorme com a mãe, depois de falar com uma caveira, e morre, assassinado pelo irmão da namorada, a mesma que era doida e que se tinha suicidado. Anónimo Colectivo, Antigo Testamento (2 vol.). Resumo: A mesma história tem dezenas de versões. Trata-se da saga de uma família através de várias gerações. Uma história de poder, luxúria, paixões incandescentes, ambições desmedidas, crimes hediondos e sexo. Anónimo Colectivo, Novo Testamento (4 versões). Resumo: Uma mulher com insónias dá à luz um filho cujo pai é uma pomba. O filho cresce e abandona a carpintaria para formar uma seita de pescadores. Por causa de um bufo, é preso e morre.

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[VÁRIOS AUTORES] *

*Breve selecta de textos de alguns autores que integraram a Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa organizada por Rui Costa e André Sebastião, publicada em 2008.

(DOENÇA) | de Fernando Dinis Quando perdeu o braço direito, começou a escrever com a mão esquerda. Quando perdeu o braço esquerdo, começou a escrever com o pé direito. Quando perdeu a perna direita, começou a escrever com o pé esquerdo. Quando perdeu a segunda perna, não escreveu mais. Como soldado, tinha sido um mártir. Mas com 105 centímetros, nunca passaria de um escritor menor.

EXCESSO DE POESIA | de Fernando Gomes Ia todos os dias à biblioteca e todos os dias era o primeiro a chegar. Pedia um livro de poesia e sentava-se de frente para a entrada, lendo e fantasiando. Sempre que a porta se abria, descolava disfarçadamente os olhos dum poema e observava quem entrava. Andou nisto anos a fio, entre versos, rimas e sonhos, procurando a mulher da sua vida. Quando a encontrou perdeu-a em poucos minutos. Na realidade, não teve prosa para ela.

TROCA-TINTAS | de Fernando Gomes Gostava de tinto e bebia verde. Adorava Cesário Verde e lia Guimarães Rosa. Apaixonou-se por Rosa e casou-se com Violeta. O daltonismo tem destas coisas. Até jura que tem sangue azul.

HÁBITOS | de Fernando Gomes O monge nunca se despia quando fornicava. Largar hábitos não era com ele.

VARIAÇÕES EM TORNO DE UM CONCEITO: KAFKA | de João Carlos Silva Stanislaw só lera Kafka. Ocupava os seus dias a reler e a anotar os seus exemplares do escritor. Poder-se-ia dizer que vivera à sombra da influência deste. 130


Uma noite, numa estação de metro vazia, dois homens agrediram-no quase até à morte, rasgaram-lhe a mala e atiraram os seus livros e anotações para o poço da linha do metro. Mesmo depois dos agressores saírem, Stanislaw deixou-se ficar estendido, de cara no chão. Sangrando. Sem dentes da frente. Os dedos da mão direita esmagados. Não se afligia com o seu estado. Na verdade, apetecia-lhe sorrir. Fechou os olhos e pensou: “Sou kafkiano”.

OS MEUS PROBLEMAS | de Rafael Mota Miranda os taxistas perguntam-me sempre se não tenho mais pequeno. as mulheres, se não tenho maior.

ESPELHO DE MULHER | de Sónia Duarte Conheci uma mulher que, quando se mirava ao espelho para cuidar da sua imagem, em vez de perguntar se era a mais bela, dizia, de si para si, que o seu reflexo a desfigurava. Era alérgica a espelhos. Resolveu livrar-se de todos os espelhos que encontrava. Retirou-os do quarto, da casa de banho, da mala, das portas do guarda-vestidos, do hall de entrada, do automóvel, deixou de usar o elevador que tinha espelho, substituiu os vidros das janelas que eram espelhados… Que trabalheira, nunca se tinha apercebido que eram tantos, vivia num autêntico universo espelhado. Passaram-se dias numa dieta rigorosa onde relances a espelhos estavam proibidos. Uma vez, não se podendo conter mais de curiosidade, perguntou-me, a mim que ainda não sabia da história, que tal estava, ao que respondi: – Um pouco desgrenhada e pálida, minha querida. Desatou numa crise de choro, lastimando-se que não sabia o que fazer, dada a sua alergia especulativa. Precisava de se ver reflectida para se arranjar, sem falar do acidente de viação que ia tendo… Tentando consolá-la, retorqui: – Gosto de ti de maneiras que os espelhos não vêem. Ela parou o queixume. Casámo-nos um mês depois. Devo o casamento à metafísica.

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[3 POETAS COM INCURSÕES NA MICRO-FICÇÃO] *

*Além destes três autores seleccionados (os quais considero basilares), muitos outros poetas poderiam ser referidos como exemplos de percursos textuais pontuados, aqui e ali, pela presença da composição breve de teor narrativo e/ou aforístico.

| ADÍLIA LOPES 1. A rapariga que esperava muito as cartas do namorado que lhe escrevia muito pouco foi violada pelo carteiro. […]

ANONIMATO E AUTOBIOGRAFIA 1. Um escritor de romances escabrosos (o seu tema predilecto foi a relação incestuosa entre três irmãos) decidiu permanecer anónimo não por ter vergonha de assinar romances escabrosos mas para tornar ainda mais escabrosos os romances assim os leitores suspeitavam que os romances eram autobiográficos e se ele os assinasse com o seu nome os leitores ficavam a saber que ele era um filho único é claro que como filho único vivia fascinado pelo incesto entre dois irmãos que inspirou Chateaubriand (e não podia perceber o aforismo de Joyce é tão fácil esquecer um irmão como um guarda-chuva) mas mesmo que se considere como eu que a leitura de um livro pode ser tão importante na vida de uma pessoa como ter um irmão dois irmãos não são três irmãos

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2. Um poeta assinava os poemas com o seu nome mas um romance por ser autobiográfico assinou com um pseudónimo pouco banal contava no romance (e foi isto que o levou a decidir-se por um pseudónimo) que comia ao pequeno-almoço alheiras às rodelas com salada de tomate no supermercado quando pediu à empregada da charcutaria às 8h30 da manhã duas alheiras a empregada perguntou-lhe se ele tinha escrito As singularidades de Carolina (era o nome do romance) ele ficou tão embaraçado que pediu à mãe para ser ela a comprar as alheiras e os tomates mas quando a mãe chegava ao lugar da hortaliça com um saco de plástico cheio de alheiras o indiano do lugar perguntava-lhe logo se ela tinha escrito As singularidades de Carolina 3. Um terceiro escritor escreveu uma autobiografia em que se limitou a contar que ao pequeno-almoço bebia café com leite e comia pão com geleia de laranja assinou a autobiografia com o seu nome e nenhuma empregada de supermercado o importunou mas depois de ter o livro publicado sempre que bebia café com leite e comia pão com geleia de laranja ao pequeno-almoço sentia-se mal como se estivesse num palco ou num circo a ter de bebé café com leite e a ter de comer pão com geleia de laranja diante de olhos que abolem a privacidade e por se sentir assim passou a comer flocos de aveia

MAIS UMA HISTÓRIA DA GATA BORRALHEIRA Era uma vez o Príncipe que tinha dormido com a Gata Borralheira. Durante o baile no palácio apeteceu a ambos deixar de dançar e irem para a cama um com o

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outro. E foram. Mas, à meia-noite, a Gata Borralheira saiu a correr da cama do Príncipe e esqueceu-se do soutien atrás de si. O Príncipe não gostava do seu antepassado que tinha obrigado todas as mulheres do principado a descalçar o pé direito ou o esquerdo. O Príncipe não se lembrava ou a história era omissa quanto a ser o pé esquerdo ou o pé direito. Achava uma atitude grosseira, arrogante, pornográfica, de mau gosto. Então o Príncipe para encontrar a Gata Borralheira não obrigou todas as mulheres do principado a despirem-se diante dele e a calçar o soutien. Meteu o soutien na gaveta das recordações e decidiu fazer amor com todas, uma por uma, velhas e novas, feias e bonitas, aleijadas e não aleijadas. E foi fazendo. Quando fez amor com a madrasta e com as duas filhas da madrasta, sentiu-se mal. Jurou para nunca mais. Porque as três eram pelintras, chupistas, feias e fidalgas. E isso tudo traduzia-se no calculismo e no fingimento com que faziam amor. O Príncipe chegou a pensar que em vez de pénis tinha um godemichet implantado no baixo-ventre de tal modo a madrasta e as duas filhas da madrasta o usaram e se serviram dele. Agoniado depois de fazer amor com as três, foi à casa de banho vomitar. Na casa de banho vomitou. E encontrou a Gata Borralheira a limpar a retrete. Como o Príncipe não foi a tempo de vomitar na retrete, vomitou no chão. A Gata Borralheira limpou o vomitado sem enjoos. Porque o Príncipe e a Gata Borralheira tinham-se reconhecido mutuamente imediatamente. Não foi preciso fazerem amor porque a cumplicidade que os unia era evidente para ambos aos olhos e ao sorriso de ambos. O Príncipe levou a Gata Borralheira imediatamente para o palácio montados ambos num mesmo cavalo branco. E a madrasta e as duas irmãs suas filhas e irmãs da Gata Borralheira ficaram por entre os vidros e as cortinas danadas e furiosas e sem perceberem nada porque eram as três tão burras que nunca percebiam nada de nada. O soutien voltou a ser usado algumas vezes pela Gata Borralheira porque a Gata Borralheira era poupada, percebia muito de afrodisíacos e era tão fetichista como o Príncipe. Com o tempo, a Gata Borralheira e o Príncipe deixaram-se de patetices e o soutien, depois de ter servido de esfregão, foi para o lixo.

O LEITE DA VIDA A madrasta, quando a princesa começava a entrar na puberdade, atou-lhe o peito com faixas de linho porque não queria que a princesa tivesse maminhas. – É para teu bem. – disse a madrasta – Nunca tires as faixas, senão morres. Mas era para mal da princesa. Debaixo das faixas de linho cresceram duas maminhas muito pequeninas e muito defeituosas. 134


A madrasta não queria que a princesa tivesse um amante e por isso não queria que a princesa tivesse maminhas. Mas um dia a princesa a passear no bosque encontrou um amante e um amante encontrou-a a ela. O amante era chinês. Na China, naquele tempo, fazia-se aos pés das mulheres o que a madrasta tinha feito ao peito da princesa. O chinês desatou as faixas de linho com muito cuidado, como quem desembrulha o Menino Jesus, mal a princesa se despiu para ele no bosque. Beijou com muita delicadeza cada maminha da princesa e disse à princesa: – Deixa-me apresentar-te as tuas maminhas. A princesa ficou tão contente por ter duas maminhas como quase todas as mulheres, ela que andava tão triste por não ter maminhas nenhumas, que do mamilo esquerdo nasceu uma rosa e do direito um cravo. O chinês cortou a rosa e cortou o cravo com os dentes. Duas gotas de sangue caíram na terra. Mas na terra estava uma jarra cheia de orvalho. A jarra estava caída na terra, no chão. O chinês colocou com muito respeito a rosa e o cravo dentro do orvalho da jarra. Quando acordaram, as maminhas da princesa estavam cheias de leite. E a princesa pôde dar de mamar a uma ninhada de cachorrinhos órfãos e a uma ninhada de lagartixas órfãs. Os passarinhos também debicaram os mamilos com leite da princesa sem nunca a magoarem. E o chinês bebeu uma gota de leite de cada maminha da princesa. Depois a princesa e o chinês casaram-se e tiveram muitos filhos e muitas filhas, muitos animais e muitas plantas.

IRMÃ BARATA, IRMÃ BATATA Deus gosta das famílias, dos animais, dos ninhos, das ninhadas, mas das pessoas não. Por isso, para Deus, a maior invenção da humanidade é a contracepção.

• Em 81, disse à Dr.ª Manuela Brazette, psiquiatra, “Eu sou feia”. Ela disse-me “Não é ser feia. Não há pessoas feias. Não tem é atractivos sexuais.” Lembrei-me então do homem que em 74, tinha eu 14 anos, se cruzou comigo no Arco do Cego. Lembrei-me do homem, da cara do homem vagamente, mas lembrei-me muito bem do que ele me tinha dito ao passar por mim. Tinha-me dito “Lambia-te esse peitinho todo”. Lembrei-me também da meia dúzia de outros homens que durante a minha adolescência me tinha dito quando eu passava “Coisinha boa” e “Borrachinho”. Ainda hoje me sinto profundamente agradecida a esses homens. Pensei que eles estavam a avacalhar, que eram uns porcalhões. Mas quem estava a avacalhar era a Dr.ª Manuela

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Brazette, ela é que é uma porcalhona. Acho que um homem nunca consegue ser mau para uma mulher como outra mulher.

• Para foder, nestes tempos que correm, parece que é preciso um escafandro. As pessoas pensam muito em foder. E sofrem muito quando não fodem. Quem não pensa em foder está fodido. Mas as pessoas fodem e não são felizes.

• A minha gata morreu. Agora já me posso suicidar.

• O Sr. Dinis diz-me “Então quando é que vossemecê se casa?” Digo-lhe que não me quero casar. Diz-me “Fica para morgada”. Também me diz “Vossemecê não é doente. Tem uma inteligência muito forte e cisma muito”.

• Tenho uma doença mental, tenho uma doença de pele. A pele é exterior, o cérebro é interior. Tenho um eczema, tenho uma psicose. Às vezes penso que a pele é interior e que os meus miolos estão à mostra como a mioleira da vaca no balcão do talho.

• Pateta, patética, peripatética: eu.

• […] Assim terminam estes meus aforismos sobre a metafísica, a física e o físico prodigioso. Lisboa, 6 de Outubro de 1999

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| ALBERTO PIMENTA

LIGAÇÃO a palavra repousa de olhos semicerrados encoberta por um véu deixando entrever uma mama: o poeta aproxima-se tenta ma mar. a palavra estremece abre os olhos. o poeta afasta-se de um golpe tropeça cai sentado. a palavra percorre-se com as mãos a ver se está intacta. fica pensativa os dedos enfiados nas tranças brincando. o poeta aproxima-se então por trás. agarra a palavra pela cinta. ela tenta furtar-se ao contacto. caem. rolam por terra. a palavra continua a debater se. o poeta mete um dedo na vulva da palavra. a palavra torce-se toda. depois acalma. o poeta mete outro e outro de do ainda, retira um hífen todo molha do. a palavra cai ofegante. o poeta a fasta-se com um sorriso mete o hífen a o bolso e publica-o com uma palavra sua na capa

FASTOS II [excertos] artur vilas boas fez um filho na noite de núpcias. josé galhardo fez um filho na n oite de 29 de Fevereiro e a mulh er disse: isto não acontece todos os anos. nuno aranha fez dezassete filhos legítimos. joão de aguiar fez num só dia dois filhos, e conta o caso a quem o quiser ouvir. 137


joão manuel dito o larote fez três filhos, todos sem querer. joão da atouguia não sabe quan tos filhos fez. carlos mendonça fez nove filhas e à décima tentativa fez um fil ho varão como a família exigia. luís bastos além de filhos fez t ambém netos. daniel laranjo fez as contas – 1 f ilho, 160; 2 filhos, 180 cada; cad a filho a mais, 240 – e começou logo com a produção.* (*muito desactualizado; ver nova tabela no decreto regulamentar.)

manuel almeida ainda não casou, mas quando casar fará os filhos que quiser. assis conceição em princípio só faz gémeos. ângelo silva diz que os filhos são seus e pode fazer com eles o que quiser. josé marreta vai e vem, entra e sai, faz um filho ou não faz n ada. joaquim sampaio diz sempre que a maternidade é uma das maiores venturas de que as mulheres des frutam brito e cunha educa os filhos à antiga: manda-os calar com o c hicote. 138


mota lucas educa-os à moderna: manda-os simplesmente calar. bento themudo faz um filho sem pre que pode. reinaldo rosas faz filhos só qua ndo quer. tomé de lima antes de fazer filh os faz jejum. artur campos faz filhos por distr acção. azevedo filho acha que é gosto so fazer azevedo neto. padre osório, quem havia de d izer, é um grandecíssimo filhento. luís pacheco é o que se sabe. joão pestana estava a fazer um filho, mas interrompeu a meio.

FASTOS III artur hipólito morreu com 62 an os, 20 anos após ter feito 42, mas na altura quem diria? heitor fragoso morreu atropelado. foi levado para o hospital, mas es queceram-se duma parte do corpo no local do acidente. manuel testa morreu sem se ter c onseguido habituar a este modo de mal-estar no mundo. 139


arnaldo rodrigues caiu a um bur aco da canalização e nunca mais foi visto. jeremias cabral pôs termo à exist ência por motivos desconhecidos. zeca gomes morreu em defesa da pátria, mas a pensar noutra coisa. bernardo leite pôs-se a pensar na morte e não conseguiu voltar a trás. ivo gouveia tinha uma agência f unerária e escolheu para si um caixão representativo. guilherme silva fechou-se no sót ão, para morrer num lugar eleva do. luís dimas respirava saúde, agora respira um hálito de eternidade. antónio garcia, o coveiro, teve u ma síncope e caiu dentro da cov a que estava a abrir. bento nogueira engasgou-se com um pedaço de carne e desapare ceu do nosso convívio. paiva de jesus enforcou-se. joão baptista viu o cunhado lev antar-se do caixão e teve uma sí ncope.

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lourenço pinheiro estava a ver a trovoada e um relâmpago entrou lhe por um olho e saiu-lhe pelo outro. zé maria, o peidolas, foi expulso da vida pela autoridade compet ente. joão gaspar foi um nobre e val oroso homem que morreu heroi camente no campo da honra. p az à sua alma. raul santos deitou-se um dia e p or mais que o sacudissem nunca mais se levantou. alfredo penha caiu tão desastrada mente da cama que nem é possív el dar pormenores da sua morte. joaquim perestrelo morreu no me io da missa, qual quê! ainda a m issa não ia a metade! sousa dias morreu de pé, mas en terraram-no deitado, como toda a gente.

ROMANTISMO o público dá grande valor às florestas e às virgens. a história resulta sempre se o autor puser uma virgem à entrada da floresta ou uma floresta à entrada da v irgem, para depois apresentar a virgem no meio da flor esta ou a floresta no meio da virgem e finalmente mos trar a virgem à saída da floresta ou a floresta à sa ída da virgem. os artistas mais ousados apresentam a floresta em cima da virgem ou a virgem em cima da flo 141


resta. o público verifica então que o universo possui tudo quanto é necessário para bastar-se a si mesmo.

PROBLEMA COM VISTA A ORIENTAR OS INTERESSES INFANTIS PARA AS REALIDADES COTIDIANAS sabendo que, no momento de defecar, a ave ia a voar a 50 metros de altura do solo e à velocidade de 30 km. po r hora, acrescendo que o vento, no mo mento da expulsão das fezes, soprava na direcção do voo da ave a 25 km. p or hora, e sabendo ainda que as feze s, no momento da expulsão, pesavam 12 gramas, calcule a distância a que as fezes caíram em relação ao ponto da terra situado na vertical do ponto em que a ave abriu a cloaca.*

*responder que as fezes se dissolv eram no ar é considerado uma falta de respeito para com o professor, po rque se as fezes se dissolvessem no ar não haveria problema a não ser o ar estar cheio de fezes

| ALEXANDRE O’NEILL

SENTENÇAS DELIRANTES DUM POETA PARA SI PRÓPRIO EM TEMPO DE CABEÇAS PENSANTES 1 Não te ataques com os atacadores dos outros. Deixa a cada sapato a sua marcha e a sua direcção. O mesmo deves fazer com os açaimos. E com os botões.

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2 Não te candidates, nem te demitas. Assiste. Mas não penses que vais rir impunemente a sessão inteira. Em todo o caso fica o mais perto possível da coxia. 3 Tira as rodas ao peixe congelado, mas sempre na tua mão. Depois, faz um berreiro. Quando tiveres bastante gente à tua volta, descongela a posta e oferece um bocado a cada um. 4 Não te arrimes tanto à ideia de que haverá sempre um caixote com serradura à tua espera. Pode haver. Se houver, melhor... Esta deve ser a tua filosofia. 5 Tudo tem os seus trâmites, meu filho! Não faças brincos de cerejas sem te darem, primeiro, as orelhas. Era bom que esta fosse, de facto, a tua filosofia. 6 Perguntas-me o que deves fazer com a pedra que te puseram em cima da cabeça? Não penses no que fazer com. Cuida no que fazer da. É provável que te sintas logo muito melhor. Sai, então, de baixo da pedra. 7 Onde houver obras públicas não deponhas a tua obra. Poderias atrapalhar os trabalhos. Os de pedra sobre pedra, entenda-se.

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Mas dá sempre um “Bom dia!” ao pessoal do estaleiro. Uma palavra é, às vezes, a melhor argamassa. 8 Deves praticar os jogos de palavras, mas sempre com a modéstia do cientista que enxertou em si mesmo a perna da rã, e que enquanto não coaxa, coxeia. Oxalá o consigas! 9 Tens um glorioso passado futurível, mas não fiques de colher suspensa, que a sopa arrefece. 10 Se tiveres de arranjar um nome para uma personagem de tua criação, nunca escolhas o de Fradique Mendes. A criação literária não frequenta o guarda-roupa, muito menos quando a roupa tem gente dentro. 11 Resume todas estas sentenças delirantes numa única sentença: Um escritor deve poder mostrar sempre a língua portuguesa.

RÃ Propus a Helena, a primeira vez que a vi, organizarmos, de parceria, um campeonato de saltos de rã. Não sei exactamente como a ideia maluca me saltou da cabeça, antes mesmo de eu a ter pensado bem. Helena aderiu logo a ela, quase com entusiasmo. Helena tentava, por essa altura, promover tudo: encontros culturais, sessões de autógrafos, “happenings”, reuniões taparwere, musicatas, recitatas, tudo, tudo! 144


A ideia dos saltos de rã, afinal, não era assim tão estranha como isso: vinha direitinha do conto de Mark Twain “A célebre rã saltadora do distrito de Calaveras”. Então, eu e a Helena pusémo-nos à procura de rãs. Em Sacavém, uns rapazitos apanharam, para nós, duas rãs. Paguei cinco escudos por cada uma. Dentro da caixa de sapatos, as rãs latejavam. A meu lado, Helena segurava na caixa, na qual fizéramos dois buracos para os bichos poderem respirar. Já em Lisboa, Helena disse de repente: E se experimentássemos agora mesmo as rãs? Em Cabo Ruivo, a dez metros do Tejo, parei o carro. Saímos. Helena agachou-se, destapou cuidadosamente a caixa, não sem, primeiro afastar para o lado a cabeça. Uma das rãs saltou logo para o chão. A outra recusou-se. Tocámos-lhe com pauzinhos, batemos na caixa – e nada. Estando a rã que saltara sem competidora, de que se havia de lembrar o diabo da Helena? Simples! 145


Pôs-se ao lado da rã, segurou as saias e, com enérgicos “hop lá! hop lá!”, foi saltando com ela até que, sem dar por isso, caiu nas águas do Tejo. Tive um trabalhão para pescar a Helena e trazê-la, para minha casa, encharcada e a bater o dente. Ainda hoje lá está…

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| OBRAS CONSULTADAS

AMARAL, Rui Manuel, Caravana, Coimbra, Angelus Novus, 2008. Amaral, Rui Manuel, Doutor Avalanche, Coimbra, Angelus Novus, 2010. CONDESSA, Paulo, Bizz Dizz, Lisboa, Mariposa Azual, 2000. CRUZ, Afonso, Enciclopédia da Estória Universal, Lisboa, Quetzal, 2009. ENE, Luís, Às vezes acontece-me esquecer quem sou (Livro I), tradução de Uberto Stabile [edição bilingue], (Huelva), Ayuntamento de Punta Umbría, 2006 (colecção “Palavra Ibérica”). Ene, Luís, Ao longe dir-se-ia que não falam [inédito]. FERREIRA, Paulo Rodrigues, A Prisão do Ético, Torres Vedras, Livrododia Editores, 2009. Ferreira, Paulo Rodrigues, Dicionário das Distâncias, Torres Vedras, Livrododia Editores, 2011. FIALHO, Henrique Manuel Bento, Estórias domésticas, Entroncamento, OVNI, 2006. Fialho, Henrique Manuel Bento, Estranhas criaturas, Porto, Deriva, 2010. HATHERLY, Ana, 463 tisanas, Lisboa, Quimera, 2006. KELLERMAN, Paulo, Miniaturas, Lisboa, Edições Colibri/Câmara Municipal de Portimão, 2001. LEIRIA, Mário-Henrique, Contos do gin-tonic, Lisboa, Editorial Estampa, 1973. Leiria, Mário-Henrique, Novos contos do gin, Lisboa, Editorial Estampa, 1973. LOPES, Adília, Dobra – poesia reunida, Lisboa, Assírio & Alvim, 2009. MOTA, Augusto, Sujeito indeterminado, [Leiria], edição do autor, 2005. O’NEILL, Alexandre, Poesias Completas, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000. O’Neill, Alexandre, Anos 70 – poemas dispersos, Lisboa, Assírio & Alvim, 2005. PIMENTA, Alberto, Obra quase incompleta, Lisboa, Fenda, 1990. QUEVEDO, Carlos, Já não me lembrava – Os delírios da K e outros textos, Cruz Quebrada, Oficina do Livro, 2006. SILVA, José Mário, Efeito Borboleta e outras histórias, Lisboa, Oficina do Livro, 2008. TAVARES, Gonçalo M., O Senhor Valery e a lógica, Lisboa, Caminho, 2002 (colecção “O Bairro”). Tavares, Gonçalo M., O Senhor Henri e a enciclopédia, Lisboa, Caminho, 2003 (idem). Tavares, Gonçalo M., O Senhor Brecht e o sucesso, Lisboa, Caminho, 2004 (idem). Tavares, Gonçalo M., O Senhor Juarroz e o pensamento, Lisboa, Caminho, 2004 (idem). Tavares, Gonçalo M., Biblioteca 1, Porto, Campo das Letras, 2004. Tavares, Gonçalo M., O Senhor Kraus e a política, Lisboa, Caminho, 2005 (colecção “O Bairro”). Tavares, Gonçalo M., O Senhor Calvino e o passeio, Lisboa, Caminho, 2005 (idem). Tavares, Gonçalo M., O Senhor Swedenborg e as investigações geométricas, Lisboa, Caminho, 2009 (idem). 147


TORRADO, António, O Conta-gotas (contos mínimos com desenhos posteriores de Gémeo Luís), [s.l.], Eterogémeas, 2010. VICENTE, Filipe Nunes, Amor e Ódio, Lisboa, Quetzal, 2008. Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa (selecção e organização de Rui Costa e André Sebastião), Vila Nova de Gaia, 7 Dias 6 Noites, 2008.

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| MICRO-FICÇÃO ESTRANGEIRA TRADUZIDA* *Selecção de obras ordenadas cronologicamente pela data da 1.ª edição portuguesa (e não por autor), de modo a fornecer uma visão mais panorâmica sobre o histórico editorial deste género em Portugal ao nível dos autores estrangeiros traduzidos.

Fábulas fantásticas, de Ambrose Bierce (Estampa, 1977) Fragmentos, de Novalis (Assírio & Alvim, 1986) Histórias ao telefone, de Gianni Rodari (Teorema, 1987) Novas histórias ao telefone, de Gianni Rodari (Teorema, 1988) Histórias em verso para meninos perversos, de Roald Dahl (Teorema, 1989) Terno bestiário, de Maurice Genevoix (Cotovia, 1989) O Spleen de Paris – pequenos poemas em prosa, de Charles-Pierre Baudelaire (Relógio d’Água, 1991) História Universal da Infâmia, de Jorge Luis Borges (Assírio & Alvim, 1993) Crónicas da Razão Louca, de Daniil Harms (Hiena, 1994) Crimes exemplares, de Max Aub (Antígona, 1995) Esopo emendado & outras fábulas fantásticas, de Ambrose Bierce (Antígona, 1996) Contos de fadas politicamente correctos, de James Finn Garner (Gradiva, 1996) Histórias tradicionais politicamente correctas, de James Finn Garner (Gradiva, 1996) Antologia de páginas íntimas, de Franz Kafka (Guimarães Editores, 1997) O Livro das Igrejas Abandonadas, de Tonino Guerra (Assírio & Alvim, 1997) Ficções, de Jorge Luis Borges (Teorema, 1998) Histórias para meninos sem juízo, de Jacques Prévert (Teorema, 1998) O Passeio e Outras Histórias, de Robert Walser (Granito – Editores e Livreiros, 2001) Histórias para uma Noite de Calmaria, de Tonino Guerra (Assírio & Alvim, 2002) Os melhores contos zen, de vários autores (Teorema, 2002) O gosto solitário do orvalho seguido de O caminho estreito, de Matsuo Bashô (Assírio & Alvim, 2003) Poemas em prosa, de Oscar Wilde (Cavalo de Ferro, 2003) Parábolas e fragmentos, de Franz Kafka (Assírio & Alvim, 2004) Histórias de 1 minuto, vol.1, de István Örkény (Cavalo de Ferro, 2004) Histórias de 1-2-3 minutos, de Manfred Mai (Asa, 2005) Histórias de alegrias, birras e mimos, de Mandred Mai (Asa, 2005) Histórias de Natal de 1-2-3 minutos, de Manfred Mai (Asa, 2005) Um acontecimento na Ponte de Owl Creek, de Ambrose Bierce (Assírio & Alvim, 2005) Bocas do Tempo, de Eduardo Galeano (L&PM Editores, 2005) [trad. brasileira] O Livro dos Abraços, de Eduardo Galeano (L&PM Editores, 2005) [trad. brasileira] Palavras Andantes, de Eduardo Galeano (L&PM Editores, 2005) [trad. brasileira] 27 Histórias para comer a sopa, de Ursula Wölfel (Kalandraka, 2006) 28 Histórias para rir, de Ursula Wölfel (Kalandraka, 2006) 149


29 Histórias disparatadas, de Ursula Wölfel (Kalandraka, 2006) Existe um homem que tem o costume de me dar com um guarda-chuva na cabeça, de Fernando Sorrentino (Ovni, 2006) A transformação de Martin Lake & outras histórias, de Jeff VanderMeer (Livros de Areia, 2006) Em busca do Livro de Areia & outras histórias, de Rhys Hughes (Livros de Areia, 2006) Uma nova História Universal da Infâmia, de Rhys Hughes (Livros de Areia, 2006) Novelas e textos para nada, de Samuel Beckett (Jornal O Independente/Assírio & Alvim, 2006) Dicionário do Diabo, de Ambrose Bierce (Tinta da China, 2006) Pequenos mistérios, de Bruce Holland Rogers (Livros de Areia, 2007) A morte melancólica do Rapaz Ostra & outras histórias, de Tim Burton (Antígona, 2007) A Velha e Outras Histórias, de Daniil Harms (Assírio & Alvim, 2007) O Espelho Atormentado, de Russell Edson (Ovni, 2008) A Ovelha Negra e outras fábulas, de Augusto Monterroso (Angelus Novus, 2008) Histórias de Amor, de Robert Walser (Relógio d'Água, 2008) O Abutre e outras histórias, de Franz Kafka (Estrofes & Versos, 2009) Contos de Ambrose Bierce, de Ambrose Bierce (Saída de Emergência, 2010) Os Contos Completos de Ambrose Bierce, de Ambrose Bierce (Eucleia Editora, 2010) Break it down – Demolição, de Lydia Davis (Ulisseia, 2010)

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| LINKS [sites e blogues de editoras, revistas on-line, projectos colectivos e autores]

Editoras portuguesas e brasileiras http://www.derivaeditores.pt http://derivadaspalavras.blogspot.com http://editoracantoescuro.blogspot.com http://www.ovni.org http://editoraexodus.com http://www.angelus-novus.com http://oficinadolivro.pt http://amariposa.net http://www.livrosdeareia.com http://livrosdeareiaeditores.blogspot.com http://centrodeartes.blogs.com/etc http://grupomultifoco.com.br http://www.bestiario.com.br http://www.artistasgauchos.com.br/casaverde http://www.andross.com.br http://www.mondana.com.br

Revistas e projectos colectivos portugueses e estrangeiros http://www.minguante.com http://sulscrito.blogsome.com http://www.letrario.pt/1_pt/900/9002.htm http://www.kakinet.com/cms/index.php http://www.veredas.art.br http://nanoism.net http://www.elpurocuento.com http://cuentoenred.xoc.uam.mx http://www.educoas.org/portal/bdigital/pt/rib.aspx?culture=pt&navid=230 http://www.nemonox.com/1000portas http://microcontos.com.br http://e-chaleira.blogspot.com http://c5p3.blogspot.com http://c5p.blogspot.com 151


Autores portugueses e brasileiros http://agavetadopaulo.blogspot.com http://last-tapes.blogspot.com http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.com http://weblogdocao.blogspot.com http://antologiadoesquecimento.blogspot.com http://luis-ene.blogspot.com http://blogdapontamentos.blogspot.com http://blogdapontamentos.blogsome.com http://bibliotecariodebabel.com http://web.me.com/paulocondessa http://paulocondessa.blogspot.com http://zeromaisquatro.blogspot.com http://www.ficoatetardenomundo.blogspot.com http://escritaiberica.weblog.com.pt http://nefriakai1.blogspot.com http://www.vidainvoluntaria.blogspot.com http://www.a-causa-das-coisas.blogspot.com http://apedra.blogsome.com http://pedroeolobo.blogspot.com http://azeite-azia.blogspot.com http://ruialme.blogspot.com http://estadistancia.blogspot.com http://soniaduarte.blogspot.com http://caminhoarduo.blogspot.com http://umacasanotempo.blogspot.com http://minimo-microficcao.blogspot.com http://contosdepolvoraseca.blogspot.com http://escrevinhices.blogspot.com http://microargumentos.blogspot.com http://minicontosanamello.blogspot.com http://oprojetosemnome.wordpress.com http://www.seabra.com/contos http://cseabra.wordpress.com/microcontos http://haicaisequetais.blogspot.com http://miniconto.zip.net http://omuroeoutraspgs.blogspot.com http://www.twitteratura.blogspot.com http://5dias.net/2006/10/30/jorge-palinhos-historias-mesmo-curtas

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E-books de autores portugueses e estrangeiros (disponíveis on-line) Quatro contos inéditos, de Bruce Holland Rogers, para leitura e download em: http://www.livrosdeareia.com/bhrogers_quatrocontos_ler.pdf Sem final feliz, de Wilson Gorj, para leitura em: http://www.minguante.com/ebooks/sem_final_feliz/sem_final_feliz.swf Contos de pouco fôlego, de Wilson Gorj, para leitura e download em: http://calameo.com/books/000059808773e1b284db5 Minicontos Minijóias, org. de Rosana de Mont’Alverne Neto, para download em: http://www.aletria.com.br/microconto/index.html Tamanho não é .doc, de vários autores, para leitura e download em: http://www.scribd.com/doc/16678651/Tamanho-nao-e-DOC Histórias sem tom nem som, de João Pereira de Matos, para leitura em: http://minguante.com/?ebook=historias_sem_tom_nem_som Derivações de Além-vida, de Carla Ribeiro, para leitura em: http://minguante.com/?ebook=derivacoes_de_alem-vida Roraima Blues, de Edgar Borges, para leitura em: http://minguante.com/?ebook=roraima_blues Na barca de Caronte, de Ângela Schnoor, para leitura em: http://minguante.com/?ebook=na_barca_de_caronte Histórias de Maria e Manel, de Rita Tavares de Melo, para leitura em: http://minguante.com/?ebook=historias_de_maria_e_manel Finais felizes, de Ana Mello, para leitura em: http://minguante.com/?ebook=finais_felizes As Metamorfoses de Ouvido, de José Eduardo Lopes, para leitura em: http://minguante.com/?ebook=as_metamorfoses_de_ouvido Historietas orgânicas, de Fernando Gomes, para leitura em: http://minguante.com/?ebook=historietas_organicas

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E-pifanias, de Carlos Seabra, para leitura em: http://minguante.com/?ebook=e-pifanias O Executivo, de Paulo Rodrigues Ferreira, para leitura em: http://minguante.com/?ebook=o_executivo O peso da leveza, de Luís Ene, para leitura em: http://minguante.com/?ebook=o_peso_da_leveza Anima – pequenas histórias femininas, de Angela Schnoor, para leitura e download em: http://calameo.com/books/00006423242a0de2fd0a1

Nota final: na revista digital Minguante pode aceder-se a uma listagem mais exaustiva de autores, bem como dos respectivos websites/weblogs e textos publicados on-line: http://minguante.com/?pag=autores&filtro=todos

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