antologia_poesia 21

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Os poemas podem ser desolados como uma carta devolvida, por abrir. E podem ser o contrário disso. A sua verdadeira consequência raramente nos é revelada. Quando, a meio de uma tarde indistinta, ou então à noite, depois dos trabalhos do dia, a poesia acomete o pensamento, nós ficamos de repente mais separados das coisas, mais sozinhos com as nossas obsessões. E não sabemos quem poderá acolher-nos nessa estranha, intranquila condição. Haverá quem nos diga, no fim de tudo: eu conheço-te e senti a tua falta? Não sabemos. Mas escrevemos, ainda assim. Regressamos a essa solidão com que esperamos merecer, imagine-se, a companhia de outra solidão. Escrevemos, regressamos. Não há outro caminho. 211

§ GNOSSIENNE Nº 1 Eu acreditei que podia amar o teu corpo, o teu modo de insinuar o coração nas palavras. Mas era apenas a forma como a noite sublinhava as superfícies, eu nunca pude atravessar essa espessura. Estavas ali para te dispores aos meus sentidos mas crescias fora de alcance no teu próprio pensamento. Uma distância que só serviria aos lobos, um mau caminho arrancado às fragas. Já só conhecia os dias onde tu os frequentavas, o sítio em que me mantinhas era mais urgente que o sangue. Sem dúvida que vinhas pelo meu desejo mas eu perdia sempre alguma coisa quando te ganhava. Às vezes era só a minha vontade, outras vezes era toda a frase do meu nome.


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