Derrida, um egípcio -- Peter Sloterdijk

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meu editor na Suhrkamp, me indagou durante a visita à Feira de Frankfurt, em outubro de 2004: “Você sabe que Derrida morreu?” Eu não sabia. Tive a impressão de ver uma cortina cair diante de mim. De repente, o alarido do saguão onde a feira acontecia tinha passado para outro mundo. Estava sozinho com o nome do defunto, sozinho com um apelo à fidelidade e com a sensação de que o mundo tinha subitamente se tornado mais pesado e injusto, sozinho com o sentimento de gratidão pelo que esse homem nos havia demonstrado. De que afinal se tratava? Talvez do fato de ainda se poder admirar sem voltar a ser criança.

Evando Nascimento

Tradução de Evando Nascimento

Peter Sloterdijk nasceu em 1947. Leciona estética e filosofia na Escola Superior de Artes Aplicadas de Karlsruhe, onde também exerce o cargo de reitor. Do autor, a Estação Liberdade publicou No mesmo barco: Ensaio sobre a hiperpolítica (1999), Regras para o parque humano (2000), Se a Europa despertar (2002) e O desprezo das massas (2002). As próximas obras de Sloterdijk por este selo serão Ira e tempo, Esferas I e Crítica da razão cínica.

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ISBN 978-85-7448-163-0

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788574

481630

Peter Sloterdijk

Jamais esquecerei o momento em que Raimund Fellinger,

Derrida, um egípcio

Nessa perspectiva, a interpretação de Sloterdijk ganha uma dimensão sintomática de como ler hoje os textos das diversas civilizações que formaram, informaram e formataram o Ocidente em seus contatos inesgotáveis com esse outro, a um só tempo próximo e tão distante, o chamado Oriente. Ler Derrida à luz da cultura egípcia e das correlativas expropriações judaico-cristãs torna-se um exercício tanto mais interessante porque se faz na companhia de ninguém menos do que Hegel, Freud, Luhmann, Thomas Mann, e outros. É a esse colóquio filosófico e transdisciplinar que nos convida Derrida, um egípcio.

Peter Sloterdijk Derrida, um egípcio

O filósofo alemão Peter Sloterdijk desenvolve neste livro uma série de reflexões feitas a partir da morte de Derrida. Mais do que uma simples homenagem, trata-se de lançar um olhar entre o modesto e o extremamente ambicioso sobre uma obra de cerca de oitenta volumes. Em vez de monumentalizar o conjunto dos textos de Derrida, tenta-se revê-lo com o recurso da pirâmide e de seu significado na civilização egípcia, além de expor o modo como se deu o advento do monoteísmo. Afirma o autor: “[...] já se pode ter desenhado o contorno principal de um retrato filosófico de Derrida: sua trajetória se definiu pelo cuidado vigilante de não se deixar fixar numa identidade determinada — cuidado este afirmado tanto quanto a convicção do autor de que seu lugar só podia se situar na linha de frente mais avançada da visibilidade intelectual.” A hipótese de Sloterdijk propõe que o pensamento derridiano corresponderia a um tempo em que os autores, em vez de tratar diretamente dos assuntos, preferem comentar outros pensadores que já abordaram os mesmos temas. Viveríamos então numa época de leituras de segunda ordem, o que colocaria necessariamente Sloterdijk — leitor das leituras de Derrida — em uma posição de terceira ordem. Se assim for, talvez se torne necessário, diante do arguto e irônico ensaio que ora se publica, indagar se, desde os egípcios, e em seguida com os gregos, judeus, romanos e cristãos, os autores e as civilizações não estiveram sempre, de algum modo, propondo reflexões de segunda, terceira e quarta ordens — ao infinito.

Natanael

www.estacaoliberdade.com.br

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08/10/2009 12:40:42



Peter Sloterdijk

Derrida, um egípcio o problema da pirâmide judia

tradução de

Evando Nascimento


Título original: Derrida, un Égyptien. Le problème de la pyramide juive © Maren Sell Éditeurs, 2006 © Editora Estação Liberdade, 2009, para esta tradução Preparação e revisão

Jonathan Busato e Huendel Viana

Composição

Johannes C. Bergmann / Estação Liberdade

Ilustração de capa

© Jean-Pierre Lescourret/Corbis/Latinstock, ca. 2002

Angel Bojadsen e Edilberto F. Verza

Editores

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ S643d Sloterdijk, Peter, 1947 Derrida, um egípcio : o problema da pirâmide judia / Peter Sloterdijk ; tradução Evando Nascimento. – São Paulo : Estação Liberdade, 2009.

Tradução de: Derrida, un Égyptien ISBN 978-85-7448-163-0

1. Derrida, Jacques, 1930-2004. 2. Filosofia moderna. I. Título.

09-4698.

CDD: 194 CDU: 1(44)

Todos os direitos reservados à Editora Estação Liberdade Ltda. Rua Dona Elisa, 116  |  01155-030  |  São Paulo-SP Tel.: (11) 3661 2881  |  Fax: (11) 3825 4239 www.estacaoliberdade.com.br


Sumário

Nota dos editores

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Prefácio 9

1 Luhmann e Derrida

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2 Sigmund Freud e Derrida

23

3 Thomas Mann e Derrida

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4 Franz Borkenau e Derrida

39

5 Régis Debray e Derrida

49

6 Hegel e Derrida

57

7 Boris Groys e Derrida

69

Agradecimento 77

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Nota dos editores

Este texto foi escrito para o evento Un jour Derrida, reali­ zado em fins de 2005 no Centro Georges Pompidou, em Paris. Publicado originalmente em francês pela editora Maren Sell em 2006, a editora Suhrkamp lançou no ano seguinte uma versão em alemão ligeiramente modificada. Esta tradução foi feita a partir do original francês em cotejo integral com a edição alemã, o que permitiu a inserção de termos e notas explicativas pelo tradutor. Agradecemos à editora Suhrkamp pelo uso que foi feito de sua edição.


Prefácio

Nada parece mais natural para os vivos do que esquecer os mortos — e para os mortos nada mais evidente do que frequentar os vivos. De todas as declarações de Derrida próximas de sua morte, durante o verão de 2004, nenhuma outra me vem tanto à memória quanto a afirmação de ter duas con­vicções totalmente opostas a respeito de sua “existência” póstuma: por um lado, a certeza de que seria esque­cido a partir do dia de sua morte; por outro, a de que a memória cultural conservaria, apesar de tudo, alguma coisa de sua obra. Explicava que as duas convicções coexistiam nele como se nada as vinculasse uma à outra. Cada uma delas se fazia acompanhar de um sentimento de total evidência, e era em si mesma conclusiva, sem que tivesse de levar em conta a tese contrária. Tentarei me aproximar aqui do personagem de Derrida à luz desse tes­temunho. Parece-me que essas declarações não mostram apenas um homem numa

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Derrida, um egípcio

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contradição fortuita; visto que elas detêm brutalmente duas afirmações, cada uma podendo ser válida contrapondo-se à outra, parecem já possuir uma forma filosófica que revela algo sobre a “posição fundamental” [Grundstellung] de Derrida — para, ao menos uma vez, se valer ad hominem dessa expressão heideggeriana. O que Derrida expressa é uma descrição de si mesmo que quase atinge a qualidade de um enunciado metafísico. Desse modo, ele considera que há “no real”, seja lá o que isso queira dizer, algo como oposições impossíveis de sintetizar, mas coexistentes, embora se excluam mutuamente. Em razão de essas oposições sobrevirem ao pensamento e à experiência pessoal de quem se expressa e de os deter­minarem, decorre igualmente do testemunho uma constatação acerca do filósofo: vivenciou a si mesmo como um lugar onde se encontraram, sem levar a uma unidade, evidências mutuamente incompatíveis. A partir dessa observação, poder-se-ia indagar se o fato de se apegar infatigavelmente à ambiguidade e à plurivalência de signos e de enunciados (indiscerníveis da fisionomia desse autor) não seria uma indicação a respeito do que ele próprio vivia como recipiente ou depósito de oposições, as quais não queriam se reunir para formar uma unidade superior. Com essa observação, já se pode ter desenhado o contorno principal de um retrato filosófico de


Prefácio

Derrida: sua trajetória se definiu pelo cuidado vigilante de não se deixar fixar numa identidade determinada — cuidado este afirmado tanto quanto a convicção do autor de que seu lugar só podia se situar na linha de frente mais avançada da visibilidade intelectual. Uma das contribuições mais admiráveis dessa vida filosófica foi ter mantido, si­mul­taneamente, uma extrema visibilidade e uma não identidade persistente, junto com uma imagem indefinida de si mesmo — numa parábola luminosa que se estende por quatro décadas de uma existência como personalidade pública. No fundo, há apenas dois procedimentos capazes de fazer justiça a um pensador. O primeiro consiste em abrir suas obras para encontrá-lo no movimento de suas frases, no curso de seus argumentos, na arquitetura de seus capítulos — pode-se dizer que se trata de uma leitura singularizadora, na qual se considera que a justiça é a assimilação ao único. Ela é particularmente tentadora em relação a um autor como Derrida, que jamais pretendeu ser outra coisa senão um leitor radicalmente atento dos textos, grandes e pequenos, cuja soma constitui os arquivos ocidentais — supondo-se que se pode dar à palavra “leitor” uma significação suficientemente explosiva. O outro procedimento vai do texto ao contexto, integrando o pensador a horizontes suprapessoais, em que se destaca algo relativo à sua verdadeira significação —

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Derrida, um egípcio

com o risco de dar menos peso a seu próprio texto do que ao contexto mais amplo no qual suas palavras ecoam. Esse procedimento desemboca numa leitura dessingularizadora, em que se compreende a justiça como o sentido das conexões. O próprio Derrida preferiria sem dúvida alguma a primeira via, nada esperando de bom da segunda, pois sabia ser esta última atraente sobretudo para pessoas que dela querem se servir a fim de facilitar a própria tarefa. Assim, ele se defendeu de forma cortês e clara, quando necessário, contra a tentativa de Jürgen Habermas de fazer dele um místico judeu. Com sutil ironia, em resposta a essa identificação incômoda, fez a seguinte observação: “não exijo tampouco que me leiam como se fosse possível colocar-se diante de meus textos num êxtase intuitivo, mas exijo sim que se seja mais prudente nas relações entretecidas, mais crítico nas conversões e nos desvios por contextos muitas vezes bastante distanciados dos meus.”1 Apesar dessa precaução, se escolhi pegar a segunda via, foi por dois motivos completamente distintos. Por um lado, porque não faltam no mundo

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1. Apud Florian Rötzer, Französische Philosophen im Gespräch, Munique: Boer, 1987, p. 74. [A palavra Übersetzung, que aparece nessa citação e em outros momentos do texto de Sloterdijk, significa tanto “tradução” quanto “conversão” ou “transmissão”. Derrida muitas vezes jogou com todos esses sentidos do termo alemão, particularmente em seus comentários a respeito de Freud. (N.T.)]


Prefácio

leituras extasiadas e literais, para não dizer hagiográficas, de Derrida; por outro, porque não consigo me desvencilhar da impressão de que, junto com toda a admiração justificada por esse autor, é raro encontrar um julgamento suficientemente distanciado acerca de sua posição na teoria contemporânea. A exigência de distanciamento se presta aqui à estimativa de que, se ela pode ser entendida como antídoto contra os perigos de uma recepção laudatória, então se torna, com mais razão, indispensável para se fazer uma ideia da cordilheira intelectual em que la mon­ tagne Derrida * é um dos pontos mais culminantes. Esboçarei a seguir sete seções em que o pensador é relacionado a autores da tradição recente e atual: Niklas Luhmann, Sigmund Freud, Thomas Mann, Franz Borkenau, Régis Debray, Georg Wilhelm Friedrich Hegel e Boris Groys.

* Em francês, na versão alemã. [N.T.]

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1 Luhmann e Derrida

De todas as relações em que se pode inserir o trabalho de Derrida, a com a obra de Luhmann é a mais desconcertante e, contudo, provavelmente também a mais instrutiva. De ambos os pensadores foi dita a coisa mais elevada e mais problemática que se pode afirmar sobre um autor no campo da teoria, isto é, que cada um foi o Hegel do século XX. Embora distinções dessa natureza possam ser sedutoras para a reflexão exterior, além de úteis nas relações públicas, não conseguem, entretanto, despertar um interesse sério. Todavia, no que diz respeito às duas figuras eminentes que acabamos de nomear, elas possuem certa força de caracterização, uma vez que “Hegel” não é apenas um nome próprio, mas também designa um programa ou uma posição num processo cultural. Quando se pronuncia seu nome, pensa-se em culminância, esgotamento e nec plus ultra; ao mesmo tempo, esse nome significa energias sintéticas e enciclopédicas,

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Derrida, um egípcio

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que apenas podem aparecer na calmaria que se segue à tempestade — ou então, para utilizar as palavras de Kojève e Queneau, no domingo que se segue à história. Nesse nome coincidem ambições imperiais e arquivistas. Seria evidentemente absurdo querer examinar a hegelianidade pessoal e específica de Derrida e de Luhmann. Ademais, nem um nem outro foram pensadores de domingo; pelo contrário, eram traba­ lhadores infatigáveis, que faziam do domingo um dia útil, literalmente e por razões de princípio, estando de resto persuadidos que nos feriados ou bem se despacha a correspondência privada, ou bem se cala. Vale a pena apontar o fato de os dois filósofos terem sido trabalhadores do aperfeiçoamento, que, sob a aparência da inovação, executaram os arremates e os últimos retoques na imagem acabada de uma tradição impossível de ampliar mais. Pode-se hoje constatar, não sem alguma ironia, que se enganaram todos os que pensavam que, com a desconstrução e a teoria dos sistemas — duas invenções que se destacaram com bastante nitidez a partir dos anos 1970 —, tinha começado uma nova era do pensamento, que colocava o trabalho teórico frente a novos horizontes a perder de vista. Na verdade, as duas formas de pensamento eram as figuras finais de proces­sos lógicos que tinham atravessado o pensamento dos séculos XIX e XX. No caso de Derrida, conclui-se a


Luhmann e Derrida

virada linguística ou semiológica, na esteira da qual o século XX pertencera às filosofias da linguagem e da escrita; no caso de Luhmann, tem fim o adeus à filosofia proclamado por Wittgenstein, uma vez que o pensamento se retira, de forma resoluta, da tradição das teorias do espírito e da linguagem, para se reposicionar no campo da metabiologia, isto é, da lógica geral das diferenças entre sistema e meio ambiente. Ambos os efeitos guardam em comum com Hegel o fato de esgotarem as últimas possibilidades de uma certa gramática, trazendo assim aos sucessores o sentimento, a princípio gerador de euforia, de iniciarem um ponto culminante. Em seguida, isso se transforma numa descoberta consternadora, pois quem começa no topo só consegue progredir descendo. No mais, as diferenças entre os dois Hegel do século XX não poderiam ser maiores. A superioridade de Derrida se expressa melhor pelo fato de — comparável, nesse aspecto, somente a Heidegger — ter sempre operado nas margens mais externas e, desse modo, ter conservado a tradição de seu lado, por mais deteriorada que estivesse. Assim se explica o imenso efeito produzido por seus trabalhos no mundo universitário, no qual a desconstrução se revelou a derradeira oportunidade para uma teoria integrar por meio da desintegração: ao ampliar os limites do arquivo, ela ofereceu uma possibilidade de manter sua

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Derrida, um egípcio

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coesão. Em sentido oposto, Luhmann abandonou resolutamente o arquivo filosófico, contentando-se com o título em aparência modesto de sociólogo da sociedade mundial. Para ele, a biblioteca da Velha Europa representa apenas um reservatório de figuras verbais com as quais os padres e os intelectuais de outrora tentavam se apoderar de tudo. Do ponto de vista da teoria geral dos sistemas, a filosofia é, em seu conjunto, um jogo de linguagem totalizador e esgotado, cujos instrumentos se harmonizavam com o horizonte semântico das sociedades históricas, sendo que não podem mais corresponder ao fato elementar da modernidade, qual seja, a diversificação dos sistemas sociais. É de se lamentar que os dois não tenham reagido especificamente um em relação ao outro. Não dispomos, portanto, de nenhuma ata da conferência lógica e virtual na cúpula do pensamento pós-moderno. Para seus contemporâneos, teria sido muitíssimo estimulante ver que relação duas inteligências eminentes de nossa época teriam estabelecido entre si, numa situação de diálogo aberto. Como Derrida e Luhmann eram espíritos extraordinariamente corteses, teriam certamente se precavido contra a ten­tação de tratar a obra do outro de maneira redutora, ou até mesmo canibal, como usualmente ocorre com rivais que disputam a mais alta posição no campo da reflexão intelectual. Mesmo assim,


Luhmann e Derrida

seriam levados a empreender uma tentativa de conversão assimiladora, senão absorvente, do outro para seu próprio domínio; isso constituiria um exercício estimulante, nesses dois mestres do ceticismo relativo ao conceito de “próprio”. Os observadores dessas conversões desfrutariam então do privilégio de poder observar as observações recíprocas dos observadores mais poderosos no nível do conceito. De qualquer modo, Luhmann acompanhou atentamente a obra de Derrida, mas não se sabe de nenhuma observação da parte deste — ao que parece, ele nunca tomou conhecimento explícito do trabalho do erudito de Bielefeld. Luhmann reconheceu na desconstrução da meta­física praticada por Derrida uma operação estreitamente aparentada a suas próprias intenções, uma vez que viu agir nela as mesmas energias pós-ontológicas que faziam avançar seu projeto de teoria sistêmica. Ele admitiu que a desconstrução era e continua sendo uma opção atual, pois faz justamente “o que podemos fazer agora”.1 Sendo assim, ela é uma forma rigorosamente datada de procedimento teórico — no sentido de que só pôde intervir após o fim da formação histórica da 1. Niklas Luhmann, “Deskonstruktion als Beobachtung zweiter Ordnung” [Desconstrução como observação de segunda ordem], in: Oliver Jahrus (org.), Aufsätze und Reden [Ensaios e conferências], Stuttgart: Reclam, 2001, p. 286.

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Derrida, um egípcio

teoria tradicional, e também no de que permanece ligada a uma “situa­ção”, cujas cinco características Luhmann aponta: pós-metafísica, pós-ontológica, pós-convencional, pós-moderna e pós-catastrófica.2 Segundo o autor, a desconstrução pressupõe a “catástrofe da modernidade”, que deve ser pensada como a mudança da forma de estabilidade da sociedade tradicional, centralizada e hierarquizada, para a forma de esta­bilidade da sociedade moderna, diferenciada e multifocal. Ali onde a multifoca­ lidade é reconhecida como ponto de partida, toda teoria se vê alçada ao nível de uma observação de segunda ordem: não se tenta mais fazer uma descrição direta do mundo, mas descrevem-se novamente as descrições já existentes — e com isso, elas são desconstruídas. Poder-se-ia dizer que Luhmann presta homenagem a Derrida, atribuindo-lhe o mérito de ter encontrado uma solução para a tarefa lógica fundamental da situação pós-moderna, que consiste em passar da estabilidade por centramento e fundação para a estabilidade por flexibilização e descentramento. Com um sentido bem desenvolvido quanto ao páthos latente da desconstrução, acrescenta, em forma de resumo, a seguinte frase a sua homenagem: “Assim concebida, a desconstrução sobreviverá à sua própria desconstrução, 20

2. Ibidem.


Luhmann e Derrida

como a descrição mais relevante da autodescrição da sociedade moderna.”3 O importante aqui é o verbo “sobreviver”, com sua simplicidade aparente. É possível que Luhmann, ao empregá-lo, atinja o cerne do que motiva os trabalhos do outro Hegel. Com efeito, pode-se defender a tese de que Derrida colocou toda sua ambição no desenvolvimento de uma forma de teoria que deveria ter, para qualquer tempo, a capacidade de dispor de um futuro ou de ser transmitida, uma vez que permite e reivindica ser autoaplicada, com a certeza de sair da prova sempre consolidada e regenerada. Somente poderia realizar essa façanha uma teoria que já se encontrasse, de algum modo, em sua própria tumba, dela saindo apenas para ser reposta no túmulo. Seria possível que a desconstrução, em consonância com seu impulso central, desenvolvesse um projeto de construção que visasse produzir uma máquina de sobrevivência indesconstrutível?

3. Ibidem, p. 291.

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meu editor na Suhrkamp, me indagou durante a visita à Feira de Frankfurt, em outubro de 2004: “Você sabe que Derrida morreu?” Eu não sabia. Tive a impressão de ver uma cortina cair diante de mim. De repente, o alarido do saguão onde a feira acontecia tinha passado para outro mundo. Estava sozinho com o nome do defunto, sozinho com um apelo à fidelidade e com a sensação de que o mundo tinha subitamente se tornado mais pesado e injusto, sozinho com o sentimento de gratidão pelo que esse homem nos havia demonstrado. De que afinal se tratava? Talvez do fato de ainda se poder admirar sem voltar a ser criança.

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Tradução de Evando Nascimento

Peter Sloterdijk nasceu em 1947. Leciona estética e filosofia na Escola Superior de Artes Aplicadas de Karlsruhe, onde também exerce o cargo de reitor. Do autor, a Estação Liberdade publicou No mesmo barco: Ensaio sobre a hiperpolítica (1999), Regras para o parque humano (2000), Se a Europa despertar (2002) e O desprezo das massas (2002). As próximas obras de Sloterdijk por este selo serão Ira e tempo, Esferas I e Crítica da razão cínica.

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Peter Sloterdijk Derrida, um egípcio

O filósofo alemão Peter Sloterdijk desenvolve neste livro uma série de reflexões feitas a partir da morte de Derrida. Mais do que uma simples homenagem, trata-se de lançar um olhar entre o modesto e o extremamente ambicioso sobre uma obra de cerca de oitenta volumes. Em vez de monumentalizar o conjunto dos textos de Derrida, tenta-se revê-lo com o recurso da pirâmide e de seu significado na civilização egípcia, além de expor o modo como se deu o advento do monoteísmo. Afirma o autor: “[...] já se pode ter desenhado o contorno principal de um retrato filosófico de Derrida: sua trajetória se definiu pelo cuidado vigilante de não se deixar fixar numa identidade determinada — cuidado este afirmado tanto quanto a convicção do autor de que seu lugar só podia se situar na linha de frente mais avançada da visibilidade intelectual.” A hipótese de Sloterdijk propõe que o pensamento derridiano corresponderia a um tempo em que os autores, em vez de tratar diretamente dos assuntos, preferem comentar outros pensadores que já abordaram os mesmos temas. Viveríamos então numa época de leituras de segunda ordem, o que colocaria necessariamente Sloterdijk — leitor das leituras de Derrida — em uma posição de terceira ordem. Se assim for, talvez se torne necessário, diante do arguto e irônico ensaio que ora se publica, indagar se, desde os egípcios, e em seguida com os gregos, judeus, romanos e cristãos, os autores e as civilizações não estiveram sempre, de algum modo, propondo reflexões de segunda, terceira e quarta ordens — ao infinito.

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