Dossiê v24n1(2022) "Literaturas africanas em língua portuguesa"

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Editorial (v24n1) A revista Vértices faz 25 anos em 2022 e haverá muitas boas notícias para compartilhar com os leitores durante todo o ano. A primeira delas é a nova formação da equipe editorial, composta agora pelas Professoras Ana Paula de Castro, Fernanda Soares Luz e Inez Barcellos de Andrade. A segunda é que teremos a publicação dos três dossiês, selecionados do edital de 2021, intitulados: “A pesquisa em Educação Profissional (EP): temas, abordagens e fontes”, “Dez anos da lei das cotas (2012-2022): um balanço das ações afirmativas no Brasil” e “Literaturas africanas em língua portuguesa: perspectivas críticas e históricas”, sendo esse último, parte do v. 24 n.1 que lançamos neste momento. Assim, ao apresentar este primeiro número da edição comemorativa dos 25 anos da Vértices, temos um total de 13 artigos, sendo os 7 primeiros, uma seção dedicada a esse dossiê. Os(as) organizadores(as), Adriano Carlos Moura e Érica Luciana de Souza Silva, do Instituto Federal Fluminense, Francisco José de Jesus Topa, da Universidade do Porto (Portugal) e Solange Evangelista Luis, do Instituto Superior de Ciências da Educação da Huíla (Angola), se reuniram, em uma parceria de pesquisadores(as) portugueses(as), brasileiros(as) e angolanos(as), integrando temáticas relacionadas à literatura africana em língua portuguesa, que visam fortalecer os muitos desafios sobre essas questões. O dossiê trata de estudos realizados no contexto da literatura africana, contribuindo para o conhecimento sobre a África, de seu território e cultura, a partir de uma produção bibliográfica de autores africanos. Trata-se de rico material com importante potencial para utilização por estudantes, pesquisadores, professores e leitores em geral, considerando o escasso material sobre o tema. A riqueza dos textos podem ser verificadas nas contribuições dos autores, nos sete artigos, cujos títulos destacamos a seguir: A loucura feminina nos romances de Paulina Chiziane como estratégia de resistência; As mulheres do meu pai um road movie de José Eduardo Agualusa; O projeto da Mensagem de Luanda e o seu número de estreia; A PM 44, o microfone, a nação angolana e a voz feminina; Ritos de passagem, de Paula Tavares: o lugar da (re)memória na construção de uma dicção poética feminina em Angola; “No princípio era o verbo”: a escrita de Resistência e identitária nas produções da Casa dos Estudantes do Império e Literaturas africanas de língua portuguesa na sala de aula por uma educação pós-colonial. Outros seis artigos, que completam este v. 24 n. 1, trazem importantes contribuições, três da área de ensino: As tecnologias digitais educacionais nos Institutos Federais de Educação: um pilar à formação integral; A autoavaliação institucional e sua contribuição para as tomadas de decisões democráticas e A qualidade do Ensino Médio Integrado frente à reforma pela Lei 13.415/17. Outros três, um das Ciências Exatas e dois das Ciências Agrárias que são: Determinação dos parâmetros da equação de Antoine para o Metano e o Álcool Isopropílico utilizando a Evolução Diferencial; Análise comparada da ocorrência de Ditassa R.Br. e Minaria T.U.P. Konno & Rapini (Apocynaceae: Asclepiadoideae) e Caracterização de bactérias ácido lática autóctones de Bom Jesus do Itabapoana/RJ: ação antagonista contra Listeria Monocytogenes e provas bioquímicas. Dando continuidade a um trabalho que os Editores da revista Vértices vêm apresentando no Editorial, de pequenos textos sobre temas relacionados à redação científica, neste primeiro número, do ano de 2022, será abordado sobre a seção Discussão do artigo científico. No primeiro número de 2021 trouxemos contribuições sobre a Introdução do artigo científico, no segundo, a seção Material e Método, Método ou Metodologia e no terceiro Resultados (ABNT, 2018).

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A seção Discussão do artigo científico tem como propósito mostrar aos leitores porque eles devem concordar com suas conclusões. Assim, devem ser usados somente os argumentos relacionados e necessários para sustentar a Conclusão (PEREIRA, 2012). A Discussão converge para as Conclusões, indicando suas evidências. Essas evidências são compostas dos seus procedimentos, resultados e de informações sólidas da literatura. Nos resultados se apresenta a RESPOSTA e na Discussão O QUE SIGNIFICA A RESPOSTA. Na Discussão, discute-se para mostrar os argumentos que validam a conclusão. Portanto, a conclusão deve ser anunciada no início da Discussão e, a seguir, são apresentadas as informações importantes (premissas) para validá-la logicamente. Validam-se os métodos e os resultados, conectando-os em busca de provas para sustentar a conclusão. A validação dos métodos é realizada mostrando que o delineamento da pesquisa está adequado (com os devidos controles) (VOLPATO, 2010). Essa adequação pode ser evidenciada pelo fato de outros pesquisadores terem usado o mesmo delineamento da pesquisa em questão. Caso se trate de um delineamento (protocolo) criado pelo autor, a validação pode ser feita mostrando que ocorre controle dos fatores interferentes (VOLPATO, 2015). A argumentação desenvolvida deve seguir uma sequência lógica para resultar na conclusão do trabalho, fazendo desta uma decorrência lógica e natural de tudo o que foi exposto anteriormente (FERRAZ, 2016). Ela estabelece, inicialmente, a correlação entre os dados e, a seguir, relaciona-os com a questão ou hipótese investigada. Compara também os resultados com aqueles da literatura. Finalmente, estabelece a conclusão. Essa é a consequência lógica do objetivo da pesquisa e dos resultados encontrados e discutidos. Em suma, a Discussão é uma seção que deve (PEREIRA, 2012):     

Discutir os resultados obtidos de acordo com alguma estruturação ou sequência lógica, e sumarizando-os quando necessário. Interpretar e analisar os resultados/material e métodos. Expor as dificuldades, falhas, lacunas e limitações encontradas no estudo. Comparar com os dados da literatura. Propor explicações, modelos e teorias.

A publicação deste primeiro número, do ano do Jubileu de Prata da Vértices, é motivo de comemoração e uma grande conquista para todos nós, da equipe da Essentia Editora e editores da revista Vértices, que vêm trabalhando de forma contínua e incessante para manter a pontualidade e periodicidade da revista, garantindo a sua qualidade a partir de critérios e diretrizes que pautam a produção editorial de publicações científicas. A certeza de que estamos no caminho certo é termos recebido, no mês de março a certificação de inclusão do nosso periódico na Infraestrutura do Sistema de Informação Científica Redalyc, que promove o Diamond Open Access. Desse modo, os conteúdos que integram a Vértices, de Campos dos Goytacazes, agora estão totalmente disponíveis para consulta da comunidade científica por meio da página eletrônica da Redalyc em: https://www.redalyc.org/revista.oa?id=6257. A página principal da base de dados pode ser acessada no endereço: https://www.redalyc.org/home.oa. A Redalyc é um modelo de base de dados que visa promover a ciência como bem comum e público, em que a comunicação e a publicação científicas não visam ao lucro, e estão nas mãos e sob controle da academia, uma vez que são as melhores soluções para alcançar um ecossistema acadêmico e científico sustentável, inclusivo e participativo. Os esforços da Redalyc têm sido reconhecidos por várias universidades e organismos internacionais (Clacso, Unesco, Universidade Carlos III, entre outros), por estar aberta a todas as revistas

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do mundo que trabalham por um ecossistema de inclusão e comunicação científica equitativa e sustentável. A participação da Vértices nessa base de dados possibilitará a consolidação dos seus principais objetivos: ampliar a visibilidade e acesso aos artigos publicados, contribuindo ainda com o modelo de divulgação da ciência de forma aberta e gratuita. Aproveitamos para comunicar, com muita alegria, que nesse último ano, 2021, tivemos 45.757 acessos e downloads em nossa página. É preciso destacar que, esse intenso trabalho não seria possível acontecer sem as importantes contribuições e participação de todos vocês: organizadores dos dossiês, autores, avaliadores, equipe da Essentia Editora e leitores da revista Vértices. Os nossos mais sinceros agradecimentos!!! Convidamos a todos e todas para uma ótima leitura dos artigos presentes neste número e em nossas publicações!!! Ana Paula de Castro Fernanda Soares Luz Inez Barcellos de Andrade Editoras Assistentes

Referências ABNT. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 6022:2018. Informação e documentação: Artigo de periódico em publicação técnica e/ou científica. 2018. FERRAZ, E. C.; NAVAS, A. L. N. G. Publicação de artigos científicos: recomendações práticas para jovens pesquisadores. São Paulo, 2016. Ebook. Disponível em: https://www.abecbrasil.org.br/arquivos/recomendacoes_publicacao_jovens_pesquisadores.pdf. Acesso em: 11 ago. 2021. MEDEIROS, J. B. Redação de artigos científicos. Rio de Janeiro: Atlas, 2016. PEREIRA, M. G. Artigos científicos: como redigir, publicar e avaliar. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, c2012. VOLPATO, G. L. Método lógico para redação científica. São Paulo: Best Writing, 2010. VOLPATO, G. L. Guia prático para redação científica. São Paulo: Best Writing, 2015.

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Editorial do Dossiê Temático (v24n1) Literaturas africanas de língua portuguesa: perspectivas históricas e críticas A Lei 10.639/03 prevê a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nas disciplinas das escolas da Educação Básica. Para que se compreenda a dimensão epistemológica do adjetivo “afro-brasileira”, é necessário conhecimento sobre a África, território bastante mitificado e estereotipado pela cultura colonial, imagem que insiste em prevalecer mesmo depois das independências das colônias. Todavia ainda se percebe a escassez de material bibliográfico que contribua para informação acerca das produções literárias de autores africanos. Desse modo, o objetivo principal do presente dossiê é contribuir com bibliografia para estudantes, pesquisadores, professores e leitores em geral interessados em conhecer e estudar a cultura e a história do continente por meio de textos científicos que investiguem esses aspectos nas literaturas africanas dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa). Para o crítico moçambicano Francisco Noa (2017), a literatura pode ser entendida como um palco onde a humanidade busca respostas ou aprofundamento para questões relativas à identidade e à existência. É com o aprofundamento das questões relativas às civilizações africanas que esta proposta visa a contribuir para o conhecimento das realidades que o texto literário permite acessar sob diferentes perspectivas. Trata-se de um dossiê composto por sete artigos originais, organizado por pesquisadores do Brasil, Portugal e Angola. O primeiro intitula-se “A loucura feminina nos romances de Paulina Chiziane como estratégia de resistência” de Érica Luciana de Souza Silva. O texto analisa o status de loucura, sob a luz de Michel Foucault e Evandro Nascimento, impingido à mulher nos romances de Paulina Chiziane. O que se verifica é que a designação de louca, na verdade, são estratégias de resistência desenvolvidas pela autora, a qual usa o espaço de poder propiciado pela escrita para colocar em evidência os conflitos e as perspectivas sociais de mulheres moçambicanas. “As mulheres do meu pai, um road movie de José Eduardo Agualusa”, de Renata Flávia da Silva e Lucas Silva Marciano dos Santos aborda o romance do escritor angolano José Eduardo Agualusa, As mulheres do meu pai, que narra duas viagens em simultâneo pela África Austral, e nos convida a investigar o fenômeno de espelhamento, que é só uma das estratégias do autor na composição de seu singular universo ficcional. O artigo objetiva aproximar a obra ao gênero cinematográfico de road movie, apoiados por Umberto Eco em seus bosques da ficção e pelas noções de tempo e espaço de Shuichi Kato. Francisco Topa aborda o periódico angolano Mensagem, publicado em Luanda em 1951-1952 pela Associação dos Naturais de Angola. Chamando a atenção para alguns dos aspectos da revista que continuam por estudar, o autor acrescenta algumas informações sobre as dificuldades de impressão do segundo número e revê a avaliação histórica não consensual que tem sido feita do periódico. Isto posto, analisa com algum detalhe o primeiro número, detendo-se no projeto da publicação e nos textos aí incluídos. Em conclusão, reconhece o papel decisivo de Mensagem na ruptura com a literatura colonial e na afirmação de uma literatura angolana. Solange Evangelista Luis, no artigo “A PM 44, o microfone, a nação angolana e a voz feminina”, aborda as experiências de resistência de Deolinda Rodrigues, guerrilheira na luta de libertação e de Eva Rap Diva, rapper angolana. Enquanto a guerrilheira, na luta pela conquista do lugar da nação, silencia a sua voz num diário em prol da libertação coletiva, a rapper projeta-a com o microfone, marcando o seu

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lugar individual na nação. Ao causar interrupções no discurso dominante, a rapper possibilita novas construções identitárias na nação angolana, que se quer, conforme a guerrilheira imaginou, independente de restritivas amarras engendradas. Em Ritos de passagem, a escritora Paula Tavares inaugura uma nova dicção poética angolana escrevendo sobre o corpo feminino a partir de uma oralidade erótica que recusa o imposto silêncio colonial (MATA, 2009). Neste artigo, de Eliza de Souza Silva Araújo e Ana Ximenes Gomes de Oliveira, a produção de sentidos poéticos inventados para preencher as fissuras provocadas pela colonialidade é lida como um ato de rememória. Alguns poemas e desenhos do livro de Tavares são transcritos e estudados neste texto, no intuito de compreender as unidades textuais que traduzem uma angolanidade, corpo, gênero e sociedade recém-livres do domínio colonial. Lucas Esperança, em “No princípio era o verbo: a escrita de resistência e identitária nas produções da Casa dos Estudantes do Império” aborda o papel fundamental na formação das lideranças luso-africanas na segunda metade do século XX, da Casa dos Estudantes Império, que se situava no coração de Lisboa e reunia muitos jovens africanos que iam à metrópole para seus estudos. Além da consciencialização política, a produção literária destacou-se com inúmeras publicações dando visibilidade aos escritores que utilizavam da palavra como instrumento de luta e resistência contra o colonialismo e a opressão nas então colônias. Assim, alguns textos são analisados neste artigo demonstrando essa luta. Devido ao fato de a educação brasileira ainda ser moldada por valores herdados da mentalidade colonialista, que tende a apagar o papel dos africanos na construção da nação, Adriano Carlos Moura, em “Literaturas africanas de língua portuguesa na sala de aula por uma educação pós-colonial”, propõe uma reflexão sobre o papel das literaturas africanas de língua portuguesa na construção de uma mentalidade pós-colonial, conceito que norteia teórica e metodologicamente a pesquisa da qual o estudo resulta, e o romance como gênero capaz de possibilitar acesso à cultura e história da África. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica e de campo ancorada no trabalho de pesquisadores da crítica pós-colonial. A diversidade temática que compõe este dossiê reflete a pluralidade de questões suscitadas pelas literaturas africanas de língua portuguesa, cuja versão impressa tem pouco mais de um século. Conhecer a cultura literária de África implica contribuir para uma educação e sociedade antirracista, visto que pode levar o leitor a desconstruir a imagem negativa sobre o continente, seus habitantes e descendentes, erguida durante séculos de política e opressão colonial. Boa leitura! Adriano Carlos Moura (IFF) Francisco Topa (Universidade do Porto) Érica Luciana de Souza Silva (IFF) Solange E. Luis (ISCED – Huíla) Organizadores do Dossiê

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Referências MATA, I. Recensões: TAVARES, Paula. Ritos de passagem. Lisboa: Caminho, 2007. 70 p. In: MATA, I. Recensões: TAVARES, Paula. Ritos de passagem. Navegações, Porto Alegre, v. 2, n. 1, p. 76-77, jan./jun. 2009. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/navegacoes/article/view/5142. Acesso em: 14 set. 2021. NOA, F. Uns e outros na literatura moçambicana. São Paulo: Editora Kapulana, 2017.

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Submetido em: 18 set. 2021 Aceito em: 18 fev. 2022

DOI: 10.19180/1809-2667.v24n12022p7-18

A loucura feminina nos romances de Paulina Chiziane como estratégia de resistência* Érica Luciana de Souza Silva https://orcid.org/0000-0002-3668-6871 Doutora em Letras: Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2021). Professora no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense − Campos dos Goytacazes/RJ − Brasil. E-mail: ericavascoprof@gmail.com.

Resumo O trabalho a seguir traz um breve estudo sobre como a escritora Paulina Chiziane faz da loucura uma estratégia de resistência observável em quase todas as suas personagens. Aqui a análise se dará sobre Maria das Dores, do romance “O alegre canto da perdiz” (2010), a louca do rio que ousou invadir a margem exclusiva dos homens no rio Licungo e afrontou a todos com sua nudez. Todavia, a análise se dará de forma transversal entre as personagens de outros romances de Chiziane, como Rami, de “Niketche: uma história de poligamia” (2004); Cláudia, de “O sétimo juramento” (2005) e Wusheni, de “Ventos do apocalipse” (1999). O fenômeno da loucura será refletido à luz do texto de Michel Foucault, “A história da loucura na idade clássica” (1978) e o texto “O debate Foucault e Derrida: razões ou desrazões do pensamento” (2017). Palavras-chave: Loucura. Mulher. Resistência. Literatura. Moçambique.

Female madness in Paulina Chiziane's novels as a strategy of resistance Abstract The following work brings a brief study on how writer Paulina Chiziane turns madness into an observable resistance strategy in almost all of her characters. Here the analysis will be about Maria das Dores, from the novel “The happy song of the partridge” (2010), the crazy woman from the river who dared to invade the exclusive bank of men on the Licungo river and affronted everyone with her nudity. However, the analysis will be transversal between the characters of other novels by Chiziane, such as Rami, by “Niketche: a story of polygamy” (2004); Cláudia, from “The seventh oath” (2005) and Wusheni, from “Apocalypse winds” (1999). The phenomenon of madness will be reflected in the light of Michel Foucault's text, “The history of madness in the classical age” (1978) and the text “The Foucault and Derrida debate: reasons or unreasons of thought” (2017). Keywords: Craziness. Woman. Resistance. Literature. Mozambique.

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Este texto foi retirado de minha tese de doutorado cujo título é: “Das margens do rio Licungo aos ventos do apocalipse. Vinde todos escutar o novo canto: Os impactos literários, sociais e culturais através do cruzamento dos romances de Paulina Chiziane”. A defesa do trabalho ocorreu no dia 12/04/2021.

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La locura femenina en las novelas de Paulina Chiziane como estrategia de resistencia Resumen El siguiente trabajo presenta un breve estudio sobre cómo la escritora Paulina Chiziane convierte la locura en una estrategia de resistencia observable en casi todos sus personajes. Aquí el análisis será sobre Maria das Dores, de la novela "El alegre canto de la perdiz" (2010), la loca del río que se atrevió a invadir la exclusiva orilla de hombres del río Licungo y enfrentó a todos con su desnudez. Sin embargo, el análisis será transversal entre los personajes de otras novelas de Chiziane, como Rami, de “Niketche: una historia de poligamia” (2004); Cláudia, de “El séptimo juramento” (2005) y Wusheni, de “Vientos del apocalipsis” (1999). El fenómeno de la locura se reflejará a la luz del texto de Michel Foucault, “La historia de la locura en la época clásica” (1978) y el texto “El debate de Foucault y Derrida: razones o sinrazones del pensamiento” (2017). Palabras clave: Locura. Mujer. Resistencia. Literatura. Mozambique.

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A loucura feminina nos romances de Paulina Chiziane como estratégia de resistência Érica Luciana de Souza Silva

1 Introdução O texto que se segue analisa o status de loucura impingido à mulher nos romances de Paulina Chiziane. Contudo, o que se verifica é que tal designação, na verdade, é uma estratégia de resistência desenvolvida pela autora, a qual usa o espaço de poder propiciado pela escrita para colocar em evidência os conflitos e as perspectivas sociais de mulheres moçambicanas. O romance de Chiziane em torno do qual se estrutura este texto é “O alegre canto da perdiz” (2010), que se inicia com Maria das Dores surgindo nua nas margens do rio Licungo, um espaço exclusivo dos homens. Ela, devido a sua ousadia em afrontar a todos com sua nudez, olhar e sorriso, é alcunhada de a “louca do rio”. Maria das Dores desencadeia o estudo sobre o evento da loucura feminina como resistência, mas, durante o artigo, haverá a intersecção com personagens de outras obras da mesma autora. As análises se darão à luz dos textos de Michel Foucault, “A história da loucura na idade clássica” (1978) e o texto “O debate Foucault e Derrida: razões ou desrazões do pensamento” (NASCIMENTO, 2017). A fim de compreender a origem da loucura da mulher nos romances de Paulina Chiziane, faz-se necessário apontar que a Moçambique apresentada em O alegre canto da perdiz é aquela tomada pelos colonizadores, cujas mulheres estão inseridas em rígidas hierarquias sociais patriarcais e racistas. É importante enfatizar que o país, a efeito de análise teórica, pode ser dividido em Norte, região em que se preservam as tradições culturais e religiosas, com menor presença do colonizador português e onde se localizam os Montes Nampuli. De acordo com as histórias tradicionais do país, esse é o local onde se deu o início da vida. Já o Sul, mais próximo do oceano, é a parte mais ocidentalizada de Moçambique e região em que houve grande presença dos colonizadores. Nessa conjuntura social, especialmente a do sul de Moçambique, as mulheres constituem simples corpos negros, dos quais emana o prazer sexual. A posse da figura feminina negra representa a dominação do território geográfico africano e, por conseguinte, também do homem negro. O colonizador, ao apropriar-se da mulher moçambicana, submete o homem negro colonizado a uma intensa humilhação, pois tal atitude se torna o ápice da dominação colonial: a possessão da mulher negra exprime a alegoria da dominação colonial da terra de Moçambique. A atitude de violação feminina reafirma que o português detém o domínio de tudo: o Estado, a língua, os valores culturais impostos aos autóctones, a terra. Em contrapartida, para o homem colonizado, dominar a mulher negra africana seria um meio de transferência ou tentativa de amenizar a dor e a humilhação impingidas a ele, sobretudo o domínio da mulher negra moçambicana. Daí advém a naturalização de processos que anulam a figura feminina como indivíduo social e detentor de direitos, além da negação da violência a que parte dessas mulheres é submetida.

2 A loucura como forma de resistência Os corpos negros femininos africanos, em sua representatividade e sob a ótica patriarcal, sustentam a ordem política colonial e licenciam as várias violências. Eles são construídos socialmente a partir da visão egocêntrica, masculina, predominante e replicada não apenas pelos homens, mas pela própria mulher. Sob a perspectiva masculina, o corpo feminino é o lugar de consumo, e não de autonomia e liberdade. Maria das Dores, a louca do rio, que se tornou a heroína do dia por invadir a margem exclusiva dos homens, por meio de sua nudez, seu olhar e seu sorriso afronta a perspectiva do mundo patriarcal que lhe nega o

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A loucura feminina nos romances de Paulina Chiziane como estratégia de resistência Érica Luciana de Souza Silva

espaço público. Assim, para silenciar a louca, torna-se necessário moralizá-la segundo valores estabelecidos pelo universo patriarcal. Maria das Dores, aquela que carrega as dores de todas as mulheres, nua envolta em lama e protegida pelas águas do rio Licungo coloca em xeque todos os parâmetros sociais vigentes. Esse cenário descrito torna Maria das Dores, inicialmente, inimiga dos que presenciam sua aparição nas margens do rio Licungo. Altiva, alheia aos gritos e impropérios, ela permanece íntegra. A lama, com a qual o homem fora criado por Deus no Velho Testamento, de acordo com os ensinamentos cristãos, é a mesma que origina, ergue, molda e sustenta aquela que traz em suas mãos o poder de abrir o espaço para todas, afrontando apenas com o olhar as ideologias que cruzam seu caminho e se instituem como status quo: as práticas coloniais e a religião cristã. A imagem de sua intimidade que se refresca nas águas do rio fere o olhar de todas que se encontram acomodadas em sua subordinação feminina. Corpo, cor e olhar: uma tríade que fere a sociedade local e seus respectivos valores mais que qualquer arma mortal. Cremildo Bahule (2013) afirma em seu texto “Literatura feminina, literatura de purificação” que “a Nação na sua dimensão política, social e cultural, forja os corpos. E os corpos na sua dimensão sociocultural, constituem uma Nação” (BAHULE, 2013, p. 132). A louca do rio, em seu corpo de lama, dimensiona a nação moçambicana que se insurge veementemente em busca do que lhe fora tirado e reivindica seu espaço na margem exclusiva a poucos. Seu corpo de mulher negra é hostilizado por aqueles já dominados culturalmente e que não percebem que são irmãos no mesmo processo de subordinação: ela, mulher; eles, produtos do colonialismo. Todos unidos em um único processo de exploração, humilhação e negação identitária, engendrado por aqueles cujo objetivo era dominar as terras de Moçambique. O silêncio social no qual a mulher negra é arremessada denota intensa violência física e moral. Ele se torna uma representação da violência impingida ao continente africano quando seus habitantes se veem destituídos de sua língua originária, do poder de enunciação e da sua própria história em benefício da história contada apenas pela perspectiva de quem os domina. O apagamento cultural anula a identidade dos autóctones, transformando-os em seres amórficos, como se fossem apenas uma extensão do país que lhes obriga a tamanho sofrimento e humilhação: Mundo compartimentado, maniqueísta, imóvel, mundo de estátuas: a estátua do general que fez a conquista, a estátua do engenheiro que construiu a ponte. Mundo seguro de si, esmagando com suas pedras as colunas dorsais esfoladas pelo chicote. Esse é o mundo colonial. O indígena é um ser confinado, o apartheid é apenas uma modalidade da compartimentação do mundo colonial. (FANON, 2010, p. 68- 69).

Esse é o mundo em que a mulher negra moçambicana, na época do domínio português, estava inserida, tendo sua condição de subalternidade, inferioridade e silenciamento realçada pelo sistema colonial e seu corpo reduzido a um objeto de deleite para os europeus. Todavia, esse corpo-nação já carrega suas tatuagens. São marcas que podem mudar a opinião de quem as vê e de quem as percebe, em uma clara abertura do corpo ao mundo. As marcas do corpo negro e nu, sobretudo, problematizam a ideologia colonialista que nega e inferioriza a cultura africana. Além disso, o corpo negro de Maria das Dores evidencia que a homogeneidade europeia e a universalidade pretendida pelo colonizador em meio aos povos africanos como modelo civilizatório são falsas. Sua presença, bem como sua coragem, coloca em evidência, em equivalência e em equilíbrio os valores africanos perante os valores portugueses, promovendo o que Édouard Glissant (2005) nomeia de crioulização: “A crioulização exige que os elementos heterogêneos colocados em relação ‘se intervalorizem’, ou seja, que não haja degradação ou diminuição do ser nesse contato e nessa mistura […]” (GLISSANT, 2005, p. 22).

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A loucura feminina nos romances de Paulina Chiziane como estratégia de resistência Érica Luciana de Souza Silva

Compreende-se, assim, que, no corpo da negra africana, encerra-se uma identidade visceralmente ligada à ideia de nação. O Estado procura policiar e cercear as ações desse corpo, para que este desempenhe sua função hegemônica com êxito. No entanto, há de se lembrar que as identidades não são estáveis nem fixas e sua tendência é a de se opor aos processos homogeneizadores, é abrir-se à diversidade e “contaminar” o espaço de predileção de alguns. Novamente retoma-se Glissant (2005), que defende que as populações libertas do estigma da hegemonia colonial se abrem para os vários processos culturais e sociais, os quais contribuem na formação identitária de uma determinada comunidade. Nesse contexto, os resultados são imprevisíveis, mas nem por isso inferiores. De acordo com Glissant (2005), a imprevisibilidade é a marca da crioulização. Para Maria das Dores, sua presença promove a equivalência dos diversos valores culturais, ou seja, a crioulização. Para seus espectadores, a louca do rio promove a desordem e desafia as normas consolidadas: “Ali estava a heroína do dia. Protegida na fortaleza do rio. Num trono de água. Que venceu um exército de mulheres e colocou desordem na moral pública. Que desafiou os hábitos da terra e conspurcou o santuário dos homens.” (CHIZIANE, 2010, p. 16). Esse é o panorama que Chiziane pretende apresentar ao leitor, a fim de que ele compreenda o universo feminino moçambicano. A autora quer também estimular transformações na dura realidade por meio de suas protagonistas e a partir do local cultural para onde foram arremessadas. Conhecer e compreender como se dão os vários processos de dominação e exploração da mulher nos mais diversos âmbitos sociais moçambicanos seria, talvez, o ponto de partida para mudança de perspectivas, alcance de novos paradigmas culturais e releitura dos já existentes. Em “Niketche: uma história de poligamia” (CHIZIANE, 2004), também é possível observar a violência contra a mulher como algo presente e corriqueiro entre as famílias, incapaz de causar, na lógica patriarcal, qualquer sensação de estranhamento. Toni, o marido adúltero, se justifica para Rami, a primeira esposa: – Sou um homem bom, Rami, há homens piores do que eu. Faço tudo bem feito. Ter muitas mulheres é o direito que tanto a tradição como a natureza me conferem. Nunca maltratei a Lu, bati nela algumas vezes, apenas para manifestar o meu carinho. Também te bati algumas vezes, mas tu estás aí, não me abandonaste para lugar nenhum. A minha mãe foi sempre espancada pelo meu pai, mas nunca abandonou o lar. As mulheres antigas são melhores que as de hoje, que se espantam com um simples açoite. (CHIZIANE, 2004, p. 284).

A citação acima se refere a um momento, já no final da narrativa, quando todas as mulheres de Toni o deixam para seguir seus próprios caminhos. Percebe-se que há uma legitimação dos processos violentos contra a mulher nas sociedades patriarcais através da desqualificação desses procedimentos. Dessa forma, a violência e, logo, o feminicídio, têm sua gravidade reduzida sendo colocadas como parte inseparável do cotidiano dos casais, afinal “todas levam alguns açoites”. O discurso apresentado no fragmento acima não é exclusivo a Moçambique ou à África. Ele se estende a todos os lugares do planeta, onde é comum, reforçando o caráter universal da dor feminina descrita nos textos de Chiziane. Ultrapassar os limites que demarcam o espaço social imposto há décadas requer muita ousadia e subversão. Afinal, são longos períodos de assimilações culturais que habituaram as mulheres a se situarem em um patamar social inferior, cuja falsa segurança fomenta o comodismo e a enganosa impressão de conforto. Esses processos de imposição e doutrinação abafam os valores tradicionais africanos em que há compartilhamento de poder entre homem e mulher, maior igualdade entre ambos e instituem, através de longos processos doutrinários e apagamentos culturais, que a única verdade preponderante e benéfica a todos é aquela incentivada pelo homem português.

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Ao olhar atentamente para as personagens de Chiziane, percebe-se que as mulheres destacadas pela autora são aquelas que não se adequam à realidade social e cultural imposta pelo mundo patriarcal e pelo mundo colonial sem antes problematizá-los. Portanto, como elemento estranho, que não se encaixa nas engrenagens, elas despertam a reflexão e a sensibilidade do leitor. Por muitas não suportarem tamanho fardo advindo da força desprendida para desencadear a ação do confronto, algumas se entregam, ou são levadas à prostituição, à loucura, à depressão ou à morte. É o caso de Maria das Dores que, para suportar os sucessivos estupros e o uso forçado de álcool e ervas que a mantinham dopada e cativa em poder de seu marido, encontra alívio dessa relação conjugal tensa e violenta no devaneio próximo à loucura. Mesmo sob essas condições adversas, ela consegue fugir para os Montes Nampuli. Sua loucura transforma-se em um artifício com o qual rejeita todo o sofrimento que lhe é imposto, ao mesmo tempo em que remete à representação da resistência feminina em Moçambique na luta por transformação do patriarcado, por mais dignidade e respeito dentro da sociedade. A designação de “a louca do rio” pauta o conceito de insanidade nos parâmetros científicos europeus, que traçam a fronteira entre o que é próprio do campo da razão e o que é típico do campo da loucura. É, portanto, uma construção científica ocidental que decide o que é e o que não é dotado de razão, exercendo, mais uma vez, a habilidade eurocêntrica de ditar o que deve ser excluído a partir de sua crença de verdade. Assim, em algumas regiões de Moçambique, prevalecem, entre a população, principalmente nas áreas em que houve forte presença do colonizador europeu, determinados valores éticos, morais, raciais e de gêneros, que excluem aqueles e aquelas que não se encaixam nos parâmetros estabelecidos pelo Ocidente, ou seja, definem os valores para que o indivíduo seja considerado cidadão de bem, dotado de razão. A professora Enilce do Carmo Albergaria Rocha, em sua tese de doutorado “A utopia do diverso: o pensamento glissantiano nas escritas de Édouard Glissant e Mia Couto” (ROCHA, 2001), destaca a seguinte citação de Glissant (1981) em que o teórico traça uma definição do que seja o ocidente enquanto projeto de dominação: “O Ocidente não está situado no Oeste. O Ocidente não é um lugar, e, sim, um projeto” (GLISSANT, 1981, p. 12 apud ROCHA, 2001, p. 25), que se realiza nos países colonizados em África, Ásia e América Latina. É um discurso utilizado para exercer o poder de uns e punir outros, evitando que se estabeleça a pseudodesordem na ordem social estabelecida. Em a “História da loucura”, Michel Foucault (1978), por meio de suas observações, analisa como as pessoas que não se enquadravam em um determinado comportamento social eram consideradas loucas, expondo o poder em julgar e determinar quais eram as atitudes “normais” e aquelas outras que colocavam em ameaça a razão iluminista europeia. Pois o problema real é exatamente o de determinar o conteúdo desse juízo que, sem estabelecer nossas distinções, expatria do mesmo modo aqueles que teríamos tratado e aqueles que teríamos preferido condenar. Não se trata de localizar o erro que autorizou semelhante confusão, mas de seguir a continuidade que nosso atual modo de julgar rompeu. (FOUCAULT, 1978, p. 124).

Para Foucault (1978), a loucura é uma ameaça para a ordem do medíocre mundo dos homens. Maria das Dores, a deusa de ébano e lama, é a encarnação dessa ameaça ao mundo patriarcal: “há mensagens de perigo escondidas nas linhas nuas do corpo.” (CHIZIANE, 2010, p. 15). O objetivo não é destruir o mundo regido unicamente por leis e lógica patriarcais, mas transformá-lo e, por conseguinte, transformar a sociedade abrigada por ele.

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Segundo Érica Luciana de Souza Silva (2021), em “Das margens do rio Licungo aos ventos do apocalipse. Vinde todos escutar o novo canto: a sociedade moçambicana sob o prisma da mulher na escrita de Paulina Chiziane”, a suposta loucura de Maria das Dores é, na verdade, o saber que os demais ignoram. Por isso, todos naquele lugar à margem do rio Licungo nomeiam, inicialmente, a personagem como a “louca do rio”. Por que não a “sábia do rio”? Sua visão, além dos limites sociais impostos que a credenciam como uma sábia, assusta aqueles que desconhecem o processo de dominação em que estão imersos. Em a “Ordem do discurso”, Foucault afirma: […] o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros […] pode ocorrer também, em contrapartida, que se lhe atribua, por oposição a todas as outras, estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, o de pronunciar o futuro, o de enxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber. (FOUCAULT, 2008, p. 11).

Logo, é mais cômodo condenar a mulher à loucura do que se unir em sua luta pela transformação necessitada: “[…] a loucura fascina porque é um saber. É saber, de início, porque todas essas figuras absurdas são, na realidade, elementos de um saber difícil, fechado, esotérico.” (FOUCAULT, 1978, p. 26). Ao analisar a sabedoria/loucura de Maria das Dores, conclui-se que, na verdade, as loucas são aquelas que acusam a mulher à margem do rio exclusiva dos homens por sua ousadia. As outras mulheres naquela cena estão apegadas a si mesmas e aos conceitos de verdade e justiça, como peças do mundo patriarcal: “o apego a si próprio é o primeiro sinal de loucura, mas é porque o homem se apega a si próprio que ele aceita o erro como verdade, a mentira como sendo a realidade, a violência e a feiura como sendo a beleza e a justiça.” (FOUCAULT, 1978, p. 30). Maria das Dores ameaça a ordem social estabelecida, obriga a todos, sem se intimidar, a reler e a compreender a situação de subordinação em que todas estão envoltas; não inimigas, mas aliadas unidas em um único elo. De acordo com Silva (2021), em Maria das Dores também se enxerga Paulina Chiziane que, por inúmeras vezes, teve suas produções literárias rotuladas como inferiores, justamente porque tocam em assuntos nevrálgicos e ainda não resolvidos na sociedade moçambicana. Esse fato é confirmado pelas insistentes colocações proferidas por alguns em seu país, chamando-a de louca, a quem, portanto, não se deve dar créditos nem ao menos perder tempo em escutar suas “histórias desnecessárias”. É a convergência da escritora em várias de suas personagens, que, por não suportarem a violência a elas imposta, tampouco a tentativa de silenciamento de suas vozes sofridas e o descredenciamento de suas palavras, nenhuma outra saída lhes resta, a não ser o escape pela loucura: enlouquece-se para não morrer afogada em suas próprias angústias. A escrita é o escape de Paulina Chiziane1. Silva (2021) afirma que a loucura passa a ser uma estratégia de resistência, pois, para muitos, o melhor seria que as contadeiras de estórias desaparecessem com seus barulhos atordoantes, que têm o poder nefasto de conscientizar milhares de outras mulheres sobre a força de que elas são imbuídas no processo transformador da sociedade. Neste ponto, faz-se necessário se ater ao conceito de loucura desenvolvido ao longo dos séculos para, assim, tentar compreender os processos presentes nas obras de Paulina Chiziane. 1

As reflexões e discussões referentes ao processo de loucura envolvendo as personagens de Paulina Chiziane foram retiradas de minha tese de doutorado cujo título é: Das margens do rio Licungo aos ventos do apocalipse. Vinde todos escutar o novo canto: a sociedade moçambicana sob o prisma da mulher na escrita de Paulina Chiziane. A referência completa do trabalho está nas referências bibliográficas.

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Desde a Antiguidade, o fenômeno da loucura desperta grandes reflexões nas áreas da ciência e na sociedade. Durante o Renascimento, na Europa, os manicômios surgiram para substituir os antigos leprosários, uma vez que a doença já havia sido controlada. Ali se encarceravam todos aqueles que não se adequavam às regras de uma sociedade específica, entre elas os considerados desvios morais. Inúmeros estudiosos vêm, ao longo dos séculos, debruçando-se sobre esse assunto a fim de compreendê-lo e buscar soluções. Entre eles, citam-se Descartes, Foucault e Derrida como grandes filósofos que se dedicaram à análise do fenômeno da loucura. O segundo defende que a loucura habita no interior do espaço moral da exclusão (FOUCAULT, 1978, p. 12). O primeiro afirma que apenas o sujeito pensante, racional é o detentor da verdade: “penso, logo existo”. Os loucos estão fora do campo da razão, assim, não podem proferir a verdade (BIRMAN, 2010). Já Derrida aponta que loucura e razão são indissociáveis (NASCIMENTO, 2017, p. 148). Foucault (1978) afirma que a loucura fascina a humanidade porque é um saber, mas uma espécie de saber proibido, e que o louco geralmente toma lugar no centro das encenações. Na Idade Média, muitas vezes esse papel era destinado ao bobo da corte, para lembrar a cada um a sua incômoda verdade. O louco seria, portanto, o detentor da verdade, aquele que, em meio a seus delírios, diz a verdade secreta ocultada a todos. É uma espécie de voz da consciência, que expõe as transgressões morais de um indivíduo sem o risco do silenciamento. […] a loucura não está ligada ao mundo e as suas formas subterrâneas, mas sim ao homem, às suas fraquezas, seus sonhos e suas ilusões. […] Ela (a loucura) desemboca, portanto, num universo inteiramente moral. […] É também ao moral que pertence a loucura do justo castigo. Ela pune, através das desordens do espírito, as desordens do coração. Mas tem outros poderes: o castigo que ela inflige multiplica-se por si só na medida em que, punindo, ele mostra a verdade. […] A loucura, nessas palavras insensatas, que não se podem dominar, entrega seu próprio sentido; ela diz, em suas quimeras, suas verdades secretas […] (FOUCAULT, 1978, p. 29, 30, 44).

Silva (2021) estabelece um diálogo entre o texto de Foucault (1978) e Evandro Nascimento (2017). Nesse diálogo, Silva (2021) destaca o outro aspecto da loucura que é descrito pelo professor Evandro Nascimento em seu texto “O debate Foucault e Derrida: razões ou desrazões do pensamento”. Nascimento (2017) aponta que, para pensar o fenômeno da loucura não se pode abandonar o conceito de alteridade. No pensamento clássico, tudo que era diverso e não representasse o raciocínio puro era lançado para a zona da exclusão. Logo, lançava-se para essa região do abandono tudo o que não se adequava aos modelos estabelecidos e excluía-se a alteridade. Desta forma, Silva (2021) conclui que as loucas presentes nos romances de Chiziane têm papel preponderante dentro das narrativas por dizerem outras verdades, além das já instituídas, e agirem de maneira a não serem silenciadas. Protegidas pelo não lugar da loucura, não se calam, não podem ser responsabilizadas por atos nefastos, justamente por não responderem por si. Negam-se a se esconderem em cozinhas e quartos escuros e a aceitarem o estigma de serem consideradas como a parcela familiar que deve ser afastada dos olhares estranhos por causar vergonha. É um elemento estranho dentro da própria estrutura familiar adaptada a leis e costumes patriarcais. Desse modo, protegidas pela suposta insanidade, não têm receios de dizer o que vai na alma feminina. É o mundo silenciado, negligenciado e descredenciado falando as verdades sob perspectivas distintas e variadas. É a voz moçambicana abarcando a variedade feminina existente no país.

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Na literatura, assim como no teatro, é necessário fingir-se louco, saber ser louco para entrar na pele do louco e lhe dar voz, veicular sua fala incoerente, que a todos incomoda. (NASCIMENTO, 2017). Assim procede Chiziane, que usa o estigma social da insanidade para alçar questionamentos e apresentar seus próprios sofrimentos, vivenciados em sua trajetória de reconhecimento literário dentro de Moçambique. A sua voz, à luz da sociedade patriarcal, não passa de murmúrios inconvenientes que não merecem ser ouvidos. Assim, suas personagens loucas falam por ela. É um “dar a voz” recíproco: Paulina, por meio de seus diversos narradores, fala pelas personagens e as personagens falam por Paulina. Juntas, elas falam pela mulher moçambicana subjugada e silenciada. Ainda de acordo com Silva (2021), morte e loucura são dois eventos antagônicos e, ao mesmo tempo, muito próximos. A morte, quando referente a indivíduos que podem trazer a desordem à ordem estabelecida, lança o indivíduo para o vazio, tirando-o do campo de visão dos demais. A loucura, ao contrário, expõe o que há no indivíduo sem as máscaras sociais, o que, muitas vezes, é considerado como a personificação do mal. Entretanto, essa visão sobre a morte como a entidade que lança o indivíduo para o vazio e para o esquecimento, não se verifica na personagem Wusheni de “Ventos do apocalipse” (1999), de Paulina Chiziane. Wusheni é a filha de Minosse e do polígamo Sianga. Ela fora prometida a um homem mais velho em troca de seu lobolo, que seria pago a seu pai. Wusheni rejeita a escolha do pai e decide viver seu amor com o jovem Dambuza. Sua trajetória na narrativa se encerra quando ela é assassinada por seu irmão. O ato é duplo e simultâneo: Wusheni recebe a facada mortal ao mesmo tempo que desfere uma facada em seu irmão. A morte de Wusheni não se configura como vazio e apagamento, como dito anteriormente, mas uma estratégia de resistência e luta contra as leis machistas que ferem a dignidade da mulher. Processo semelhante ocorre em “O sétimo juramento” (CHIZIANE, 2005), também de Chiziane, com Cláudia, a amante de David. Sua morte também não reflete silenciamento, mas expõe a hipocrisia que reina no mundo patriarcal e machista, o qual não estabelece a imagem de um homem bem-sucedido, sem que haja a presença de uma amante. A morte de Cláudia expõe o duplo adultério de David, a saber: o relacionamento extraconjugal com a secretária, aos moldes ocidentais, e a pedofilia ancorada na prostituição de crianças e adolescentes, quando David compra uma menina virgem na casa de prostituição. Cláudia é o elemento desestabilizador dessa fatídica ordem social. Assim como os loucos, deveria ser silenciada, ou aniquilada, para que tudo permanecesse dentro do modelo estabelecido, o que se dará, no romance, com a sua morte. As ações que ferem a dignidade e os direitos femininos ganham destaque nas obras de Chiziane e expõem ao leitor o desnudamento das relações que permeiam as diferentes sociedades. É o discurso de Paulina Chiziane alçando-se a uma proporção universal. Essa transcendência não se configura como vetor homogeneizador nem como um silenciador de diversidades, mas como um evento típico da sociedade contemporânea moçambicana, transposto para a ficção literária. Com isso, a autora explicita em palavras as agruras pertinentes a grande parte das mulheres em diversas partes do mundo. Outro importante fator que aqui se destaca é quanto ao local para onde Maria das Dores, em meio a seus devaneios, foge: os Montes Nampuli. De acordo com a tradição oral moçambicana, os Montes Nampuli constituem o centro do mundo, o lugar onde toda a criação teve início. O espaço do equilíbrio natural, da segurança, situado na região Norte do país, na Zambézia e que teria sido gerado em um ovo de perdiz, o que inspirou o título da obra “O alegre canto da perdiz”. Nessa região, aproximadamente 69% da população é atingida pela pobreza, principalmente mulheres e crianças que vivem na zona rural2. 2

Fonte: CMI Relatório. Políticas de Género e Feminização da Pobreza em Moçambique

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Ao buscar refúgio e segurança em uma região onde grande parte das mulheres se encontra em uma situação econômica frágil, Maria das Dores denota uma atitude de loucura perante a perspectiva ocidental e machista que vigora em seu país. Contudo, ela necessita do contato com a gênesis criadora que remete ao tempo anterior à colonização, antes que os homens ocidentais roubassem o domínio das mulheres. Somente o resgate da cultura e dos valores tradicionais moçambicanos é que poderiam reativar suas energias para empreender a busca pelos filhos perdidos. Mesmo sendo resgatada por soldados do império, tratado o corpo e suas feridas, Maria das Dores continua sendo considerada louca, o que lhe permitirá invadir e recuperar a margem do rio Licungo dominada por homens. Erguer Maria das Dores como uma rainha exatamente na margem do rio Licungo não foi coincidência. Esse rio é estratégico em Moçambique, pois ele liga as regiões de Nampula e Zambézia e deságua no mar. Nampula está localizada no interior da região Norte de Moçambique e é também conhecida como a Capital do Norte. Durante a colonização, foi referência para os militares portugueses que lutaram na guerra colonial. Zambézia também se situa no interior de Moçambique, havendo, durante a colonização, sofrido com o domínio dos portugueses. Os Montes Nampuli estão nesta região. As duas regiões são marcadas por conseguirem recuperar o domínio de seus territórios das mãos dos portugueses, além de serem regiões em que predomina a herança pela matrilinearidade. A saída para o mar faz do rio Licungo um transportador dos ares de libertação do domínio colonial e da condição de igualdade da mulher típica dessa região, que é antagônica à situação das mulheres do Sul. Assim, compreende-se a importância do domínio de suas margens e de suas águas reservadas única e exclusivamente para os homens, bem como para a manutenção e perpetuação do status machista e patriarcal vigente em boa parte do país e ratificado pela colonização. Sob o domínio masculino, as águas desse rio são, provavelmente, represadas, metaforizando o enclausuramento dos ideais de igualdade de gênero e emancipação feminina. As águas não alcançarão, portanto, a vastidão dos mares e dos oceanos. Logo, não espalharão as boas novas femininas por todo o planeta. A loucura de Maria das Dores revela a dimensão da importância de sua suposta insanidade no contexto social da mulher. Ela emerge das águas e da lama, materiais que carregam as representações culturais tradicionais abandonadas e enterradas no fundo do rio pelas convenções coloniais e patriarcais e com elas afronta a suposta razão que se impõe sobre a sociedade atual.

3 Considerações finais A obra da escritora Paulina Chiziane torna-se o espaço de poder em que há reverberação da voz feminina moçambicana, pois a autora fala como e pela mulher de seu país. Ela própria se considera uma contadeira de “estórias” e ali ela narra os casos que ouve de suas vizinhas, amigas e parentes. Ao mesmo tempo que fala sobre a mulher de seu país, os conflitos ali apresentados assumem um caráter universal por se tratar de dilemas enfrentados por muitas mulheres em várias partes do planeta. Tratar a loucura como forma de resistência feminina é uma das estratégias assumidas para reivindicar direitos negados há séculos à população feminina moçambicana. Nesse contexto, o processo de dominação colonial incentivou e legitimou práticas misóginas e racistas, o que pode ser verificado no sul de Moçambique, região em que houve maior presença e intensidade da dominação portuguesa.

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Paulina Chiziane, em seus romances, mostra, por meio do olhar da mulher moçambicana, a cultura tradicional de seu país que é permeada pela oralidade. A autora subverte a literatura moçambicana ao trazer para seus textos aquelas que sempre foram ignoradas. Sua linguagem representativa de inúmeras mulheres carrega dores, conflitos, dilemas e conhecimentos que foram negligenciados e ignorados por grande parte da sociedade moçambicana por séculos e leva seus leitores a refletirem sobre os estudos de gênero e a forma como vivem as mais variadas mulheres de seu país.

Referências BAHULE, C. Literatura feminina, literatura de purificação: o processo de Ascese da mulher na trilogia de Paulina Chiziane. Maputo: Ndjira, 2013. BIRMAN, J. Descartes, Freud e a experiência da loucura. Nat. hum., São Paulo, v. 12, n. 2, p. 5-21, 2010. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151724302010000200001&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 22 ago. 2020. CHIZIANE, P. Niketche: uma história de poligamia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. CHIZIANE, P. O alegre canto da perdiz. 2. ed. Maputo: Ndjira, 2010. CHIZIANE, P. O sétimo juramento. Lisboa: Editorial Caminho, 2005. CHIZIANE, P. Ventos do apocalipse. Lisboa: Editorial Caminho, 1999. FANON, F. Os condenados da terra. Tradução Enilce Albergaria Rocha; Lucy Magalhães. 1. reimp. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2010. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Tradução Laura Fraga de A. Sampaio. 16. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008. FOUCAULT, M. História da loucura na idade clássica. Tradução José Teixeira Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 1978. GLISSANT, É. Introdução a uma poética da diversidade. Tradução Enilce A. Rocha. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005. NASCIMENTO, E. O debate Foucault e Derrida: razões ou desrazões do pensamento. Matraga, Rio de Janeiro, v. 24, n. 40, jan./abr. 2017. DOI: http:/dx.doi.org/10.12957/matraga.2017.29031. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/matraga/article/view/29031.

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A loucura feminina nos romances de Paulina Chiziane como estratégia de resistência Érica Luciana de Souza Silva

ROCHA, E. A. A utopia do diverso: o pensamento Glissantiano nas escritas de Édouard Glissant e Mia Couto. 2001. Tese (Doutorado em Letras, Estudos Comparados de Literatura Portuguesa) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001. SILVA, É. L. S. Das margens do rio Licungo aos ventos do apocalipse: Vinde todos escutar o novo canto: a sociedade moçambicana sob o prisma da mulher na escrita de Paulina Chiziane. 2021. Tese (Doutorado em Letras, Estudos Literários) – Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2021. DOI: https://doi.org/10.34019/ufjf/te/2021/00042. Disponível em: https://repositorio.ufjf.br/jspui/handle/ufjf/13198.

COMO CITAR (ABNT): SILVA, É. L. S. A loucura feminina nos romances de Paulina Chiziane como estratégia de resistência. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 24, n. 1, p. 7-18, 2022. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n12022p7-18. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/16306. COMO CITAR (APA): Silva, É. L. S. (2022). A loucura feminina nos romances de Paulina Chiziane como estratégia de resistência. Vértices (Campos dos Goitacazes), 24(1), 7-18. https://doi.org/10.19180/18092667.v24n12022p7-18.

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Submetido em: 6 set. 2021 Aceito em: 18 fev. 2022

DOI: 10.19180/1809-2667.v24n12022p44-68

A PM 44, o microfone, a nação angolana e a voz feminina* Solange E. Luis http://orcid.org/0000-0002-5494-773X Doutora em Literatura dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa pela Universidade de Coimbra, Portugal. Professora Auxiliar no Instituto Superior de Ciências da Educação da Huíla – Lubango – Angola. E-mail: luissolange@hotmail.com.

Resumo Uma vez conquistado o lugar da nação, a mulher procura o seu lugar na nação. Estas posições serão retratadas através da voz de Deolinda Rodrigues, guerrilheira do maquis e de Eva Rap Diva, rapper angolana. Enquanto a guerrilheira, na luta pela conquista do lugar da nação, silencia a sua voz num diário em prol de uma libertação coletiva, a rapper projecta-a com o microfone, marcando o seu lugar na nação. Ao causar interrupções no discurso dominante, a rapper possibilita novas construções identitárias na nação angolana, que se quer continuamente independente de restritivas amarras engendradas. Palavras-chave: Deolinda Rodrigues. Eva Rap Diva. Literatura angolana. Escrita feminina.

The weapon PM 44, the microphone, the Angolan nation, and the female voice Abstract After the new nation conquers its place in the world, women seek their place in the nation. These different moments will be discussed by observing how the guerrilla fighter and the rapper use their voices. During the collective struggle for the nation's place, Deolinda Rodrigues, the guerrilla-fighter, silences her voice in her diary. In the post-independence era, the rapper Eva Rap Diva projects her voice with the microphone, inscribing her place in the nation. By causing interruptions in the dominant discourse, the rapper allows for new identity constructions in present Angola – which, both women believe, ought to be continuously independent of restrictive moorings. Keywords: Deolinda Rodrigues. Eva Rap Diva. Angolan literature. Women writing.

La PM 44, el micrófono, la nación angoleña y la voz femenina Resumen Una vez conquistado el lugar de la nación, la mujer busca su lugar en la nación. Estas posturas serán retratadas a través de la voz de Deolinda Rodrigues, maquis guerrillera y Eva Rap Diva, rapera angoleña. Mientras la guerrillera, en la lucha por conquistar el lugar de la nación, silencia su voz en un diario a favor de una liberación colectiva, la rapera la proyecta con el micrófono, marcando su lugar en la nación. Al provocar interrupciones en el discurso dominante, la rapera posibilita nuevas construcciones identitarias en la nación angoleña, que quiere ser continuamente independiente de los lazos restrictivos engendrados. Palabras clave: Deolinda Rodrigues. Eva Rap Diva. Literatura angoleña. Escritura femenina.

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Texto desenvolvido a partir da preleção “O lugar da nação e o lugar na nação: Deolinda Rodrigues e Eva Rap Diva – o diário, o microfone e a voz feminina”, apresentado no Colóquio Internacional “Homenagem a Alda Lara: Mulheres Africanas em Trânsito”, Universidade de Lisboa, 2018-11-15.

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A PM 44, o microfone, a nação angolana e a voz feminina Solange E. Luis

Chauvinistas não, Marxistas-Leninistas Deolinda Rodrigues (RODRIGUES, 2003, p. 113) “A Eva tem um Adão?” A Eva tem muitas coisas, o Adão é uma das coisas que a Eva tem. Eva Rap Diva (É NÓS NA BANDA, 2017)

Em seu ensaio Mulheres de África no espaço da escrita: a inscrição da mulher na sua diferença, Inocência Mata chama a atenção para “uma viragem interna no tom e na dicção na percepção do mundo” (MATA, 2007, p. 425) na escrita feminina pós-independência, que pretende revelar a “complexidade do indivíduo” (MATA, 2007, p. 425). Esta “viragem” denota um reposicionamento face às premissas colectivas que nortearam a escrita ideológica do pré-independência. Uma vez conquistada a independência da nação, a mulher procura a sua independência na nação, o seu lugar. Para isso ela projecta o seu “itinerário individual” (MATA, 2007, p. 425) através da sua voz. Inocência Mata adverte que, relativamente à literatura1 pós-independência enquanto as vozes anteriores2 são colectivas e verbalizam questões tranversais à sociedade, a todas as mulheres e homens, dentro de uma filosofia utópica, as vozes femininas da actualidade, não descurando a dimensão comunitária, já prenunciam uma busca individual, mais íntima e sonhadora, mesmo quando a sua preocupação última é colectiva. (2007, p. 425).

Para esta ensaísta, “já não há a concentração (apenas) metafórica na mulher do sonho de libertação, numa enunciação discursiva que não deixa espaço para as contradições e as aspirações do sentir individual” (MATA, 2007, p. 426). É exatamente este “sentir individual” que está registado, de forma contida, no diário de Deolinda Rodrigues, Diário de um Exílio sem Regresso que, segundo Margarida Paredes, apresenta a “subjectividade de uma mulher no meio de um passado colectivo” (2010, p. 8). Numa Angola independente e globalizada, Eva Rap Diva vocaliza as suas aspirações individuais no palco local e na arena global. Estas posições serão aqui retratadas através do gerenciamento que estas duas mulheres, aparentemente distintas, (Deolinda Rodrigues, guerrilheira e Eva Rap Diva, a rapper), fazem da sua voz ao lidarem com o seu “sentir individual” no espaço angolano, em contextos históricos diferentes. Enquanto a guerrilheira, na luta pela conquista do lugar da nação, contém a sua voz feminina, a sua “subjetividade”, num diário, a rapper projecta-a com o microfone – causando interrupções no discurso dominante que (re)definem e (de)marcam o seu lugar na nação independente – em continuidade à luta iniciada pela guerrilheira.

Embora Inocência Mata escreva sobre a escrita feminina moçambicana, a similaridade dos processos de colonização e descolonização torna oportuna a aplicação deste ensaio ao contexto literário angolano. 2 Mata refere-se ao período pré-independência. 1

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1 A pré-independência: combater pelo lugar da nação Segundo o historiador angolano Alberto Oliveira Pinto, a guerra contra a colonização portuguesa em Angola desponta no ano de 1961, com a Revolta da Baixa de Kasanje, onde os cultivadores de algodão se sublevaram contra a COTONANG que os obrigava a cultivar somente algodão – que era então vendido a um preço fixado pelo governo, muito aquém daqueles praticados internacionalmente. A primeira sublevação dos camponeses teve lugar a 4 de janeiro de 1961 e foi seguida por outras ao longo do mês. A resposta portuguesa resultou em um violento massacre realizado com bombardeamentos de napalm que causaram entre “5.000 e 10.000 mortos, homens, mulheres e crianças” (PINTO, 2017, p. 710)3. Outro evento que marcou o início da luta armada pela independência de Angola aconteceu na madrugada de 4 de fevereiro de 1961, quando “algumas dezenas de homens saídos dos musseques e armados com simples facas e catanas (…) efetuaram 6 assaltos malogrados” (PINTO, 2017, p. 711-712)4. No dia seguinte os assaltos foram reivindicados pelo MPLA, sediado em Conakry5 (PINTO, 2017, p. 713). Em resposta às sublevações, entendidas por Portugal como actos de terrorismo, e a outras situações relacionadas, António de Oliveira Salazar, na condição de líder do Estado Novo português, a 13 de março de 1961, expressa publicamente o que entende ser a necessidade de defender Angola e a integridade da nação portuguesa (apud PINTO, 2017, p. 714). Dá-se assim início ao que Portugal viria a chamar de Guerra do Ultramar, com o consequente envio de tropas para suprimir os reputados terroristas6 (apud PINTO, 2017) dos movimentos de libertação que, na década de 60 eram essencialmente: o MPLA (liderado por Agostinho Neto), a FNLA (comandada por Holden Roberto) e a UNITA (União Nacional para a Independência Total de Angola, encabeçada por Jonas Savimbi). Segundo Oliveira Pinto (2017, p. 724), em 1964 o MPLA contava com milhares de guerrilheiros (entre 3 e 4.500, segundo estimativas do exército português). Este movimento lutava não só contra a ocupação colonial e contra outros movimentos de libertação, mas também para se manter coeso apesar de cisões ideológicas internas7. É neste contexto de luta anticolonial e de tensões dentro do MPLA, que Deolinda Rodrigues se fez guerrilheira. Com o nome de guerra Langidila, que em Kimbundu significa “toma cuidado” (RODRIGUES, 2003, p. 21), Deolinda foi a primeira e “única mulher do Comité Director [do MPLA,] na década de 60” (PAREDES, 2015, p. 121), a tornar-se responsável pelo Departamento de Assuntos Sociais (PAREDES, 2015, p. 121). Foi membro fundador da OMA (Organização da Mulher Angolana), a ala Oliveira Pinto aponta para a possibilidade desta revolta ter sido influenciada pela União das Populações de Angola (UPA) (PINTO, 2017, p. 711), que mais tarde viria a tornar-se na Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). 4 Nomeadamente ao Aeroporto, à Companhia Indígena, à Estação dos Correios, Telégrafos e Telefones, à Companhia Móvel da Polícia de Segurança Pública (4.ª esquadra), à Cadeia da Administração de São Paulo e à Casa da Reclusão de Luanda (PINTO, 2017, p. 712). Oliveira Pinto discorre ainda sobre outros eventos de 1961 que estiveram no surgimento da guerra pela independência de Angola. Entre estes eventos está, por exemplo, o assalto ao paquete português Santa Maria pelos portugueses Henrique Galvão e Camilo Mortágua que, com outros dissidentes, apoderaram-se deste navio pertencente à Companhia Colonial de Navegação. Outro acontecimento marcante foi uma série de assaltos violentos, com início a 15 de março, organizada pela UPA, às fazendas de café dos colonos no norte de Angola (PINTO, 2017, p. 714), onde homens foram desventrados e mutilados e mulheres violadas e mortas pelos revoltosos. Segundo Oliveira Pinto, nem as crianças foram poupadas à violência que aterrorizou Mbanza Kongo (então São Salvador) por mais de quatro semanas (2017, p. 714), causando terror entre os colonos. 5 Em Angola o 4 de fevereiro é um celebrado feriado que marca a importância desta data: o “Dia do Início da Luta Armada e de Libertação Nacional”. 6 Oliveira Pinto nota que a palavra “terrorista” tornar-se-ia, a partir deste momento, em sinónimo de “independentista” no contexto português da época (PINTO, 2017, p. 715), o que desvela a percepção colonial sobre o desejo de independência de Angola. 7 O historiador Mabeko-Tali (2018) expõe a fragilidade política do MPLA num contexto de guerrilha, onde a diversidade étnica e cultural, as lutas sociais e a heterogeneidade ideológica dificultam a afirmação política. Ver também Oliveira Pinto (2017, p. 685-727) e o próprio diário de Deolinda, onde esta faz alusão a alguns destes conflitos. 3

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feminina do MPLA. Prima de Agostinho Neto, metodista e, desde muito cedo, crítica do regime colonial, Deolinda nasceu em 1939 e ingressou no MPLA em 19568. Em outubro de 1966 foi selecionada para fazer parte do esquadrão Camy (ou Kamy) (PAREDES, 2015, p. 121; PINTO, 2017, p. 723; RODRIGUEZ, 2010, p. 57). Juntamente com mais quatro guerrilheiras, Deolinda foi capturada a 2 de março de 1967 (PINTO, 2017, p. 723; RODRIGUEZ, 2010, p. 77-85). A sua captura tem sido atribuída à FNLA, assim como o seu consequente assassínio9. O último registo no seu diário é do dia 1 de março de 1967. Segundo Roberto de Almeida, irmão de Deolinda responsável por publicar o seu diário postumamente10, “no Movimento [MPLA] deram-lhe tarefas mais de administração: secretarias, escrever cartas, traduzir cartas etc. Mas esses trabalhos não lhe agradavam, ela queria ação” (ANTÓNIO, 2020, p. 159) e, por isso, desafiava a “ordem” do Movimento que a pretendia conter, “limitar” e pôr-lhe “algum travão” (ANTÓNIO, 2020, p. 159). O seu irmão nota como, em algumas instâncias, Deolinda não aguardava por “permissões” para que pudesse “conhecer tudo e andar em todo lado” (ANTÓNIO, 2020, p. 159). Este posicionamento ilustra o seu carácter inconformado, insubmisso e contestador, revelando uma mulher muito à frente do seu tempo, capaz de rejeitar e extrapolar as limitações que lhe eram impostas, não só pelo Movimento, mas também pelas expectativas sociais da época. Limbânia J. Rodriguez, que conheceu Deolinda, descreve-a como “uma lutadora apaixonada, desinteressada por tudo o que não dissesse respeito à luta do seu povo e [que] fazia passar os interesses colectivos acima de qualquer interesse individual” (RODRIGUEZ, 2010, p. 43). Para o seu irmão, Roberto de Almeida, “[a] vida de Deolinda é a dedicação a um ideal em que ela se empenhou desde que nasceu até que morreu. Entregou-se a um ideal: o ideal supremo da vida dela era a libertação dos angolanos.” (ANTÓNIO, 2020, p. 162). Imersa na luta pela libertação de Angola do domínio colonial, Deolinda suprimiu a sua voz individual feminina para poder dar voz à luta de libertação coletiva. Embora declare que há de “sempre falar das condições na terra” (RODRIGUES, 2003, p. 37), denunciando o colonialismo enquanto procura consciencializar o coletivo para a luta comum, e de seu irmão declarar que ela “não levava desaforo para casa” (ANTÓNIO, 2020, p. 160), a guerrilheira que desafiava os limites impostos às mulheres de sua época, contém os seus desabafos femininos na privacidade do seu diário. Ao priorizar a libertação dos angolanos, Margarida Paredes nota que Deolinda “trocou o sonho pessoal pelo envolvimento no sonho coletivo do nacionalismo angolano” (2010, p. 3). Deolinda revela a realidade colonial ao expressar em seu diário “Tat’ódio!” (RODRIGUES, 2003, p. 36) que sente face à “Luanda da chicotada do branco nas costas nuas do preto que cava a terra sob um sol de Março. Esta é a Angola do contratado” (RODRIGUES, 2003, p. 35). Este é o contexto que Deolinda luta para mudar quando afirma: “temos de transformá-la: não sei como nem com que forças[,] mas este mal não pode durar sempre” (RODRIGUES, 2003, p. 35). Entende que faz parte dessa mudança quando diz “temos de transformá-la”, concebendo-se como parte de um coletivo que trará a mudança: “Quanta humilhação, caramba! Desde a infância passamos de humilhação em humilhação, nem temos a dignidade de viver à nossa própria custa, livres desta merda de favores. TENHO DE VIVER PRA MUDAR TAL SITUAÇÃO. Temos de ser SERES HUMANOS de verdade.” (RODRIGUES, 2003, p. 55). Para mais informações sobre Deolinda Rodrigues ressaltam-se os trabalhos de Paredes e Limbânia J. Rodriguez, assim como os textos de Roberto de Almeida nas obras de Deolinda Rodrigues e o documentário Langidila: Diário de um exílio sem regresso, realização de José Rodrigues e de Nguxi dos Santos, 2014. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wZt2OwQJE1U Acesso em: ago. 2021. 9 Ver também a entrevista ao irmão de Deolinda, Roberto de Almeida (ANTÓNIO, 2020, p. 161). 10 Em entrevista, Roberto de Almeida (também ele militante do MPLA e autor) expõe como encontrou e publicou o diário de Deolinda (ANTÓNIO, 2020) e o entregou, recentemente, ao Memorial Agostinho Neto, em Luanda. 8

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Para Deolinda, trata-se de recuperar a dignidade, a liberdade e a condição humana que lhes foi negada pelo colonialismo. Outros aspectos ficam para segundo plano, uma vez que compreende que “[s]ó depois de recuperar a nossa dignidade é que podemos decidir se viramos ou não cristãos” (RODRIGUES, 2003, p. 32), numa clara reivindicação colectiva de humanização, relegando para segundo plano aspectos individuais: o SER religioso e, na mesma lógica, o SER feminino. Não há alternativa possível no colonialismo: para Deolinda é “VITÓRIA OU MORTE” (RODRIGUES, 2003, p. 56). A morte é a única saída e o suicídio lhe passa pelo pensamento quando pergunta a si mesma “[n]ão será melhor suicidar-me?” (RODRIGUES, 2003, p. 44). Entre o suicídio e a luta pela vida, escolhe a derradeira. Num posicionamento humanitário e fraterno, entrega a sua vida à missão de trazer dignidade e condições de vida para os seus compatriotas (RODRIGUES, 2003, p. 55). Portanto, a luta, para Deolinda, é uma questão de sobrevivência: a saída de “uma merda de vida (…) de humilhações constantes” (RODRIGUES, 2003, p. 32) 11 . A luta é a única alternativa à impossibilidade de SER que é o colonialismo: “Como existir com estes cachorros enquanto não estivermos livres?” (RODRIGUES, 2003, p. 116), desabafa em seu diário. Face à necessidade de dignificação do coletivo colonizado, Deolinda abraça a luta unificadora que pretende forjar uma nova nação. Oliveira Pinto aponta para a premência percebida por Agostinho Neto em pensar a “unidade” como prioridade, uma vez que os contingentes do MPLA abarcavam guerrilheiros oriundos de variados grupos “étnicos”, incluindo também ‘assimilados’12, mestiços e brancos (PINTO, 2017, p. 723) onde as mulheres, embora em reduzido número, também se faziam presentes. Assim sendo, na tentativa de forjar uma identidade nacional e partidária coesa, “Neto incentivou prematuramente, no MPLA, o slogan – aliás de inspiração salazarista – ‘um só povo, uma só nação’13 [sic]” (PINTO, 2017, p. 724)14. Na luta armada, o individual torna-se trivial no que tange à construção da nação. Só a força colectiva de “um só povo, uma só nação” é compreendida como capaz de mudar o rumo da história de Angola: “[e]m nome da unidade Neto esbatia as diferenças regionais, étnicas, raciais, de género e classe. Em nome da unidade impunha o chapéu da ideologia socialista, a hegemonia não religiosa e um nova moral revolucionária.” (PAREDES, 2010, p. 13). Seguindo essa “moral revolucionária”, Lúcio Lara (que na época de Deolinda era o Secretário do Comité Central do MPLA), durante o 1º Congresso da OMA, “defendia que devia ser o partido a liderar e conduzir toda a transformação social, subordinando assim a luta das mulheres às prioridades do partido” (PAREDES, 2015, p. 60). Institui-se assim, “uma unidade colectiva (…) que exclui outros conceitos de identidade” (PAREDES, 2010, p. 13), tornando-se “o princípio da unidade (…) uma norma a seguir” (PAREDES, 2010, p. 13). Marissa J. Moorman chama a atenção para o documento “Porque Luta a Mulher Angolana?”, produzido em 1965, pelo Centro de Estudos Angolanos na Argélia (CEA), que revela as expectativas em relação à participação da mulher neste processo revolucionário: “Só o triunfo de uma Revolução que destrua as estruturas econômicas e sociais que impedem o progresso, poderá permitir e garantir a emancipação das classes oprimidas e, por consequência, da mulher.” (CEA apud MOORMAN, 2016, p. 199). São algumas as vezes em que Deolinda, no seu diário, se refere à vida sob o colonialismo como uma “merda” (RODRIGUES, 2003, p. 34 e 43). Aquele que assimilou a cutlura do colonizador. O governo colonial pretendia um processo de aculturação da população, com a finalidade de criar uma elite nativa que colaborasse na governação da colónia, tendo em vista os interesses portugueses. 13 Lema esse que está patente no hino nacional e continua a nortear as campanhas políticas do MPLA. 14 Para este historiador, “Agostinho Neto foi o político angolano que mais tomou a sério (…) o artefacto a que os discursos coloniais chamaram ‘tribalismo’” (PINTO, 2017, p. 724), usado para validar o colonialismo uma vez que, argumentavam, “se Angola se tornasse independente, depressa ficaria ‘esboroada’ (sic) pelo ‘tribalismo’ (PINTO, 2017, p. 724). 11 12

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Esta ideia, que reflete a posição de Agostinho Neto e Lúcio Lara, e do partido em geral, está alinhada àquela apontada por Barbara Evans Clements na sua exposição sobre o feminismo e a Revolução Bolshevista, onde esclarece que, neste contexto, “a libertação da mulher está subordinada à libertação do todo, os objectivos feministas aos comunistas” (CLEMENTS, 1985, p. 229)15. Esta necessidade de priorizar a união partidária, em conformidade com os objectivos partidários, é interiorizada e aceite por Deolinda: “Marx e Engels lutaram incansavelmente por essa unidade durante toda a sua vida. E foi isso que nós decidimos fazer, a nossa direcção política, o nosso partido e o nosso povo.” (RODRIGUES, 2003, p. 113). Consequentemente, em nome do “nosso partido” e do “nosso povo”, Deolinda entende ser necessário conter o seu individualismo e o seu “falatório”. Ou seja, reprime a voz que expressa o seu “sentir individual”: Eu daria tudo para controlar-me e falar o mínimo possível e só quando necessário mesmo. Os meus males são individualismo e falatório. E quando se fala demais é impossível acertar ou ficar imune. A partir d’hoje prometo esforçar-me por não falar demais: cantarolar quando a tentação for muito forte. (…) E enquanto precisar de desabafar, fazer exactamente isto: assentar tudo num papel. (RODRIGUES, 2003, p. 61).

Para Deolinda, falar é um mal que precisa de ser ‘controlado’, sente que é preciso prender a sua voz no papel, confiná-la ao diário, onde o seu EU emerge contido, privado. Pretende “evitar a todo preço falar sem que seja estritamente necessário” (RODRIGUES, 2003, p. 65)16 e “desabafar só no Diário” (RODRIGUES, 2003, p. 80), “para evitar embrulhadas” (RODRIGUES, 2003, p. 132)17. O diário de Deolinda Rodrigues torna-se assim, no receptáculo íntimo de todos os seus anseios e frustrações relacionados, não só com a luta revolucionária, mas também com a luta que travava como mulher para ser “aceite nos seus próprios termos” (PAREDES, 2010, p. 32), num espaço de domínio masculino: “Disseram-me que não vou já para Ghana porque sou mulher e o Barden não respeita senhoras. Esta discriminação só por causa do meu sexo, revolta-me. Se me apanho fora deste MPLA erudito e masculino, não volto em breve.” (RODRIGUES, 2003, p. 57) . O primeiro registo de Deolinda no seu diário, a 9 de setembro de 1956, é um “desabafo” relativamente à aceitação da sua condição feminina: “Parece aceitarem-me no movimento nacionalista, embora o Sr. Benje e outros velhos estejam com receio por eu ser mulher” (RODRIGUES, 2003, p. 25). Fica assim assinalada a sua entrada no MPLA, ao qual seguem outros “desabafos”. Muitos são os registos de um “MPLA erudito e masculino” (RODRIGUES, 2003, p. 57), onde Deolinda tenta movimentar-se: “Ontem o Lúcio [Lara] encontrou-me a falar com os companheiros e ele disse ao Samuel: “o que é que esta menina está a fazer aqui?” (…) tratei logo de sumir” (RODRIGUES, 2003, p. 110). Sumir, calar-se e assentar as suas dúvidas e frustrações no diário, são algumas das estratégias que Deolinda assume para lidar com um espaço andrógeno e musculado, onde a violência contra a mulher se faz notar, quando, por exemplo, entra em conflito com um camarada guerrilheiro: “[disse] que eu não sabia nada… que sou mulher e não valho nada fisicamente (…) que me partia a cara” (RODRIGUES, 2003, p. 65). Ou quando se sente revoltada e impotente (apesar de ser membro do Comité Director do MPLA) face ao comportamento machista dos guerrilheiros: “[o] que desgosta e revolta é a atitude deles “woman’s liberation is subordinated to the liberation of the whole, feminist goals to communist ones” (CLEMENTS, 1985, p. 229). São muitas as instâncias onde Deolinda se autocensura por “falar demais” (RODRIGUES, 2003, p. 65; 71-74; 93; 107; 115; 133). 17 São muitas as vezes em que, no seu diário, Deolinda se autocensura por falar e expressar as suas inquietações: ver, por exemplo, as páginas 71, 72, 73, 74, 81, 93, 95, 96, 115 e 133 (RODRIGUES, 2003). 15 16

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sexual demais para com as mocinhas do povo: começam logo a apalpá-las. Parece que assim estão a mobilizar o povo ao contrário” (RODRIGUES, 2003, p. 85). Na intimidade do seu diário, Deolinda lamenta-se: “Esta Revolução custa-nos tão caro! O pior é sujeitar-me a isto tudo (…) devo trabalhar dia e noite para ajudar os desajustados sociais (…) para quem a mulher é só sexo, é parlapateira, é criança que não amadurece nunca, uma criança com eterna sede de carinhos, de apalpadelas, de beijos e abraços.” (RODRIGUES, 2003, p. 65). Esse nós, a quem a revolução custa caro, pode ser entendido como o colectivo feminino, ou a “‘individualidade colectiva’ das mulheres” (MATA, 2007, p. 428), que se ‘sujeita’ às demandas do processo de libertação na nação. Esta é uma das poucas vezes em que Deolinda se posiciona fora do colectivo revolucionário do MPLA, que se queria utopicamente homogéneo. A solução encontrada por Deolinda, para que a unificação partidária e nacional se tornasse uma possibilidade, passava pelo ajuste social (RODRIGUES, 2003, p. 65 e 75), ou seja, a consciencialização de um colectivo masculino que, embora percebesse a sua subalternização como colonizado, não conseguia transpor essa lógica para depreender a subalternização da mulher18, através da violência à qual é sujeita: “O vizinho está a bater na mulher. Há exactamente um mês e um dia que ele fez isto. A pobre só grita, não se defende. Os outros vizinhos riem-se do medo dela. É tão revoltante isto tudo!” (RODRIGUES, 2003, p. 77) . A impotência que sente é incontestável. Neste momento, o que resta à mulher espancada é o grito de medo. O que resta a Deolinda é a revolta silenciada, contida no diário. Numa outra instância escreve: “Vou fazer esforços para não explodir estas dúvidas perante ninguém. Preciso ruminá-las bem em mim mesma e assentar tudo aqui [,] mas não discutí-las mais com ninguém para evitar confusões (…) Só espero que não vá parar num manicómio!” (RODRIGUES, 2003, p. 133). O aqui é o diário, onde Deolinda contém a sua voz, uma vez que “a emancipação da mulher era ancorada à revolução, à luta colonial, à luta anti-imperialista e à criação de uma sociedade igualitária” (PAREDES, 2015, p. 250). Contudo, conforme constata Paredes, Deolinda, “apesar de não falar em feminismo, as suas reflexões revelam uma consciência feminista e apontam para um feminismo africano avant la lettre” (PAREDES, 2015, p. 123)19. O seu diário expõe “a cultura machista do movimento, e [Deolinda posiciona-se], em 1964, através da escrita, no centro dos discursos sobre modernidade” (PAREDES, 2015, p. 123). A preocupação de Deolinda em confinar a sua voz ao seu diário, em prol do colectivo, mostra uma tomada de posição consciente20, que priorizava claramente a condição humana sob a condição feminina: “a nossa luta é de sobrevivência e restauração da dignidade, direitos e responsabilidades que nos cabem” (RODRIGUES, 2004, p. 112). Opta primeiro por lutar pelo lugar da nação, pela liberdade colectiva, mesmo que lhe custe a sanidade mental, “para que Angola ocupe o seu lugar no mundo” (RODRIGUES, 2004, p. 224). Paredes nota que “[n]o MPLA os homens eram dominantes (…) [e] não se apercebiam das contradições em que viviam: por um lado, usavam uma retórica de igualdade no discurso revolucionário e, por outro, exerciam uma prática que inferiorizava e subordinava as mulheres” (2015, p. 258). 19 Paredes argumenta que “No Diário as palavras feminismo e feminista estão ausentes, mas ao subverter [pela prática] hierarquias de género e ao questionar essas hierarquias, [Deolinda] expressa uma visão do mundo feminista” (PAREDES, 2010, p. 43). Ver também PAREDES, 2017. 20 Em carta escrita a partir dos Estados Unidos da América, em 1961, Deolinda pede a duas camaradas para “fazer dois pactos: a) descobrir revistas e jornais de MULHERES AFRICANAS, publicadas onde quer que fôr e, aos poucos, assiná-los. Isto não quer dizer que desprezaremos publicações femininas não africanas. b) enviarmos umas às outras artigos ou cópias deles sobre organizações e actividades femininas, etc. Que tal?” (RODRIGUES, 2004, p. 122). Este excerto aponta para o facto de Deolinda estar consciente das movimentações para emancipação feminina em África e no resto do mundo, de preocupar-se com temas femininos e de ambicionar conhecer tais publicações. Questões mais profundas relacionadas com o posicionamento de Deolinda face ao feminismo de sua época são demasiado complexas para serem abordadas neste artigo. A história do feminismo nos países africanos de língua portuguesa, as formações sociais e as estratégias de empoderamento das mulheres africanas devem continuar a ser pensadas e discutidas para melhor podermos compreender e contextualizar posicionamentos. 18

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Numa carta datada de 1961, Deolinda afirma que, face às relações de poder desequilibradas (no contexto das nações), “quando nos libertarmos, a conversa vai ser outra” (RODRIGUES, 2004, p. 111). Esta afirmação leva a crer que, talvez, após a independência, Deolinda tivesse o mesmo posicionamento face à ordem patriarcal. Ou seja, uma vez conquistado o lugar da nação, talvez passasse à ‘outra conversa’: a reivindicação do seu lugar na nação, procurando estabelecer relações de poder mais equilibradas, desta vez não no contexto político internacional, mas nas entranhas da nação que ajudou a libertar. Numa carta ao seu amigo Kanhamena, em 1961, Deolinda é explícita: “É preferível a morte em legítima defesa e para a conquista da liberdade e dignidade do que a morte passiva no silêncio imposto pelo colonialismo português e seus compadres imperialistas.” (RODRIGUES, 2004, p. 96). Prefere a morte no maquis ao silêncio imposto pelo colonialismo. Deolinda entrega a sua vida à causa anti-colonial. Em prol da criação de uma nação, resguarda a sua voz num diário e posterga o seu “sentir individual” (MATA, 2007, p. 426). Mas, num contexto de pós-independência, continuaria a confinar a sua voz feminina ao mudo diário? A morte prematura de Deolinda permite somente a possibilidade de conjunturas sobre o que viria a ser o seu papel numa Angola independente. Dada a sua personalidade insubmissa e inconformista, provavelmente seguiria a sua luta, desta vez em prol da sua “individualidade colectiva” (MATA, 2007, p. 428), usando a sua voz como arma de combate e de afirmação do seu lugar na nação.

2 A pós-independência: combater pelo lugar na nação A luta pela libertação de Angola se desenrola num cenário tumultuoso, onde os diferentes movimentos lutavam não só contra a ocupação colonial, mas também entre si e, em algumas instâncias, com agravantes conflitos internos (PINTO, 2017 e MABEKO-TALI, 2018). As negociações entre os três partidos políticos angolanos para regular a descolonização, acontecem num cenário de Guerra Fria que transforma Angola “num campo de experimentação” deste contexto belicoso internacional (PINTO, 2017, p. 738)21. Ao atingir o seu lugar de nação, a 11 de novembro de 1975, Angola é arrastada para uma guerra civil devastadora. Ficam assim adiados, por mais 27 anos de destruição, os sonhos de toda uma nação. A morte de Jonas Savimbi, a 22 de fevereiro de 2002, vítima de uma emboscada na província do Moxico, leva ao cessar-fogo. Inicia-se um período de paz que permite o retomar à esperança dos sonhos suspensos pelo conflito armado. Propulsionado pela paz, Angola experiencia um curto período de prosperidade: as exportações de petróleo e diamantes permitem uma súbita ascensão económica e, consequentemente, o início da reconstrução de um país dilacerado social, económica e estruturalmente. Mas conforme aponta Ricardo Soares de Oliveira, a ascensão do capitalismo em Angola dá-se com contornos próprios, onde a estabilização da economia engendrou a “apropriação da mesma por um conjunto de oligarcas próximos da Presidência, que monopolizaram as oportunidades de enriquecimento existentes” (OLIVEIRA, 2015, p. 49). O povo, incluindo elementos da classe média, cansados de guerra, sequiosos por ordem e preocupados em reconstruir a suas vidas, “não contestaram o status quo” 21

Portugal encontrava-se ainda no rescaldo do Golpe de Estado que derrubou o Estado Novo (a 25 de abril de 1974), realizado em Lisboa por oficiais subalternos do Movimento das Forças Armadas, os chamados “Capitães de Abril”, que confiaram a autonomia do Estado português a uma Junta de Salvação Nacional, mais tarde substituída por um Conselho da Revolução. A luta pelo poder em Portugal criou grande instabilidade política interna (PINTO, 2017, p. 739), fragilizando o exército português que, segundo Oliveira Pinto, se viu incapaz de opor os confrontos armados entre os movimentos de libertação e de fazer valer o Acordo do Alvor (assinado a 15 de janeiro de 1975, que definiu a estratégia de transferência de poder para os atores angolanos) (PINTO, 2017, p. 735-736).

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(OLIVEIRA, 2015, p. 45). O MPLA, segundo Oliveira, seguiu definindo parâmetros sociais, culturais e políticos, centralizando o poder e controlando a riqueza, apresentando “uma forma suavizada de autoritarismo” (OLIVEIRA, 2015, p. 42). Mas à medida que as condições de vida se deterioravam, o discurso de modernização do país, agora percebido com “cinismo crescente por parte da maioria dos angolanos” (OLIVEIRA, 2015, p. 50), deixou de ser “um poderoso factor de mobilização” (OLIVEIRA, 2015, p. 50). Oliveira nota como, a partir de 2012, à medida que a impassibilidade popular começa a chegar ao fim, especialmente entre os jovens: “para quem a guerra é apenas uma memória longínqua [e que] têm-se feito ouvir cada vez mais” (OLIVEIRA, 2015, p. 50). É neste contexto que a voz de Eva Rap Diva, assim como a de outros jovens rappers22, conquista espaço em Angola (LUIS, 2015), entre uma juventude cada vez mais globalizada, contestatária e inconformada23. No que diz respeito ao espaço da mulher na nova nação, Paredes chama a atenção para o argumento de Henda Ducados24, manifesto no artigo An All Man’s Show? Angolan Women’s Survival in the 30-year War (2000, p. 12), no qual “defende que no pós-independência as mulheres são percebidas como sujeitos marginais, relegadas para o lugar passivo de vítimas, sem poder de decisão política ou militar, e [que] o exercício de cidadania não lhes é reconhecido” (PAREDES, 2015, pp. 64-65). Paredes diz ainda que “Ducados considera que o machismo enraizado nos valores tradicionais africanos e nas práticas masculinistas latinas, herdadas dos portugueses, tornaram muito difícil às mulheres desafiarem o funcionamento da sociedade angolana.” (PAREDES, 2015, p. 65). A estrutura social patriarcal herdada do colonialismo manteve-se no pós-independência, e o padrão masculino continuou como paradigma de poder (PAREDES, 2015, p. 385). A “nova mulher” angolana (PAREDES, 2015, p. 253), liberta das amarras do colonialismo e não mais ‘sujeita’ (cf. Deolinda) nem ‘subordinada’ (cf. Clements) às exigências da revolução anti-colonial, precisa dar continuidade à luta, agora pelo seu lugar na nação. Para Inocência Mata, no contexto da pósindependência, a mulher retrata a sua condição feminina, expressa a sua “subjetividade feminina”: enquanto ser humano em primeiro lugar e como tal com os seus desejos (espirituais, afetivos, culturais, sexuais), e frustrações, as suas aspirações e sonhos, as suas alegrias, admirações, dores e sensações – de que a alma da mulher, com seus juízos subjetivos, toma consciência, consciência de si enquanto mulher, enquanto ser humano. (MATA, 2007, p. 432).

Na era da globalização, a arma de libertação e expressão escolhida por uma nova geração de jovens angolanas é o microfone (LUIS, 2015, p. 267). Enquanto na pré-independência Deolinda Rodrigues tentava talhar para si um lugar na guerrilha, “um projecto nacional masculino, patriarcal e androcêntrico” (PAREDES, 2015, p. 307), na pós-independência, a rapper Eva Rap Diva25 trava o seu combate no palco – ambos espaços de domínio masculino resistentes à participação feminina – onde expressa a sua condição feminina e afirma o seu protagonismo.

Rapper, aquele que produz RAP (do inglês Rhythm and Poetry | Ritmo e Poesia). Eva Rap Diva é igualmente reconhecida no espaço Português e dos PALOP de uma forma geral. Contudo e sem pretender reduzir o seu escopo de atuação, será aqui considerada somente a sua intervenção no que concerne o espaço angolano. 24 Henda Ducados é membro fundador da Rede Mulher (Rede de Género) e do Instituto Angolano de Pesquisa (http://www.c-r.org/whowe-are/people/author/henda-ducados). É filha de Mário Pinto de Andrade e de Sarah Maldoror, realizadora do filme Sambizanga (PAREDES, 2015, p. 64). 25 Eva Rap Diva é o nome artístico de Eva Marise Cruzeiro Alexandre, nascida em 1988. 22 23

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É de comum acordo entre os estudiosos de hip-hop que este é um espaço permeado de “hipermasculinidade e falagocentrismo”26 (NEAL, 2004, p. 247), onde o privilégio patriarcal foi adotado pela generalidade dos rappers masculinos, relegando as rappers femininas à margem deste movimento (NEAL, 2004, p. 247). Tricia Rose, que se dedicou a compreender o movimento hip-hop americano, que tem o rap como sua expressão poética, explica como este movimento acaba por replicar, de forma exacerbada, a lógica masculina vigente na maneira como retrata a mulher: As representações mais visíveis das mulheres negras no hip hop refletem as marcas da masculinidade convencional que usam regularmente as mulheres como adereços para impulsionar egos masculinos, tratam o corpo das mulheres como objetos sexuais e dividem-nas em grupos: uns dignos de proteção e respeito e outros não. (ROSE, 2008, p. 119)27

Apesar de terem sido relegadas para a margem do movimento hip-hop, Keyes reclama que as mulheres negras estadunidenses fazem parte da cena rap desde o seu surgimento na arena comercial (KEYES, 2004, p. 265). Keyes explica ainda que “As mulheres estão alcançando grandes avanços na música rap ao mudarem estereótipos que percebem as mulheres como artistas em uma tradição dominada por homens, e por (re)definirem a cultura e identidade das mulheres a partir de uma perspectiva feminista negra.” (2004, p. 273)28 A rapper angolana Eva Rap Diva vai ao encontro desta (re)definição da cultura e da identidade feminina apontada por Keyes. Os seus raps, suas rimas, reflectem o que pensa sobre o que é “ser mulher nos dias de hoje”29. Ao tentar (re)definir a cultura feminina, a partir de uma perspectiva feminista30, Eva procura também definir o seu lugar na nação angolana. Consequentemente, ao expressar a sua “individualidade colectiva” (MATA, 2007, p. 428) defende também um espaço para a mulher angolana. Desta forma, o seu projecto não se limita ao espaço individual, pois adota uma “dimensão comunitária” que é, em última análise, “colectiva”, conforme defende Inocência Mata para a escrita feminina na pósindependência (MATA, 2007, p. 425). Este é, portanto, o momento para proferir as “contradições e as aspirações do sentir individual” (MATA, 2007, p. 426), que acabam por reflectir o colectivo feminino. Tricia Rose expressa essa dimensão colectiva quando afirma que a presença física da rapper no palco ou a sua visibilidade nos meios de comunicação, assim como o conteúdo das suas construções poéticas, propiciam um espaço público e colectivo de reflexão feminino (1994, p. 182). O palco é a antítese do diário de Deolinda. O microfone propicia à rapper a projecção da sua voz feminina, da sua subjectividade. A experiência feminina não está confinada ao mudo diário, ela torna-se fulcral e central no discurso que expõe a luta da mulher para se definir num ambiente que lhe é hostil. Keyes explica de que maneira as “hypermasculinity and phallogocentrism” (NEAL, 2004, p. 247). The most visible representations of black women in hip hop reflect the hallmarks of mainstream masculinity: They regularly use women as props that boost male egos, treat women’s bodies as sexual objects, and divide women into groups that are worthy of protection and respect and those who are not. (ROSE, 2008, p. 119) 28 “Women are achieving major strides in rap music by continuing to chisel away at stereotypes about females as artists in a male-dominated tradition and by (re)defining women’s culture and identity from a Black feminist perspective”. (KEYES, 2004, p. 273) 29 Entrevista RTP África, programa Conversas ao Sul, 2017. (CONVERSAS…, 2017) 30 Dentro daquilo que Tricia Rose (2004, p. 303) oferece como definição de feminista: “Eu diria que uma feminista acreditava que havia sexismo na sociedade, queria mudar e trabalhava para a mudança. [Ela] ou escreveu, ou falou ou se comportou de uma forma pró-mulher, na maneira em que apoiava situações [organizações] que estavam tentando melhorar a vida das mulheres. Uma feminista sente que as mulheres são mais desfavorecidas do que os homens em muitas situações e deseja que esse tipo de desigualdade cesse” | “I would say that a feminist believed that there was sexism in society, wanted to change and worked towards change. [She] either wrote, spoke or behaved in a way that was pro-woman, in that she supported situations [organizations] that were trying to better the lives of women. A feminist feels that women are more disadvantaged than men in many situations and would want to stop that kind of inequality”. 26 27

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rappers “usam suas performances como plataformas para refutar, desconstruir e reconstruir visões identitárias alternativas (…) a música rap se torna num veículo pelo qual rappers negras buscam empoderamento, fazem escolhas e criam espaços para si e para outras sistas31.” (KEYES, 2004, p. 274)32 Portanto, ao transportar esta ideia para o contexto pós-independência angolano, ao defender para si um lugar na nação, Eva Rap Diva acaba por criar também espaços para as suas “sistas” (manas), possibilitando, nesse processo, novas articulações e lugares de enunciação. A enunciação, o empoderamento através da palavra é descrito pela rapper estadunidense Salt, do trio Salt N’ Pepa, que, em entrevista a Tricia Rose, expressa o potencial poder modificador da rapper: “As mulheres nos admiram. Elas nos levam a sério. Não é coisa de fã, é mais como um movimento. (…) Faz você perceber que tem uma voz” (ROSE, 2004, p. 305)33. De igual forma, Eva Rap Diva percebeu a força de transformação das suas “palavras com poder” (DIVA, 2014, faixa 2). Em seu ensaio Empowering Self, Making Choices, Creating Spaces: Black Female Identity via Rap Music Performance, Keyes apresenta quatro categorias de mulheres rappers conhecidas na tradição Rap estadunidense: a “Queen Mother”, a “Fly Girl”, a “Sista with Attitude” e a “Lesbian” – alertando que as rappers podem alternar entre categorias ou pertencer a mais que uma categoria em simultâneo (KEYES, 2004, p. 266). Eva Rap Diva pode ser entendida como uma “Queen Mother” (Rainha Mãe): A categoria “Rainha Mãe” é composta por rappers mulheres que se veem como ícones afrocêntricas (…) Em suas letras, eles se referem a si mesmos como (…) “Núbias Rainhas”, “mulheres negras inteligentes” ou “manas a consciencializar o povo”, sugestiva de sua identidade autoconstruída e astúcia intelectual. (KEYES, 2004, p. 266)34

Como forma de se auto-construir (e definir), Eva adotou a designação de “Rainha Nzinga do Rap”, que foi também o nome do seu primeiro trabalho a solo, indo assim ao encontro do que Keyes categoriza como “Queen Mother”: “Suas rimas abraçam o empoderamento e a espiritualidade feminina negra, deixando clara sua auto-identificação como africana, mulher, guerreira, sacerdotisa e rainha. As Rainhas Mãe exigem respeito não só pelo seu povo, mas pelas mulheres negras… (KEYES, 2004, p. 266)35 Eva Rap Diva, no seu rap “Rainha Nzinga do Rap” (RAINHA…, 2015), reivindica o respeito digno de uma rainha, num processo que visa o seu empoderamento: Isto não é um flow é a minha ginga Olhem quem chegou é a rainha Nzinga (…) Postura e sorriso são da realeza Não perco o juízo em mania de grandeza (…) É só um aviso, rainha com certeza Do inglês sisters, irmãs. “use their performances as platforms to refute, deconstruct, and reconstruct alternative visions of their identity (…) rap music becomes a vehicle by which black female rappers seek empowerment, make choices, and create spaces for themselves and other sistas.” (KEYES, 2004, p. 274) 33 “The women look up to us. They take us dead seriously. It’s not a fan type of thing, it’s more like a movement. (…) It makes you realize that you have a voice” (ROSE, 2004, p. 305). 34 The “Queen Mother” category comprises female rappers who view themselves as African-centered icons (…) In their lyrics, they refer to themselves as (…) “Nubian Queens”, “intelligent Black women” or “sistas droppin’ science to the people”, suggestive of their self-constructed identity and intellectual prowess. (KEYES, 2004, p. 266). 35 Their rhymes embrace Black female empowerment and spirituality, making clear their self-identification as African, woman, warrior, priestess, and queen. Queen Mothers demand respect not only for their people but for Black women… (KEYES, 2004, p. 266). 31 32

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A PM 44, o microfone, a nação angolana e a voz feminina Solange E. Luis (…) Já nasci com a coroa na cabeça (…) Força de vontade tá em mim, eu não cunango36 Rainha desse rap quando o microfone cango37 Batem pala de Cabinda até o Lubango (…) Rainha Nzinga do Rap, Rainha Nzinga do Rap!38

Keyes que evoca o conceito de “othermothers” (outrasmães), da socióloga negra estadunidense Patricia Hill Collins, para melhor ilustrar a postura comunitária particular a uma “Queen Mother”, conhecedora do seu poder modificador nesse trabalho de desconstrução de estereótipos e de (re)definição da cultura feminina: Outras mães trabalham em prol da comunidade negra, expressando ética de cuidado e responsabilidade pessoal que abarcam concepções de transformação e mutualidade... outrasmães da comunidade são identificadas como figuras de poder através da promoção do bem-estar da comunidade. (COLLINS apud KEYES, 2004, p. 267)39

A “Queen Mother” assume também uma postura de “othermothers”, apresentando um discurso de teor político-económico sobre os desafios enfrentados pela sua comunidade, de uma forma geral. “Um assobio meu” apresenta, à maneira de uma “Queen Mother”, a perspectiva de Eva sobre os males que afligem Angola: Enquanto o barrigudo manda vir um conhaque Lutamos como leões na cidade safari Enquanto alguém que gere o povo manda vir um Ferrari Pra ser sincera o meu problema é só um Eles deitam picanha, raspamos latas de atum E de Cabinda ao Cunene nós só queremos vacinas Nós só queremos saúde onde nem sequer há seringas "Mama Muxima" só nós resta rezar Por isso invento sorrisos para não ter que chorar Um assobio meu é pra esquecer as malambas Um assobio meu é pra esquecer nossas mágoas Um assobio meu é pra rir e não chorar Um assobio meu…40

O objetivo da denúncia social é, na perspectiva de Collins, o melhoramento do “bem-estar da comunidade”. O rap, na qualidade de poema urbano (LUIS, 2015), tem como objetivo primordial consciencializar a comunidade41. Para Tricia Rose, as rappers femininas, tal como os rappers masculinos, Cunanga, preguiçoso. Cangar, agarrar. 38 LYRICSTRANSLATE, 2017a; ver também Rainha…, 2015. 39 “Community othermothers work on behalf of the Black community by expressing ethics of caring and personal accountability which embrace conceptions of transformative and mutuality… community othermothers become identified as power figures through furthering the community’s well-being” (COLLINS apud KEYES, 2004, p. 267). 40 LYRICSTRANSLATE, 2017b. 41 Tricia Rose em Black Noise explica que “A música rap e a cultura hip hop são formas culturais, políticas e comerciais e, para muitos jovens, são as suas principais janelas culturais, sônicas e linguísticas para o mundo” | “Rap music and hip hop culture are cultural, political, and commercial forms, and for many young people they are the primary cultural, sonic, and linguistic windows on the world” (ROSE, 1994, p. 19). 36 37

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são vozes de resistência em que a temática é elemento de diferenciação, sendo o foco central de contestação no rap feminino, a política sexual (ROSE, 1994, pp. 146-7). Eva Rap Diva está consciente do seu papel de “Queen Mother” enquanto expõe, sobretudo, a condição social feminina numa Angola patriarcal e neo-liberalizada, onde a mulher – o elo mais fraco na cadeia de produção capitalista – sucumbe a quem detém o poder financeiro. Ducados revela que, em Angola, “as adolescentes frequentemente se prostituem para escapar da pobreza” (DUCADOS, 2000, p. 15)42. A prostituição, que já era um problema retratado na poesia pré-independência43, é também uma preocupação de Deolinda que desabafava no seu diário: “As moças entregam-se quase todas à prostituição aqui. (…) É preciso salvá-las” (RODRIGUES, 2003, p. 45-46). Eva Rap Diva demonstra igualmente essa preocupação com o bem-estar coletivo feminino quando, no seu rap “A Amiga” (DIVA, 2014, faixa 3), estabelece dois diálogos, um com a sua “amiga” e outro com o coletivo feminino que ouve o seu rap: “Então Eva, tás boa?” Ya, tô fixe amiga... e tu? “Eu nunca mais te vi!” A minha amiga não trabalha e tem um Q7X6 Não tem marido rico, donde vem tantos bens? Não quero ser fofoqueira, mas é intrigante Ela viaja mais que um caixeiro viajante E não faz negócios, é apenas turista Hotel de cinco estrelas, carro com motorista Dama rabuda, parece uma estrela porno A vida que ela vive é a vida que eu sonho “Na minha profissão tu sabes o que queremos” O quê? “Velhos, porque pagam mais e nos gastam menos Eu sou boa e o que é bom não é de graça” Ah é? “Só durmo com quem me abençoa com a sua massa” Sério? “Tu és bonita, perde só a cintura” Eu?! “Ponha uma tissa44 na cabeça, esquece essa postura” Não! “Uns tamancos, decotes, unhas de gel Que eu te arranjo um cota45 pra te encher de papel” Prefiro zungar46 do que juntar-me a ti Antes trabalhar que cair aí Prefiro zungar do que juntar-me a ti Prefiro zungar, prefiro zungar “[f ]emale teenagers frequently engage in prostitution to escape poverty”. A título de exemplo, vide o poema de Luandino Vieira, Canção para Luanda, com a “Zefa mulata/o corpo vendido/baton nos lábios/os brincos de lata/sorri/abrindo seu corpo” (In FERREIRA, 1997, pp. 239-240). 44 Cabelo postiço. 45 Homem mais velho. 46 Zungar: vender bens de produção na rua. 42 43

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E ela continua a tentar aliciar-me: "O cota que deu-me o X6 nem chegou a tocar-me" Ah é? "Eu só fui tomar um copo algures no Talatona" Eu também queria ter essa vida, latona47 Tu és jovem, experimenta arranjar um emprego Esquece os teus argumentos, eu não me vergo Com trabalho honesto tudo se alcança "Hum, deixa disso, isso é conversa de criança Ele comprou a casa, eu já não tô no Catambor Ele até paga a escola da minha irmã menor" Não era capaz disso, tenho a certeza Prefiro o meu salo48 pra pôr comida na mesa Prefiro andar rota, de sapatilha velha Que dormir com um cota com uma pila velha "Querida, boi velho quer capim novo" Ok capim, continua no teu jogo (…) Passados seis anos, ouvi falar da minha amiga Dizem que tá velha e que tem bexiga Agora vive com a mãe, tem duas crias Rabo já não tem, só restam as estrias Dama virou ngaxi49, dizem que tem SIDA E o boss dela já tem outra bandida É a irmã dela que anda na boca do povo Ela bem dizia, "boi velho quer capim novo" Todos nós temos uma amiga assim, não é? Elas passam a vida a dizer-nos que estão certas e nós estamos erradas Não sejas como a minha amiga Se fores, cada um sabe de si

Este rap, para além de ter uma mensagem de consciencialização feminina, vai também ao encontro do que Inocência Mata entendeu ser uma tendência da escritora no pós-independência 50 : desvelar “a responsabilidade da mulher no estado da sua condição” (MATA, 2007, p. 437). O discurso de Eva estabelece uma diferença entre a escolha da “amiga” (de prostituir-se) e a sua, na qualidade de sujeito poético, de “zungar” (trabalhar): ressaltando a responsabilidade da mulher no seu próprio destino, uma vez que “cada um sabe de si”. O sujeito poético apela ainda à amiga que mude de atitude: “Tu és jovem, experimenta arranjar um emprego”, em concordância com o que Mata entende ser o discurso feminino na pósindependência, ou seja, “um discurso que inclui o questionamento e a denúncia, dando voz e criando espaços de reflexão ao sujeito que é “silenciado”, tendo como intuito apelar à mulher (…) para uma mudança consciencializada.” (MATA, 2007, p. 437). 47 48 49 50

Mulata. Trabalho. Com má aparência. Mata refere-se a Paulina Chiziane.

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Diferente da autora que dá voz a uma personagem, a rapper oferece a sua própria voz para estabelecer um diálogo que visa promover uma “mudança consciencializada”. Eva posiciona-se no colectivo “todos nós” (falando para um colectivo que transcende o feminino), mas apela especificamente a um “tu” (claramente feminino) a quem diz “não sejas como a minha amiga”, numa abordagem reflexiva, senão didática, que reflecte uma atitude de “Queen Mother”: “droppin’ science” | consciencializando (KEYES, 2004, p. 266), apelando a uma mudança de atitude. Sobre este rap, Eva diz tê-lo feito com o intuito de ser “uma chamada de atenção para uma coisa que é real (…) estou a dar o meu conselho”51. Esta vontade de ser um veículo de mudança, está patente em “Um assobio meu” (DIVA, 2017, faixa 2): Eu quero dar à juventude uma luz que não há cá Porque resolve seus problemas com balas de AK Valores já não há cá Vivemos nessa maka52 Braços fortes não aguentam uma mente fraca E tu, mo'dred53? vê se acordas pra vida Solução dos teus problemas não tá nessa tua birra54

Eva estabelece diálogo com o coletivo nacional, a “juventude” e também com o “dred”, representante do coletivo masculino. Tricia Rose chama a atenção para a comunicação55 que a rapper institui com os seus interlocutores: “mulheres rappers (…) estão engajadas na comunicação constante com membros masculinos e negros da platéia, com rappers e, simultaneamente, apoiam e oferecem conselhos ao público feminino negro.” (ROSE, 1994, p. 181)56 A conexão pretendida por Eva serve para encorajar e suster um diálogo mais amplo com a “juventude”, mas também, de forma mais específica, com e entre coletivos femininos e masculinos e, nesse processo, contesta comportamentos e construções sexistas, conforme defendido por Rose (2004, p. 304). Em “Beleza não é tudo” (DIVA, 2017, faixa 4) Eva constitui, em simultâneo, dois diálogos com coletivos diferentes: um é encetado através da construção poética, para um coletivo masculino sexista e o outro, estabelecido através das imagens do vídeo produzido (BELEZA…, 2017), tem como alvo o coletivo feminino. Ao estabelecer um espaço de diálogo com o coletivo masculino, Eva empreende uma tentativa de mudar comportamentos sexistas, através da consciencialização deste coletivo. Portanto, a consciencialização que levará à mudança de atitudes não fica circunscrita e limitada somente ao colectivo feminino. Já Deolinda Rodrigues entendia que a mudança social passava pelo trabalho de “ajudar os desajustados sociais” (2003, p. 65)57. Esse trabalho de reajuste das relações de poder está patente nas palavras de Eva (DIVA, 2017, faixa 4):

Entrevista pessoal, 7 de agosto de 2013. Problema. 53 Do inglês dread que, em Angola ganha o sentido de amigo. 54 Do italiano, cerveja. 55 Tricia Rose apoia-se no argumento de George Lipsitz (embasado no conceito de dialógica de Bakhtin) que entende a música popular como um processo dialógico social e histórico (ROSE, 2004, p. 293). 56 women rappers (…) are engaged in constant communication with black male audience members and rappers and simultaneously support and offer advice to their young black female audiences. (ROSE, 1994, p. 181) 57 Em similar instância, Deolinda refere-se aos machistas como “desequilibrados sociais” (RODRIGUES, 2003, p. 75). 51 52

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A PM 44, o microfone, a nação angolana e a voz feminina Solange E. Luis Meu trabalho é que paga o meu Martini Não me satisfaço com essas tuas dicas mini Não tens mãos pra tocar no meu biquíni Não tens mãos pra pegar meu Lamborghini Guarda a chave, eu tenho carro Guarda a chave, eu tenho casa Meu salário não atrasa Se vacilares, ainda mobilo a tua casa

Ao posicionar-se como financeiramente independente, Eva rejeita o estereótipo de mulher objeto enquanto (re)define outros papéis para a mulher na nação. No vídeo, Eva, na qualidade de “Queen Mother”, “droppin’ science” consciencializando (cf. Keyes), aparece como professora de seis mulheres-boneca (todas têm perucas coloridas, maquiagem excessivamente colorida como se de bonecas se tratasse, sem expressões faciais emotivas e com movimentos robóticos sincronizados, enfatizando comportamentos homogéneos, quase que involuntários). Todas as mulheres-boneca estão sentadas e têm um livro chamado “Beleza não é tudo”, título do rap do vídeo (BELEZA…, 2017). Durante a aula de química, a professora Eva mistura seis componentes que se encontram em balões de fundo chato. Os balões estão rotulados de forma a explicitar seus ingredientes: inteligência, independência, autoestima, orgulho, atitude e iniciativa. O discurso de Eva é direcionado para o colectivo masculino representado pelo “tu”, o “player” (DIVA, 2017, faixa 4)58: “Beleza não é tudo, batalho pra ter o que é meu/ Olha tamo a gerir”, esse “tamo” estamos refere-se ao coletivo feminino, a gerir a sua vida sem depender do player. A mensagem de Eva é final: Ma'fucka, não confunde só Amor pra mim não é negócio Não devo nada a ninguém Sou feliz sem me vender a ninguém (DIVA, 2017, faixa 4)

Enquanto isso, no vídeo, a professora Eva acorda as mulheres-boneca e, uma-a-uma, dá-lhes a beber a sua mistura. Ao bebê-la, as mulheres-boneca transformam-se, como que num passe de mágica, em mulheres profissionais (mecânica, polícia, médica, piloto), deixando para trás comportamentos robóticos homogêneos, passando a exibir uma linguagem corporal que transmite autoestima, individualidade e empoderamento: comunicando, mais uma vez, que cabe à mulher a responsabilidade de mudança da sua condição social. Nesta tentativa de reconstruir a imagem da mulher, de a desobjectificar, de quebrar com estereótipos masculinos sexistas, Eva adota uma linguagem de baixo calão (“Ma'fucka”), tradicionalmente masculina, ao articular “as contradições e aspirações do [seu] sentir individual” (MATA, 2007, p. 426) de mulher numa sociedade patriarcal. A utilização dessa linguagem mais agressiva e típica do discurso masculino do rap, visa responder e refutar, de forma (de)terminante a relegação da mulher às construções sexistas que estabelecem relações de poder desequilibradas. Ao ostentar uma postura agressiva, Eva subverte códigos patriarcas de comportamento, desafiando o status quo enquanto equipara o seu discurso feminino (e feminista, cf. Rose) à linguagem masculina do rap. 58

A expressão player , utilizada por Eva, é reveladora das relações de poder estabelecidas no rap sexista: to play, brincar ou jogar, subentendese a utilização de um brinquedo, um objeto, que, neste caso, é a mulher.

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A PM 44, o microfone, a nação angolana e a voz feminina Solange E. Luis

Inocência Mata argumenta que as mulheres, durante o projeto comum de libertação da nação, se “cumpliciaram com o contexto, rasurando um itinerário individual e relegando para um segundo plano o grito libertário da mulher” (MATA, 2007, p. 434). Deolinda é exemplo desta cumplicidade mutiladora, quando reprime, no seu silente diário, todas as suas frustrações, todos os seus “merdas”59, “filhos da puta” (RODRIGUES, 2003, p. 116), “bestas” (RODRIGUES, 2003, p. 28), “filhos da mãe” (RODRIGUES, 2003, p. 31), “cachorros” (RODRIGUES, 2003, pp. 31, 116), “merdalhada” (RODRIGUES, 2003, p. 144), entre outros desabafos, numa linguagem considerada claramente imprópria para uma mulher metodista do seu tempo. Não só esta linguagem é utilizada publicamente por Eva, mas também amplificada pelo microfone e disseminada pelos média. Os desagrados, as contradições e as posições da rapper não são silenciadas, rasuradas e nem relegadas a um “segundo plano” (MATA, 2007, p. 434), as rimas são feitas “na cara do brada”60 (brother). O microfone intensifica o grito, conferindo volume à voz, enquanto remete a rapper para o centro do discurso. “Rimas da cara do brada”61 (DIVA, 2014, faixa 2) conta com a participação de quatro rappers femininas: Eva, Níria, Khris e G’Pamella. No vídeo produzido para este rap (DIVAS…, 2012), as rappers estão posicionadas no meio de um círculo masculino, simbolizando uma tomada de lugar no centro do discurso do rap. As “rimas” são direcionadas ao coletivo masculino sexista do rap: Como é mo62 brada, rimas na tua cara! (…) Deviam me queixar na OMA Vou espancando rappers até lhes deixar em coma Rimas na cara do brada, niggas não param a dotada Linhas são raras não travas, dicas que encaras são raras (…) Brincas, tua cara é lesada Níria é carga pesada! (DIVA, 2014, faixa 2)

Níria reverte posições, mas o espancamento do “brada” não é físico, é simbólico. Aqui a rapper extravasa publicamente a raiva que Deolinda contêm nas páginas do seu diário. As “rimas” simbolizam os arremessos que deixarão o oponente “em coma”, suficientemente espancado para ser considerado vítima de violência, ao ponto de se ir queixar à OMA (órgão que Deolinda Rodrigues ajudou a fundar e que vela pelos direitos das mulheres). Com a sua “rima” Níria inverte posições e recusa o papel de vítima, é ele, desta vez, a ter a “cara lesada”. Eva dá continuidade: Rimas da cara do brada, rimas no focinho (…) Sou incansável, inigualável, intocável, flow invejável Impecável, implacável, bifar-me63 é impensável! Rimas violentas contra wannabes64 Tô no palco e o povo grita "Mana, bis!" 59 60 61 62 63 64

(RODRIGUES, 2003, p. 30, 32, 33, 34, 43, 50, 54, 55, 115, 159 e 205) (DIVA, 2014, faixa 2). Brada, corruptela do inglês brother, irmão. LYRICSTRANSLATE, 2017c. Meu. Expressão do hip-hop estadunidense: to have a beef with someone, ter rancor, ter um problema, um desentendimento. Corruptela do inglês want to be: aqueles que querem ser, mas não são.

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A PM 44, o microfone, a nação angolana e a voz feminina Solange E. Luis E eu repito, público eu excito MCs levito, bifes não evito Sou filha desta cultura clandestina Minha rima é como tortura palestina (DIVA, 2014, faixa 2)

Eva posiciona-se como filha do rap, a “cultura clandestina” e entende-se merecedora do palco que ocupa, onde “o povo grita ‘Mana, bis!’”. Em continuidade, G’Pamella adverte, “tô com as mãos em sangue” (DIVA, 2014, faixa 2), da luta simbólica que trava pelo seu lugar no palco – que pode ser entendido como reflexivo da nação. Diz “mando nessa cena” pois entende que ganha a luta na rima: “só com o meu flow eu lhes shito” (do verbo to shit) (DIVA, 2014, faixa 2). Ao rapper masculino, derrotado nesta luta de rimas, só resta o insulto vazio: “me chama de hoe” (whore | prostituta) (DIVA, 2014, faixa 2). Khris MC continua, na mesma senda, a afirmar o lugar feminino no rap, recriando-se como “poetisa do guero” (ghetto), com uma poesia que “edifica” (DIVA, 2014, faixa 2), subentendendo-se aqui a sua própria edificação e consequentemente a do coletivo feminino, em resposta e em oposição a uma poesia que “danifica” (DIVA, 2014, faixa 2). Estas rappers tomam para si a responsabilidade de mudança usando “palavras com poder” (DIVA, 2014, faixa 2), não mais confinadas à intimidade de um diário, mas desveladas e projetadas, que funcionam como equalizadoras das relações de poder. A luta pelo lugar na nação acontece no palco: é representativa e simbólica. Em “Beleza não é tudo” (DIVA, 2017, faixa 4), Eva diz ao player: Eu sei que tu vidraste no tamanho da minha bunda Não ligues tanto ao rabo, a minha mente é mais profunda.

Ao enfatizar a sua “mente” como objeto de desejo em detrimento do seu “rabo”, Eva procura o que Rose sugere ser o objetivo do rap feminino: “redefinir suas próprias imagens sexuais”65 (ROSE, 1994, p. 170). Esta procura pela redefinição torna-se numa forma de resistência aos padrões e discursos de objetificação sexual que intentam, segundo Rose, desvalorizar e dominar a sexualidade e o comportamento sexual feminino (1994, p. 171) e assim tornar a mulher invisível e impotente. Eva não só se apropria da sua identidade sexual, mas apresenta-se financeiramente independente e em controle das suas escolhas sexuais. Em “Beleza não é tudo” Eva adverte o player: “Não sou tua empregada pra me dares o vencimento/Queres comprar amor, mas eu não vendo sentimentos” (DIVA, 2017, faixa 4). Esse posicionamento relativamente à construção da sua própria identidade sexual nunca chega a ser uma questão diretamente abordada por Deolinda. As ideias desta guerrilheira sobre este assunto vão sendo desveladas ao longo do seu Diário e nem sempre de forma coerente. Por exemplo, embora Deolinda acreditasse que “a vida para uma mulher não depend[esse] do casamento” (RODRIGUES, 2003, p. 65) e não cedesse a pressões afirmando que “[n]inguém pode obrigar-me a casar” (RODRIGUES, 2003, p. 52), o que demonstra um posicionamento pensado sob um ponto de vista feminista, Deolinda replica estereótipos relacionados com a sexualidade feminina quando diz que está “com um caráter irado cem por cento de solteirona” (RODRIGUES, 2003, p. 74), remetendo para o estereótipo da solteira histérica, quando equaciona o seu mau humor à sua condição de mulher solteira (subentendendo-se frustrada pelo celibato) e não, como seria de esperar, à sua condição de colonizada. 65

“to redefine their own sexual imagery” (ROSE, 1994, p. 170).

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Outro exemplo de como Deolinda pensa a sua sexualidade está no apontamento feito no dia 18 de setembro de 1964 (RODRIGUES, 2003, p. 66) que pode ajudar a compreender as apreensões que tinha relativamente ao controle sobre as suas escolhas, o seu corpo e a sua sexualidade. Deolinda refere-se à chegada de “11 camaradas que acabaram os estudos na Europa” (RODRIGUES, 2003, p. 66). As frases que seguem são curtas e aparentemente desconectadas, diz em seguida que “[é] preciso avançar. A luta tem que marchar. O resto é secundário” (RODRIGUES, 2003, p. 66). O que é aqui secundarizado por Deolinda? Ao priorizar a luta, que “tem que marchar”, é possível que esteja a relegar ao segundo plano os seus sentimentos, o que considera ser o “resto”? Estarão estes sentimentos relacionados aos 11 camaradas que chegaram e que parecem ser o motivo do registo no Diário? Paredes, ao tentar entender os “não-ditos, os silêncios sobre a vida sentimental” de Deolinda Rodrigues (PAREDES, 2010, p. 3) levanta a possibilidade de este silêncio ser fruto de uma educação metodista que é transferida “para a cultura política do movimento independentista onde lutou” (PAREDES, 2010, p. 3) o MPLA que, segundo o historiador Mabeko-Tali, teve predominância de dirigentes prostestantes (MABEKO-TALI apud PAREDES, 2010, p. 4). Conforme já discutido, Deolinda “defendeu a retórica da Unidade” partidária (PAREDES, 2010, p. 14) em detrimento da sua individualidade, pela luta de libertação de Angola. Deolinda reflecte assim “a nova mulher” (cf. Paredes): a sua atitude de dedicação ecoa o comportamento esperado da “Nova Mulher Soviética” (CLEMENTS, 1985, p. 220). Para Deolinda, a sexualidade parece ser uma indesejável distração. O sexo é visto como o “cumprimento do (…) dever de macho e fémea (…) coisa chata de dois viciados” (RODRIGUES, 2003, p. 143), como “atitudes maritais” (RODRIGUES, 2003, p. 145), ou como razão para desavenças (RODRIGUES, 2003, p. 155). Barbara Evans Clements, no seu ensaio The Birth of the New Soviet Woman, revela como a sexualidade feminina foi construída, manipulada e determinada ao longo da revolução bolchevista, durante a tentativa de criação da “nova mulher”. Clements afirma que “a nova mulher soviética serviu sempre ao regime” (CLEMENTS, 1985, p. 233)66. Nessa senda, Deolinda era uma dedicada servidora da Revolução: pretendia “levantar a cabeça e continuar a marchar (…) fazer o melhor pela Revolução” (RODRIGUES, 2003, p. 92). Esta dedicação não deixava espaço para pensar a sua sexualidade. Fruto de uma construção bolchevista, Clements explica como surge e o que se pretende da “nova mulher”: Nascida na Revolução e na guerra civil, a heroína soviética apareceu pela primeira vez, nos periódicos, como enfermeira, como líder política no exército e como soldado combatente. Ela era modesta, firme, dedicada, simpática, corajosa, ousada, trabalhadora, enérgica e muitas vezes jovem. Ela não pensava no seu bem-estar pessoal […] e suportava a morte, acreditando que seu sacrifício contribuía para a construção de um mundo melhor. (CLEMENTS, 1985, p. 220)67

Logo após ter dado a conhecer a chegada dos 11 camaradas que se encontravam na Europa, Deolinda escreve no seu diário uma quase repreensão a si própria: “O que preciso é de firmeza, diminuir o falatório e cortar a paciência e a confiança aos camaradas. Compreendo a camaradagem sim, mas em certos limites” (RODRIGUES, 2003, p. 66). Aquilo que não é dito por Deolinda levanta questões: “firmeza” porquê? A que “confiança” estaria Deolinda a referir-se? “Diminuir” que “falatório”? E que 66 67

“the new Soviet woman was always a servant of the regime” (CLEMENTS, 1985, p. 233). “Born in the Revolution and the civil war, the Soviet heroine first appeared in periodicals as a nurse, as a political leader in the army, even as a combat soldier. She was modest, firm, dedicated, sympathetic, courageous, bold, hard-working, energetic, and often young. She gave no thought to her personal welfare (…) and even endured death, believing that her sacrifice had contributed to the building of a better world” (CLEMENTS, 1985, p. 220).

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“limites” pretende traçar? Estará Deolinda a referir-se aos avanços sexuais dos camaradas? Para com quem ela precisa de “cortar a paciência” que tem tido? A preocupação de Deolinda com o “tabú social” (RODRIGUES, 2003, p. 129) e com a sua reputação, é manifestada quando, em outra instância, não vai à estação de comboio esperar seu primo por se preocupar com o que a “chata da sociedade pensa” (RODRIGUES, 2003, p. 129). Esta abordagem explicaria a frase: “[s]erá que esta vida da Revolução vai obrigar-me a procurar marido qualquer dia? É necessário isto?” (RODRIGUES, 2003, p. 66). A preocupação de Deolinda deixa transparecer que a sua postura revolucionária, a construção que fez de si, dentro do que entendeu ser o papel da “nova mulher”, dedicada unicamente à Revolução, à libertação de Angola, pode não ser suficiente para lhe conferir controle total sobre o seu corpo, sobre a sua sexualidade e as suas escolhas. Paira sobre ela a possibilidade de que a “vida da Revolução” a obrigue a casar, ou seja, que venha a necessitar de um marido para poder deter os avanços sexuais dos seus camaradas68. Mais uma vez, Deolinda não é aceite nos seus termos por uma Revolução que, embora a leve a secundarizar a sua sexualidade, insiste em percebê-la, antes de tudo, como um ser sexual. Deolinda, incorpora características da “nova mulher”: dando pouca importância ao seu bem-estar pessoal, ao preterir a sua vida sexual (tornando-se como que assexuada), entendendo-se primeiro como revolucionária, como instrumento de mudança e depois como mulher (CLEMENTS, 1985). Contudo, ou o coletivo masculino da Revolução entende-a como mulher, e até mesmo como “menina” (RODRIGUES, 2003, p. 110), ou dilui a sua participação no discurso coletivo, na “universalidade abstrata na linguagem, do «falso neutro»” (PAREDES, 2015, p. 253). Deolinda torna-se “invisível na dimensão discursiva e ficou na sombra de uma revolução enunciada no masculino” (PAREDES, 2015, p. 253). Assim como outras “mulheres novas” do seu tempo, “apesar de secundarizada e invisibilizada ela estava lá, […] só que não era percebida, não era vista, nem era ouvida” (PAREDES, 2015, p. 253). No decorrer da luta de libertação, Deolinda precisou combater duas vezes (cf. Paredes): primeiro para conquistar o lugar da nação angolana e em segundo contra as expectativas e os valores sociais atribuídos às mulheres do seu tempo. Ela construiu uma imagem de resistência aos limites impostos às mulheres, enquanto a sua presença, no centro da ação militar, desafiava o status quo, criando rupturas na estrutura social. Ao mesmo tempo que empunhava a sua PM 44 69 e se preparava para o combate físico que pretendia assegurar o lugar da nação com a qual sonhava, Deolinda suspendia a sua voz e identidade feminina, o seu “sentir individual” (MATA, 2007, p. 434), confinando-os ao seu íntimo diário – onde tantas vezes reiterou a necessidade de manter-se em silêncio. O seu empoderamento feminino advém, não da sua palavra, mas da utilização que faz da metralhadora, quando escreve satisfeita: “[o]ntem à noite começamos a aprender a manejar PM 44, uma delícia!” (RODRIGUES, 2003, p. 161). A PM 44 é a arma que possibilitará à Deolinda participar, de forma ativa, na conquista do lugar da nação.

3 O continuum: liberdade da nação e liberdade na nação Embora silenciada, invisível e secundarizada, Deolinda conseguiu granjear para si um lugar no exército de libertação do MPLA, um espaço indiscutivelmente masculino, que a obrigou à “reinvenção de O medo da violação é evidente quando ao ouvir um casal a fazer sexo, Deolinda resolve se proteger, num outro quarto, com uma pistola “PA”, de possíveis avanços de algum “chanfrado” excitado com a situação (RODRIGUES, 2003, p. 143). 69 Deolinda faz parte de um restrito grupo de cinco mulheres que foram as primeiras a manusear armas no MPLA e incentivou outras mulheres a fazerem treinamento militar, em outubro de 1966 (PAREDES, 2015, p. 122). 68

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si própria, exigindo-lhe que rompesse com valores ligados à feminilidade e exigindo-lhe atributos considerados masculinos, como autoridade, decisão, força, coragem, bravura e violência” (PAREDES, 2015, p. 120). Embora secundarizasse a sua voz feminina em prol da ideologia partidária, da unidade social e do processo revolucionário, Deolinda entendeu a luta anticolonial como uma oportunidade para a mulher do seu tempo, e urge: “Hoje nós as angolanas sabemos que há muito trabalho que nós podemos fazer para avançar a nossa luta, […] até o fazer parte das milícias nas sanzalas e pegar em armas para lutar contra os portugueses no maquis.” (Arquivo Lúcio Lara, Associação Tchiweka apud PAREDES, 2017, p. 405). A luta pela independência era também “a nossa luta”: o início da luta de emancipação da mulher angolana. Era uma oportunidade de resistir e de reagir aos padrões socialmente construídos de feminilidade. Era preciso questioná-los e subvertê-los como forma de dar início à construção de novas possibilidades de SER. No pós-independência, Eva dá continuidade a esse processo de ruptura e (re)definição de género iniciado por Deolinda no maquis. Não mais se cumpliciando com o contexto (MATA, 2007, p. 434), a rapper combate, no palco, pelo seu lugar na nação. Assim Eva Rap Diva procura afirmar a sua independência individual. Ou seja, “o seu objecto passa a ser o próprio «eu» -- e não o «nós», a entidade coletiva construtora da nação” (MATA, 2007, p. 429) como o era para Deolinda. Diferente do diário íntimo e velado de Deolinda, é neste espaço público e de visibilidade que, de microfone em punho, a arma desta combatente globalizada, a rapper dissemina a sua palavra, o grito libertário da mulher (MATA, 2007, p. 434) e estabelece o protagonismo da sua voz. As temáticas das suas rimas propiciam e privilegiam a subjectividade e a vivência feminina e, dessa forma, a rapper vai (de)marcando o seu lugar na nação. Conforme afirma Rose, “as rappers que tomam o palco e conquistam a admiração da multidão, sob condições altamente competitivas, representam uma intervenção substancial na performance das mulheres contemporâneas e nas identidades culturais populares.” (ROSE, 1994, p. 163)70 O microfone e o palco conferem visibilidade e projeção. A palavra difundida conduz ao empoderamento da rapper e à consciencialização da comunidade. A independência individual quer-se como catalisadora para a independência do coletivo feminino e masculino. Eva, ciente do seu papel consciencializador de “Queen Mother”, procura livrar os seus interlocutores das amarras restritivas de construções estereotipadas de género – (a)firmando a liberdade de se (re)definirem, numa clara continuidade à luta travada por Deolinda Rodrigues. É o diálogo com outras e outros rappers, com os coletivos de interlocutores (femininos e masculinos) e com a cultura dominante, que permite à rapper questionar comportamentos machistas e, sobretudo, (re)definir-se enquanto suscita novas construções identitárias. bell hooks, feminista afro-estadunidense, afirma com clarividência que “a nossa luta pela libertação só tem significado se ocorrer dentro de um movimento feminista que tem como objetivo fundamental a libertação de todas as pessoas”. (HOOKS, 1982, p. 13)71 Assim como bell hooks, tanto Deolinda como Eva compreenderam que a liberdade individual assenta na consciencialização para a liberdade coletiva, estabelecendo assim um continuum entre a liberdade da nação e a liberdade na nação.

“[w]omen rappers who seize the public stage and win the crowd’s admiration under these highly competitive conditions, represent a substantial intervention in contemporary women’s performance and popular cultural identities” (ROSE, 1994, p. 163). 71 “[a]lthough the focus is on the black female, our struggle for liberation has significance only if takes place within a feminist movement that has as its fundamental goal the liberation of all people” (HOOKS, 1982, p. 13). 70

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COMO CITAR (ABNT): LUIS, S. E. A PM 44, o microfone, a nação angolana e a voz feminina. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 24, n. 1, p. 44-68, 2022. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n12022p44-68. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/16295. COMO CITAR (APA): Luis, S. E. (2022). A PM 44, o microfone, a nação angolana e a voz feminina. Vértices (Campos dos Goitacazes), 24(1), 44-68. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n12022p44-68. 68 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.24, n.1, p. 44-68, jan./abr. 2022

















Submetido em: 7 set. 2021 Aceito em: 18 fev. 2022

DOI: 10.19180/1809-2667.v24n12022p84-103

“No princípio era o verbo”: a escrita de Resistência e identitária nas produções da Casa dos Estudantes do Império Lucas Esperança da Costa https://orcid.org/0000-0002-8605-2017 Doutor em Letras: Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Professor de Literatura Brasileira e Coordenador do Curso de Letras na Faculdade Santa Marcelina – Muriaé/MG – Brasil. E-mail: l.esperanca@yahoo.com.br.

Resumo No coração da metrópole, entre os anos de 1944 e 1965, a Casa dos Estudantes do Império (CEI) foi responsável pela formação de uma parte da intelectualidade africana que lutou contra o colonialismo português em África. Personalidades como Amílcar Cabral, Agostinho Neto, entre outros, se transformariam em personagens fundamentais nessa luta contra a opressão. O objetivo deste artigo é analisar alguns poemas produzidos por membros da Casa e que estão compilados nas obras Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, tendo como destaque os escritores angolanos. Ademais, para uma melhor compreensão, fazse necessária uma contextualização histórica da Casa e do seu papel na formação de uma consciência anticolonial e identitária para esses membros, que ecoaria futuramente em seus países de origem. Palavras-chave: Poesia anticolonial. Casa dos Estudantes do Império. Identidade.

“In the beginning was the Word”: writing of Resistance and identity in the productions of the House of the Students of the Empire Abstract In the heart of the metropolis, between 1944 and 1965, the House of the Students of the Empire was responsible for the formation of a part of the African intellectuality that fought against Portuguese colonialism in Africa. Personalities such as Amílcar Cabral, Agostinho Neto among others would become fundamental characters in this fight against oppression. The aim of this article is to analyze some poems produced by members of the House which are compiled in the Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império, highlighting Angolan writers. Moreover, for a better understanding it is necessary a historical contextualization of the House and its role in the formation of an anticolonial and identity consciousness for these members, which would echo in the future in their countries of origin. Keywords: Anticolonial poetry. House of the Students of the Empire. Identity.

“En el principio era el verbo”: la escritura de Resistencia e identidad en las producciones de la Casa de los Estudiantes del Imperio Resumen En el corazón de la metrópolis, entre 1944 y 1965, la Casa de los Estudiantes del Imperio (CEI) fue responsable de la formación de una parte de la intelectualidad africana que luchó contra el colonialismo portugués en África. Personalidades como Amílcar Cabral, Agostinho Neto entre otros se convertirían en personajes fundamentales en esta lucha contra la opresión. El objetivo de este artículo es analizar algunos poemas producidos por miembros de la Casa y que se compilan en las obras Antologías de Poesía de la Casa de Estudiantes del Imperio, teniendo como protagonistas a los escritores angoleños. Además, para una mejor comprensión es necesaria una contextualización histórica de la Casa y su papel en la formación de una conciencia anticolonial e identitaria para estos miembros y que resonarán en el futuro en sus países de origen. Palabras clave: Poesía anticolonial. Casa de los Estudiantes del Imperio. Identidad.

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“No princípio era o verbo”: a escrita de Resistência e identitária nas produções da Casa dos Estudantes do Império Lucas Esperança da Costa

1 Introdução No princípio era o Verbo […] Ele estava no princípio […] Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez. Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens. E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam (BÍBLIA JOÃO, 2018, p. 1-5).

Utilizar uma passagem bíblica para iniciar um debate talvez possa ser mal interpretado por vários motivos. O primeiro seria a laicidade do trabalho acadêmico, porém advirto que o teor do trabalho não possui cunho doutrinário. Segundo, sendo um texto que analisa textos africanos, utilizar o texto do colonizador poderia reforçar a imposição cultural ocorrida nos países de África. No entanto, o que proponho é uma provocação, um despertar para a reflexão a partir do texto do colonizador. Esse excerto pertence ao evangelho de João e remete para o Gênesis, a origem do mundo, segundo a visão judaico-cristã. Em sua etimologia, “verbo” origina-se do latim verbum, que significa palavra. Depreende-se, assim, uma interpretação do uso da palavra como elemento de criação, capaz também da libertação contra as trevas. Dessa forma, compreende-se a importância da palavra na vida do homem e que sem ela não há história. É a partir dessa concepção que penso a produção literária da Casa dos Estudantes do Império, doravante Casa, e o modo como os seus representantes se serviram da palavra para a construção da identidade nacional, como a palavra foi instrumento de luta contra o fascismo-colonialismo português a partir dos anos de 1940. É pela palavra poética que se difunde a ideia de soberania, de liberdade e de resistência às imposições vindas de Portugal. Desse modo, nota-se quão importante e quão forte foram as palavras utilizadas por aqueles estudantes do império nesse processo de conscientização. Além disso, os movimentos que romperam o silêncio que imperava nas colônias não eram algo recente. Observa-se ao longo da história que muitas manifestações insurgiram contra as práticas opressoras europeias visando à consciencialização sobre a situação das colônias, especialmente a condição de exploração e a desumanização dos povos negros. Valer-se da palavra foi necessário para resistir, lutar, preservar e afirmar a identidade daqueles povos. Destaca-se, entre os muitos movimentos no século XX, a Negritude, que aparece como uma grande influência para os escritores que frequentavam a Casa. Dessa forma, é com fundamento na poesia produzida pela Casa e na influência do movimento da Negritude que se objetiva compreender como a palavra poética foi utilizada como instrumento de luta e resistência, de consciencialização e afirmação da identidade, sobre o que esse trabalho discorrerá. Para isso, faz-se necessário apresentar, num primeiro momento, um breve panorama histórico sobre a Casa, destacando seus objetivos e o papel que assume na construção da independência dos países africanos de língua portuguesa. É preciso também que se defina a importância do movimento da Negritude, sua reivindicação e sua influência na formação de poetas e líderes que insurgiram contra o fascismocolonialismo português. Por último, como a obra poética refletiu esse contexto histórico e tornou-se essa voz que resistiu, chamou à luta e rompeu a opressão. Como afirma Aimé Césaire, “voz cheia, voz ampla, serias nosso bem, nossa ponta de lança” (CÉSAIRE, 2012, p. 35).

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2 A Casa dos Estudantes do Império: um breve panorama histórico Imortalizada nas palavras de Pepetela, em A geração da utopia (1992), a Casa dos Estudantes do Império (CEI) foi fundada em 1944, durante o período salazarista em Portugal, com o apoio do Ministro das Colônias Francisco Vieira Machado. É importante notar que a Casa surge da união dos movimentos dos estudantes do Império um ano antes, com a criação da Casa dos Estudantes de Angola e contava com a proteção do professor Marcelo Caetano como o Comissário Nacional da Mocidade Portuguesa. A partir da fundação da Casa de Angola, outros estudantes do império fundam suas Casas como Moçambique, Cabo Verde, Índia ou Macau. Assim, no verão de 1944, o Ministro das Colônias unifica todas as Casas em uma só, que se situava na Avenida Duque de Ávila, no 23, em Lisboa. Com o passar dos anos surgiram também Casas em Coimbra e no Porto. Para compreender o surgimento da Casa, é preciso contextualizá-la historicamente. Segundo Carlos Ervedosa, em Roteiro da Literatura Angola (1974), o período pós-II Guerra valorizou os produtos tropicais, especialmente o café, originando as primeiras fortunas em Angola. Durante essa intensificação das atividades econômicas nas colônias, observa-se, também, o aumento da migração de portugueses para África. Nesse contexto, percebe-se o aparecimento de uma elite colonial que enviava seus filhos e filhas para estudarem em Portugal em busca de uma formação universitária. Acerca desses estudantes, em “A CEI no contexto da política colonial portuguesa”, Fernando Rosas destaca que: Os estudantes da Casa dos Estudantes do Império são, […] na sua maioria, filhos de brancos, de colonos brancos, de quadros da administração branca, também alguns mestiços e, no início, um pequeno número de negros – até porque isso correspondia às possibilidades reais de as famílias das colónias mandarem seus filhos estudar na Universidade em Lisboa ou outros estudos, o que correspondia a uma grande despesa e a um grande investimento que só uma elite muitíssimo restrita tinha a possibilidade de pagar, ainda mais nos anos 40 (ROSAS, 2015, p. 17).

Ao longo dos anos, observam-se transformações no perfil ideológico da Casa. Incialmente, afirma Ângela Coutinho, a Casa “tinha como principal objetivo dar apoio material aos estudantes universitários, originários das colónias portuguesas nos continentes africanos e asiáticos e enquadrá-los ideologicamente” (COUTINHO, 2017, p. 115). Margarida Calafate Ribeiro complementa que “a Casa dos Estudantes do Império foi criada pelo Estado Novo, nos anos quarenta, com o objetivo de formar, na então metrópole, as elites que iriam administrar o império africano português” (RIBEIRO, 2017, p. 197). Contudo, a partir dos anos de 1950, a Casa subverte as expectativas do regime salazarista, passando a atuar contra a violência do regime colonial, a favor da valorização de uma identidade cultural africana, além de apoiarem e lutarem pela autodeterminação de seus países. Em sua síntese histórica, Cláudia Castelo afirma que a Casa se impõe “como um importante espaço cultural e político de contestação do salazarismo e do colonialismo, onde se reuniam os estudantes e os intelectuais das colónias que viviam na metrópole” (CASTELO, 2015, p. 28). Castelo acrescenta que foi na Casa que “se formaram politicamente alguns dos futuros dirigentes e membros dos movimentos de libertação: Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos, Agostinho Neto, Mário Pinto de Andrade, Vasco Cabral” (CASTELO, 2015, p. 26). Com o aumento das atividades políticas e a intensificação da repressão aos movimentos contra o salazarismo, a Casa e os seus membros passaram a ser vigiados pela PIDE (Polícia Internacional de Defesa do Estado). Em seu testemunho, Jorge Querido afirma que, naquela época, “a Casa dos Estudantes do Império era um dos poucos oásis de democracia e de liberdade que ainda sobreviviam no vasto deserto

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colonial-fascista” (QUERIDO, 2015, p. 117). Ela engendraria o espírito de uma geração tendo papel fundamental na formação individual de seus membros, formação essa que iria fortalecer o anseio pela liberdade de seus países e uma valorização identitária. Querido complementa que a Casa era uma autêntica instituição de educação informal que complementava e orientava a formação dos estudantes africanos, incutindo-lhes valores como os de liberdade, de democracia, de tolerância e, sobretudo, a nós africanos, despertava-nos para a nossa própria identidade e ensinava-nos como combater a alienação mental e cultural provocada por séculos de dominação colonial (QUERIDO, 2015, p. 117).

Esse aumento das atividades intelectuais e oposicionistas ao governo fascista-colonialista de Salazar promovido pelos integrantes da Casa fez com que, em 1952, o governo nomeasse uma comissão administrativa que interviria até 1957. Além de Lisboa, a Casa de Coimbra também passa pelo mesmo processo de intervenção. Observa-se nesse período o desligamento de muitos associados temendo a repressão do governo. Fernando Rosas afirma que, apesar da interferência do governo, “a Casa mantém os seus serviços assistenciais, mas do ponto de vista do seu activismo, da sua intervenção e da sua prática cultural conhece um certo abrandamento” (ROSAS, 2015, p. 20). Com o fim da intervenção em 1957, a Casa passa novamente a ser administrada por associados eleitos, porém o governo exigia a sanção de novos estatutos que eliminassem as separações por colônias no interior da Casa. Essa unificação visava arrefecer os ideais do separatismo independentista que ganhava força naquele momento. Além disso, Rosas destaca que era “obrigatória a consagração, como para todas as associações de estudantes, da neutralidade política, religiosa e rácica por parte da Casa dos Estudantes do Império” (ROSAS, 2015, p. 20). Com esse intuito, o governo reforça a imagem de uma administração ideologicamente unida entre a metrópole e as colônias, como o slogan adotado de um único país do Minho a Timor. Reestabelecida a normalidade com eleições democráticas em 1958, percebe-se uma mudança nas atividades da Casa com o intuito de fomentar uma consciência anticolonial, especialmente a partir de colóquios sobre o tema e produções literárias. Nesse período, cria-se a seção editorial que visava à publicação de textos que contribuiriam para a formação da identidade cultural e política. Segundo Inocência Mata, em A Casa dos Estudantes do Império e o lugar da literatura na consciencialização política (2015), “As publicações com a chancela da CEI ilustram bem esse desígnio tão transnacional de congregação de esforços de disseminação de imagens não coloniais que contrariassem as lógicas subalternizantes que subjaziam às representações de África em produções de africanos e metropolitanos.” (MATA, 2015, p. 5). Assim, a “Colecção de Autores Ultramarinos” surge a partir desse processo do despertar da consciência identitária e crítica, valorizando o sentimento de nacionalidade, fugindo do exotismo literário produzido até então pela visão do europeu. Nesse período ainda, são também organizadas as antologias Poesia em Moçambique: Separata da Mensagem (1951), Poetas Angolanos (1959), Poetas de Moçambique (1960), Poetas Angolanos (1962), Poetas de Moçambique (1962), Poetas de S. Tomé e Príncipe (1963). Essas publicações, afirma Rosas, tornam-se “muitíssimo importantes no sentindo da formação de uma consciência, de uma identidade nacional, de uma consciência anticolonial” (ROSAS, 2015, p. 20). Ele complementa que havia a necessidade de criar uma consciência contrária àquela que era propalada até aquele momento.

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Alfredo Margarido, em “A literatura e a consciência nacional”, que compõe um dos textos críticos das Antologias, destaca o papel fundamental da produção desses escritores associados à Casa e ressalta a função desses textos. Para o crítico e um dos escritores que compõem a Colecção dos Autores Ultramarinos, o que estava em jogo naquele momento era a necessidade de assegurar a autonomização dos instrumentos culturais que, permitindo a afirmação da capacidade criadora, fornecesse ao mesmo tempo os alicerces a uma consciência nacional cada vez mais liberta do peso dos obstáculos colonialistas. Estávamos também convencidos de que a produção literária depende do quadro ideológico em que é elaborada, e não hesitámos em pôr em evidência o laço íntimo que a unia às escolhas sociopolíticas. Esta posição permitia, entre os mais, definir o laço que associava a criação literária num determinado momento, à consciência nacional em elaboração. (MARGARIDO, 1994a, p. 15).

Esse posicionamento ideológico dos associados ganha mais força no início dos anos de 1960, demonstrando uma mudança nas atividades políticas dos estudantes africanos que se apresentavam mais conscientes e decididos a intervir em prol dos seus países. Associaram-se a essa consciencialização as lutas e os movimentos independentistas em África contra os regimes coloniais europeus. As independências em África “vieram intensificar o debate ideológico, o fermento nacionalista actuou junto dos estudantes da CEI que participaram entusiasticamente nesse momento” (FREUDENTHAL, 2015, p. 167), ressalta Aida Freudenthal, em “Um olhar sobre a CEI”. Em novembro de 1960, publicam, assinado por estudantes africanos, o panfleto “Mensagem ao Povo Português”, no qual eles denunciavam violações e abusos praticados nas colônias, defendendo, dessa forma, o fim do regime colonialista em seus países. Entre alguns pontos da “Mensagem” estão a denúncia do trabalho forçado nas colônias, o tráfico de trabalhadores para as minas da União Sul Africana, o problema da fome que acometia as colônias, a repressão das forças militares, o massacre de indígenas em São Tomé e a inexistência de um sistema de educação adequado. O conteúdo da “Mensagem ao Povo Português” mobilizou a PIDE e o governo português, que, novamente, passou a monitorar os movimentos da Casa. Em dezembro, às vésperas da guerra colonial, uma nova Comissão Administrativa é designada para a Casa, com a finalidade de supervisioná-la até que saia a decisão sobre o encerramento de suas atividades. Com a intensificação da perseguição aos seus membros, em 1961, há uma fuga de um grupo de estudantes, em sua maioria angolanos, de Portugal. Na ocasião, a PIDE fez um relatório, enviado aos principais Ministérios, afirmando que a Casa era responsável pela organização da fuga e exigia o seu fechamento imediato. Contudo, o fim da Casa só ocorreria em 1965 durante uma invasão da PIDE, tendo todo seu patrimônio sido transferido para a sede da polícia política. “A Casa é completamente esvaziada, saqueada e encerrada” (ROSAS, 2015, p. 22), como ressalta Rosas. Ainda nas palavras de Rosas, faz-se necessário complementar que a CEI é um processo, do ponto de vista do seu estudo histórico, muito curioso porque é o processo de uma entidade que se transforma no seu contrário. Quer dizer, o regime criou uma Casa dos Estudantes do Império para criar uma elite colonial fiel e a Casa dos Estudantes do Império cria uma elite dos que vão ser os movimentos contra a política colonial do império. E, portanto, torna-se um centro formador de parte da elite dos movimentos de libertação nacional, quer dizer, frustrando completamente esse projeto inicialmente concebido para ser um alfobre dos ideólogos e continuadores da política do regime no que tocava à política, ao sector africano (ROSAS, 2015, p. 22-23).

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3 Negritude: a influência identitária e anticolonial Ao falar sobre o papel da Casa na formação identitária e da consciencialização política dos jovens estudantes africanos, especialmente entre os anos de 1944 e 1965, Edmundo da Rocha destaca que, desde a sua fundação, várias gerações imprimiram o seu ideário político; no entanto, nesse período, o contato com escritores e intelectuais que se destacavam pelo discurso anticolonialista e de formação identitária foi fundamental na formação daquele grupo. Desse modo, destaca-se o contato com escritores como Sartre, Élaud, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Langston Hughes e Aimé Césaire. Além disso, esses jovens observam os movimentos políticos independentistas em outros países africanos, como o Egito, o Gana, etc. Para Rocha, esses acontecimentos “tiveram um impacto importante nas consciências dos jovens oriundos de países ainda colonizados por Portugal e que permitiram modificar as suas atitudes e comportamentos” (ROCHA, 2015, p. 105). No decorrer dos anos, a Casa se africaniza. Estudantes negros e mestiços pertencentes a uma pequena burguesia africana chegavam para realizar seus estudos e viam no curso superior a possibilidade de ascensão social. Além disso, Rocha ressalta que ocorre um “processo progressivo de afirmação de uma identidade própria, da tomada de consciência das diferenças históricas, culturais e sociais e também a necessidade de organização e prática antifascista primeiro e, mais tarde, anticolonialista” (ROCHA, 2015, p. 105). Em entrevista dada, Manuel dos Santos Lima apresentou a ambiguidade que a Casa demonstrou ao longo dos anos de seu funcionamento. Segundo ele, a Casa haveria de ser um instrumento do governo português para demonstrar a sua força sobre as colônias, porém tornou-se uma grande força na luta contra o colonialismo-fascismo. Ademais, Lima reforça a ideia da Casa como lugar de debate e de consciencialização dos problemas enfrentados tanto em Portugal, como, sobretudo, nas colônias. O autor complementa que o debate estava longe de ser homogêneo, conviviam pontos de vista variados e nessa mesma Casa dos Estudantes do Império, reuniram-se involuntariamente os futuros carrascos e as futuras vítimas. Sempre houve disparidades… É absolutamente falso pensar que, porque um centro de intercâmbio e de troca de ideias, fosse algo em que houvesse unidade ou semelhança entre os componentes que frequentavam a Casa (LIMA, 2015, p. 153).

Cabe destacar que esse processo de consciencialização anticolonialista e de posicionamento identitário passou pelo discurso de outros escritores anticolonialistas também. Como referido por Lima, os pensamentos de Langston Hughes, Aimé Césaire e Sartre eram conhecidos entre o público que frequentava a Casa. Esses escritores, entre outros, propunham a reivindicação de uma identidade negra que transparecesse os valores identitários próprios, longe do discurso colonialista de exotização, de subalternização e da superioridade europeia. As obras literárias que se depreenderiam dessa tomada de consciência denunciavam essas questões e propunham uma revalorização do ser negro. O filósofo francês Jean Paul Sartre, em seu texto “Orfeu Negro” (1948), destaca a necessidade da consciência do sujeito negro para que possa se libertar da visão colonial e lutar contra as forças da opressão, colocando-os como vítimas de um processo histórico. Sartre afirma que “o preto sofre o seu jugo, como preto, a título de nativo colonizado ou africano deportado. E, posto que o oprimem em sua raça, e por causa dela, é de sua raça, antes de tudo, que lhe cumpre tomar consciência” (SARTRE, 1960, p. 111). Tomar consciência de sua raça é para ele o ponto central para a luta contra os sistemas de opressão colonial. O filósofo reitera que “o negro não pode negar que seja negro ou reclamar para si esta abstrata humanidade incolor: ele é preto. Está,

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pois, encurralado na autenticidade: insultado, avassalado, reergue-se, apanha a palavra ‘preto’ que lhe atiram qual uma pedra; reivindica-se como negro, perante o branco, na altivez” (SARTRE, 1960, p. 111). É esse tomar da palavra preto para si e transformá-la em resposta ao homem branco que Sartre define como a consciência de raça do ser, da sua negritude. Sartre ressalta que esse processo de tomada de consciência sobre a negritude é um caminho que passa pela consciência individual da sua condição e depois transforma-se numa busca pelo despertar coletivo. Pode-se observar, desse modo, o papel da literatura nessa libertação. O filósofo afirma que o preto que chama seus irmãos de cor a tomarem consciência de si próprios tentará apresentar-lhes a imagem exemplar de sua negritude e voltar-se-á para a sua própria alma a fim de aí captá-la. Ele quer ser farol e espelho concomitantemente; o primeiro revolucionário será o anunciador da alma negra, o arauto que arrancará de si a negritude para estendê-la ao mundo, meio profeta, meio guerrilheiro, em suma, um poeta na acepção precisa da palavra vates. E a poesia negra nada tem em comum com as efusões do coração: é funcional, corresponde a uma necessidade que a define exatamente (SARTRE, 1960, p. 113).

Para entender-se enquanto sujeito negro e livrar-se das condições que foram impostas por um pensamento colonial, é necessário um processo de “deseducar-se” quanto a esses discursos que desde sempre foram propalados pelos países colonizadores. Outro escritor que defende a autodeterminação enquanto sujeito negro e as independências dos países que sofreram com a colonização é Aimé Césaire. Ele defende, primeiramente, a compreensão da situação colonial para iniciar a tomada de consciência enquanto sujeito. Em Discurso sobre o colonialismo, ele propõe que é preciso “estudar como a colonização funciona para descivilizar o colonizador; para brutalizá-lo no sentido apropriado da palavra, degradá-lo para instintos soterrados, cobiça, violência, ódio racial, relativismo moral” (CÉSAIRE, 2020, p. 17). Desconstruir a imagem do processo civilizatório do colonizador europeu e entendê-lo como método de barbárie, subjugação, violência e racismo, escondido muitas vezes sobre dogmas religiosos, torna-se vital para desfazer a imagem do sujeito colonizado e a consciencialização enquanto sujeito histórico capaz de alterar a sua imagem e a imagem de seus pares. A partir de 1935, Césaire juntamente com Léon-Gotran Damas e Leopold Sédar Senghor difundem a luta pela recuperação do passado negro que, segundo eles, era a “única maneira daqueles que foram marcados com o ferro quente da infame escravidão racial se encontrarem ontologicamente”, afirma Carlos Moore (MOORE, 2010, p. 13). Ao organizar e prefaciar a obra Discurso sobre a Negritude, Moore apresenta os principais pontos de destaque no pensamento do movimento da Negritude, movimento que se cristalizou em seus aspectos literários e políticos e pela ação conjunta desses três escritores. Ao longo de seu prefácio, Moore destaca a ancestralidade do movimento e recorda que desde a Revolução do Haiti, entre os anos de 1791 e 1804, há uma preocupação com uma luta antirracista, anticolonialista e anti-imperialista. Acrescenta que outros movimentos intelectuais foram responsáveis pelo amadurecimento do pensamento de Césaire e demais, como o Panafricanismo e o Harlem Renaissance, além de intelectuais que debatiam sobre o tema. Moore afirma que “Negritude pode ser apreendido como o fruto do amadurecimento gradativo de toda uma linhagem de pensamento, de ambos os lados do Oceano Atlântico, sobre a condição dos africanos no seu continente e de seus descendentes na diáspora” (MOORE, 2010, p. 8).

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Em 1935, Césaire, Senghor e Damas fundam a Revista L’Étudiant Noir (O Estudante Negro) pela qual disseminariam a luta anticolonial e as reivindicações negras no espaço francófono. Lutando contra a hierarquização imposta pela visão europeia em desfavor dos negros, defendiam a adoção de uma identidade racial negra, postulada pelos próprios negros, como forma de luta e resistência contra essa hierarquização. Moore explica que o reencontro do negro não se daria na enunciação de mágicas frases universais, cuja abstração, no que diz respeito à cultura e identidade, rivaliza com o vazio ontológico. Dar-se-ia através do re-enraizamento que, para ser fecundo, teria que estar inserido numa trama verdadeira e concreta: a trama especificamente africana, desde as primícias autônomas até o presente de luta contra um estatuto infamante e alienador (MOORE, 2010, p. 15).

Em 1939, Césaire publica Cahier d’un retour au pays natal (Caderno de um retorno ao país natal), um poema-manifesto que conclama a Negritude enquanto movimento, pensamento e ação. A obra convida a um retorno afetivo e espiritual à Mãe África de modo voluntário, a fim de recuperar as raízes africanas multisseculares. Segundo Moore, o Caderno apresentaria uma transformação do plano individual para o plano coletivo, não apenas a libertação do indivíduo, mas um ato político que libertaria todos os negros. Assim, essa transformação é marcada pelo “gesto de emancipação individual e reinvenção pessoal, para uma reivindicação coletiva assentada numa enunciação teórica; de um protesto localizado, voluntariamente confinado ao literário e ao artístico, a uma proposta política de revolta planetária” (MOORE, 2010, p. 17). Além disso, o Caderno mostra-se contrário a qualquer tipo de presunção assimilacionista, reivindicando o protagonismo negro como “a única via possível para a descolonização política e mental das sociedades negras sob a dominação ocidental” (MOORE, 2010, p. 17). Em seu “Discurso sobre a Negritude”, na Universidade da Flórida, em 1987, Césaire reafirma o conceito revolucionário da Negritude, afirmando que não se trata de um movimento passageiro quanto ao seu caráter estético-filosófico, mas de uma forma consciente contra o racismo, um reposicionamento frente às relações humanas. Nas suas palavras, Césaire afirma que A negritude resulta de uma atitude proativa e combativa do espírito. Ela é um despertar; despertar de dignidade. Ela é uma rejeição; rejeição da opressão. Ela é luta, isto é, luta contra a desigualdade. Ela também é revolta (CÉSAIRE, 2010, p. 109).

É nesse processo de revolta, especialmente, que a Negritude se insurge contra o reducionismo imposto pela colonização europeia. Assim, a Negritude visa o reenraizamento do sujeito negro na sua terra, na sua história, na sua cultura, de forma a torná-lo capaz de reabilitar os seus valores por si mesmo. Césaire advoga “a apropriação do nosso passado por nós mesmos e, por meio da poesia, por meio do imaginário, por meio do romance, por meio das obras de arte, a fulguração intermitente do nosso possível dever” (CÉSAIRE, 2010, p. 110). Assim, mais do que defender os valores da etnicidade, Césaire defende a identidade dos povos negros. Desse modo, ele define a identidade como algo “fundamental, aquilo sobre o qual todo o resto se constrói ou pode se construir: o núcleo duro e irredutível; o que dá a um homem, a uma cultura, a uma civilização sua forma própria, seu estilo e sua irredutível singularidade” (CÉSAIRE, 2010, p. 112). Para ele, depois de muitos séculos de aprisionamento dessa identidade ou por vezes negação,

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é chegado o momento da libertação. “Enfim liberada, essa identidade se afirma, para ser reconhecida”, conclui o pensador. Em busca da liberdade poética e política, da consciência sobre a sua condição enquanto negros oriundos de um processo colonial europeu, os estudantes reunidos sob o teto da Casa dos Estudantes do Império produziram obras que expressavam a valorização do ser negro, agora, a partir do ponto de vista negro, não mais as representações europeizadas e exotizadas que colocavam esses sujeitos num lugar de subalternização, no qual sua produção artística e cultural era vista como nula ou, em sua maioria, era silenciada. Esses escritores insurgem-se contra o assimilacionismo, contra a política do “bom negro”, aquele que se desaculturava para tornar-se branco. No entanto, por mais que negassem a sua raça, a sua negritude, permaneciam sendo vistos como diferentes, como não enquadrados nos padrões europeus. É sob a influência da Negritude e de muitos outros movimentos estético-filosóficos que esses estudantes alcançam a consciência de si, libertando-se através das suas obras e desejando libertar a coletividade. É pela negritude que se empoderam nessa luta contra o fascismo colonialista, em prol da autodeterminação dos seus países. Tanto as Antologias de Poesia da Casa dos Estudantes do Império quanto a Colecção de Autores Ultramarinos respondiam a esse ideal de libertar-se para libertar todos. A premissa da construção dessa nova imagem está presente nessas obras, como os organizadores da nova edição das Antologias afirmam: Cremos desse modo proporcionar um melhor entendimento de identidades que se estavam forjando, em S. Tomé e Príncipe, Angola e Moçambique. Esta opção sublinha a génese das culturas nacionais e harmoniza-se com a intenção subjacente da CEI, ao divulgar uma nova imagem de África e dos Africanos, afrontando a ideologia colonial dominante (FREUDENTHAL et al., 1994, p. 5).

Observamos ao longo dos textos a necessidade desses escritores de rever o passado históricocultural e, a partir da palavra, reafirmar a sua identidade buscando expulsar os colonos brancos desses espaços. Margarido destaca a importância do papel desses escritores colonizados na tentativa de inverter o jogo colonial e de afirmarem a sua ideologia a partir da palavra. Ele explica que cabe sempre aos dominados inverter o processo de dominação: o dominador nunca renuncia voluntariamente ao seu poder. No caso das relações entre africanos e portugueses, cabia aos africanos, eventualmente apoiados por uma minoria branca europeia ou branca, fornecer a prova da sua competência no plano do conhecimento. Porquê tê-lo feito primacialmente no campo da produção literária? Verifica-se neste caso uma evidente simetria: se a superioridade do branco colonizador se apoiava na escrita o colonizado devia recuperá-la para a transformar em arma permitindo a sua auto-afirmação, e expulsando o colono dos espaços culturais africanos (MARGARIDO, 1994a, p. 10).

Dessa forma, tais escritores assumem, por meio da literatura, o lugar de resistência e de luta contra o sistema fascista-colonialista português, tornando-se elementos importantes das ações anticolonialistas principalmente.

4 Da palavra se fez a resistência. Da resistência se fez a luta anticolonial na poesia Berço de intelectuais e políticos, a Casa dos Estudantes do Império foi responsável por divulgar as palavras de escritoras e escritores que se conscientizavam acerca da condição dos seus países e buscavam, 93 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.24, n.1, p. 84-103, jan./abr. 2022


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por meio delas, reforçar o espírito de nacionalidade, de identidade e conclamar a população ao levante contra as forças colonialistas que os oprimiam. Autores como Agostinho Neto, Maurício Gomes, António Jacinto, Alda Lara, Lília Fonseca, entre tantos outros, tiveram seus textos publicados na Colecção de Autores Ultramarinos e nas Antologias literárias, além dos boletins Meridiano (Coimbra) e Mensagem (Lisboa). Esses textos contribuíram “para a formação de uma identidade cultural e política entre as jovens gerações de estudantes africanos” (FREUDENTHAL et al., 1994, p. 5). Em 1994, com a organização de Aida Freudenthal e a Associação da Casa dos Estudantes do Império (ACEI), as Antologias de Angola, Moçambique e São Tomé e Príncipe foram compiladas e reeditadas nas Antologias de Poesias da Casa dos Estudantes do Império 1951-1963, dispostas em dois volumes (Volume I: Angola e São Tomé e Príncipe e Volume II: Moçambique), com a apresentação “A Literatura e a Consciência Nacional”, de Alfredo Margarido. Num primeiro momento, pensou-se numa edição fac-similada, contudo a qualidade gráfica dos originais não permitiu a reprodução, por esse motivo agruparam-se os textos por países, visando a uma melhor compreensão das discussões a respeito das identidades naquele momento. Para os organizadores, “esta opção sublinha a génese das culturas nacionais e harmoniza-se com a intenção subjacente da CEI, ao divulgar uma nova imagem de África e dos Africanos, afrontando a ideologia colonial dominante” (FREUDENTHAL et al., 1994, p. 6). Nesse caso, o nosso foco serão as produções dos escritores angolanos que apareceram nas coletâneas Poetas Angolanos (1959), coordenada por Carlos Eduardo e com um estudo de Mário António, e Poetas Angolanos (1962), com prefácio de Alfredo Margarido. Cabe salientar que alguns textos integrais da edição de 1959 foram suprimidos, visto que também constariam na edição posterior. Os textos, segundo nota do Departamento Cultural da Casa, em ambas as edições, apresentam-se de forma cronológica conforme o aparecimento nas letras angolanas. Assim, antes de passarmos aos textos poéticos, valem algumas observações sobre os textos introdutórios das duas edições. Na edição de 1959, Mário António traz um panorama da literatura produzida em Angola naquele momento. Segundo o autor, a falta de conteúdo crítico e literário organizado dificultou o pensar sobre a poesia angolana. Embora relute contra as classificações devido ao seu caráter reducionista, infelizmente não consegue se afastar desse objetivo e classifica a poesia produzida em Angola e por angolanos em três categorias: “poesia angolana”, “poesia de Angola” e “poesia negra de expressão portuguesa”. Além dessas, destaca de modo especial a “poesia tradicional dos povos de Angola”, que, ele afirma, “passa bem do desinteresse de poetas e da pouca consideração de críticos” (ANTÓNIO, 1994, p. 31). A respeito dessa poesia, António acrescenta que é “uma poesia socialmente enquadrada e servindo a fins sociais, ela está presente em quase todas as manifestações da sabedoria popular, quer associada ao canto, quer subjacente às diferentes formas de literatura oral: canto, provérbio, adivinha” (ANTÓNIO, 1994, p. 31). Assim, defende a importância desse tipo de produção literária e que ela reflete as particularidades linguísticas de Angola, especialmente da língua dos povos bantos, diferenciando-se da poesia popular de todo mundo. Feitas essas colocações, Mário António classifica a “poesia de Angola” como aquela produzida por europeus ou por europeizados que escolhem Angola como material poético, apresentando a terra em suas paisagens e sua gente com o olhar do estrangeiro. Destacam-se temas como “a sensualidade da negra, os batuques, as palmeiras, os dongos, os luares… e magia… e mistério” (ANTÓNIO, 1994, p. 34). A “poesia angolana” caracteriza-se como sendo oriunda do homem angolano que, embora tenha uma formação europeia, mantém os elementos culturais negros e sua consciência social. Por último, a “poesia negra de expressão portuguesa”, termo de Francisco Tenreiro, destaca-se pela sua maturidade e afirmação diante de uma identidade negra, com caráter ideológico, cuja construção poética baseia-se num trabalho intelectual.

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A edição da coletânea de Poetas Angolanos de 1962 destaca a fase mais engajada e madura da produção, segundo Alfredo Margarido. Para o crítico, o volume reflete diversos aspectos da poesia angolana, buscando a não segregação étnica. Acrescenta que, para “compreender Angola na sua essência autêntica, exige uma atitude de integração que dê aos poetas, qualquer que seja a etnia, a significação que realmente possuem” (MARGARIDO, 1994b, p. 80). Nessa edição, a poesia engaja-se num discurso consciencializador das relações sociais entre os negros e a sociedade portuguesa instalada no país, denunciando a situação de subalternização que o domínio colonial impõe sobre os autóctones, principalmente, a coisificação do homem negro e a sua desumanização. Margarido destaca que “à medida que o homem negro se apropria do sentido da luta e dos escalões onde ela se processa procura revestir-se com os símbolos que lhe são impostos” (MARGARIDO, 1994b, p. 85). Embora represente a consciência individual do autor, a poesia apresentada “se transforma em expressão da consciência colectiva na medida em que os significados nela contidos não são apenas particulares do seu autor, antes projectam um conjunto de elementos que são comuns a diferentes membros do grupo social” (MARGARIDO, 1994b, p. 87). Talvez seja essa uma das características mais marcantes no conjunto dessa coletânea, a representação da coletividade. Assim, enfatiza-se o destaque desses poetas que se tornaram na voz contra o regime português em Angola, assim como no grito de afirmação da identidade da população negra, que se constituirá enquanto nação. Dessa forma, observa-se, nesses textos, a presença dos elementos identitários negros, seus traços fenotípicos, culturais, históricos e linguísticos nas produções. Embora muitos textos sejam escritos na língua do colonizador – espólio de séculos de dominação – a presença de palavras banto, assim como poemas escritos na língua local, estão presentes na edição de 1962. Recordam tempos melhores, quando havia liberdade de se brincar junto à natureza, e ela deixa de ser inóspita e/ou exótica como no olhar europeu. A natureza é um dos elementos que compõem a identidade local. Dentre muitas temáticas abordadas nesses textos, selecionam-se algumas, para fins de discussão. Um dos representantes do regionalismo, Viriato da Cruz, possui uma poética que se destaca pela valorização dos elementos populares tanto na temática quanto na forma. Em “Makèzú”, presente na antologia de 1962, conta a história de avó Ximinha, uma vendedora ambulante que acorda cedo para vender o makèzú ao povo que sai para trabalhar. É um tônico à base de noz, cola e gengibre, muito comum em Angola, que ajudaria esses trabalhadores a terem forças para enfrentar mais um dia de trabalho. O poema começa com o pregão de avó Ximinha, um canto ou um grito de chamamento dos vendedores ambulantes. Em banto, ela grita “Kaukié! Makèzú, Makèzú” (CRUZ, 1994, p. 134), cujo significado é “O dia nasceu… Cola, Cola”. É a partir dessa fala que começamos a compreender toda a trajetória de nossa vendedora. As primeiras estrofes mostram que a avó Ximinha é uma senhora que há tempos possui essa profissão. Embora velha e com as cores desbotadas das suas roupas, repete o mesmo ritual, põe-se cedo a caminho rumo ao cajueiro, onde se abriga para esperar a gente que ruma para o trabalho “p´ra Baixa” (CRUZ, 1994, p. 134), como no excerto: O pregão da avó Ximinha É mesmo como os seus panos Já não tem a cor berrante Que tinha nos outros anos.

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“No princípio era o verbo”: a escrita de Resistência e identitária nas produções da Casa dos Estudantes do Império Lucas Esperança da Costa Avó Xima está velhinha Mas de manhã, manhãzinha, Pede licença ao reumático E num passo nada prático Rasga estradinhas na areia… Lá vai para um cajueiro Que se levanta altaneiro No cruzeiro dos caminhos Das gentes que vão p´ra Baixa (CRUZ, 1994, p. 134).

No entanto, esses novos trabalhadores já não ouvem o chamado da velha quitandeira, que mantém viva a tradição do makèzú. Essa nova geração, que pega o asfalto para ir ao trabalho, já não toma mais a bebida, embora alguns sejam conhecidos de avó Ximinha. Viriato da Cruz utiliza essa personagem e sua bebida para denunciar como a assimilação dos valores e hábitos portugueses apagavam a tradição angolana. A nova geração criada no auge do domínio colonial aculturava-se apresentando novos costumes, deixando de tomar o makèzú e passando a tomar o “café com pão…”. Destaca-se a presença do café como produto agrícola cultivado em larga escala naquele momento, como demonstra o poema: Nem criados, nem pedreiros Nem alegres lavadeiras Dessa nova geração Das “venidas de alcatrão” Ouvem o fraco pregão Da velhinha quitandeira. – “Kuakié!… Makèzú, Makèzú…” – “Antão, véia, hoje nada?” – “Nada, mano Filisberto… Hoje os tempo tá mudado…” – “Mas tá passá gente perto… Como é aqui tá fazendo isso?” – “Não sabe?! Todo esse povo Pegô num costume novo Qui diz qué civrização: Come só pão com chouriço Ou toma café com pão… (CRUZ, 1994, p. 134-135).

Embora o poema denuncie o processo de aculturação, a “civrização” quanto aos hábitos e costumes desses trabalhadores, nota-se, quanto à linguagem, mesmo estando em português, uma alternância entre a língua do colonizador e a tentativa de reprodução da linguagem falada com os seus desvios da normapadrão, o que indica haver, apesar de alguns sinais de assimilação, uma separação linguística entre os grupos dos negros e dos brancos. Além disso, nos versos “Qui o nosso bom makèzú / É pra veios como tu” ressalta-se um afastamento da cultura ancestral que se restringe aos mais antigos. Porém, os versos a seguir apresentam a resistência dessa ancestralidade que se mantém forte e não se dobra ao colonizador.

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– “Eles não sabe o que diz… Pru qué Qui vivi filiz E tem cem ano eu e tu?” – “É pruquê nossas raiz Tem força do makèzú!…” (CRUZ, 1994, p. 134-135).

Apesar da língua e dos costumes portugueses tornarem-se elementos culturais do dia a dia de muitos angolanos, pensar numa convivência pacífica entre brancos e negros estava muito longe da realidade, ainda que Gilberto Freyre tenha apregoado a Pax Lusitana, como a “paz animada pela capacidade, única no português, para confraternizar lírica e franciscanamente com os povos dos trópico” (FREYRE, 1953, p. 98). Nota-se nesta tese freyriana uma falácia entre o discurso lusotropicalista de cordialidade e o desrespeito ao autóctone e suas atividades cotidianas. O modelo de convivência pacífica apenas alimentou durante anos o mito da harmonia racial e reforçava o discurso do governo português na ocupação das terras em África. O modelo harmônico de sociedade proposto por Freyre, na verdade, era antes de tudo uma aspiração sua, uma vez que não percebeu a inexistência dessa harmonia racial, nem mesmo essa reciprocidade cultural que tanto defendeu. Na edição de 1959, o poeta e contista Bessa Victor apresenta o poema “O menino negro não entrou na roda”, que ressalta a exclusão das crianças negras junto às crianças brancas, desmentindo a tese de Freyre. Nos primeiros versos já observamos: “O menino negro não entrou na roda / das crianças brancas” (VICTOR, 1994, p. 47). Ao longo do poema, observa-se que o menino negro sempre está à margem das ações descritas, enquanto as crianças brancas representam a alegria, com as suas “canções festivas, gargalhadas francas…” (VICTOR, 1994, p. 47). Representada no voo e no canto dos pássaros, a liberdade coreografa um bailado junto às crianças brancas, enquanto o menino negro apenas observa a comunhão entre as crianças brancas, a natureza e a liberdade, conforme o fragmento: Pássaros, em bando, voaram chilreando sobre as cabecinhas lindas dos meninos e pousaram todos em redor. Por fim, bailaram seus vôos, cantando seus hinos… O menino negro não entrou na roda. (VICTOR, 1994, p. 47).

Todavia, a segregação parte mais dos adultos do que das crianças. Enquanto uma das crianças chama o “pretinho” para entrar na roda, a mãe “zelosa” logo explica ao filho que não poderia brincar com ele, fazendo com que a criança perdesse o interesse de brincar com o menino negro. “Venha cá, pretinho, venha cá brincar” – disse um dos meninos com seu ar feliz. A mamã, zelosa, logo fez reparo; o menino branco já não quis, não quis… o menino negro não entrou na roda (VICTOR, 1994, p. 47).

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Por fim, o que começara numa visão alegre e festiva de um grupo de crianças brincando, termina com a exclusão da criança negra da brincadeira. Entre os risos e os cantos das crianças brancas, o menino negro, que não entrou na roda, encontrava-se desolado e triste, não compreendendo o motivo que o impedia de se juntar ao grupo. O poema demonstra que a harmonia racial freyriana era mais um dos mitos criados para justificar a ocupação das terras africanas. Assim como se nota a segregação entre as crianças, toda a política colonial propunha uma separação de raças, o que permitia o controle sobre a terra e sobre as gentes. Só, o menino negro que não entrou na roda, cala-se. O menino negro não entrou na roda das crianças brancas. Desolado, absorto, ficou só, parado com olhar cego, ficou só, calado com voz de morto. (VICTOR, 1994, p. 47).

Contudo, ao longo das antologias percebe-se a tomada de consciência entre escritores e o rompimento do silêncio diante da opressão colonial. Diante das discussões promovidas na Casa dos Estudantes do Império, esses poetas engajaram-se no debate público contra o fascismo-colonialismo, visando à independência de seus países, bem como a afirmação e valorização da cultura negra, vista até então como menor diante da cultura europeia. Muitos desses escritores produziram uma literatura que convocava o despertar da consciência crítica acerca da condição e clamava para que todos se unissem em prol do bem comum: a liberdade do domínio português. Escritores como Maurício Gomes, Antero Abreu e Alexandre Dáskalos utilizaram a palavra como instrumento libertador. O meta-poema “Exortação”, de Maurício Gomes, na edição de 1959, convoca os poetas angolanos a descobrirem a angolanidade literária, assinalando “o que de mais importante deveria ser matéria-prima dessa poesia: a realidade angolana, de sua vida social, em especial a condição do homem negro, e de suas belezas e riquezas”, afirma Moama Marques (2012, p. 13), em “Maurício Gomes e a (re)invenção da poesia angolana”. O poema possui mais de vinte estrofes e, no seu decorrer, observa-se uma incitação aos poetas por uma poesia desvinculada dos padrões lusitanos. No entanto, nessa edição de Poetas Angolanos, apenas uma estrofe, que possui um caráter altamente político, nesse sentido, é apresentada. Não se pode esquecer que as antologias visavam, além de tornar conhecida a obra desses poetas, ser instrumento de difusão dos ideais revolucionários e oposicionistas ao regime português. Na estrofe destacada, exorta os filhos de Angola ao rompimento do silêncio por meio da palavra e proclama que a palavra deve cantar as belezas e as dores da terra. … Mas onde estão os filhos de Angola, Se não os oiço cantar e exaltar Tanta beleza e tanta tristeza, Tanta dor e tanta ânsia Desta terra e desta gente … (GOMES, 1994, p. 48).

Ouvindo a exortação, Antero de Abreu canta a “Libertação” das histórias passadas, lutando para quebrar esse círculo que aprisiona o povo angolano. Para o eu-lírico, é através da libertação “das mentiras

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loucas” que “nascerá um dia a paz / do ser e do não ser”. É pela verdade, pela compreensão da história que os véus serão arrancados, libertando-o de um “passado velho / que em mim se quis perpetuar” (ABREU, 1994, p. 56). Ao compreender a história, liberta-se dos sofrimentos passados, no entanto, o eu-lírico é consciente que sempre ficarão as marcas, os vestígios. Todavia, sabe da importância do passado para que possa renascer mais confiante em seu destino, fortalecendo o seu eu e a sua identidade, conforme finaliza nestes dois tercetos: E deixarei um rasto de desilusões; Um caminho de lágrimas choradas; Um pouco do que fui em cada dia. Mas ficarei seguro e afirmado, Com a serenidade dum Buda na floresta, Com a nudez dum Cristo no redil. (ABREU, 1994, p. 56).

Por fim, percebe-se que a mensagem de libertação não é individual, faz parte de um projeto político-identitário de nação, da (re)descoberta da angolanidade. Alexandre Dáskalos, importante membro do movimento “Vamos Descobrir Angola” e da geração da Mensagem, convida seus irmãos ao “Despertar”, texto em que clama o participar da juventude para o engajamento na construção de um país diferente. Assim, ao acordar, ouve-se o chamado da vida, reforçando um dos princípios fundamentais do homem: a liberdade. Embora o passado seja de dor e sofrimento, que todos possam escutar o som da sua resistência, da sua libertação, do seu enfrentamento diante dessa história de opressão. Vai!… E que os olhos E os lábios Vejam e saibam O fragor da luta… (DÁSKALOS, 1994, p. 193).

O poeta compara a força dos filhos da terra aos elementos da natureza, valorizando o poder que está na mão desses irmãos que se juntam à causa libertária. Será o fim da opressão e do sofrimento. Clama os negros que trovejem e gemam com “alegria / de lutar e de viver” (DÁSKALOS, 1994, p. 193). Assim ao engajar-se, esse irmão doa-se ao outro irmão, que se doará a outro. A luta não é individual, mas um bem para todos e para que esses homens angolanos não neguem a sua condição em detrimento da assimilação, que sejam conscientes do lugar que ocupam dentro da sociedade. Sereno como o rio Que volta ao leito Dá-te para os outros – seu irmão – Irmão que seja como tu: Dos pés à boca Homens Que não neguem a A sua condição… (DÁSKALOS, 1994, pp. 193-194).

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Porém, alerta que enfrentarão dificuldades e traições, pois “há lobos / dispersos no caminho…” (DÁSKALOS, 1994, p. 194). No entanto, isso não será motivo para desaminar na caminhada rumo à libertação. A luta possui a força da juventude e a virilidade nas mãos. Por fim, por meio do vocativo “irmãos”, fraternos na luta, convida a todos que frutifiquem a mensagem de libertação, pois um novo dia nasce no horizonte, a vida se abre a um futuro livre e próspero que em breve chegará. E vai, A fronte juvenil Erguida Engrinaldada ao sol, A Vida Confiante ao punho Dessas mãos viris… Irmãos, vinde!… O sol ergue-se nas montanhas. A vida não se fecha, A todas faz florir… A vida tem de ser aberta – Sejamos nós o fruto e a oferta Da árvore do porvir… (DÁSKALOS, 1994, p. 194).

Com esse recorte feito nas Antologias, é possível perceber como os movimentos e as produções literárias da Casa dos Estudantes do Império foram importantes na consciencialização, na resistência e na luta contra o sistema colonial português em Angola. Esses autores denunciaram a assimilação e o apagamento da cultura autóctone, a segregação enfrentada, desmistificando a harmonia racial que era defendida por políticos, exortaram aos poetas e aos angolanos a participarem na resistência e na luta em favor da libertação do país, a fim de despertar toda a gente para um novo horizonte que se abre para todos longe da opressão portuguesa.

5 Considerações finais A Casa dos Estudantes do Império assumiu um papel importante na formação crítica de muitos jovens angolanos, assim como das outras colônias portuguesas. Não há como pensar a Casa a partir de uma visão simplista, de “um clube” onde serviam refeições ou de uma sala de estudos e divertimentos para esses estudantes. A Casa foi fundamental para a formação da consciência política, étnica e cultural dos povos negros, que desejavam a libertação política e cultural de Portugal. Foi no período que frequentavam a Casa que esses estudantes entraram em contato com os principais movimentos de resistência e luta anticolonial europeus, através de leituras de escritores, como Aimé Césaire, conhecendo o movimento da Negritude e os princípios de valorização da cultura negra, bem como os princípios de autodeterminação. Assim, a Casa tornou-se um dos principais lugares de discussão e produção do pensamento anticolonialista. Os textos produzidos serviram de base para que o debate chegasse às terras africanas,

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contagiando a população quanto ao pensamento crítico, o que permitiu o levante contra Portugal. Muitos dos líderes são frutos da Casa. Ideais de libertação, de resistência e luta estão presentes nas obras poéticas e narrativas desses escritores. Além disso, a valorização da figura do negro, da cultura e da natureza africana permeia essas obras, não mais com o olhar exotizado do europeu, mas com traços que representam a identidade desses países. Contudo, com o passar do tempo, a Casa vai sendo esquecida. Segundo os críticos como Inocência Mata, é preciso “a reconstituição, a preservação e a difusão do legado cívico e cultural da CEI” (MATA, 2015, p. 6). Para pesquisar e compreender o período colonial africano de língua portuguesa do século XX, é preciso retornar à Avenida Duque de Ávila, no 23, em Lisboa, e conviver com esses escritores e seus textos que reúnem literatura e consciencialização política.

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COMO CITAR (ABNT): COSTA, L. E. “No princípio era o verbo”: a escrita de Resistência e identitária nas produções da Casa dos Estudantes do Império. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 24, n. 1, p. 84-103, 2022. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n12022p84-103. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/16297. COMO CITAR (APA): Costa, L. E. (2022). “No princípio era o verbo”: a escrita de Resistência e identitária nas produções da Casa dos Estudantes do Império. Vértices (Campos dos Goitacazes), 24(1), 84-103. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n12022p84-103. 103 | VÉRTICES, Campos dos Goytacazes/RJ, v.24, n.1, p. 84-103, jan./abr. 2022


Submetido em: 22 set. 2021 Aceito em: 28 jan. 2022

DOI: 10.19180/1809-2667.v24n12022p104-116

Literaturas africanas de língua portuguesa na sala de aula por uma educação pós-colonial Adriano Carlos Moura https://orcid.org/0000-0003-1472-6964 Doutor em Estudos Literários (UFJF). Professor de Língua Portuguesa e Literatura no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense (IFFluminense) – Campos dos Goytacazes/RJ – Brasil. E-mail: adriano.moura@iff.edu.br.

Resumo Embora a Lei 10.639/03 torne obrigatório o ensino de História e Cultura Africana e Afro-Brasileira por meio dos conteúdos das áreas de História, Educação Artística e Literatura nas instituições de ensino públicas e privadas da Educação Básica, alunos chegam à graduação desconhecendo a arte, a história e literatura da África, o que significa o descumprimento da referida Lei. Uma das hipóteses para o problema é o fato de a educação brasileira ainda ser moldada por valores herdados da mentalidade colonialista, que tende a apagar o papel dos africanos na construção da nação. Este artigo propõe, portanto, uma reflexão sobre o papel das literaturas africanas de língua portuguesa na construção de uma mentalidade pós-colonial, conceito que norteia teórica e metodologicamente a pesquisa da qual o estudo resulta, e o romance como gênero capaz de possibilitar acesso à cultura e história da África. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica e de campo ancorada no trabalho de pesquisadores da crítica pós-colonial. Palavras-chave: Educação. Literaturas Africanas. Pós-colonialismo.

African literatures in Portuguese language in the classroom for a postcolonial education Abstract Although Law 10.639/03 makes the teaching of African and Afro-Brazilian History and Culture mandatory through the contents of the areas of History, Artistic Education and Literature in public and private institutions of Basic Education, students arrive at undergraduation courses not knowing the art, the history and literature of Africa, which means noncompliance with the aforementioned Law. One of the hypotheses for the problem is the fact that Brazilian education is still shaped by values inherited from the colonialist mentality, which tends to erase the role of Africans in construction of the nation. Therefore, this article proposes a reflection on the role of Portuguese-speaking African literature in the construction of a postcolonial mentality, a concept that theoretically and methodologically guides the research from which the study results, and the novel as a genre capable of providing access to the culture and history of Africa. It is a bibliographical and field research based on the work of postcolonial critics. Keywords: Education. African Literatures. Postcolonialism.

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Literaturas africanas en lengua portuguesa en el aula para una educación poscolonial Resumen Si bien la Ley 10.639/03 hace obligatoria la enseñanza de la Historia y Cultura Africana y Afrobrasileña a través de los contenidos de las áreas de Historia, Educación Artística y Literatura en instituciones públicas y privadas de Educación Básica, los estudiantes llegan a la graduación sin conocer el arte africano, historia y literatura, lo que significa el incumplimiento de la mencionada Ley. Una de las hipótesis del problema es que la educación brasileña todavía está conformada por valores heredados de la mentalidad colonialista, que tiende a borrar el papel de los africanos en la construcción de la nación. Por lo tanto, este artículo propone una reflexión sobre el papel de las literaturas africanas de idioma portugués en la construcción de una mentalidad poscolonial, concepto que orienta teórica y metodológicamente la investigación de la que resulta el estudio, y la novela como género capaz de dar acceso a la cultura e historia de África. Se trata de una investigación bibliográfica y de campo basada en el trabajo de críticos poscoloniales. Palabras clave: Educación. Literaturas africanas. Poscolonialismo.

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1 Introdução Este artigo é parte de uma pesquisa de doutorado iniciada em 2018 e concluída em 2021, que investigava romances produzidos em Angola e Portugal depois de 1975, cuja narrativa fosse centrada na configuração da nação pela literatura, estudada sob perspectiva teórica interdisciplinar, reunindo autores da crítica pós-colonial, da filosofia, sociologia, história e da teoria literária. Essa iniciativa se deu pelo fato de que parte dos alunos ingressantes no curso de Letras do Instituto Federal Fluminense desconhecia história, cultura e literatura da África, mesmo com a obrigatoriedade do ensino desses conhecimentos na Educação Básica estipulado pela Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003). Objetiva-se, portanto, contribuir para uma reflexão acerca do papel da leitura de obras das literaturas africanas de língua portuguesa como caminho possibilitador de conhecimento da cultura e história dos países africanos ex-colônia de Portugal, utilizando textos em prosa, especialmente romances, como corpus para a proposta. Inicialmente, far-se-á uma exposição do conceito de pós-colonial como teoria crítica para leitura das obras e sua utilização nas aulas em que obras africanas sejam inseridas. Em seguida, apresenta-se uma discussão sobre o caráter neocolonizador da lusofonia, concluindo com o conceito de romance-nação e sua contribuição para o ensino de literaturas africanas de língua portuguesa. Por motivos de delimitação, devido à diversidade de produção literária dos cinco países que compõem os PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), ou seja, Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Moçambique, São Thomé e Príncipe, o corpus do artigo convocará à argumentação somente obras angolanas e moçambicanas.

2 Sobre o conceito de pós-colonial e sua utilização para o ensino das literaturas africanas O ensino de literatura no Brasil é ainda bastante centrado no estudo dos estilos de época que seguem o modelo ocidental que, no caso brasileiro, se configura a partir do Barroco até o Modernismo, embora como sistema literário, somente a partir do Arcadismo, conforme formulações do crítico Antonio Candido, em Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (2009). Assim como na literatura portuguesa, as características dos movimentos artísticos norteiam um estudo histórico mais ocupado na reprodução de padrões de uma arte considerada canônica do que numa pedagogia que possibilite a leitura, compreensão e interpretação crítica das obras. Quando se trata das literaturas africanas de língua portuguesa, essa metodologia resulta num procedimento didático ainda mais ineficaz, uma vez que essas literaturas têm sua fase escrita mais profícua somente a partir da segunda metade do século XIX quando, em 1849, se publica o livro de poemas Espontaneidades de minha alma de José da Silva da Maia Ferreira, escritor angolano de origem portuguesa, cuja poética apresentava fortes contornos românticos, embora não se possa afirmar que essa escola tenha se desenvolvido em Angola como se desenvolveu no Brasil e em Portugal. O ensino das literaturas africanas, portanto, não tem os estilos de época para se ancorar em sala de aula. Não houve uma uniformidade estilística, tampouco temática da parte dos autores, conquanto muitos tenham se organizado em torno de revistas e movimentos como ocorreu, por exemplo, com o periódico Luz e Crença onde, segundo o ensaísta Carlos Ervedosa (1985), teriam surgido os primeiros ideais independentistas. Mesmo com esse pioneirismo, o autor constata que até a década de 40, em Angola, as produções literárias possuíam, em sua maioria, um cariz bastante colonial sem uma raiz de fato angolana. Segundo Ervedosa, a década de 60 é marcada por uma efervescência literária e de militância política, sendo

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a década seguinte, mais especificamente em 1975, que a independência se consuma, elegendo o poeta Agostinho Neto o primeiro presidente da nação livre. Num recorte meramente cronológico, poder-se-ia considerar a literatura produzida até 1975 como colonial e a pós essa data como pós-colonial, o que não será o caminho percorrido por este estudo, menos ainda tem sido o da crítica literária. O termo pós-colonial não se apresenta como um adjetivo caracterizador de uma literatura de tempo específico, nem somente como uma perspectiva teórico-metodológica de investigação das literaturas africanas, mas também como uma proposta teórico-metodológica para o ensino nas escolas do Ensino Médio, com intuito de contribuir para a construção de uma educação que questione o pensamento colonial que ainda alimenta a imagem que se formou no Brasil acerca dos negros e da África. Segundo o crítico angolano Luís Kandjimbo (2016): Ao funcionarem como veículos de ideologia colonial, em absoluta autarcia, os aparelhos institucionais do ensino são confrontados com as dinâmicas da produção de cânones literários alternativos que emergem das literaturas orais quer das literaturas escritas em línguas africanas e em línguas europeias. O que está em causa é a necessidade de proceder à descanonização literária, transformando os contra-cânones em cânones literários oficiais. (KANDJIMBO, 2016, p. 14).

Embora esteja se referindo à realidade angolana, a afirmação de Kandjimbo sobre as escolas serem instrumentos da ideologia colonial se aplica à realidade brasileira, cuja educação literária surge de um modelo preconizado pelo europeu. As obras literárias indicadas como leitura obrigatória são majoritariamente as mesmas que compõem os cânones nacionais e internacionais. Leituras de autores africanos ocupam ainda um lugar subalterno, segregadas a eventos temáticos em datas como 13 de maio e 20 de novembro, Abolição da Escravatura e Dia da Consciência Negra respectivamente. Seriam o que Kandjimbo considera “contra-cânones”. Entretanto a abordagem aqui presente não propõe a transformação dos “contra-cânones em cânones oficiais” como sugere o pesquisador, mas a extinção da hierarquia que privilegia autores de uma tradição eurocêntrica, ou mesmo nacional, que não reflete a diversidade étnica e cultural de países como o Brasil. As instâncias legitimadoras dos cânones literários podem e devem ser questionadas pelas epistemologias pós-coloniais como aponta Inocência Mata (2016), inclusive as que apontam como “bom” somente os autores africanos lidos em Portugal. Essas instâncias que definem o “bom” ou “ruim” são as mesmas que indicam o que deve ou não ser lido nas salas de aula. A pesquisadora moçambicana Ana Mafalda Leite (2013) escreve que a crítica pós-colonial se propõe a combater as visões de mundo dos temas imperiais. Essa função é assumida pelos autores africanos que, mesmo antes da independência das colônias, já produziam uma literatura de contornos pós-coloniais, demonstrando o quanto tal perspectiva não se limita a um marco cronológico designando a literatura dos países independentes, mas se assume como uma área de estudo a fim de discutir, como afirma Leite “os efeitos culturais da colonização” (LEITE, 2013, p. 10). Estudar as literaturas das ex-colônias e, por meio delas, convocar os estudantes do Ensino Médio e Superior para a reflexão sobre os efeitos da colonização e da descolonização não deve se limitar, portanto, à leitura de textos produzidos somente no período do pós-independência. Um exemplo é o conto Nós matamos o cão tinhoso (2017), do moçambicano Luis Bernardo Honwana, publicado originalmente em 1964. O Cão-Tinhoso era um animal em estado de decrepitude, doente, e um grupo de meninos é incumbido de matá-lo. Segundo ‘pesquisa de Leonardo Mendes Gonçalves (2018), o cão poderia ser interpretado como uma metáfora para a sociedade colonial decadente ou o povo colonizado oprimido. Ambas são interpretações pertinentes ao conto, o que confirma a pós-colonialidade de Honwana

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num texto publicado onze anos antes da independência de Moçambique. O mesmo conto serve de mote para que o angolano Ondjaki escreva Nós choramos pelo cão tinhoso (2015) em que se narram os sentimentos que assolam um grupo de alunos durante a leitura do conto de Honwana durante uma aula. Uma sequência didática desenvolvida no primeiro semestre de 2021 com os alunos do sétimo período da graduação em Letras do Instituto Federal Fluminense, permitiu que eles lessem o conto do Honwana e levantassem hipóteses para as possíveis metáforas que o cão representava, prevalecendo a do animal como símbolo da opressão do povo moçambicano pelo português, confirmando uma das teses defendida por Gonçalves. Das setecentas e quarenta e cinco páginas dos três volumes do livro didático Português: contexto, interlocução e sentido, de Maria Luiza M. Abaurre, Maria Bernadete M. Abaurre e Marcela Pontara (2008), apenas dezoito são dedicadas às literaturas africanas. Nessa obra, destaca Adriano Carlos Moura: depois da tradicional exposição histórico-cronológica baseada nos estilos de época das literaturas portuguesa e brasileira, dezoito páginas comentam a narrativa africana com base em fragmentos de textos de Pepetela, Mia Couto, José Luandino Vieira, Agualusa e Ondjaki. A utilização de fragmentos como corpus é comum aos livros didáticos, mas são insuficientes quando não acompanhados da leitura integral de algum título. Ainda assim, a lista de autores sinaliza sua inclusão como representantes da ficção africana para pelo menos um grupo de leitores. (MOURA, 2021, p. 145).

A constatação acima aponta para o fato de que, embora a Lei 10.639/03 (BRASIL, 2003) obrigue o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, a iniciativa ainda é bastante tímida em termos de acesso a conteúdos e publicações somada à formação ainda deficiente de docentes nessa área, visto que o aprofundamento nas questões relativas às literaturas africanas é mais ofertado nas pós-graduações, sem falar no número grande de professores formados antes da promulgação da Lei e que não tiveram Literaturas Africanas de Língua Portuguesa no currículo de sua formação na graduação, conforme atesta Laura Cavalcanti Padilha (2010): Com respeito aos cursos de Graduação, as cinco Literaturas Africanas em Língua Portuguesa (mesmo se considerarmos uma habilitação como Português/Literaturas, na qual se oferecem mais detidamente as expressas na língua materna) não se elencavam como obrigatórias, conforme se dava com a Portuguesa e a Brasileira. Estas, só com a última proposta de reformulação curricular, deixaram de ser assim catalogadas. Quando, salvo em um ou outro programa, as Africanas eram colocadas entre as optativas, elas apareciam com uma carga horária mínima, quando não se listavam entre as disciplinas de Literatura Portuguesa, recebendo, com variantes, a denominação genérica e abrangente de “Manifestações Literárias Ultramarinas”, mesmo depois das independências dos países africanos, em 1975. (PADILHA, 2010, p. 3).

Se tal problema se verifica na formação de professores que viriam a atuar na Educação Básica, entende-se o motivo pelo qual uma geração de estudantes saía e infelizmente ainda sai do Ensino Médio com pouco ou nenhum contato com as literaturas dos PALOP. Conforme Ana Mafalda Leite (2016), o pós-colonialismo não é limitado a uma descrição de uma época ou sociedade específica, “Ele relê a colonização, como parte de um processo global, essencialmente transnacional e transcultural – e produz uma reescrita descentrada, diaspórica, das grandes narrativas imperiais do passado, centradas na nação” (LEITE, 2016, p. 66). Sob esse aspecto, é importante destacar o papel do conto e romance africano e sua contribuição como um dos veículos de acesso à história e

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cultura dos povos da África narradas sob perspectivas de autores europeus ou brasileiros de formação moldada ainda nesse viés. É vasta a produção romanesca publicada depois da independência que relê o passado colonial africano e se atenta aos problemas contemporâneos de um continente frequentemente homogeneizado ou imageticamente projetado como exótico, além de ser retratado amiúde, pelos meios de comunicação, como local de guerras, doenças e conflitos étnicos apenas. Desse modo, é importante pensar a crítica pós-colonial não somente como um caminho teórico para a leitura das obras, mas também como uma atitude política na sala de aula, que começa desde a escolha dos títulos a serem lidos e se estende às abordagens dos conteúdos dos textos nos planos estéticos, éticos, ideológicos, linguísticos. A respeito deste último é importante ressaltar o papel da língua como instrumento de dominação e como os usuários não portugueses do idioma aprenderam a utilizá-la cotidiana e literariamente subvertendo códigos sintáticos, semânticos, gramaticais, por meio de hibridismos, apropriações que lhe conferem um caráter múltiplo, de acordo com cada nação que dela se utiliza e que compõe o chamado “Espaço Lusófono”.

3 Literatura angolana e moçambicana, não lusófona Uma outra discussão que deve ser levantada ao se estudar as literaturas africanas de língua portuguesa é o conceito de lusofonia. Segundo Alfredo Margarido (2000), é uma criação do período pósindependência e expressa uma imagem mítica, pois não bastaria falar o português ou ser oriundo de uma ex-colônia portuguesa para acessar livremente e sem discriminação a pátria de Camões. Para o autor, a violência linguística sempre fez parte do projeto colonial com termos e expressões em português que inferiorizavam os sujeitos e a cultura dos africanos. A dominação portuguesa nunca pretendeu a democratização do uso da língua e da educação formal. Ensinava-se aos africanos somente o necessário para o cumprimento das atividades burocráticas ou de promoção das ideologias coloniais. Há autores africanos negros cuja formação intelectual se deu em Portugal, sendo muitos deles acolhidos na Casa dos Estudantes do Império, cuja função inicial era de formar uma elite intelectual africana que reproduzisse a mentalidade imperialista da “nação ultramarina”. Entretanto se deu o contrário, pois foi nesse espaço que grandes lideranças da luta independentista se formaram, como foi o caso de Agostinho Neto. As literaturas produzidas nos países ex-colônias são angolana, moçambicana, caboverdiana, etc., pois cada uma faz um uso bastante peculiar da língua portuguesa, o que torna a expressão “literatura lusófona” ideologicamente colonizadora, porque transcende as fronteiras linguísticas e comporta sentidos que remetem à cultura portuguesa de um modo geral. Não se pode ignorar o peso civilizatório que uma língua carrega, obviamente, porém, como atesta Laura Cavalcanti Padilha (2005): Os projetos literários nacionais africanos usam, por outro lado, da própria língua portuguesa como uma forma de enfrentamento do dominador, buscando romper a rigidez normativa e apresentando distintas soluções verbais para com elas estruturar as bases de uma produção artística em diferença. (PADILHA, 2005, p. 21).

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Era comum a indagação dos alunos por que os africanos não optaram por uma de suas línguas nativas. Isso denota o desconhecimento histórico de mais de quinhentos anos sob o jugo político, econômico, cultural e linguístico de Portugal sobre os cinco países da África e da própria multiplicidade cultural desses territórios antes da colonização como as muitas línguas originárias que dividem com o português o uso cotidiano. Entretanto a opção pela língua do colonizador foi uma arma na luta independentista e, como oficial, instrumento importante para construção de uma unidade nacional e da configuração de um sistema literário. A circulação dos textos em um dos idiomas nativos comprometeria sua recepção não apenas em regiões cuja língua não fosse a do autor, como dificultaria a leitura nos demais países de língua portuguesa e a tradução para outras línguas. Em Angola, algumas das línguas nativas são ensinadas nas escolas, segundo o Observatório da Língua Portuguesa. Entretanto há o problema da falta de professores e o crescente desinteresse de angolanos que preferem que seus filhos aprendam apenas o português. Isso se deve à opressão colonial que promoveu a desvalorização das culturas locais como a língua, mas também a própria dinâmica da vida contemporânea. No romance Os transparentes (2013), de Ondjaki, percebe-se a capital Luanda é afetada pelo comércio internacional, exploração de petróleo por multinacionais com presença de estrangeiros interessados nessas atividades levando a população a ter de se adequar a novos padrões linguísticos para além do português, como se pode verificar no fragmento a seguir: - Angola está prestes a apresentar ao mundo um eclipse de qualidades inéditas, nunca visto, entendem? Nunca visto - eu pensar eclipse era internacional na mundo – comentou uma das suecas - sim, mas nós é que estamos a coordenar o evento, a NASA aqui pia baixinho, tá a entender? vamos lá conhecer o espaço...vocês já dormiram numa igreja? - “igreza”? Like church? - igreja … de deus, que é “god” também, ngana zambi - ámen! – brincou a prostituta, fazendo o sinal da cruz sobre os volumosos seios (ONDJAKI, 2013, p. 327)

No diálogo acima, o personagem João Devagar conversa com duas prostituas suecas sobre o evento de um eclipse que só poderia ser visto em Luanda, acontecimento que divide com a exploração do petróleo por multinacionais a atenção dos moradores da capital e dos turistas internacionais. A nação do romance é a pósguerra civil, mas que rememora acontecimentos da luta pela independência e aspectos de tradições locais, representadas pela Avó Kunjikise, personagem símbolo do conflito entre as culturas ancestrais e as mudanças da modernidade. Nas escolas brasileiras depara-se com problemas similares também resultantes da mentalidade colonial. Não há o bilinguismo caracterizado pelo ensino de línguas nativas (no caso do Brasil, as dos povos indígenas) concomitantemente ao do português oficial. Porém, mesmo depois de avanços no campo dos estudos da sociolinguística e de estudos como os de Marcos Bagno, em Preconceito linguístico (2013), sobre preconceitos linguísticos, é grande a discriminação por que passam alunos cujo uso cotidiano da língua escapa aos modelos paradigmáticos ensinados nas gramáticas escolares. O aprendizado da norma culta é importante para o desenvolvimento intelectual, profissional, estético de todos os cidadãos o que não deveria representar a desqualificação de outros usos que podem variar de acordo com a região, classe social, dentre outros fatores. Segundo José Carlos de Almeida (2015), no jornal angolano Sapo, o kimbundu estaria morrendo, pois é cada vez menor o número de falantes da língua, assim como se reduz o número de cantores e

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compositores que utilizam essa língua nativa em suas obras. Essa constatação aponta para o desaparecimento gradual de algumas culturas que talvez não consigam se manter somente pela oralidade, o que era comum em países da África pré-colonial. O kimbundu não se mantém como língua literária em Angola, ocorrendo o mesmo com o ronga em Moçambique. Isso não significa que essas literaturas possam ser consideradas de matriz colonial, visto que o uso temático, político, estético, semântico que se faz da língua é construído a partir da localidade de seus autores e das intervenções que estes realizam no português. Sendo assim, é de grande importância que, ao se ensinar literaturas africanas de língua portuguesa, o professor chame atenção para o fato de que o uso da língua portuguesa pelos africanos não representa uma manutenção da dominação colonial; e que considerar essa literatura como lusófona, representaria manter a imagem de Portugal como tuteladora da cultura e da literatura africana, o que seria um grande erro. A ideia de uma literatura lusófona não deixa de estar presa ao modelo literário ocidental e suas categorias de universalidade e canonicidade. Fala-se dos países do Ocidente europeu como se suas realidades linguísticas e culturais fossem homogêneas. Moisés de Lemos Martins (2014) chama atenção ao fato de que o Ocidente se construiu sobre a imagem de uma unicidade, preconizada por ideais grecoromanos e judaico-cristãos, e Adriano Carlos Moura (2021) argumenta que a colonização representou, portanto, a expansão não apenas territorial, religiosa, linguística e econômica, mas também literária e cultural, por isso o adjetivo “lusófono” não pode ser utilizado ignorando toda essa abrangência significativa. O Ocidente, assim como espaço lusófono, não é um conceito meramente geográfico e se impôs aos demais povos do planeta como único, não como unificação ou união. Equívoco semelhante se dá quando o adjetivo “africano” designa de forma homogênea o vasto continente composto por cinquenta e quatro países com línguas, religiões, economias, políticas e culturas completamente distintas, mesmos os colonizados por uma mesma nação europeia. Advém daí a necessidade de disciplinas como “literaturas africanas” e designações como “literatura lusófona” passarem a especificar a qual país de África ex-colônia de Portugal se referem, para que não se crie a ilusão de que, por exemplo, a literatura que se pratica em Angola é a mesma que se faz em Moçambique, São Thomé e Príncipe, Guiné-Bissau ou Cabo Verde. Diferente do que ocorria no período colonial, a literatura, seja no âmbito da produção, ficção ou da leitura, deixou de ser privilégio das elites econômicas e culturais. Autores, personagens e leitores são representados por sujeitos oriundos de diferentes grupos sociais, fazendo com que as obras literárias reflitam em termos de língua e linguagem esses universos plurais.

4 O romance como acesso à história das nações africanas Em trabalho realizado com alunos do sétimo período do Instituto Federal Fluminense, momento em que eles têm contato pela primeira vez com as literaturas africanas no curso da graduação em Letras, notou-se uma concepção bastante estereotipada acerca de África, conforme afirmado anteriormente, com total desconhecimento de sua história, comumente vinculada à relação com o Brasil como “fornecedora” de mão de obra escrava. Assim como se deu com a literatura romântica brasileira que, mesmo idealizando a nação, contribuiu para construção de uma autoimagem, a literatura angolana e moçambicana escrita depois da independência representa as nações que surgem repensando o passado colonial, projetando o futuro ou

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interpelando o presente. O moçambicano Mia Couto, por meio de obras como As areias do imperador: mulheres de cinzas (2015) e Terra sonâmbula (2007) expõe ao leitor os conflitos étnicos e políticos de Moçambique no final do século XIX, quando Gugunhana, último imperador do Reino de Gaza, resistia às imposições colonialistas; e os problemas decorrentes da guerra civil que se abatem sobre o povo nos anos seguintes à independência, respectivamente. Mayombe (2013), de Pepetela (2013), é um exemplo angolano de romance escrito concomitantemente à luta que conduziu Angola à independência e retrata o conflito entre um grupo de guerrilheiros que combateram os portugueses na floresta que dá título ao livro. São livros que contribuem para desfazer a ideia de que a dominação portuguesa não teve resistência. Essas obras são expressão de romance-nação que, segundo Moura (2021), são uma “forma de investigação sobre as nações por meio das literaturas que produzem (…) Não seria nem mesmo um método, mas um ‘modo de ler’ romances cujos problemas da nação são o centro do enredo” (MOURA, 2021, p. 174). Segundo o autor, devido à maior circulação do que a de livros de história angolanos ou moçambicanos, os romances que se incumbiram de narrar as histórias das nações assumem fora do continente a tarefa de permitir o acesso a momentos vividos pelos povos desses territórios sob diferentes perspectivas, visto que, conforme a tese publicada em 2021, o romance-nação é uma obra rizomática, entendendo rizoma na acepção defendida pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995), pois composto por diferentes linhas de fuga, bifurcações, conexões de cadeias de múltiplas origens (semiótica, econômica, política etc.). O território da nação é rizomático, pensado sob essa perspectiva não apenas no plano geográfico, pois, segundo formulação de Rogério Haesbaert (2016), se define também natural, política e culturalmente e pela maneira como os grupos de seres humanos se apropriam dele, sendo “múltiplo e relacional, mergulhado na diversidade e na dinâmica temporal do mundo” (HAESBAERT, 2016, p. 16). O romance-nação é, portanto, rizomático, porque também assim é o território da nação. Os textos oficiais tendem a apresentar pontos de vista limitados e hegemônicos. Considerando a situação colonial e a ditadura salazarista, que impunham censura aos órgãos de imprensa, instituições de ensino, tanto portugueses quanto africanos; foram os escritores que se incumbiram de narrar a nação partindo da realidade ignorada até 1974 por grande parte dos portugueses que estavam alheios ao que se passava no chamado Ultramar. O romance Os cus de Judas (2003), do escritor português António Lobo Antunes, livro de contornos autobiográficos, é um dos relatos mais contundentes do que imaginavam os portugueses que partiam para Angola ou Moçambique pensando que estavam defendendo uma extensão de Portugal. No romance, por meio de um narrador que se encontra na condição de retornado1, vê-se o desmascaramento da mentira contada pelo Estado Novo de que havia um Portugal Ultramarino. Tais obras se enquadram na condição de narrativa performativa que, segundo Homi Bhabha (2013), narra a nação a partir de vozes até então marginalizadas, contrariando o que ele postula como pedagógico, adjetivo que, em relação a Portugal, teria Os lusíadas como principal exemplo, que “funda sua autoridade narrativa em uma tradição do povo” (BHABHA, 2013, p. 209) pois constrói a imagem ideal de povo heroico, retrato desfeito pela obra de Antunes e dos autores africanos do pós-independência. As nações supostamente estáveis construídas sobre os pilares do Iluminismo, retratadas em romances históricos, semelhantes ao modelo scottiano2, veem suas estruturas abaladas pelas duas grandes guerras mundiais do século XX. Portugal não se envolveu diretamente nos conflitos da Segunda Guerra

Retornados era a definição dos cidadãos portugueses que precisaram retornar da África para Portugal com o fim da descolonização e independência das colônias. 2 Adjetivo referente a Walter Scott (1771-1832), escritor escocês considerado o criador do romance histórico. 1

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Mundial, porém precisou travar suas próprias batalhas quando eclodem os movimentos próindependência em solo colonial. Mayombe e Os transparentes são romances que orientam o leitor para duas configurações diferentes de Angola. O primeiro remonta à nação que nasce com a independência; o segundo, à que precisa se reconstruir com o fim da guerra civil e se adaptar às mudanças trazidas pela modernidade da qual ficou apartada durante os anos de dominação portuguesa. São obras que podem ser lidas como romance-nação, pois o país africano visto sob múltiplos ângulos é o protagonista, dando ao leitor, com a performatividade da narrativa, um panorama das mudanças por que passa a nação da independência aos tempos atuais.

5 Considerações finais Não se pode pensar numa educação que se paute pelo respeito à diversidade enquanto se ignora a história e a cultura dos povos que tiveram papel fundamental na construção da nação brasileira. A África não pode continuar sendo lembrada apenas quando se trata da escravidão dos africanos traficados do continente e seus descendentes. É preciso conhecer as realidades não apenas do período colonial, mas também as dos que o sucedeu, evitando assim uma intepretação anacrônica dessas realidades. Nesse sentido, este estudo pretendeu apontar a prosa, em especial o romance, como corpus capaz de contribuir para uma educação mais diversificada sobre os países africanos de língua portuguesa devido à abrangência de temas e perspectivas que a ficção permite abordar sem, contudo, prescindir dos estudos dos textos históricos enquanto área de conhecimento. Em Arte Poética (2004), Aristóteles defende que o historiador escreve sobre o que aconteceu, e o poeta sobre o que poderia ter acontecido. O termo “poeta” se estende metonimicamente aos autores de ficção de um modo geral, já que no tempo do filósofo grego os textos eram escritos em versos. Portanto, o ficcionista narra os acontecimentos por prismas diferentes do historiador, sem que isso se signifique distorção ou mentira, prática mais comum a documentos forjados nos períodos de governos ditatoriais como foi o de Salazar. Acessar a história e a cultura de países africanos através de suas literaturas e estabelecer contato com as verdades que a ficção é capaz de contar, por meio de seus autores e dos personagens que poderiam ter de fato existido, pode permitir ao aluno construir uma imagem menos colonizada sobre África e sua história, o que se pode verificar com os alunos do Instituto Federal Fluminense no final dos períodos em que tiveram contatos com romances de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e textos da crítica pós-colonial.

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COMO CITAR (ABNT): MOURA, A. C. Literaturas africanas de língua portuguesa na sala de aula por uma educação pós-colonial. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 24, n. 1, p. 104-116, 2022. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v24n12022p104-116. Disponível em: https://www.essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/16311. COMO CITAR (APA): Moura, A. C. (2022). Literaturas africanas de língua portuguesa na sala de aula por uma educação pós-colonial. Vértices (Campos dos Goitacazes), 24(1), 104-116. https://doi.org/10.19180/18092667.v24n12022p104-116.

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