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SOBRE A CONSTRUÇÃO AGNÓSTICA OU NEGATIVA LATINO-AMERICANA

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TEORIAS DA PENA E SUAS VERDADES NÃO DECLARADAS: CONSIDERAÇÕES SOBRE A CONSTRUÇÃO AGNÓSTICA OU NEGATIVA LATINO-AMERICANA

Beatriz dos Santos Funcia48

RESUMO A presente pesquisa apresenta uma análise crítica acerca das principais teorias legitimadoras da pena, considerando a completa dissociação entre suas construções teóricas e a efetividade prática. Analisa a teoria agnóstica ou negativa da pena, construída por Eugênio Raúl Zaffaroni, como uma concepção redutora de danos, de verdadeira contenção do violento e complexo poder punitivo, ao refutar os discursos punitivos até então pregados e considerar dados reais e concretos da pena e do sistema penal. O método utilizado foi o de leitura analítica proposto por Antônio Joaquim Severino para leitura, análise e interpretação de textos. Conclui-se que a construção agnóstica ou negativa se apresenta como uma crítica concreta e alternativa ao quanto disposto no ordenamento jurídico brasileiro, considerando que o estudo e crítica da pena são necessários diante de uma crise estrutural e sistêmica do cárcere brasileiro, bem como à fragilidade das teorias justificadoras ante aos efeitos deletérios reais da utilização do poder punitivo.

PALAVRAS-CHAVE Teorias da pena. Teoria agnóstica. Teoria negativa

48 Mestranda em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Direito e Processo Penal (2019) e graduada em Direito pela mesma instituição (2016);

1. INTRODUÇÃO A pena prestou-se como uma forma de afirmação do poder do Estado frente aos indivíduos de determinada sociedade, sendo revestida de diversos discursos capazes de legitimá-lo, desconsiderando qualquer marcador penal, estigma e dados reais que contradissessem a função a ela atribuída. Longe de ser um debate recente, possui inquestionável atualidade, sobretudo ante às peculiaridades da realidade brasileira que escancaram faceta desumana de um sistema aplicado de modo irracional.

Segundo o 5º Relatório Nacional sobre os Direitos Humanos no Brasil, entre os anos de 2001 e 2010, houve uma variação de 112,2% no tocante à evolução da população encarcerada, demonstrando um ritmo “frenético e assustador do ponto de vista dos efeitos nocivos que provocou em termos de garantia das condições básicas de detenção e de respeito aos direitos das pessoas presas” (BRASIL, 2012, p. 153). O ritmo frenético se manteve ativo, conforme dados divulgados no ano de 2017, pelo Departamento Penitenciário Nacional (Informações Penitenciárias – INFOPEN). O documento aponta que a população carcerária do Brasil ultrapassava a casa dos 720.000 (setecentos e vinte mil) presos, com perfil majoritário formado por jovens de até 29 anos, negros e de baixo grau de escolaridade (ensino fundamental incompleto) (INFOPEN, 2017). Informação mais recente divulgada no site do Governo Federal indica que em fevereiro de 2020 a população carcerária do Brasil seria de de 773.151 pessoas privadas de liberdade49 .A s consequências desastrosas da utilização do sistema penal como suposta forma de controle da criminalidade e solução dos problemas sociais, evidenciadas em números, deveriam, ao menos, causar certa preocupação na sociedade brasileira. Longe de ser um aspecto positivo, estar elencado como um dos países que mais encarceram no mundo é uma realidade que deve ser alterada. São tímidas as alterações na atuação prática e na mentalidade dos agentes envoltos no processo de criminalização primária e secundária. O que se observa são frágeis discursos de viés imediatista, que buscam uma pretensa “solução” rápida da questão criminal no Brasil por meio de mais repressão: construção de mais instituições totais, suas privatizações, criminalização de condutas e recrudescimento das leis penais. Além de ilusórios, tais movimentos apenas promovem o extermínio em grupo selecionado de pessoas e abafam qualquer tentativa de busca por soluções reais. Invoca-se, portanto, um estado de direito para legitimar um poder próprio do estado de polícia. (ZAFFARONI et al., 2003).

49 Disponível em https://www.gov.br/pt-br/noticias/ justica-e-seguranca/2020/02/dados-sobre-populacaocarceraria-do-brasil-sao-atualizados. Acesso em: 27 jun. 2021.

Os tênues avanços na jurisprudência brasileira quanto à realidade penal corroboram com a brutalidade diária no manuseio do direito penal, cujos limites previstos na Constituição Federal, ao invés de usados para conter o poder punitivo, são usados para expandi-lo50 . As funções atribuídas às penas são desmascaradas pela realidade, apesar de tamanha resistência das agências de controle social para reconhecer e aprender com a ineficácia das medidas até então tomadas.

Diante da situação atual brasileira, é notório que as clássicas teorias que atribuíram ao Estado uma justificativa ao poder de punir, criminalizando determinados sujeitos tidos como indesejáveis, fracassaram em sua proposta. A realidade letal dessa “fome de confinar”51 tem como único objetivo, ainda que não explicitamente declarado, a imposição de dor e sofrimento ao indivíduo escolhido na seleção penalizante, sobretudo diante das chamadas obras toscas da criminalidade, “delitos grosseiros cometidos com fins lucrativos” (ZAFFARONI et al., 2003, p. 47).

50 Nesse sentido, alerta Patrick Cacicedo (2017, p. 226) que: “Não obstante, por mais paradoxal que possa parecer, o período histórico sob a vigência da atual Constituição caracterizou-se pelo incremento do estado policial, com um avançado e violento processo de encarceramento em massa, pela piora significativa das condições materiais de aprisionamento, além da crescente prática de tortura e mortes por agentes estatais”.

51 Expressão utilizada por Lola Aniyar de Castro (2010, p. 92) durante um Seminário ocorrido no Brasil em 2008: “A fome de confinar parece agigantar-se, e luta com denodo para encher as prisões. É uma Hidra de mil cabeças: se corta um aparecem não duas, como no Segundo Trabalho de Hércules, mas cem”.

Diante dos dados e da constatação do aumento do número de pessoas presas ao longo dos anos, questiona-se acerca da aplicação da pena como meio de solução de problemas sociais, justificadas e legitimadas a partir de teorias conhecidas como absolutas e relativas (especial e geral). Para fins do presente artigo, as considerações serão tecidas sob o viés da restrição da liberdade do sujeito criminalizado, segregado do corpo social. Superada a exposição sobre a atualidade e importância do tema, o presente trabalho está dividido em duas partes. Expor, ainda que brevemente, as principais teorias que buscaram atribuir à punição uma finalidade, é de salutar importância para o escopo do presente trabalho, sem qualquer pretensão de esgotar o tema. Numa primeira parte, estão apresentadas e tecidas algumas críticas feitas pela doutrina. Na sequência, está apresentada a perspectiva agnóstica ou negativa da pena, com base no pensador latinoamericano Eugênio Raúl Zaffaroni, que, escancarando as contradições existentes no direito penal, entende que os discursos propostos acerca da pena não se prestam à contenção do poder punitivo, uma vez que ignoram a seletividade penal e a consequente incapacidade em solucionar conflitos. A realidade penal não se resume ao que está posto na lei, abarcando também a experiência da parcela da população criminalizada. É preciso superar a ideia de impor e incrementar

a pena, ampliando o poder punitivo e as implicações custosas dela decorrentes, legitimadas por construções falsas e que não correspondem à realidade. Como referência teórica utilizamos o estudo do professor argentino Eugênio Raúl Zaffaroni, sobretudo na obra “Direito Penal Brasileiro: primeiro volume”, escrita em conjunto com Nilo Batista, Alejandro Alagia e Alejandro Slokar. Para melhor desenvolver a análise, somamos a ela as visões de outros autores, como Salo de Carvalho e Rodrigo Duque Estrada Roig. Como procedimento metodológico foi utilizado fundamentalmente a análise bibliográfica, de textos do autor principal, dos comentadores de sua obra e de outros estudiosos cujos objetos de análise e campos de pesquisa possuem contribuições importantes para o desenvolvimento da problemática deste trabalho, etapa acompanhada por seu devido fichamento. Em seguida, os diferentes textos analisados foram expostos a uma etapa de comparação para que, finalmente, fossem extraídos os resultados.

A faceta impiedosa da pena aparece de inúmeras maneiras, sempre sobre determinado perfil social e sua aplicação mecânica e automática deve ceder lugar às críticas construídas sobre todo o processo, complexo por sua própria natureza. Caso contrário, se legitimará a imposição da dor sob falsas e inalcançáveis premissas, perpetuando a desigualdade já latente no Brasil. No fim, o que se eterniza com as justificações acríticas da pena é a destruição de um indivíduo, diferente unicamente por estar preso (BARATTA, [1990]). É premente a superação da situação de subjugação do ser humano frente ao irracional poder punitivo, notadamente mais poderoso, validando situação de intolerável opressão e arbitrariedade. Posto isto, uma crítica ao sistema penal é uma crítica ao poder (ZAFFARONI, 2013).

2. TEORIAS JUSTIFICADORAS DA PENA: TEORIAS ABSOLUTAS, RELATIVAS E MISTAS

O estudo da pena é tema polêmico, dado o notório distanciamento entre a teoria e a realidade social. Para além de um mero horizonte ou projeção do direito penal, a aplicação da pena constitui verdadeiro exercício de poder, que impõe dor e privação de direitos, mas não visa reparar, restituir, conter lesões ou perigos iminentes (ZAFFARONI et al., 2003). Trata-se de imposição de peculiar violência, pois interfere diretamente na liberdade e tempo de vida de uma pessoa, sem que, contudo, haja demonstração de efetiva eliminação de qualquer risco real (ZAFFARONI, 2013). Foram edificadas algumas construções teóricas que buscaram atribuir à pena alguma finalidade, como discursos de racionalização do poder soberano (CARVALHO, 2015). Entre as teorias tradicionais, estão as Absolutas

(Retributivistas), as Relativas (Preventivas) e as Mistas ou Ecléticas.

As teorias absolutas ou retributivas tem na pena a imposição de um mal a outro mal praticado, configurando “uma justa retribuição pelo crime praticado” (CACICEDO, 2017, p. 41). A pena nessa concepção, portanto, é um fim em si mesma. A ideia da pena como retribuição tem como principais expoentes Emmanuel Kant e Georg Friedrich Hegel. Kant, renunciando à ideia de que o homem poderia configurar um meio para o alcance de um fim, afasta da finalidade da pena qualquer caráter utilitarista. Em sua visão, o crime “configura transgressão ao direito de cidadania, cuja pena a ele deve corresponder, medida por uma espécie de talião jurídico” (MARQUES, 2016, p. 125).52

Para Hegel, a fundamentação da retribuição da pena é de ordem jurídica. O método dialético determina que o crime é a negação da ordem jurídica vigente e a pena, por conseguinte, é a negação da negação do Direito, sem qualquer interferência da qualidade ou quantidade da pena, “com o objetivo de reafirmar o Direito e atualizar a justiça” (MARQUES, 2016, p. 127).

52 Pela ideia exposta, lembra Marques (2016, p. 126) que “Para Kant, o homicídio deve ser punido com a morte. Diante do homicídio não há nenhuma comutação apta a satisfazer a justiça, por ausência de qualquer correspondência entre uma vida plena de trabalho e a morte. Por isso, só a pena de morte pode ser equiparada a esse crime, para efeito de justiça penal.” A lógica retributivista possui o mérito referente à limitação do excesso punitivo, já que a penal deveria corresponder estritamente ao mal do delito. Ocorre que esse mesmo ideal absoluto pode conduzir a um efeito intensificador da produção da dor por meio da aplicação da pena (CACICEDO, 2017), já que diante de uma conduta tida como criminosa seria inevitável a retribuição através dela.53 Nesse sentido, Marques (2016, p. 130) sublinha que “a retribuição, tanto em Kant quanto em Hegel, poderia conduzir à falta de limites na quantidade e na qualidade da pena”. Além disso, se o que se busca é evitar o mal, não há razão para perpetuálo, através da pena. A lógica puramente retributiva parece não encontrar guarida no ordenamento constitucional contemporâneo. As teorias preventivas ou relativas são divididas em Teoria da Prevenção Geral (positiva e negativa) e Teoria da Prevenção Especial (positiva e negativa). Em apertada síntese, as gerais analisam a pena sob a perspectiva da sociedade – grupo social não criminalizado -, enquanto que as especiais visam a prevenção dos delitos a partir de uma atuação no indivíduo criminalizado.

A Teoria da Prevenção Geral Negativa consiste na prevenção de delitos através

53 Seguindo na crítica, Carvalho (2015, p. 63) acentua que “A pergunta que deve ser enfrentada é a da validade ou da plausibilidade de uma fundamentação de pena estruturada em um princípio de vingança que se instrumentaliza em um cálculo sempre impreciso que é o da justa retribuição pelo dano causado”.

da coação psicológica exercida sobre as pessoas não criminalizadas. Extraise a ideia de que a pena teria um efeito dissuasório na sociedade, que orientaria suas ações a partir de suposto receio da aplicação da resposta penal, sociedade hipoteticamente homogênea em valores. O primeiro infortúnio dessa teoria a ser destacado é a pretensão de reificação do ser humano. Assume, pois, uma faceta utilitarista, na medida em que se vale da pessoa criminalizada como meio de intimidação para aqueles que possam vir a delinquir. Além disso, a dissuasão jamais será total54, já que a suposta intimidação esbarra na própria seletividade penal inerente ao sistema, na medida em que dentro da estrutura de criminalização já houve seleção do grupo a ser atingido. Parece inócuo supor que o efeito persuasivo atinja grupo de pessoas que naturalmente não constituem alvo do sistema penal. É equivocada a ideia de que a cultura da convivência humana possa ser reduzida à lei penal. As pessoas não criminalizadas

54 Sobre esse suposto efeito dissuasório, Zaffaroni et al. (2003, p. 117) acentuam que: “Portanto, o argumento dissuasório estaria destinado a cumprir-se sempre sobre algumas pessoas vulneráveis e estar sempre referido aos delitos que elas costumam cometer. Não obstante, nem mesmo isso seria verdadeiro, porque, inclusive entre as pessoas vulneráveis e relativamente a seus próprios delitos, a criminalização secundária é igualmente seletiva, brincando de modo inverso com a habilidade. Uma criminalização que seleciona as obras toscas não exemplariza dissuadindo do delito, mas sim da inabilidade em sua execução: estimula o aperfeiçoamento criminal do delinquente ao estabelecer o maior nível de elaboração delituosa como regra de sobrevivência para quem delinque. Não tem efeito dissuasivo, mas propulsor de maior elaboração delituosa.” possuem uma vasta gama de motivos para não praticarem atos lesivos, que não o temor pela aplicação de uma pena (ZAFFARONI et al., 2003). Extrapola até mesmo os limites do próprio ato praticado, pois impõe uma pena considerando fatos alheios.

Essa falsa ilusão propagada pela Prevenção Geral Negativa faz com que se enrijeça as penas a algumas pessoas inábeis, que carregam em si, graças a uma construção falsa e irracional, “a carga de todo o mal social” (ZAFFARONI et al., 2003, p. 119). A Teoria da Prevenção Geral Positiva tem como expoente Günther Jakobs e preceitua que a função da pena é o resguardo cognitivo da vigência da norma. A pena aplicada ao sujeito criminalizado é destinada aos cidadãos fiéis ao direito, a fim de que conservem a fidelidade e confiança na norma (CACICEDO, 2017). As noções contidas no bojo da construção do professor alemão possuem conteúdo preocupante, como a divisão do direito penal aos considerados cidadãos e aos inimigos, a partir de uma análise da presença ou não de uma cognição mínima de fidelidade à ordem jurídica. Não é preciso ir muito longe para se perceber que a despersonalização permite que àquele tido como inimigo seja aplicado um direito penal sem garantia alguma, legitimando verdadeiro estado de guerra. A Teoria da Prevenção Especial Positiva, por sua vez, estabelece que a função da pena consiste no

melhoramento da pessoa criminalizada, através das “ideologias re: ressocialização, reeducação, reinserção, repersonalização, reindividualização, reincorporação” (ZAFFARONI et al., 2003, p. 126). Como é sensato supor, o isolamento e estigmatização com vistas à integração social constituem medidas inconciliáveis. Não por outra razão, Baratta ([1990], p. 3) assegura que “Não se pode segregar pessoas e, ao mesmo tempo, pretender a sua reintegração”, indicando que “um dos elementos mais negativos das instituições carcerárias, de fato, é o isolamento do microcosmo prisional do macrocosmo social, simbolizado pelos muros e grades”.

É contraditória a função de reeducação do condenado, ponderando Baratta (2011, p. 186-187) que o cárcere constitui um reflexo, principalmente de traços negativos, da sociedade, concluindo que essa “reeducação” deveria ser, antes do preso, da própria sociedade:

(...) antes de querer modificar os excluídos, é preciso modificar a sociedade, atingindo, assim, a raiz do mecanismo de exclusão. De outro modo permanecerá, em quem queira julgar realisticamente, a suspeita de que a verdadeira função desta modificação dos excluídos seja a de aperfeiçoar e de tornar pacífica a exclusão, integrando, mais que os excluídos na sociedade, a própria relação de exclusão na ideologia legitimante do estado social. Apesar do conhecido paradoxo a que está inserido o raciocínio da prevenção especial positiva, o artigo 1º da Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal) parece ter enaltecido essa nebulosa elaboração teórica ao prever que dentre os objetivos da execução da pena está a de “proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. É notória a hipocrisia pretendida pelo legislador, já que não há qualquer possibilidade de reincorporação harmônica de uma pessoa submetida ao cárcere e seus efeitos.

Oportuno salientar, nesse contexto, que os sistemas global e regional interamericano de proteção de direitos humanos não contribuem para a superação do antagonismo proposto pela prevenção especial positiva. As Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de Presos – Regras de Mandela -, em seu número quatro55 estabelecem que o encarceramento tem como objetivo o controle da criminalidade e redução da reincidência, a serem atingidos pela reintegração dos criminalizados à sociedade.

O mesmo entendimento foi contemplado nas Regras Mínimas das Nações Unidas para o Tratamento de

55 Item 1 da regra nº 4: “Os objetivos de uma sentença de encarceramento ou de medida similar restritiva de liberdade são, prioritariamente, de proteger a sociedade contra a criminalidade e de reduzir a reincidência. Tais propósitos só podem ser alcançados se o período de encarceramento for utilizado para assegurar, na medida do possível, a reintegração de tais indivíduos à sociedade após sua soltura, para que possam levar uma vida autossuficiente, com respeito às leis”.

Mulheres Presas e Medidas não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras, ao se valer da expressão “reintegração das presas na sociedade”56 em diversas passagens do documento. Por sua vez, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, dentro de sua competência contenciosa, no contexto do caso Caesar vs. Trinidade e Tobago, com base no artigo 5º, item seis da Convenção Americana de Direitos Humanos57 , indicou que a finalidade da pena é o projeto de readaptação, ressocialização e reabilitação da pessoa, apesar dos apontamentos críticos feitos à prevenção especial positiva, por inexistir melhor opção garantista, bem como substitutos imediatos com a mesma eficácia.58

Ainda que a análise do direito penal à luz da normativa internacional não

56 À guisa de exemplo, vide enunciado da Regra nº 40: “Administradores de prisões deverão desenvolver e implementar métodos de classificação que contemplem as necessidades específicas de gênero e a situação das mulheres presas, com o intuito de assegurar o planejamento e a execução de programas apropriados e individualizados para a reabilitação, o tratamento e a reintegração das presas na sociedade”.

57 Segundo o item mencionado: “As penas privativas de liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos condenados”.

58 A sentença referente a esse caso e de toda a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos está disponível em https://www.corteidh. or.cr/casos_sentencias.cfm. Acesso em: 28 jun. 2021. A fragilidade do argumento utilizado foi identificada por Zaffaroni et al. (2003, p. 126), ao constatarem que “Quando uma instituição não cumpre sua função, por regra não deve ser empregada. Na realidade paradoxal do continente latino-americano, as penas não deveriam ser impostas se se mantivesse, coerentemente, a tese preventivista especial positiva. A circunstância de que sequer seja mencionada tal possibilidade prova que a prevenção especial não passa de um elemento do discurso.” constitua o escopo do presente trabalho, os exemplos acima expostos da falta de amparo internacional sobre a questão prisional apenas revelam a falta de diálogo entre o que está posto e a realidade, o que pode prejudicar qualquer tentativa de discussão crítica e avanço em um dos temas contemporâneos mais sensíveis à liberdade do ser humano.

Os números demonstram que medidas que buscam o recrudescimento do direito penal não trazem qualquer efeito que indique a harmônica integração dos que foram submetidos ao seu rígido sistema de controle. A suposta integração social do criminalizado obtida por sua retirada do convívio social se mostra inócua na persecução de seus fins. A segregação se presta a acentuar o abismo social entre a vida livre e a massa de pessoas esquecidas no cárcere.59 Quanto à Prevenção Especial Negativa, é manifesta a perversidade da função da pena, qual seja a mera eliminação da pessoa tida como desviante. Diante do fracasso da pretensa reintegração, a finalidade passa a ser o descarte da peça defeituosa da sociedade, novamente relativizando seu status de “pessoa”. Por fim, destaca-se dentre as Teorias Mistas ou Ecléticas, a teoria unificadora

59 A discrepância entre a vida livre e a vida na prisão pode ser associada ao princípio da less eligibility. Sua definição pode ser verificada no contexto das workhouses inglesas, nas quais “(...) era necessário que a vida na casa de trabalho oferecesse, sob qualquer aspecto, a começar, obviamente pelo padrão de vida, menos do que o trabalhador livre do mais baixo estrato social pudesse obter.”, (MELOSSI; PAVARINI, 2006, p. 66-67).

dialética de Claus Roxin, que evita os excessos unilaterais de cada teoria e conduz a finalidade da pena com equilíbrio de todos os princípios e restrição mútua (MARQUES, 2016).

No Brasil, é possível perceber uma mescla das funções tradicionalmente atribuídas à pena: ao mesmo tempo que a Lei de Execução Penal evidencia uma “prevenção especial positiva”, o artigo 59 do Código Penal determina que a pena aplicada deve ser aquela necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime.60

Nesse sentido, é salutar a advertência a respeito da opção pela junção das teorias da pena, considerando que, juntas, “são muito mais autoritárias do que qualquer uma das teorias puras, pois somam as objeções de todas as que pretendem combinar e permitem escolher a pior decisão em cada caso”(ZAFFARONI et al., 2003, p. 141). Conforme exposto, todas as teorias que pretenderam atribuir a pena uma função manifesta não consideraram as consequências reais de sua aplicação e os seus efeitos sociais concretos. Foram discursos que não buscaram quaisquer soluções reais para o conflito, senão

60 Artigo 59: O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. apenas suspendê-lo em uma dinâmica social que segue seu curso.61 Pelas obscuridades apontadas, cumuladas com a falta de interesse político na alteração do paradigma da pena e a aplicação mecânica da lei pelos agentes de controle social, incapazes de realizar qualquer julgamento crítico, é que surgem reflexões que buscam romper com o que é dado como certo. A Teoria Agnóstica ou Negativa da pena se apresenta não tanto como uma construção teórica, mas sim como um exercício hermenêutico crítico do fenômeno punitivo, associado à realidade social.

3. A CONSTRUÇÃO AGNÓSTICA OU NEGATIVA DA PENA

Diante do fracasso das funções manifestas da pena e considerando, sobretudo, a realidade latino-americana e seu singular sistema penal, hipócrita e brutal, é que surge uma construção crítica da pena, proposta por Eugenio Raúl Zaffaroni, cujo cerne é a impreterível contenção e limitação de um poder punitivo que se manifesta irracionalmente através da imposição de dor e sofrimento. Trata-se da Teoria Agnóstica ou Negativa

61 O poder punitivo enquanto modelo decisório da solução de conflitos não se presta a resolvê-los, senão apenas suspendê-los, na medida em que não inclui a vítima no processo de resolução. Em outra interessante passagem de ZAFFARONI et al. (2003, p. 42), aponta-se que: “Um número exagerado de formações pétreas colocado no caminho da dinâmica social tem o efeito de alterar seu curso e gerar perigosas reapresas. O volume de conflitos suspensos por um estado será o indicador de sua vocação de provedor de paz social e, por conseguinte, de sua força como estado de direito”.

da Pena, um modelo dogmático crítico (CARVALHO, 2015) que leva em conta o complexo fenômeno punitivo e as implicações reais que não mais se sustentam na atualidade.

A construção negativa ou agnóstica parte de uma interpretação de todo o complexo fenômeno punitivo, a partir de cognições que exteriorizam situações reais ignoradas por quem tinha o dever de considerá-las, em prol da prevalência do estado de direito.

O sistema penal é formado pelo conjunto das agências que operam a criminalização primária e secundária ou que convergem na sua produção. A etapa de criminalização primária é executada pelas agências políticas (Poderes Legislativo e Executivo) e corresponde ao ato e efeito de sancionar leis penais que criminalizam condutas e permitem eventual punição. A criminalização secundária, por sua vez, é a realizada pelas agências executivas, com destaque para as agências policiais, e consiste na aplicação concreta da ação punitiva exercida sobre determinado grupo. No mesmo momento em que pessoas são criminalizadas, são igualmente selecionadas vítimas a serem protegidas. O estereótipo é o principal critério seletivo da criminalização secundária, que acaba criando uma imagem pública do delinquente, a partir daqueles atos mais grosseiros, de fácil detecção, divulgados como se fossem os únicos delitos existentes, o que condiciona o funcionamento de todas as demais agências (ZAFFARONI et al., 2003). No contexto da criminalização secundária, ganha destaque a seletividade penal, característica intrínseca a todo e qualquer sistema penal e amplamente ignorada. A própria realização da criminalização que está inserida no âmbito do sistema penal formal é falsa, já que geraria uma catástrofe social com o “indesejável efeito de se criminalizar várias vezes toda a população” (ZAFFARONI, 2001, p. 26). A conclusão imediata é que, na verdade, “o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e, sim, para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida, naturalmente, aos setores vulneráveis”. E, ainda, quando as agências políticas ampliam o rol de crimes ou incrementam penas, aumentam “o arbítrio seletivo dos órgãos executivos do sistema penal e seus pretextos para o exercício de um maior poder controlador” (ZAFFARONI, 2001, p. 27). Nesse contexto, a pena é um exercício de poder, que não repara, restitui, detém lesões em curso ou neutraliza perigos iminentes (ZAFFARONI et al., 2003). O fundamento político da pena consubstancia uma manifestação do poder punitivo, que coexiste e luta contra o estado de direito.

O exercício do poder punitivo, assim, é uma ramificação do estado de polícia

que, em maior ou menor grau – direito penal autoritário e direito penal liberal, respectivamente -, através das teorias positivas da pena, legitima o poder exercido sobre pessoas selecionadas na etapa de criminalização secundária, estabelecendo uma relação vertical, hierarquizada e autoritária (ZAFFARONI et al., 2003). As teorias expostas na primeira parte do trabalho atribuem a pena funções manifestas, tidas como “positivas”, no sentido de atribuir um bem a alguém, o que daria ao estado dever e direito de aplicá-la sempre que entendesse oportuno (ZAFFARONI et al., 2003). De mera pretensão punitiva, então, o estado teria verdadeiro direito de punir.62 Na medida em que tais teorias concorrem para a legitimação de elementos do nocivo estado de polícia, são falsas, ocultam o modo real do exercício do poder punitivo e apenas eventualmente cumprem com suas finalidades manifestas, bem como múltiplas e de difícil dimensão funções reais, é que o conceito de pena deve ser obtido por via diversa das suas funções. Exatamente da constatação e comprovação do insucesso das teorias

62 Importante é a contribuição de Carvalho (2015, p. 162) sobre o reflexo do exposto a partir de uma concepção negativa da pena: “Assim, o binômio crime-pena não se estabelece em uma relação horizontal de necessidade, em que a sanção é percebida como consequência natural do delito. Na perspectiva negativa, esta relação se torna vertical, na qual a pena, como uma decorrência política do processo de criminalização, deve ser controlada pelo direito.”. positivas e funções latentes ou reais é que se situa a Teoria Agnóstica ou Negativa da Pena, que evidencia seu fundamento político e não tem como pressuposto qualquer finalidade, sem que com isso legitime elementos do estado de polícia próprios do poder punitivo que lhe toca limitar (ZAFFARONI et al., 2003). É um conceito negativo porque não confere à pena uma função positiva. Agnóstico, pois admite não conhecer qualquer função à pena (ZAFFARONI et al., 2003). A partir dessa concepção, há uma ampliação do horizonte do direito penal para considerar como pena tanto as leis manifestamente penais, quanto as inúmeras coerções ilícitas existentes à margem do ordenamento jurídico, as quais, indubitavelmente, são penas, ainda que ilícitas, tais como torturas, ameaças, agravamentos ilícitos de penas lícitas.63 Esse poder punitivo exercido à margem da legalidade, impulsionados por um discurso jurídico que legitima, é o que os autores denominam de “sistema penal subterrâneo”, institucionalizando a pena de morte (execuções sem processo), desaparecimentos, torturas, sequestros roubos saques, tráfico de drogas, exploração do jogo, da prostituição etc.”

63 O limite da agência política em delimitar artificialmente o que seria ou não uma pena foi apontado por Zaffaroni (2001, p. 202), em relevante excerto: “Assim, como não pode converter em conduta humana qualquer fato, nem desconhecer o caráter de conduta ao fato humano que a configure, tampouco pode negar o dado real do conteúdo da pena. O legislador pode fazer muitas coisas; mas, entre outras, não tem o poder para dizer que o doloroso não dói”.

(ZAFFARONI, et al., 2003, p. 70)64 . Se as teorias justificadoras se prestam, unicamente, para reafirmar e expandir o poder punitivo do Estado, com o mais violento instrumento, a teleologia redutora proposta a partir de uma concepção agnóstica ou negativa da pena tem a intenção de limitar esse poder punitivo e minimizar o sofrimento imposto pela pena. Partindo dessa perspectiva, a pena, enquanto expressão da violência política, é incapaz de cumprir quaisquer funções ou de exercer quaisquer finalidades positivas (CARVALHO, 2015). Um direito penal que não tenha incorporado a seu horizonte os limites factuais e sociais do poder punitivo, nem seu exercício seletivo, possui uma consolidação a partir de dados sociais falsos, o que, além de naturalizar a criminalização secundária e a imposição de uma pena somente a determinadas pessoas vulneráveis, atribui a ela uma função supostamente positiva e racional, legitimando e ampliando o exercício do poder punitivo (ZAFFARONI et al., 2003).

Sobre a racionalidade do sistema

64 Relembram os autores que o sistema penal subterrâneo é fenômeno estrutural, existindo em todos os sistemas penais: “Os campos de concentração, os grupos paraoficiais (Ku-Klux-Klan e “contras”), as expulsões informais de estrangeiros, as extradições mediante sequestro, os grupos especiais de inteligência italianos, norte-americanos e espanhóis que operam fora da lei, as arbitrariedades contra os irlandeses etc., comprovam a universalidade e estruturalidade do fenômeno. À medida que o discurso jurídico legitima o poder punitivo discricionário e, por conseguinte, nega-se a realizar qualquer esforço em limitá-lo, ele está ampliando o espaço para o exercício de poder punitivo pelos sistemas penais subterrâneos.” (ZAFFARONI et al., 2003, p. 70). penal, Zaffaroni (2001) defende que o discurso jurídico-penal apenas seria racional se fosse coerente e verdadeiro, na medida em que tivesse tanto uma fundamentação antropológica que lhe atribuísse racionalidade, uma vez que o direito serve ao homem e não o contrário, quanto verdadeira no nível abstrato (adequação de meio e fim) e concreto (sistema penal que operasse sobre a realidade). A primeira noção que se deve ter em mente para compreensão da postura agnóstica ou negativa da pena, portanto, é que a pena possui fundamento político, não sendo “consequência jurídica” do crime, senão sua própria “condição de existência jurídica” (BATISTA, 2011, p. 42). A imposição da pena é, pois, um ato político, revelando a mais severa manifestação de poder. Reconhecendo a natureza eminentemente política da pena, não há qualquer direito de punir (ius puniendi), mas apenas mera pretensão, com a necessária contenção do poder punitivo. A expansão do poder punitivo é a inevitável ascensão do estado de polícia e seus consectários lógicos: autoritarismo, relação vertical e disciplinar, e acentuação da separação entre classe hegemônica e classe subalterna, alvo principal da criminalização secundária e divulgada como responsável por todo o mal social e, seus supostos delitos, como os únicos existentes.

A partir da mesma fundamentação política de pena e de seu conceito agnóstico ou negativo, o papel das agências jurídicas também ganha novos contornos, não no sentido de manutenção de uma vontade hegemônica, mas sim de controle do poder punitivo e atenuação da dor.65

O dever decisório das agências jurídicas, abarcando todos os elementos que consolidam um pensamento crítico e a deslegitimação de um poder inserido no estado de polícia, se orientariam para a contenção do poder punitivo. Ainda que as agências jurídicas não participem efetivamente da seleção penalizante, seu papel não pode ser tido como irrisório, por ser o motor na efetivação de barreiras contra o progresso do estado de polícia, que culminaria no fim do estado de direito.66 A função das agências políticas a partir de uma teoria agnóstica ou negativa da pena pode ser assim sintetizado:

65 Zaffaroni et al. (2003, p. 109) associam essa contenção do poder punitivo sem sua legitimação ao que ocorre com o direito internacional humanitário, na medida em que “é evidente que seus órgãos de aplicação – sobretudo a Cruz Vermelha Internacional – não têm poder para evitar nem deter as guerras, mas sim para limitar e conter parte da violência, e isto é justamente o que fazem e a única coisa que deles se pode exigir que façam. Ninguém duvida da legitimidade nem da racionalidade do direito internacional humanitário, precisamente porque se trata de um programa de limitação e redução de um acontecimento de violência irracional e deslegitimado.”

66 “A mais óbvia função dos juízes penais e do direito penal como planejamento das decisões judiciais é a contenção do poder punitivo. Sem a contenção jurídica (judicial) o poder punitivo ficaria liberado ao puro impulso das agências executivas e políticas e, por conseguinte, desapareceriam o estado de direito e a própria república” (ZAFFARONI et al., 2003, p. 40). A postura agnóstica permite, portanto, que o operador jurídico atue consciente da institucionalização do cárcere, voltando o seu saber e a sua atuação para a máxima neutralização possível dos efeitos da prisionalização e para diminuição da vulnerabilidade dos indivíduos e dos criminalizados. (CARVALHO, 2015, p. 164)

O sistema carcerário, enquanto estado de coisas inconstitucional, é caracterizado pela existência de massivas violações de direitos e garantias fundamentais, demonstrando que medidas imediatistas e decisões judiciais desprovidas de análise de dados concretos devem ceder lugar ao robusto conjunto de críticas feito pela doutrina.

Nesse sentido, em relação à natureza estrutural e sistêmica da superlotação carcerária, realidade brasileira, existe verdadeiro dever jurídico-constitucional das agências políticas e jurídicas no sentido da supressão da superlotação, na medida em que a intensificação do encarceramento, por meio da superlotação carcerária, impõe evidentes danos físicos, sociais, morais e existenciais às pessoas presas, ferindo o fundamento da dignidade da pessoa humana e objetivo constitucional do bem de todos (ROIG, 2018, p. 605).

A simbologia de muros, grades e celas, configurando a prisão como uma

instituição total67, ultrapassa uma barreira meramente arquitetônica, interferindo substancialmente na personalidade do ser humano segregado, com a “mortificação do eu”. As instituições totais “são estufas para mudar as pessoas; cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu” (GOFFMAN, 2015, p. 22). Posturas de viés evidentemente autoritário são naturalizadas sob o mito da ressocialização e sob o manto da proteção da sociedade, seus interesses hegemônicos, redução da criminalidade e da reincidência, que não passam de discursos desgastados e falsos ante à realidade brasileira, conforme se buscou demonstrar.

No tocante à execução da pena, essa degradação da personalidade se faz ainda mais presente, evidenciando os tantos meios exitosos da mutilação interna do criminalizado, que devem (ou ao menos deveriam) constituir o horizonte de pena. Nesse sentido, da análise dos objetivos da República Federativa do Brasil elencados na Constituição Federal68, há um dever

67 “Uma instituição total pode ser definida como um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada.” (GOFFMAN, 2015, p. 11).

68 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. jurídico-constitucional de redução de sofrimento e vulnerabilidade:

Nessa perspectiva, assim como o Direito Penal, o Direito da Execução Penal também deve possuir o objetivo de legitimar as decisões das agências jurídicas, tomadas no intuito de conter racionalmente a ação do poder punitivo-executório do Estado de Polícia em prol do fortalecimento das bases do Estado de Direito (ROIG, 2018, p. 27).

Ensina Batista (2011, p. 113) que em uma sociedade dividida em classes, o direito penal acaba protegendo as relações sociais da classe dominante, e, assim, os efeitos não declarados da pena também configuram “uma espécie de “missão secreta” do direito penal”.

O efeito deletério do ambiente carcerário, a inerente seletividade penal e o fracasso das teorias legitimadoras da pena, diante da discrepância entre a teoria e a prática, demonstram a inadiável defrontação responsável do tema, sensível a considerável parcela da população. O certo é que a resposta não está no recrudescimento de leis penais, na construção de mais estabelecimentos penais e privatização dos presídios, políticas que apenas fomentam o incremento dos números da população carcerária, já alarmante, impulsionando a desigualdade social brasileira, o que, frisese, se distancia dos objetivos propostos pela Constituição.

Esse norte não pode ser ignorado pelas agências do sistema penal, sobretudo as agências jurídicas, que, a partir de uma visão agnóstica ou negativa da pena, possuem meios de cumprir seu papel de urgente contenção e necessária limitação do poder punitivo e sua realidade letal.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho buscou apresentar, de modo não exaustivo, o complexo universo da pena, evidenciando o conturbado contexto penal brasileiro, bem como uma dogmática crítica construída exatamente com base no insucesso de teorias que pretenderam racionalizar a imposição de uma dor à pessoa selecionada dentro das etapas de criminalização. Não faltam críticas às construções teóricas legitimadoras da pena, divididas em Teorias Absolutas, Relativas e Mistas, diante do fracasso e impotência em promover a solução de conflitos sociais. As Absolutas, como forma de retomar o espírito de vingança. As Preventivas Gerais, com seu viés utilitarista ao utilizar o sujeito selecionado como “exemplo” para a sociedade ou como forma de manter a ordem vigente. As Preventivas Especiais e seu caráter perverso, ao defender a neutralização do sujeito criminalizado, e, também, dissimulado, ao pretender reintegrá-lo na sociedade, retirando-o do convívio social, sobretudo considerando o estado de coisas inconstitucional que é o sistema carcerário. Exatamente desse exercício proposto de análise das funções reais ou latentes da pena que extrapolam às manifestas, é inserida a construção agnóstica ou negativa proposta por Zaffaroni de pensar a pena, essa manifestação de poder. A Teoria Agnóstica ou Negativa da Pena é moldada a partir de dados sociais reais, escancarando as facetas encobertas por um discurso que jamais resolverá conflito algum e somente potencializará situação de desigualdade e sofrimento. Essa construção evidencia que a pena é uma manifestação de poder e que o seu horizonte é muito mais amplo do que formalmente posto. Assim, é necessária a contenção do poder punitivo, se distanciando, em definitivo, da multiplicação da dor através da violência à parcela vulnerável da população selecionada nos processos de criminalização. A utilização de teorias estéreis para fundamentar decisões que impõem uma pena reduz truculento instrumento a uma mera consequência automática ante ao cometimento de um crime. As consequências diretas em se legitimar o poder punitivo refletem uma tragédia há tempos anunciada: reprodução da desigualdade social e o massacre diário daqueles que foram selecionados no processo de criminalização e que foram condenados a viver à margem do corpo social. É inadiável a limitação desse poder, a partir de um paradigma crítico tecido a partir de dados concretos.

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