Vida C E L S O
G U T F R E I N D
CACHORROS Não há de ser enfadonho o nosso texto, porque foram só dois. Refiro-me aos cachorros, do título e da minha infância. Dois, mas decisivos, e os principais responsáveis pelo que houve de melhor na minha formação: empatia e força para o vínculo. Sem os meus cachorros, hoje eu seria um cachorro, no pior sentido. O primeiro se chamava Bob e foi trazido do interior pelo meu avô caixeiro-viajante. Apresentado como um Fox, raça prestigiada na época, mas a cor, o tamanho e a quantidade de pulgas saltitantes punham certas dúvidas no ar. Meu avô morreu sem mostrar o papel do pedigree, mas o seu riso constante deixava claro que era mais um pícaro e pão-duro do que um mentiroso. Saudades do Bob! Saudades do avô! Morávamos numa casa, em Petrópolis, e Bob só voltava à noite para comer, brincar e dormir. Ignorávamos onde almoçava. Dividia o harém das cadelas, nas redondezas, com Pirulito, o Fox legítimo de um vizinho calmo. Legítimo, mas sem a mesma categoria de viver. Um dia, uma Cocker Spaniel, raça valiosíssima, pariu filhotes que custariam caro, não fossem tão diferentes dela. Seu dono, um vizinho brabo, pediu uma indenização para o meu pai, alegando a prova de que todos tinham a cara e o focinho do Bob. Até hoje não sei como a história terminou. Bob foi atropelado quinze vezes, recolhido pela “carrocinha” umas dez e desapareceu por motivos ignorados, em outras tantas. Tínhamos passe livre no hospital veterinário da UFRGS, onde era costurado por jovens e talentosos cirurgiões, que o devolviam, quase intacto, à vida.
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Estilo Zaffari
Achei que era imortal, mas não era. O derradeiro atropelamento atropelou-me também e até hoje o depuro em histórias infantis sobre cachorros e poemas sem cachorros para adultos. Nick, o cachorro seguinte, era um Fox oficial, como o Pirulito. Chegou malhado, sem pulgas, e sofreu o ambiente de uma família enlutada. Criado numa bolha à prova de acidentes, ele não teve culpa de ser o neurótico que sempre foi. Só fez sexo com almofadas, tinha tara por elas, especialmente uma malhada como ele. Mas jamais se expandiu nesse quesito. Certa feita, uma mulher que passava pela rua, vendo-o dando voltas sobre si mesmo, iludiu-se de que havia ali um reprodutor e convidou-o para “cruzar” com a sua cadelinha. Lembro-me de tudo, infelizmente. Elas moravam na rua Silva Só, Nick e eu percorremos a pé a larga distância entre os bairros. A candidata era muito bonitinha, mas o noivo não aceitou nem a água oferecida pela dona. Língua de fora, arfando de tanto latir, não passou disso. A senhora insistiu que eu insistisse, mas considerei a atitude impositiva. E fomos embora, sob o eco de vaias e latidos. Nick morreu virgem, de velho, na véspera de completar vinte anos, mas os seis de Bob foram mais intensos. Partiu jovem, no auge, como costuma acontecer com os heróis. Dentro de mim, Bob e Nick se complementam, como a vida e a morte, entre contrastes e diferenças. CELSO GUTFREIND É PSICANALISTA DE CRIANÇAS E ADULTOS E ESCRITOR